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terça-feira, 17 de novembro de 2009

cap 10 a 19

Capítulo 10

Começa a declarar as graças que o Senhor lhe concedia na oração. Como podemos nos ajudar a nós mesmos e como é importante entendermos os dons de Deus. Pede ao seu destinatário que doravante o que ela escrever seja secreto, visto que a mandaram falar de uma coisa tão particular quanto são essas graças.

1. Como disse,1 eu tinha começado a sentir às vezes, embora com brevi­da­de, o que passo a relatar. Vinha-me de súbito, na representação interior de es­tar ao lado de Cristo, de que falei,2 tamanho sentimento da presença de Deus que eu de maneira alguma podia duvidar de que o Senhor estivesse dentro de mim ou que eu estivesse toda mergulhada nele. Não se tratava de uma visão; acredito ser o que chamam de teologia mística: a alma fica suspensa de tal modo que parece estar fora de si; a vontade ama, a me­mória parece estar quase perdida, o intelecto não discorre, mas, a meu parecer, não se per­de; entretanto, repito, também não age, ficando como que espantado com o muito que alcança, porque Deus lhe dá a entender que ele nada com­preen­de daquilo que Sua Majestade lhe representa.

2. Antes, eu tivera continuamente uma ternura que, em parte, é possível procurar: uma satisfação que não é completamente dos sentidos nem é bem espiritual. Tudo é dado por Deus; mas, ao que parece, para isso podemos con­tribuir considerando nossa inferioridade e a ingratidão para com Deus, o muito que Ele fez por nós, sua Paixão, em que sofreu graves dores, Sua vida tão cheia de aflições; deleitando-nos por ver Suas obras, Sua grande­za, o amor que tem por nós e muitas outras coisas que quem deseja progredir espiritualmente encontra por toda parte, mesmo que não as viva procurando. Se, ao lado disso, houver algum amor, a alma fica inebriada, o coração fica terno, vêm lágrimas; às vezes, parece que as arrancamos à força e, em ou­tras, elas vêm do Senhor, e com tanta energia que não podemos resistir. Ao que parece, Sua Majestade nos recompensa pelo nosso pequeno esforço com um dom imenso que é o consolo sentido pela alma ao ver que chora por tão gran­de Senhor; e não me espanto com isso, pois razão há de sobra para sentir consolo, pois ali ela se inebria e se deleita.

3. Considero boa a comparação que agora me ocorreu: os prazeres obtidos da oração devem ser os dos que estão no céu, porque, como não vêem mais do que o Senhor, de acordo com o seu merecimento, quer que vejam, e como reconhecem os poucos méritos que têm, cada um deles se contenta com o lugar em que está, embora haja uma enorme diferença entre a felicidade de cada um no céu, que é muito maior do que a que há entre os gozos espirituais daqui da terra.

E, com efeito, a alma, no início, ao receber essa graça de Deus, quase tem a impressão de que não há mais a desejar, dando-se por bem paga por tudo quanto serviu. E sobram-lhe razões, pois uma lágrima dessas, que, como digo, quase procuramos — embora sem Deus nada se faça —, não me pareça poder ser comprada nem com todos os trabalhos do mundo, pois muito se ganha com elas; e que lucro maior do que ter um testemunho de que contentamos a Deus? Por isso, quem chegar a esse ponto louve muito a Deus, reconhecendo que muito Lhe deve, porque parece que o Senhor já o deseja para a Sua casa e o escolheu para o Seu Reino — se a alma não voltar atrás.

4. Não procure as humildades, de que pretendo falar, de certas pessoas que crêem ser humilde não compreender que o Senhor vai lhes concedendo dons.3 Entendamos, como deve ser, que Deus no-los dá sem nenhum merecimento nosso, e agradeçamos a Sua Majestade; porque, se não reconhecermos que recebemos, não vamos despertar para amar. Uma coisa é certa: quanto mais vemos que estamos ricos, sabendo que somos pobres, tanto maior o nosso aproveitamento e ainda mais verdadeira a humildade. O resto é abater o ânimo por pensar que não se é capaz de obter grandes bens se, começando o Senhor a dá-los, a alma se atemoriza com medo da vaidade. Acreditemos que Aquele que nos dá os bens nos concederá a graça para que, começando o demônio a tentar-nos nesse aspecto, nós o entendamos e nos fortaleçamos para resistir-lhe; isto é, se andarmos com retidão diante de Deus, voltados para contentar apenas a Ele, e não aos homens.

5. É evidente que amamos mais a uma pessoa quando nos lembramos muito das boas obras que faz por nós. Pois, se é ilícito e tão meritório nos lembrarmos sempre de que Deus nos deu a vida, nos criou do nada, nos sustenta, e de todos os outros benefícios que a Sua morte e os Seus sofrimentos nos deram, bem como do fato de que muito antes de nos criar Ele já os sofrera por cada um de nós, por que não seria lícito que eu reconheça, veja e considere muitas vezes que costumava falar em vaidades e que agora, pelo favor de Deus, só tenho vontade de falar Dele? Eis aqui uma jóia que, se reconhecermos que nos foi dada e que a possuímos, nos força a amar, porque o amor é todo o bem da oração fundada na humildade. Pois o que deve ocorrer quando tivermos em nosso poder jóias mais preciosas — que alguns servos de Deus já receberam — como as do menosprezo do mundo e de nós mes­­mos? É claro que nos consideraremos mais devedores e mais obrigados a servir e a compreender que não tínhamos nada disso e a reconhecer a ge­­nerosidade do Senhor. Porque, para alma tão pobre, ruim e pouco merecedo­ra como a minha, bastava a primeira jóia destas, que ainda seria muito, mas ain­da assim o Senhor quis cumular-me de mais riquezas do que eu poderia desejar.

6. Devemos tirar forças para servir mais e procurar não ser ingratos; por­que o Senhor nos oferece esses dons com essa condição, pois, se não usar­mos bem o tesouro e o elevado estado em que nos põe, Ele voltará a to­má­-los, e ficaremos ainda mais pobres; e Sua Majestade dará essas jóias a quem as preze e beneficie com elas a si e aos outros.

Como pode aproveitar e gastar com liberalidade quem não sabe que está rico? É impossível — a meu ver devido à nossa natureza — que tenha ânimo para grandes coisas quem não percebe ser favorecido por Deus; porque, dada a nossa inferioridade e inclinação para as coisas da terra, dificilmente nos desapegaremos de fato, com grande aversão, das coisas da terra se não souber­mos que partilhamos dos bens celestes. Com esses dons, o Senhor nos dá a força que, pelos nossos pecados, perdemos. Se não tivermos provas do amor de Deus, ao lado de uma fé viva, como poderemos desejar que todos fiquem des­contentes e se aborreçam conosco e com todas as grandes virtudes que os perfeitos exibem? Carecemos tanto de estímulo que logo acreditamos no que te­mos diante dos olhos; assim, são esses favores que despertam e fortalecem a fé. Pode ser que eu, por ser tão ruim, esteja julgando por mim, podendo haver outros para quem basta a verdade da fé para fazerem obras muito per­feitas, enquanto eu, miserável que sou, precisei de todas essas graças.

7. Que eles falem disso; eu falo do que aconteceu comigo, como me ordenaram. Se eu estiver errada, aquele a quem me dirijo4 destruirá esta relação; pois ele saberá entender, mais do que eu, o que está errado; a ele suplico, pelo amor do Senhor, que publique o que eu disse até agora da minha vida ruim e dos meus pecados (concedo-lhe a licença a partir de agora, estendendo-a a todos os meus confessores, sendo um deles aquele a quem me dirijo), e, se quiser, enquanto eu estiver viva, para que o mundo não se engane mais pensando que há em mim algum bem; e por certo, digo sinceramente, pelo que agora sinto, isso me trará grande consolo.

Para o que vou falar, não dou igual licença, nem desejo que, caso o mostrem a alguém, digam quem o escreveu, quem é nem a quem sucedeu; por isso, não direi o meu nome, nem o de ninguém, tentando escrever o melhor que puder para não ser reconhecida, e assim o peço pelo amor de Deus. Bastam pessoas tão instruídas e sérias para aprovar alguma coisa boa se o Senhor me der graça de dizê-la; se houver algo assim, será Dele, e não meu, porque não sou instruída, não tenho boa vida, nem fui educada por mestres nem por ninguém (porque só os que me mandaram escrever sabem que eu o faço, e no presente não está aqui);5 e quase furtando o tempo, e com pesar, porque me impede de fiar e porque, estando em casa pobre,6 há muitas ocupações… Assim, mesmo que o Senhor me tivesse dado mais capacidade e memória, podendo eu me aproveitar, com esta, do que ouvi ou li, o que não é o caso, se alguma coisa de bom eu disser, é o Senhor que o quer para algum bem; o que for ruim terá vindo de mim, e vossa mercê o suprimirá. Em nenhum dos casos há proveito em dizer o meu nome. Enquanto eu estiver viva, está claro que não se deve divulgar o bem; estando morta, isso de nada vai servir, a não ser para que o bem perca a autoridade e o crédito por ser dito por uma pessoa tão ínfima e ruim.

8. E por pensar que vossa mercê e os outros que o virem haverão de fazer o que peço, pelo amor de Deus, escrevo com liberdade; se assim não fosse, eu teria grandes escrúpulos, não para falar dos meus pecados, que nesse aspecto não tenho nenhum. Quanto ao mais, basta-me ser mulher para estar restrita, ainda mais sendo mulher e ruim. Assim, o que ultrapassar a simples narrativa da minha vida, tome-o vossa mercê para si — já que tanto me importunou para que eu indicasse as graças que Deus me faz na oração —, caso esteja em conformidade com as verdades da nossa santa fé católica; se não o estiver, que vossa mercê o queime logo, que a isso me sujeito. E direi o que se passa comigo para que, respeitada a fé, possa vossa mercê tirar disso algum proveito e, caso contrário, para que desenganeis a minha alma, e para que o demônio não ganhe onde eu penso ganhar; pois o Senhor já sabe, como depois direi,7 que sempre procurei buscar quem me dê luz.

9. Por mais clara que eu tente ser falando das coisas de oração, tudo será bem obscuro para quem não tiver experiência. Falarei de alguns impedimentos que no meu entender impedem o progresso nesse caminho, bem como de coisas em que há perigo, daquilo que o Senhor me ensinou por experiência e do que aprendi discutindo com grandes mestres e pessoas que há muito se dedicam às coisas do espírito. Todos estes reconhecem que, nos vinte e sete anos em que me dedico à oração, Sua Majestade me deu a experiência — apesar dos meus tantos tropeços e de eu ter trilhado tão mal esse caminho — que outros conseguiram em trinta e sete ou quarenta e sete anos, sempre na penitência e na virtude.

Bendito sejais por tudo! E, por quem sois, Senhor, servi-vos de mim, pois bem sabeis que não pretendo outra coisa senão que sejais louvado e engrandecido um pouco por haverdes plantado um jardim de flores tão suaves num pântano tão sujo e malcheiroso. Queira Sua Majestade que eu, pela minha culpa, não volte a arrancá-las nem torne a ser o que era. Suplico a vossa mercê que, pelo amor do Senhor, peça-Lhe isso, pois sabeis quem sou com mais clareza do que me permitistes dizer aqui.

Capítulo 11

Diz por que não amamos a Deus com perfeição desde o início. Mediante uma comparação, afirma a existência de quatro graus de oração. Tratará aqui do primeiro, que considera muito proveitoso para os principiantes e para os que não têm prazer na oração.1

1. Falando agora dos que começam a ser servos do amor (que não me parece outra coisa além de nos decidirmos a seguir por esse caminho de oração Aquele que tanto nos amou), considero uma dignidade tão grande que sinto enorme prazer só de pensar nela; porque o temor servil logo desaparece se passamos por esse primeiro estágio como devemos. Ó Senhor de minha alma e Bem meu! Por que não quisestes que, determinando-se a amar-Vos — fazendo tudo o que pode para deixar o mundo e se dedicar ao amor de Deus —, a alma não gozasse logo a elevação a esse amor perfeito? Não me exprimo bem: tinha de falar e me queixar do fato de nós não a querermos; a cul­pa é toda nossa por não gozarmos logo de tamanha dignidade, pois, se che­garmos a ter com perfeição esse verdadeiro amor de Deus, também obte­remos todos os bens. Somos tão difíceis e demoramos tanto a nos entregar­ de todo a Deus que, como Sua Majestade não deseja que gozemos coisa tão preciosa sem pagar um grande preço, nunca acabamos de nos dispor.

2. Bem vejo que não há com que se possa comprar na terra tão grande bem; mas, se fizéssemos o que está em nossas mãos, desapegando-nos das coisas dela, dedicando-nos por inteiro ao céu, creio que sem dúvida teríamos esse bem muito depressa, se logo nos entregássemos de todo, como o fizeram alguns santos. Contudo, julgamos dar tudo quando oferecemos a Deus somente a renda e os produtos, ficando com a raiz e a propriedade. Determinamo--nos a ser pobres — o que é bastante nobre —, mas muitas vezes voltamos a preocupar-nos e a labutar para que não nos falte não apenas o necessário como o supérfluo, e para granjear amigos que no-los dêem, e temos maiores preocupações (expondo-nos, por vezes, a perigos) para que nada nos falte do que antes, quando éramos proprietários.

Parece também que abandonamos a honra quando nos fizemos religiosos ou quando começamos a ter vida espiritual e a procurar a perfeição; no en­tanto, se um ponto de honra é atacado em nós, esquecemo-nos de que já consagramos a honra a Deus e buscamos recuperá-la e — por assim dizer — ar­rancá-la das Suas mãos, depois de tê-Lo feito senhor dela por nossa própria vontade, ao menos aparentemente. Assim ocorre com todas as outras coisas.

3. Estranha maneira de buscar o amor de Deus! E logo o queremos em abundância, como se diz. Não fica bem manter nossas afeições (já que não procuramos realizar nossos desejos nem nos apartamos totalmente deles) ao lado das muitas consolações espirituais que recebemos, nem essas duas coisas me parecem compatíveis. Com isso, como não damos tudo de uma vez, também não recebemos de vez esse tesouro. Queira o Senhor que, gota a gota, Sua Majestade nos dê esse tesouro, mesmo que isso nos custe todos os sofrimentos do mundo.

4. Ele é rico em misericórdia para com aqueles a quem dá graça e ânimo para que se decidam a procurar esse bem com todas as forças; porque Deus não se nega a quem persevera, habilitando pouco a pouco o seu ânimo a alcançar a vitória. Digo ânimo porque são muitas as coisas que o demônio põe diante de quem começa, para impedi-lo de começar de fato esse caminho. Porque este último sabe do prejuízo que tem ao perder não somente essa alma, mas muitas. Se o iniciante se esforça, com o favor de Deus, para chegar ao auge da perfeição, creio que nunca vai sozinho ao céu, levando sempre muita gente consigo; como a bom capitão, dá-lhe Deus quem vá em sua companhia.

São tantos os perigos e as dificuldades que ele põe2 que não é pouco o ânimo necessário para não voltar atrás, além do constante favor de Deus.

5. No princípio está a maior dificuldade dos que estão determinados a bus­car esse bem e a realizar esse empreendimento (quanto ao que comecei a falar sobre a teologia mística — acho que é esse o seu nome —, retomarei adiante); porque, no início, são eles que trabalham, embora o Senhor lhes dê o capital. Nos outros graus de oração, só há prazer, embora no começo, no meio e no fim todos carreguem suas cruzes, ainda que diferentes; pelo mesmo caminho que Cristo percorreu devem passar os que O seguem, se não quiserem se perder. Benditos sofrimentos que, ainda nesta vida, são pagos tão excessivamente!

6. Terei de recorrer a alguma comparação, embora, por ser mulher, prefe­ris­se evitá-las e escrever simplesmente o que me mandam. Mas é tanta a di­ficuldade da linguagem espiritual3 para os que, como eu, não têm instrução que terei de buscar algum meio, correndo o risco de nem sempre acertar nes­sa comparação; divertirá vossa mercê4 ver tanta ignorância.

Parece-me que li ou ouvi esta comparação — como tenho memória ruim, não sei onde nem por quê; mas, para o meu objetivo aqui, basta-me citá-la.5 Quem principia deve ter especial cuidado, como quem fosse plantar um jardim, para deleite do Senhor, em terra muito improdutiva, com muitas ervas daninhas. Sua Majestade arranca as ervas daninhas e planta as boas. Façamos de conta que isso já aconteceu quando uma alma decide dedicar-se à oração e começa a se exercitar nela. Com a ajuda de Deus, temos de procurar, como bons jardineiros, que essas plantas cresçam, tendo o cuidado de regá-las para que não se percam e venham a dar flores, cujo perfume agradável delicie esse nosso Senhor, para que Ele venha a se deleitar muitas vezes em nosso jardim e a gozar entre essas virtudes.

7. Vejamos agora a maneira de regar, para sabermos o que fazer e o quanto isso nos há de custar; verificar se o lucro é maior do que o esforço e o tempo que o trabalho levará.

Parece-me que é possível regar de quatro maneiras:

— tirando a água de um poço, o que nos parece grande trabalho;

tirá-la com nora e alcatruzes movidos por um torno; assim o fiz algumas vezes:6 dá menos trabalho que a outra e produz mais água;

trazê-la de um rio ou arroio; rega-se muito melhor, a terra fica bem mo­lhada, não é preciso regar com tanta freqüência e o jardineiro faz menos esforço;

contar com chuvas freqüentes; neste caso, o Senhor rega, sem nenhum trabalho nosso, sendo esta maneira incomparavelmente melhor do que as outras.

8. Agora, apliquemos à oração essas quatro maneiras de regar, com as quais haveremos de conservar o jardim, que, sem ser irrigado, perecerá. Com esta comparação acredito poder explicar algo dos quatro graus de oração em que o Senhor, pela sua bondade, pôs algumas vezes a minha alma. Queira a Sua bondade que eu o diga de um modo que traga proveito a uma das pessoas que me mandaram escrever,7 porque o Senhor, em quatro meses, a fez avançar mais do que eu consegui em dezessete anos. Essa pessoa se dispôs melhor do que eu e, assim, rega sem trabalho seu vergel com essas quatro águas, embora a última só lhe venha gota a gota; mas, a prosseguir assim, logo estará mergulhada nela, com a ajuda do Senhor, e gostarei que ria se lhe parecer disparatada a minha forma de dizer.

9. Pode-se dizer dos que começam a ter oração que apanham a água do poço, o que é muito trabalhoso, como eu disse,8 porque eles têm de cansar--se para recolher os sentidos, algo que, como não estão acostumados a concentrar-se, requer muito esforço. É preciso que eles vão se habituando a não se incomodar com o que vêem ou ouvem, fazendo-o efetivamente nas horas de oração, ficando em solidão e afastados para pensar em sua vida passada. Na verdade, todos devem fazer isso com freqüência, tanto iniciantes como os que estão avançados, pensando mais ou menos nisso, como depois direi.9 No princípio, os iniciantes ainda sofrem, por julgarem que não se arrependem dos pecados, embora o seu arrependimento seja sincero, pois estão de fato determinados a servir a Deus. Eles devem procurar pensar na vida de Cristo e, nisso, cansa-se a mente.

Até aqui podemos chegar sozinhos, claro que com o favor de Deus, pois, como se sabe, sem Ele, não podemos ter um único bom pensamento. Isso é começar a tirar água do poço, e queira Deus que este não esteja seco. Pelo menos fazemos a nossa parte, indo apanhar água e fazendo o que podemos para regar as flores. E é o bom Deus que, por motivos que Ele conhece — talvez para grande proveito nosso —, quer que o poço esteja seco, devendo nós fazer como o bom jardineiro, que, sem água, mantém as flores e faz crescer as virtudes. Chamo de “água” aqui as lágrimas e, à falta delas, a ternura e o sentimento interior de devoção.

10. E o que fará aqui quem vir que, em muitos dias, só há secura, des­­gosto, dissabor e tão má vontade para ir tirar a água? Se não se recordasse de que serve e agrada ao Senhor do jardim e se não receasse perder todo o serviço já feito, além do que espera ganhar com o grande trabalho que é lançar mui­­tas vezes o balde ao poço e tirá-lo sem água, abandonaria tudo? Muitas vezes, nem conseguirá levantar os braços, nem poderá ter um bom pensamento, porque esse trabalho com o intelecto, entenda-se, é tirar água do poço.

Como eu dizia, que fará aqui o jardineiro? Alegrar-se, consolar-se e considerar uma enorme graça trabalhar no jardim de tão grande Imperador. Sabendo que contenta ao Senhor com aquilo, e que a sua intenção não há de ser senão contentar a Ele, louve-O muito, pois o Senhor nele confia, por ver que, sem nada receber, a alma cuida muito do seu trabalho; que o jardineiro O ajude a carregar a cruz e pense que o Senhor nela viveu por toda a vida; que não procure seu reino aqui na terra e nunca abandone a oração. E se de­termine, mesmo que essa secura dure a vida inteira, a não deixar que Cristo caia com a cruz, pois virá o momento em que toda a sua recompensa lhe será dada de uma vez. Não tenha medo de que o seu trabalho se perca, pois ele ser­ve a bom patrão, que o está olhando. Não se incomode com os maus pen­samentos; pense que o demônio também os representava a São Jerônimo no deserto.10

11. Esses trabalhos têm seu valor, eu o sei, pois os fiz durante muitos anos (quando eu tirava uma gota de água desse poço bendito, pensava que Deus me concedia uma graça), sendo necessário, para vencê-los, mais coragem do que para muitos outros trabalhos do mundo. Mas vi com clareza que Deus não deixa de dar grande recompensa, ainda nesta vida; pois é certo que, em uma hora na qual o Senhor me permite rejubilar-me nele, considero pagas todas as angústias por que, para perseverar na oração, passei.

Creio que o Senhor deseja dar, muitas vezes no princípio e outras no final, esses tormentos e muitas outras tentações que aparecem, para testar os que O amam e saber se poderão beber o cálice e ajudá-Lo a levar a cruz, antes de lhes oferecer grandes tesouros. E é para o nosso bem que Sua Ma­­jestade deseja levar-nos dessa maneira para que compreendamos quão pou­co somos; porque as graças que depois vêm têm tamanha dignidade que Ele, antes de dá-las, deseja que, pela experiência, percebamos antes a nossa in­significância, a fim de que não aconteça conosco o que sucedeu a Lúcifer.

12. Que fazeis Vós, Senhor meu, que não seja para maior bem da alma que já sabeis ser Vossa e que se põe em Vosso poder para seguir-Vos por on­de fordes, até a morte na cruz, determinada a ajudar-Vos a carregá-la e a não Vos deixar sozinho com ela?

Quem vir em si essa determinação… de modo algum deve temer. Não tem razão para afligir-se quem se dedica às coisas do espírito. Estando já no nível tão alto que é o do desejo de ficar a sós com Deus e de renunciar aos pas­satempos do mundo, a alma fez a maior parte. Louvai por isso Sua Majes­ta­de e confiai em Sua bondade, pois Ele nunca faltou aos seus amigos. Fechai os olhos da mente para não pensardes: por que Ele dá devoção a alguém em pou­cos dias e a nega a mim em tantos anos? Acreditemos que é tudo para o nos­so bem maior. Guie Sua Majestade por onde quiser. Já não somos nossos, mas Seus. Ele já nos favorece bastante ao nos dar disposição para cavar no Seu jardim e estar aos pés do seu Senhor, que por certo está conosco. Se Ele deseja que essas plantas e flores cresçam, para uns jardineiros com a água que tiram do poço e, para outros, sem ela, que importância tem isso para mim? Fazei Vós, Senhor, o que quiserdes. Que eu não Vos ofenda e que não se percam as virtudes, se alguma já me destes só por Vossa bondade. Desejo padecer, Senhor, pois Vós padecestes. Faça-se em mim, de todas as maneiras, a Vossa vontade, e não permitais que uma coisa tão valiosa quanto o Vosso amor seja dada a quem só Vos serve em busca de consolações.

13. Deve-se acentuar — e o digo por experiência — que a alma que, nessa trilha da oração mental, começa a caminhar com determinação e con­segue de si mesma não fazer muito caso, nem consolar-se ou desconsolar-se muito por faltarem ou não esses gostos e essa ternura, ou por lhos dar o Senhor, já venceu boa parte do caminho; e que não tenha medo de recuar, por mais que tropece, já que começou o edi­fício com firmes alicerces. Sim, pois o amor de Deus não está em ter lá­grimas nem em ter esses gostos e essa ternura, que em geral desejamos e com os quais nos consolamos, mas em servir com justiça, força de ânimo e hu­mildade. Isso me parece mais receber do que dar alguma coisa.

14. Para mulherzinhas como eu, fracas e pouco constantes, creio que con­vém, como Deus agora o faz comigo: conduzir-me com regalos, para que eu possa so­frer algumas dificuldades que Sua Majestade desejou que eu tivesse. Mas, para servos de Deus, homens de valor, instruídos, inteligentes, desgosta--me ou­vi-los se queixarem tanto de que Deus não lhes dá devoção; não digo que não a aceitem, se Deus a der, tendo-a em alta conta, porque, nesse caso, Sua Majestade sabe que isso lhes convém, mas que, quando não a tiverem, que não se aflijam, entendendo que ela não lhes é necessária, já que Sua Majestade não a dá, e sigam seu caminho. Acreditem que é uma imperfeição. Eu o vi e experimentei. Acreditem que é imperfeição e falta de liberdade de espírito; é mostrar fraqueza para qualquer empreendimento.

15. Não falo isso tanto para os que começam (embora eu o acentue tanto porque é muito importante para eles começar com essa liberdade e determinação), mas para outros, pois haverá muitos, e há realmente, que começaram e nunca acabam de acabar; e creio que isso se deve em grande parte ao fato de eles não abraçarem a cruz desde o início, razão por que ficam aflitos, julgando que nada fazem. Não conseguem suportar que o intelecto deixe de atuar, não percebendo que, então, a vontade aumenta e se fortalece.

Temos de pensar que o Senhor não olha coisas que, embora nos pareçam faltas, não o são. Sua Majestade já conhece a nossa miséria e baixeza natural melhor do que nós mesmos, sabendo que essas almas desejam sempre pensar nele e amá-Lo; o que Ele quer é essa determinação, não servindo essa outra aflição senão para inquietar a alma. Quem está incapacitado de obter frutos durante uma hora assim o estará por quatro. Porque muitíssimas vezes (tenho enorme experiência nisso, e sei que é verdade, porque o examinei com cuidado e disso tratei com pessoas espirituais) tudo vem da indisposição corporal; somos tão miseráveis que essa pobre alma está aprisionada aos males do corpo; e as mudanças do tempo e variações dos humores muitas vezes fazem com que, sem culpa, ela não possa fazer o que quer, padecendo de todas as maneiras. Nesses momentos, quanto mais a quisermos forçar, tanto pior e mais duro será o mal; nesse caso, é preciso ter discrição para ver quando se deve fazer o quê, para não atormentar a pobre. Que elas percebam que estão doentes e mudem a hora da oração, o que amiúde durará alguns dias. Suportem como puderem esse desterro, pois é grande a desventura da alma amante de Deus ao ver que passa por essa desolação, sem poder fazer o que quer, por ter um hóspede tão ruim quanto o corpo.

16. Eu disse “ter discrição” porque às vezes o demônio age. Assim, é bom que não se deixe sempre a oração quando se está muito distraído e perturbado no intelecto, nem se atormente sempre a alma, obrigando-a a fazer o que não pode.

Há outras ocupações além de obras de caridade e de leitura, mesmo que por vezes nem isso seja possível. Sirva-se então ao corpo por amor a Deus, para que ele, em muitas outras ocasiões, sirva à alma; dedique-se o tempo a conversas virtuosas ou a passeios pelo campo, segundo o conselho do confessor. Em tudo, vale muito a experiência, que nos dá a entender o que nos convém e nos faz ver que em tudo servimos a Deus. Suave é o seu jugo, e muito vale a pena não arrastar a alma, como se diz, mas levá-la com suavidade11 para seu maior aproveitamento.

17. Assim, repito — e mesmo que não pare de fazê-lo, ainda não o terei enfatizado o bastante — que importa muito que não nos atormentemos nem nos aflijamos com essas securas, com a inquietude e com a distração nos pensamentos. Quem quiser obter liberdade de espírito e não ficar sempre atribulado deve começar por não se espantar com a cruz; se o fizer, verá que o Senhor também ajuda a levá-la, e viverá contente e tirando proveito de tudo. É natural, pois se o poço está seco, nós não podemos enchê-lo de água; é verdade que não podemos nos descuidar, para que, quando houver água, a tiremos — porque, nesse caso, Deus deseja por meio dela multiplicar as virtudes.

Capítulo 12

Prossegue no primeiro estado. Diz até onde podemos chegar, com o favor de Deus, por nós mesmos, e fala do prejuízo que é querer, antes que o Senhor o faça, elevar o espírito a coisas sobrenaturais.1

1. O que pretendi dar a entender no capítulo anterior — embora tenha enveredado por outras coisas que me pareciam muito necessárias — foi o ponto até o qual podemos chegar por nós mesmos e a maneira como, nessa primeira devoção, podemos valer-nos dos nossos próprios recursos. Porque, ao pensarmos detalhadamente no que o Senhor passou por nós, alcançamos a compaixão, encontrando sabor nesse sofrimento e nas lágrimas que dele vêm; pensar na glória que esperamos, no amor que o Senhor teve por nós e em Sua ressurreição nos dá um prazer que não é de todo espiritual nem dos sentidos, mas é um prazer virtuoso e um pesar muito meritório. Assim são todas as coisas que causam devoção quando o entendimento está envolvido, muito embora, se Deus não a desse, não se poderia merecê-la nem ganhá-la. É muito bom que uma alma que só chegou até aqui graças ao Senhor não procure ir além por si — e muito se atente para isso —, para que não obtenha, em vez de lucro, prejuízo.

2. Neste estado, ela pode fazer muito para se determinar a servir bastante a Deus e despertar o amor, assim como para ajudar a crescer as virtudes, como o diz um livro chamado Arte de servir a Dios,2 que é muito bom e apropriado para os que estão nesse estado em que a mente age. A pessoa pode imaginar que está diante de Cristo e acostumar-se a enamorar-se da Sua sagrada Humanidade, tendo-O sempre consigo, falando com Ele, pedindo-lhe auxílio em suas necessidades, queixando-se dos seus sofrimentos, alegrando-se com Ele em seus contentamentos e nunca esquecendo-se Dele por nenhum motivo, e sem procurar orações prontas, preferindo palavras que exprimam seus desejos e necessidades.

É excelente maneira de progredir, e com rapidez. E adianto que quem trabalhar para ter consigo essa preciosa companhia, aproveitando muito dela e adquirindo um verdadeiro amor por esse Senhor a quem tanto devemos, terá grande benefício.

3. Para isso, não façamos caso de não ter devoção sensível— como eu disse —3, mas agradeçamos ao Senhor, que nos permite estar desejosos de con­tentá-Lo, embora as nossas obras sejam fracas. Esse modo de trazer Cristo conosco é útil em todos os estados, sendo um meio seguríssimo para tirar proveito do primeiro e breve chegar ao segundo grau de oração, bem como, nos últimos graus, para ficarmos livres dos perigos que o demônio pode pôr.

4. Pois isso é o que podemos fazer. Quem quiser passar daqui e levantar o espírito a sentir gostos, que não lhe são dados, perde, a meu ver, tudo. Os gostos são sobrenaturais e, perdido o entendimento, a alma fica desamparada e com muita aridez. E como esse edifício tem a sua fundação na humildade, quanto mais próximos de Deus estivermos, tanto maior deverá ser essa virtude, pois, se assim não for, tudo perderemos. E parece algum tipo de soberba querermos ir além disso, visto que Deus já faz em demasia, pelo que somos, ao permitir que nos aproximemos dele.

Não se entenda com isso que não é bom elevar o pensamento a coisas superiores do céu e de Deus, às grandezas que lá há e à sabedoria divina; porque, embora eu nunca o tenha conseguido (porque não tinha capacidade — como disse —4 e me achava tão ruim que, mesmo para pensar em coisas da terra, precisava que Deus me fizesse a graça de entender esta verdade, por não ser isso pouco atrevimento, para não falar em pensar em coisas do céu), outras pessoas tirarão proveito disso, especialmente se forem instruídas, pois a instrução é, a meu ver, um grande tesouro para esse exercício, se for acompanhada da humildade. Ultimamente, tenho percebido que alguns estudiosos,5 que há pouco começaram, tiveram um grande proveito; isso me faz desejar ansiosamente que muitos deles sejam espirituais, como adiante direi.

5. Quando digo “não se elevem sem que Deus os eleve”, uso linguagem espiritual; quem tiver alguma experiência vai me entender, pois, se não o entender, não sei dizer com outras palavras. Na teologia mística, de que comecei a falar,6 o intelecto deixa de agir porque Deus o suspende, como depois explicarei se souber e se Ele me conceder para isso o seu favor. Tentar ou presumir suspendê-lo por nós mesmos, deixar de agir com ele, é o que considero inconveniente, porque assim ficaremos bobos e frios, e não conseguiremos nem uma coisa nem outra. Quando o Senhor o suspende e o faz parar, Ele mesmo lhe dá com que se ocupar e se impressionar, de maneira tal que, no espaço de um credo, podemos compreender, sem raciocinar, mais do que, em muitos anos, com os nossos próprios esforços terrenos. É um disparate querermos conter as faculdades da alma e pensar em aquietá-las.

E repito, ainda que não se entenda: isso não é de grande humildade. Embora não haja culpa, haverá danos, pois será trabalho perdido, e a alma vai ficar um tanto desgostosa, como se estivesse prestes a dar um salto e se sentisse segura por trás, parecendo empregar a força sem conseguir o seu intento. Quem quiser comprová-lo verá o pouco ganho que vai ter, e, neste, a pequena falta de humildade de que falei.7 Porque numa coisa essa virtude é excelente: o que é feito com o seu apoio nunca deixa desgosto na alma.

Creio que expliquei bem, mas talvez só esteja claro para mim. Que o Senhor abra os olhos dos que isto lerem dando-lhes experiência, que, por pouca que seja, logo os fará entender.

6. Por vários anos li muitas coisas e nada entendi; depois, apesar do que Deus me dava, eu não sabia dizer uma palavra que exprimisse essa situação, o que não me custou poucos sofrimentos. Quando deseja, Sua Majestade ensina tudo num momento, e de uma maneira que me espanta.

Para dizer a verdade, mesmo falando com muitas pessoas espirituais que queriam me explicar o que o Senhor me dava, para que eu o soubesse dizer, é certo que a minha rudeza era tanta que eu nada aproveitava; ou, talvez, o Senhor, que sempre foi o meu mestre (seja por tudo bendito, pois bastante confusão me causa poder dizer isto com verdade), tenha querido que nesse aspecto eu não tivesse de agradecer a ninguém; sem que eu quisesse nem pedisse (que nisso não fui nada curiosa — porque teria sido virtude sê-lo —, sendo-o apenas em outras vaidades), Deus me deu num momento a graça de entender com toda a clareza e de saber exprimi-lo, de tal modo que os meus confessores se espantavam, e eu mais do que eles, porque conhecia mais a minha rudeza. Foi há pouco que recebi essa graça; e o que o Senhor não me ensinou, eu não o procuro, a não ser o que tem que ver com minha consciência.

7. Torno a avisar que é muito importante “não elevar o espírito se o próprio Senhor não o eleva” — o que isso significa logo se entende. Isso é especialmente ruim para mulheres, em quem o demônio poderá causar alguma ilusão; embora eu tenha certeza de que o Senhor não consente que se prejudique quem, com humildade, procura chegar a Ele, fazendo com que, pelo contrário, obtenha mais proveito e lucro daquilo com que o inimigo julgou provocar prejuízo.

Como esse caminho é o mais usado pelos iniciantes, sendo muito importantes os avisos que dei, estendi-me tanto. Há livros em que isso estará escrito melhor, eu confesso, e foi com grande confusão e vergonha que o escrevi, se bem que sem ter tanta quanto deveria ter.

Bendito seja por tudo o Senhor, que deseja e consente que uma pessoa como eu fale de Suas coisas, tão elevadas e sublimes.

Capítulo 13

Prossegue no primeiro estado e dá avisos sobre algumas tentações que o demônio algumas vezes suscita. Faz advertências quanto a isso. — É muito proveitoso.

1. Creio ser necessário falar de algumas tentações, que experimentei, que ocor­rem no princípio, bem como alertar para coisas que me parecem importantes.

No princípio, deve-se ter alegria e liberdade, não acreditando, ao contrário do que dizem algumas pessoas, que um pouco de descuido destrói a de­­­voção. É bom temer a si mesmo, não confiando em si, para não se pôr em situações nas quais se ofenda a Deus; isso é deveras necessário até que a virtude assente sólidas raízes na alma. E não há muitos que alcançam tal estado que, em ocasiões favoráveis aos seus apetites naturais, possam se descuidar, visto que, enquanto vivermos, e até por humildade, é bom conhecer a nossa natureza miserável. Mas há muitas ocasiões em que se pode, como eu disse,1 espairecer um pouco para voltar à oração com mais fervor. Em tudo é preciso ter discrição.

2. Devemos ter grande confiança, porque convém muito não reduzir os desejos, confiando em Deus que, se nos esforçarmos, poderemos chegar — pouco a pouco, embora não logo — ao ponto alcançado por tantos santos com o Seu favor; se estes nunca se determinassem a desejá-lo e a passar gradativamente à prática, não teriam atingido tão alto estado. Sua Majestade deseja almas corajosas e é amigo delas, desde que sejam humildes e sempre desconfiem de si mesmas. Nunca vi quem assim age perder-se no caminho, nem uma alma covarde que, sob pretexto de humildade, percorresse em muitos anos o que as outras percorrem em pouco tempo. Causa-me forte impressão a grande importância que tem nesse caminho procurar grandes coisas; mesmo que não tenha forças logo, a alma vence uma enorme distância, como uma ave de asas fracas que cansa e pára.

3. Antigamente, eu me lembrava com freqüência do que São Paulo disse: Em Deus tudo se pode. Eu estava bem convencida de que, por mim, nada podia fazer. Isso muito me valeu, assim como as palavras de Santo Agostinho: Dai-me o que me ordenais e ordenai-me o que quiserdes. Eu pensava muito que, embora depois tivesse medo, São Pedro nada perdera por se lançar ao mar.2 Essas determinações logo no começo são excelentes. Nesse primeiro grau de oração, é preciso caminhar com lentidão e prudência, seguindo o que um mestre disser. Mas é bom tomar cuidado para que o confessor não ensine a andar como um sapo, nem treine a alma para só caçar lagartixas. É preciso ter sempre a humildade diante dos olhos para entender que essas forças não vêm de nós.

4. É necessário, porém, compreender como deve ser essa humildade. Creio que o demônio muito prejudica, impedindo que as almas que têm ora­ção avancem, ao lhes dar um falso conceito de humildade, fazendo parecer soberba ter grandes desejos, querer imitar os santos e aspirar ao martírio. Ele cedo nos diz ou sugere que as ações dos santos devem ser admiradas, e não imitadas por pecadores como nós. Eu também o digo, mas devemos ver com clareza o que tem de ser admirado e o que tem de ser imitado. Naturalmente, não seria razoável que uma pessoa fraca e doente se pusesse a fazer muitos jejuns e penitências, fosse para um deserto — onde não pudesse dormir nem tivesse comida — ou coisas semelhantes. Temos de pensar que, com o favor de Deus, podemos esforçar-nos para atingir um grande desprezo pelo mundo e pelas suas honras, desapegando-nos dos bens terrenos. É tão fraco o nosso coração que achamos que o chão vai faltar se nos descuidarmos um pouco do corpo para dar mais ao espírito. Logo pensamos que a fartura facilita o recolhimento, porque a preocupação perturba a oração. Muito me dói que a nossa confiança em Deus seja tão pouca e que seja tanto o amor--próprio a ponto de nos preocuparmos com essas coisas. Quando o espírito está assim tão fraco, coisas insignificantes nos trazem tanto sofrimento quanto coisas grandes e muito importantes a outras pessoas. E, no íntimo, consideramo-nos pessoas espirituais!

5. Acho que essa maneira de caminhar aparenta-se a querer conciliar corpo e alma, para não se perder o descanso aqui e ir ao céu fruir as delícias de Deus. Isso de fato acontecerá se nos apegarmos à justiça e à virtude. Mas é um passo curto, com o qual jamais chegaremos à liberdade de espírito. É muito correto para pessoas casadas, que devem viver de acordo com a sua vocação. Mas, para outro estado, de forma alguma desejo essa maneira de aproveitar, nem me farão crer que é boa, porque já a experimentei e teria ficado no mesmo ponto se o Senhor, com a Sua bondade, não me tivesse ensinado outro caminho.

6. É verdade que, no tocante aos desejos, os meus sempre foram grandes. Eu, contudo, procurava fazer o que disse:3 ter oração e viver ao bel-prazer. Acredito que, se tivesse quem me ensinasse, eu teria feito esforços para pôr em prática os desejos. Mas, pelos nossos pecados, há tão poucos,4 tão raros, que não têm demasiada discrição nesse caso que penso ser essa, em grande parte, a razão de os principiantes não se elevarem mais depressa à grande perfeição; porque o Senhor nunca falta nem cria impedimentos — nós somos os culpados e miseráveis.

7. Também podemos imitar os santos procurando a solidão, o silêncio e muitas outras virtudes que não matarão os corpos manhosos, que tão organizadamente querem servir para desconcertar a alma. Por outro lado, o demônio ajuda muito a torná-los incapazes quando percebe um pouco de temor. Ele não precisa de muito para nos fazer imaginar que tudo nos tira a saúde e a vida; e até evita que choremos ao infundir em nós o medo da cegueira. Sei que é assim, pois passei por isso; não entendo que melhor visão ou saúde podemos desejar do que a sua perda por semelhante causa.

Sendo tão doente, enquanto não me resolvi a desprezar o corpo e a vida, sempre estive amarrada, sem nenhuma utilidade. E, mesmo hoje, faço bem pouco. Deus quis que eu percebesse o ardil; e quando o inimigo me trazia o receio de perder a saúde, eu lhe respondia: “Pouco importa que eu morra”. Se ele me sugeria descanso, eu dizia: “Não preciso de descanso, e sim de cruz”. E assim por diante. Vi claramente que, em inúmeras circunstâncias, em­bora eu de fato seja bem doente, tudo não passava de tentação do demônio ou lassidão de minha parte. Depois que deixei de me tratar com tantos cuidados e mimos, fiquei muito mais sadia.

Em resumo, desde o início, quando se começa a fazer oração, é fundamental não amesquinhar os pensamentos: acreditem-me, pois falo por ter experiência. Esta relação de minhas faltas pode ao menos servir para que elas sejam evitadas.

8. Outra tentação, muito comum nos que começam a saborear o sossego e a ver o quanto ganham com ele, é o desejo de que todos sejam espirituais. Não é ruim desejá-lo, mas lutar por isso pode não ser bom se não se tiver muita sagacidade e discrição para agir de uma maneira que não dê a impressão de que se pretende ensinar. Quem quiser fazer algum bem nesse aspecto deve fortalecer muito as suas virtudes para não causar tentação nos outros.

Isso aconteceu comigo quando eu procurava que outras pessoas fizessem oração — por isso o entendo. De um lado, elas me viam enaltecer o grande bem que é isso e, de outro, me viam viver sem virtudes, embora eu me exer­citasse nelas. Por isso, ficavam perplexas e tentadas, como depois me disseram. Elas estavam cobertas de razão, porque não entendiam como era possível conciliar coisas tão opostas. Por minha causa, não tomavam por mal o que de fato o era, porque tinham boa opinião de mim e me viam agir assim algumas vezes.

9. Nisso consiste a astúcia do demônio, que usa nossas virtudes e boas qualidades para promover o mais que pode o mal que pretende fazer; por menor que este seja, ele lucra bastante quando se vive em comunidade. Ainda mais que o mal que eu fazia era enorme. Com efeito, em muitos anos, só três pessoas5 se beneficiaram do que eu lhes dizia. Mais tarde, quando o Senhor já me tinha dado mais forças na prática da virtude, em dois ou três anos muitas outras progrediram, como adiante direi.6

Há, além disso, outro grande inconveniente, a perda da alma. Sobretudo no princípio, ela só deve se preocupar consigo mesma e pensar que na terra há apenas Deus e ela; isso lhe fará grande bem.

10. Outra tentação é ter pena dos pecados e faltas dos outros. Tudo isso se apresenta sob a aparência de zelo pela virtude. Precisamos saber discernir e ser precavidos. O demônio instiga a querermos remediar de pronto os ma­les, fazendo-nos acreditar que o nosso único objetivo é zelar pela honra de Deus e desejar que Ele não seja ofendido. Isso nos inquieta de uma maneira que impede a oração. O maior prejuízo é estarmos convencidos de que tudo isso é virtude, perfeição e grande zelo pela glória de Deus. Não falo da dor cau­sada por pecados públicos — se eles forem costumeiros — de uma Congre­gação ou dos males que chegam à Igreja com as heresias, causa da perda de tantas almas. Essa dor é muito saudável e, por isso, não inquieta. A segurança para quem começa a fazer oração está em deixar tudo e todos e só querer saber de si e de contentar a Deus. Isso é muito conveniente, porque, se eu fosse contar os erros que vejo serem cometidos por se confiar na boa intenção!… Procuremos sempre olhar as virtudes e coisas boas que virmos nos outros e encubramos os seus defeitos com os nossos grandes pecados. Este modo de agir — mesmo que, no princípio, não seja perfeito — nos dá uma excelente virtude: considerarmos todos melhores do que nós; fazendo assim, vamos progredindo, com o favor de Deus — que é necessário em tudo e sem o qual os nossos esforços serão inúteis. Supliquemos ao Senhor que nos conceda essa virtude, porque, se fizermos o que está ao nosso alcance, Ele não nos faltará.

11. Quem usa muito o intelecto, tirando de cada coisa muitos conceitos e conclusões, deve dar atenção a este aviso — aos que não podem trabalhar com a mente e raciocinar, como era o meu caso, só tenho uma coisa a dizer: sejam pacientes, até que o Senhor lhes dê com que se ocupar e os ilumine, pois podem tão pouco por si que o seu intelecto mais os estorva que os ajuda. Voltando aos que raciocinam, digo que, embora muito meritória, essa atividade não deve ocupar todo o tempo. Como obtêm prazer na oração, essas pessoas não querem saber de domingos nem de pausas (que consideram tempo perdido). Para mim, essa aparente perda produz muitos lucros. Em vez disso, repito, imaginem que estão diante de Cristo e, sem cansar o intelecto, falem e alegrem-se com o Senhor, sem o trabalho de formular raciocínios. Digam-Lhe as suas necessidades, lembrando-se também dos motivos que Ele teria para não admiti-los à Sua presença. Façam ora uma coisa, ora outra, evitando que a alma se canse de comer sempre o mesmo alimento. E esses alimentos de que falo são muito saborosos e proveitosos; se o paladar se acostuma ao seu gosto, eles trazem grande substância para dar vida à alma e muitos outros ganhos.

12. Quero exprimir-me melhor, porque todas essas coisas de oração são custosas e, se não se tiver mestre, difíceis de entender. Por isso, embora eu queira ser breve — e bastaria tocar no assunto para que quem me mandou es­crever logo entendesse —, minha pouca inteligência não me permite explicar em poucas palavras o que tanto precisa de boa explicação. Como sofri muito, com­padeço-me de quem começa só com livros; porque eu me admiro ao ver como se compreende, neles, uma coisa que a experiência revela ser bem diferente.

Voltando ao que eu dizia,7 pensemos num passagem da Paixão — por exemplo, a do Senhor atado à coluna — e, com o intelecto, procuremos avaliar as grandes dores e o sofrimento que Sua Majestade teve ali tão só, e tantas outras coisas que um espírito esforçado pode perceber aí. Se se for instruído, então!… Esse é o modo de oração conveniente para todos, um caminho excelente e muito seguro até que o Senhor os leve a outras coisas sobrenaturais.

13. Digo “todos” porque há muitas almas que, em outras meditações, têm mais proveito do que na da Sagrada Paixão, porque, assim como há muitas moradas no céu,8 há muitos caminhos: algumas pessoas se beneficiam considerando-se no inferno, e outras, no céu; estas se afligem ao pensar no inferno, e outras, na morte. Algumas, se são ternas de coração, se cansam muito em pensar sempre na Paixão, alegrando-se e aproveitando ao considerarem o poder e a grandeza de Deus nas criaturas, bem como o amor que Ele teve por nós, manifesto em todas as coisas. Todos esses modos são admiráveis, desde que não se deixem a Paixão e a vida de Cristo, que é de onde nos veio e vem todo o bem.

14. O iniciante deve prestar atenção para saber o que é melhor para si. O mestre, se experiente, é muito necessário aqui; se não o for, pode errar muito e dirigir uma alma sem entendê-la nem deixar que ela se entenda — porque, como sabe que é grande o mérito de estar sujeita a um mestre, ela não se atreve a sair do que ele manda. Já encontrei almas encurraladas e aflitas devido à falta de experiência do seu mestre — o que me causava pesar —, e uma que nem sabia o que fazer de si; porque, não entendendo o espírito, aflige9 a alma e o corpo, atrapalhando o aproveitamento. Outra pessoa estava há oito anos paralisada pelo mestre, que não a deixava avançar além do seu próprio conhecimento. Como o Senhor já concedera a essa alma a oração de quietude, era muito o seu apuro.

15. Embora o conhecimento próprio nunca deva ser abandonado, nem haja alma, nesse caminho, tão forte que não precise muitas vezes voltar a ser criança e a mamar (nunca nos esqueçamos disso; eu talvez o repita10 outras vezes, por ser muito importante), e embora não haja estado de oração tão elevado que torne desnecessário voltar ao princípio com freqüência — sendo os pecados e o conhecimento próprio o pão com que todos os manjares, por mais delicados, devem ser comidos nesse caminho da oração (pão sem o qual ninguém poderia se sustentar) —, é preciso comer com moderação. Porque, quando se vê rendida e percebe claramente que nada de bom possui, sentindo vergonha diante de Rei tão grandioso, a alma vê o pouco que Lhe paga pelo muito que Lhe deve. Que necessidade temos de gastar o tempo aqui, se é melhor buscar outras coisas que o Senhor nos põe diante dos olhos — e que não tem cabimento deixarmos, já que Sua Majestade sabe melhor que nós o que nos convém comer?

16. Por isso, é muito importante que o mestre seja inteligente — isto é, de bom entendimento e experiente. Se, além disso, tiver instrução, será perfeito. Contudo, não sendo possível achar as três coisas juntas, as duas primeiras são mais relevantes, porque, caso seja necessário, os principiantes podem recorrer aos letrados para alguma consulta. No início, os mestres que não fazem oração, ainda que sejam sábios, são de pouca ajuda; não digo que não se deva ter con­­tato com letrados, porque um espírito que não comece pela verdade melhor faria em não orar. Além disso, a instrução é muito boa porque ensina aos que pouco sabemos e nos dá luz, para que, chegando às verdades da Sagrada Escritu­ra, façamos o que devemos; de devoções tolas, livre-nos Deus.

17. Desejo explicar-me melhor, pois acredito que me perco em muitas coisas. Sempre tive o defeito de não saber dizer as coisas — como falei —11 senão com muitas palavras. Uma monja começa a fazer oração; se for dirigida por um simplório, e a este parecer melhor, ele lhe dará a entender que é pre­ferível que ela lhe obedeça a que obedeça ao seu superior — e sem malícia, ima­ginando estar certo; porque, se não for religioso, ele vai pensar que assim deve ser. Se for uma mulher casada, ele lhe dirá que é melhor, em vez de cuidar da casa, dedicar-se à oração, mesmo que descontente o marido. Dessa maneira, ela não vai saber organizar o tempo nem as suas ocupações para que tudo siga a verdade. Por lhe faltar luz, ele não a dá a ninguém, embora queira. E, ainda que para isto não pareça necessário ter instrução, sempre tive a opi­nião de que todo cristão deve procurar ter relações com quem a tenha, se puder, e quanto mais melhor; e os que seguem o caminho da oração têm mais ne­cessidade disso, e tanto maior quanto mais espirituais forem.

18. E ninguém se engane, dizendo que os letrados sem oração não servem para quem a tem. Tenho lidado com muitos, porque de uns anos para cá minha necessidade tem sido maior. E sempre fui amiga deles, pois, mesmo que alguns não tenham experiência, não se opõem ao que é espiritual nem o ignoram, já que, nas Sagradas Escrituras que estudam, sempre acham a verdade do bom espírito. Tenho para mim que a pessoa de oração que se relacio­nar com letrados não será enganada pelas ilusões do demônio, se não quiser se enganar, porque, creio eu, os demônios temem muito a instrução humilde e virtuosa, sabendo que serão descobertos e prejudicados.

19. Eu disse isso porque há quem pense que os letrados não servem para pessoas de oração se não seguirem o espírito.12 Já falei que o mestre espiritual é necessário; se, contudo, este não for instruído, há aí um grande inconveniente. Ajuda muito relacionar-se com pessoas instruídas; se forem virtuosas, mesmo que não sejam espirituais, trazem proveito, e Deus fará com que entendam o que precisam ensinar e até as tornará espirituais para que nos ajudem. E não o afirmo sem tê-lo experimentado; aconteceu-me com mais de dois. Errará muito uma alma que, resolvida a submeter-se a um só mestre, não procurar um que seja como eu digo; porque, se lhe faltarem as três coisas,13 a cruz não será leve. Que não desejemos, por vontade própria, submeter-nos a quem não tenha bom entendimento. Eu ao menos nunca pude aceitar isso, nem o considero conveniente. Quem é secular deve louvar a Deus por poder escolher aquele a quem há de sujeitar-se e não deve perder essa liberdade tão virtuosa; deve preferir ficar sem mestre, até encontrá-lo, porque o Senhor lhe dará um, se tudo estiver fundado na humildade e no desejo de acertar. Eu muito O louvo por isso, e as mulheres e os que não temos instrução deveríamos sempre dar-Lhe infinitas graças por haver quem, com tantos esforços, tenha alcançado a verdade que nós, ignorantes, desconhecemos.

20. Espantam-me muitas vezes as pessoas instruídas, religiosas em especial, que conseguiram com trabalho o que eu, sem nenhum, além de perguntar, aproveito. E ainda há quem não queira se valer desse meio! Que Deus não o permita! Eu as vejo viver sujeitas aos trabalhos da religião, que são gran­des, com penitências e pouca alimentação, submetidas à obediência — o que por vezes me deixa confusa —, padecendo, além disso, de poucas horas de sono, de muito trabalho, de muitas cruzes. Considero um grande mal que al­guém, por sua culpa, deixe passar a oportunidade de aproveitar tanto bem. E talvez alguns dentre nós, livres desses labores, vivendo ao bel-prazer, e re­cebendo dessas pessoas o alimento mastigado, como se diz, pensem que, por ter um pouco mais de oração, levam vantagem diante de tantos sofrimentos.14

21. Bendito sejais, Senhor, que tão inábil e sem utilidade me fizestes! Mas louvo-Vos muito, porque despertais tantos que nos despertam. A nossa oração por quem nos dá luz devia ser contínua. Que seríamos sem eles em meio às tempestades tão grandes que ora atingem a Igreja? Se tem havido alguns ruins,15 mais brilharão os bons. Queira o Senhor sustentá-los com a Sua mão e ajudá-los para que nos ajudem, amém.

22. Eu me afastei muito — e de propósito — do que comecei a dizer; mas tudo tem como alvo os iniciantes, para que comecem caminho tão elevado seguindo o rumo verdadeiro. Voltando ao que dizia,16 pensar em Cristo atado à coluna, é bom pensar um pouco e refletir sobre os sofrimentos que Ele teve ali, por que os teve, quem é e com que amor os suportou. Mas ninguém se canse em procurar sempre isso, mas, aquietado o intelecto, fique ali com Ele. Se puder, que se ocupe em ver que Ele o olha, fazendo-Lhe companhia, falando com Ele, pedindo, humilhando-se e deliciando-se com Ele, tendo sempre em mente que não merece estar ali. Se puder fazer isso, mesmo que seja no princípio da oração, terá grande proveito, pois esse modo de oração é muito benéfico, ou ao menos o foi para a minha alma.

Não sei se falo verdades; vossa mercê o julgará. Queira Deus que eu sempre consiga contentá-Lo, amém.

Capítulo 14

Começa a tratar do segundo grau de oração, em que o Senhor permite à alma sentir gostos mais particulares. — Fala disso para dar a entender que esses gostos já são sobrenaturais.

1. Já falei do trabalho com que se rega este jardim, tirando água do poço com a força dos braços. Falarei agora do segundo modo de tirar a água que o Senhor do jardim ordenou, para que, mediante um torno e alcatruzes, o jar­dineiro tirasse mais água com menos trabalho e, sem ter de trabalhar continuamente, pudesse descansar. Agora quero tratar desse modo, aplicado à oração, a que chamam de quietude.1

2. Nele, a alma começa a se recolher e já atinge coisas sobrenaturais, porque de nenhuma maneira pode conseguir isso por si mesma, por mais que se esforce. É verdade que ela parece ter se cansado em algum momento de ma­nejar o torno e de encher os alcatruzes; aqui, porém, a água subiu mais, exi­gindo muito menos trabalho do que quando era tirada diretamente do poço. Digo que a água está mais perto porque a graça se dá a conhecer com mais clareza à alma.

Isso2 é o recolhimento das faculdades dentro de si para uma alegria mais prazerosa com o contentamento que se obtém. Mas essas faculdades não se perdem nem ficam adormecidas; só a vontade se ocupa, de modo que, sem saber como, se torna cativa, apenas dando consentimento para que Deus a encarcere, como quem bem sabe ser presa daquele a quem ama. Ó Jesus, Senhor meu! Quanto nos vale aqui o Vosso amor. Pois ele ata a tal ponto o nosso que não deixa liberdade, naquela hora, para amar alguma coisa além de Vós.

3. As outras duas faculdades ajudam a vontade, para que esta se vá tornando capaz de fruir de tanto bem, embora algumas vezes, mesmo estando a vontade unida, muito atrapalhem. Se isso acontecer, não se deve fazer caso delas, mas conservar a alegria e a quietude; porque, se a vontade quiser recolhê-las, acaba por se perder junto com elas, pois estas se tornam então pombas que não se contentam com a comida que o dono do pombal dá, buscando alimento por conta própria; essas pombas, nesse caso, se dão tão mal que acabam por voltar, ficando assim indo e vindo, na esperança de que a vontade lhes dê um pouco do que desfruta. Se o Senhor quiser jogar-lhes comida, elas se detêm; se Ele não o faz, elas voltam a procurar. Elas devem pensar que beneficiam a vontade. Mas, nas vezes em que a memória ou imaginação quer representar para a vontade o que esta está sentindo, o resultado é maléfico. Deve-se atentar, pois, para a maneira de se comportar de que agora falarei.3

4. Pois tudo o que acontece aqui traz um enorme consolo e exige tão pouco trabalho que a oração não cansa, mesmo que se prolongue muito; porque o intelecto age aqui com muita suavidade e tira muito mais água do que tirava do poço;4 as lágrimas que Deus concede já vêm com prazer, brotando naturalmente, sem esforço nenhum nosso.

5. Essa água de grandes bens e graças que o Senhor dá aqui faz crescer as virtudes muito mais do que no modo precedente, porque a alma já vai se elevando acima de sua miséria e já percebe um pouco as delícias da glória. Creio que isso as faz progredir mais, levando-as para mais perto da verdadeira virtude, fonte de todas as virtudes, que é Deus; porque Sua Majestade começa a comunicar-se a essa alma e quer que ela sinta como Ele faz isso.

Logo se começa, tendo chegado aqui, a perder a cobiça das coisas da terra, o que não causa espanto; porque a alma vê com clareza que aquele prazer não pode ser obtido aqui, nem há riquezas, prestígio, honras ou encantos suficientes para criar um átimo desse contentamento, por ser ele um júbilo verdadeiro que nos contenta por inteiro. Porque os prazeres daqui só por milagre poderemos descobrir, já que nunca lhes falta um “senão”. Aqui, tudo é “sim” naquele momento; o “não” vem depois, quando vemos que se acabou e que não podemos fazê-lo voltar nem sabemos como. Pouco servem penitências, orações ou outras coisas, pois, se o Senhor não o quiser dar. Deus quer, pela sua grandeza, que a alma entenda que Sua Majestade está tão perto dela que não há por que enviar-Lhe mensageiros, se ela pode falar diretamente com Ele, e falar baixo, visto que, dada a Sua proximidade, Ele já entende o simples mover dos lábios.

6. Parece impertinência dizer isso, dado que sabemos que Deus sempre nos entende e está conosco. Não há dúvida de que seja assim, mas esse Imperador e Senhor nosso quer que saibamos aqui que Ele nos entende e o que produz em nós a Sua presença. Ele também faz entender que deseja particularmente começar a agir na alma, através da grande satisfação interior e exterior que lhe dá e pela diferença que existe, como eu disse,5 entre esse deleite e contentamento e os prazeres da terra, parecendo preencher o vazio que, pelos nossos pecados, tínhamos criado na alma. É bem no íntimo que a alma sente essa satisfação, sem saber por onde nem como lhe veio, e desconhecendo o que fazer, o que querer, o que pedir. Parece que ela acha tudo jun­to e não sabe o que achou, nem eu sei ainda como explicá-lo, porque para essas coisas seria preciso instrução. Seria bom explicar aqui o que é graça geral e graça particular,6 porque há muitos que o ignoram. Isso serviria para mos­trar que, com relação a essa graça tão particular, o Senhor quer que a alma, como se diz, veja com seus próprios olhos. Isso também serviria para es­clarecer muitas coisas que devem estar erradas; mas, como este relato vai ser lido por pessoas que saberão identificar os erros, não me preocupo. Confio nessas pessoas, tanto em termos de instrução como de espírito, certa de que, tendo-o em seu poder, elas o entenderão e corrigirão o que estiver errado.

7. Eu queria explicar isso, porque o Senhor começa a dar essas graças no princípio, quando a alma não as entende nem sabe o que fazer de si. Se Deus a levar pelo caminho do temor, como me levou, é grande o sofrimento se não houver quem a entenda — e é grande o gosto da alma quando lhe fazem o seu retrato, permitindo-lhe ver claro que segue o caminho certo. É um grande bem saber o que deve fazer para avançar em qualquer um desses estados. Porque passei por muitas coisas e perdi muito tempo por não saber o que fazer, e sofro muito pelas almas que se vêem sozinhas quando chegam aqui. Tenho lido muitos livros espirituais que, embora falem do essencial, pouco explicam; se a alma não tiver muita experiência, mesmo que os livros explicassem muito, o esforço por entender a si mesma ainda assim seria grande.

8. Eu queria muito que o Senhor me favorecesse para que eu dissesse os efeitos causados na alma por essas coisas, que já começam a ser sobrenaturais, para que através disso se pudesse entender quando se trata do espírito de Deus. Digo “entender” no sentido da compreensão possível na terra, pois é sempre bom ter temor e cautela; porque, mesmo que as graças venham de Deus, o demônio poderá transfigurar-se algumas vezes em anjo de luz, e a alma, se não for muito experiente — e experiente a ponto de ter chegado ao auge da oração —, não o perceberá.

O pouco tempo de que disponho não me favorece, sendo preciso que Sua Majestade trabalhe por mim; pois tenho de estar com a comunidade e cuidar de muita coisa, por estar em casa recém-fundada,7 como depois se verá. Por isso, escrevo com muitas interrupções, pouco a pouco, e não como gostaria. Contudo, quando o Senhor dá ânimo, tudo é feito melhor e com mais facili­dade, como quem tem um modelo diante de si e o copia; quando falta o âni­mo, não se acham mais as palavras certas, mesmo que o exercício da oração venha de muitos anos, como se, por assim dizer, se falasse grego. Por isso, parece-me grande vantagem, quando escrevo, o estar concentrada, porque vejo com clareza que não sou eu quem o diz, nem forma os conceitos com a mente, nem sei depois como consegui dizer. Isso me acontece muitas vezes.

9. Voltemos agora ao nosso jardim ou vergel, e vejamos como essas ár­vo­res começam a impregnar-se para florescer e depois dar frutos, e os cra­vos e flores, para dar perfume. Agrada-me essa comparação, porque inúme­ras ve­zes, quando comecei (e queira o Senhor que eu tenha começado a servir Sua Majestade; digo “quando comecei” referindo-me ao início do que doravan­te contarei da minha vida), eu tinha grande deleite em considerar a minha al­ma um jardim e ver o Senhor passeando nele. Eu Lhe suplicava aumen­tas­se o perfume das florezinhas de virtudes, que começavam, pelo que eu percebia, a querer brotar, e que elas fossem para a Sua glória, e que Ele as sustentasse, pois eu não queria nada para mim, pedindo-Lhe ainda que podasse as que quisesse, porquanto eu sabia que flores melhores iriam brotar. Digo “podar” porque há momentos em que a alma não se lembra desse jardim: tudo parece seco, sem água para sustentar, tendo-se a impressão de que a alma jamais teve em si virtudes. É grande o sofrimento. Porque o Senhor deseja que o pobre jardineiro pense que todo o trabalho que teve para cuidar do jardim e regá-lo se perdeu. É então que chega o real momento de arrancar pela raiz as ervas daninhas, mesmo pequenas, que ficaram e de reconhecer que nenhum esforço basta se Deus nos tira a água da graça; assim, vemos que o pouco que temos é nada, e menos que nada, ganhando muita humildade. Eis que as flores voltam a crescer.

10. Ó Senhor e Bem meu! Não posso falar isso sem lágrimas e com grande júbilo na alma! E quereis, Senhor, estar assim conosco, e estais no sacramento, onde com certeza permaneceis, pois assim é — e com acerto podemos fazer essa comparação; e, se não perdermos a Vossa companhia por culpa nossa, poderemos deliciar-nos Convosco e tereis prazer conosco, pois dizeis ser Vossas delícias estardes com os filhos dos homens.8 Ó Senhor meu! Que é isso? Sempre que ouço isso, tenho grande consolo, até quando eu estava muito perdida. Será possível, Senhor, que haja uma alma que, tendo chegado a esse ponto e recebido de Vós tamanhas graças e alegrias, ten­do compreendido que Vos deliciais com ela, volte a Vos ofender — esquecen­do tantos favores e mostras tão grandes do Vosso amor, de que não se pode duvidar, pois são vistas claramente na obra que fazeis? Sim, por certo há, e que não Vos ofendeu uma, mas muitas vezes: essa sou eu. E queira a Vossa bondade, Senhor, que seja só eu a ingrata, a que fez tantas maldades e teve uma ingratidão tão excessiva. Porque de mim algum bem Vossa infinita bondade já tirou e, apesar de o mal ser maior, mais resplandece o grande bem de Vossas misericórdias. E com quanta razão eu as posso cantar para sempre!9

11. Suplico-Vos, Deus meu, que assim seja e que eu as cante sem parar, já que Vos dignastes conceder-me graças tão imensas que espantam os que as vêem e que muitas vezes me deixem fora de mim para que eu melhor Vos louve; porque, sem Vós, eu não poderia, Senhor meu, senão voltar a ter cortadas as flores desse jardim, de modo que essa terra miserável servisse outra vez de monturo. Não o permitais, Senhor, nem desejeis que se perca uma alma que com tantos sofrimentos conquistastes, e que tornastes a resgatar em inúmeras oportunidades, arrancando-a dos dentes do espantoso dragão.

12. Vossa mercê me perdoe10 a digressão; não estranheis que eu fale de mim mesma, porque isso vem da impressão que causa na alma o que escrevo, sendo por vezes custoso deixar de irromper em longos louvores a Deus, à medida que me vem à mente, enquanto escrevo, o muito que ela lhe deve. E creio que isso não vai desagradar vossa mercê, porque nós, creio eu, podemos entoar um mesmo cântico, se bem que de maneira diferente. Isso porque devo muito mais a Deus, por ter Ele me perdoado mais,11 como vossa mercê o sabe.

Capítulo 15

Continua a tratar do mesmo assunto e faz algumas advertências sobre o modo de proceder na oração de quietude. Fala da existência de muitas almas que chegam a ter essa oração, sendo poucas as que vão adiante. Diz que as coisas aqui tratadas são muito necessárias e proveitosas.

1. Voltemos ao nosso propósito. Essa quietude e recolhimento da alma é coisa que se torna muito sensível pela satisfação e pela paz que traz, pelo grande contentamento e sossego das faculdades e por um deleite muito suave. Como a alma nunca foi além, vem a impressão de que nada lhe falta para desejar, e ela com prazer diria, com São Pedro, que quisera ter ali a sua morada.1 Ela não se atreve a se mexer nem a se agitar, temendo que aquele bem fuja de suas mãos. Às vezes, nem sequer deseja respirar. A pobrezinha não entende que, como por si nada pode fazer para atrair esse bem, muito menos o pode para mantê-lo mais do que o Senhor o deseja.

Eu disse que, nesse primeiro recolhimento e quietude, não se perdem as qua­lidades da alma,2 mas esta, de tão satisfeita com Deus enquanto aquilo du­ra, mesmo que as duas faculdades possam extraviar-se, não perde a quietude e o sossego, já que a vontade está unida com Deus, voltando a recolher pou­co a pouco o intelecto e a memória. Porque, embora não totalmente en­­golfada, a alma está tão ocupada, sem saber como, que as duas faculdades, por mais que se esforcem, não conseguem arrebatá-la de seu contentamento e prazer; sem nenhum trabalho, ela vai ajudando a si mesma para que essa centelhazinha de amor de Deus não se apague.

2. Conceda-me Sua Majestade a graça de eu me fazer compreender bem, visto haver muitíssimas almas que chegam a esse estado e poucas que vão adiante, e eu não sei de quem é a culpa. É bem certo que Deus não falta; tendo concedido o favor de que a alma chegue a esse ponto, Sua Majestade, acredito eu, não deixaria de conceder muitos mais, exceto se não cor­res­pon­dermos. É muito necessário que a alma que chega aqui reconheça a grande dignidade em que está e a grande graça que o Senhor lhe concedeu, bem como haver boas razões para não mais ser da terra, porque a Sua bondade já a deixa próxima do céu, se ela não puser empecilhos; e quão desventurada será a alma que voltar atrás. Creio que ela desceria sempre, como teria acontecido comigo se a misericórdia do Senhor não me tivesse salvo; a meu ver, isso acontece devido a graves culpas, porque não é possível deixar tão grande bem sem uma enorme cegueira.

3. E assim peço, por amor do Senhor, que as almas a quem Sua Majestade fez o grande benefício de levar a esse estado conheçam a si mesmas e tenham muita consideração por si, com uma humildade e santa presunção, para não retornarem aos alimentos do Egito.3 Se, por sua fraqueza, maldade e natureza ruim e miserável, caírem, como eu caí, que elas sempre tenham diante dos olhos o bem que perderam e se alarmem e tenham medo (pois não lhes falta razão para tanto) de que, se não voltarem à oração, irão de mal a pior. Considero a verdadeira queda aquela em que a alma rejeita o caminho onde obteve tantos benefícios. Para quem se vê nessa situação, já não digo que não ofendam a Deus nem pequem, embora seja razoável que se proteja disso quem começou a receber essas graças. Mas, como somos miseráveis, aconselho insistentemente que não deixem a oração, porque, nela, vão compreender o que fazem e ganharão do Senhor o arrependimento, bem como força para se levantarem; acreditem-me: quem se afasta da oração se expõe, a meu ver, a perigos. Não sei se o digo bem, porque, como falei,4 julgo por mim…

4. Essa oração é, portanto, uma centelhazinha do Seu verdadeiro amor que o Senhor começa a acender na alma, para fazê-la compreender que é esse amor feliz. Essa quietude, esse recolhimento e essa centelha, quando são espírito de Deus, e não gosto dado pelo demônio ou procurado por nós, são compreendidos imediatamente, por quem tem experiência, como uma coisa que não se pode adquirir. Porém, a nossa natureza deseja tanto coisas saborosas que prova tudo, mas cedo fica muito fria, porque, por mais que deseje acender o fogo para conseguir esse gosto, não faz mais que jogar-lhe água para apagá-lo… porque a centelhazinha vinda de Deus, por menor que seja, faz muito ruído e, se a alma não a extinguir por sua culpa, ela vai começar a acender o grande fogo que lança chamas, como direi no momento certo,5 do enorme amor de Deus, que Sua Majestade concede às almas perfeitas.

5. Essa centelha é um sinal ou garantia dados por Deus à alma, indicando que já a escolheu para grandes coisas, caso ela se disponha a recebê-las. É um dom imenso, que está além do que posso definir.

É uma lástima o fato de eu conhecer, repito,6 muitas almas que chegam aqui, mas poucas que passam desse ponto como devem passar — causando--me vergonha dizê-lo. Não posso garantir que são poucas, pois deve haver muitas, porque não é em vão que Deus nos sustenta, mas falo do que vi. Gostaria de insistir que procurem não esconder seu talento,7 pois Deus parece ter querido escolhê-las para beneficiar muitas outras, especialmente nesta época, em que são necessários amigos fortes de Deus para sustentar os fracos; considerem-se fortes os que virem em si essa graça, se souberem corresponder às injunções que até as boas amizades do mundo fazem; se assim não for, como eu disse,8 desconfiem e temam fazer mal a si mesmas, e queira Deus que não o façam a outros!

6. Nos momentos dessa quietude, basta à alma proceder com suavidade e sem ruído. Chamo de “ruído” agir com o intelecto, buscando muitas palavras e considerações para agradecer por esse benefício, e amontoando pecados e faltas para ver que não o merecem. Tudo isso se movimenta aqui: o intelecto vem com razões, a memória não se aquieta; confesso que essas faculdades às vezes me cansam, porque, mesmo tendo pouca memória, não a consigo subjugar. Que a vontade, com sossego e discrição, entenda que não é com a força dos braços que se negocia bem com Deus, e que estes9 são achas de lenha postas sem discernimento para apagar a centelha. Que ela reconheça isso e, com humildade, diga: “Senhor, que posso fazer aqui? Que tem que ver a serva com o Senhor e a terra com o céu?” Podem-se dizer também outras palavras de amor, que surgem espontaneamente, com a força da verdade que são, sem levar em conta o intelecto, que é um moinho. E se a vontade quer partilhar do que frui com o intelecto, ou se esforça para recolhê-lo, muitas vezes a alma experimentará o repouso e a união da vontade, e uma grande confusão no intelecto; é melhor que o abandone, não indo atrás dele, mantendo-se contudo na alegria da graça, recolhida como uma sábia abelha; porque, se nenhuma abelha entrasse na colméia, mas se fossem todas, umas em busca das outras, como seria possível fabricar o mel?

7. Desse modo, a alma vai perder muito se não tiver cuidado, especialmente se o intelecto for arguto e, organizando reflexões e arrolando razões, por insignificantes que sejam, pensar, se essas reflexões e razões forem bem formuladas, que realiza alguma coisa. O máximo a que podemos chegar aqui é entender com clareza que não há nenhuma razão para que Deus nos faça tão grande favor, a não ser a Sua bondade, e ver que estamos muito próximos de Sua Majestade, pedindo-Lhe favores, rogando-Lhe pela Igreja, pelos que se encomendaram a nós e pelas almas do purgatório — não com o ruído das palavras, mas com o sentimento de desejar que Ele nos ouça. É uma oração que abrange muito e alcança mais do que o exercício permanente do intelecto. A vontade deve despertar em si algumas razões que avivem esse amor para que, vendo-se tão melhor, faça alguns atos amorosos em prol daquele a quem tanto deve; isso, como eu já disse,10 sem admitir o ruído do intelecto, sempre em busca de grandes coisas. Mais valem aqui umas palhinhas colocadas com humildade (e são menos que palhas, já que colocadas por nós), que servem para avivar mais esse fogo, do que um monte de lenha de razões muito eruditas que, a meu ver, o apagarão no espaço de um credo.

Isso é bom para os letrados que me mandaram escrever, porque, pela bon­dade de Deus, todos chegam até aqui, e pode acontecer que eles passem o tempo todo aplicando as Escrituras. Mesmo que as letras sejam proveitosas antes e depois dessa oração, pouco precisamos delas, pelo que sei, enquanto ela durar. Só serviria para enfraquecer a vontade, porque o intelecto, aproxi­man­do-se da luz, fica a tal ponto esclarecido que até eu, sendo quem sou, pa­reço outra pessoa.

8. E tem me acontecido que, embora eu não entenda quase nada do que rezo em latim, do Saltério em especial, por vezes, estando nessa quietude, compreendo os versos co­mo se estivessem em romance.11 E, mais do que isso, alegro-me com o se­ntido das palavras.

Quanto aos letrados, é justo que usem o conhecimento em favor de pobres ignorantes como eu, quando têm de pregar ou ensinar; a caridade e o desejo de levar as almas a sempre terem proveito são importantes, desde que se busque a Deus com pureza.

Assim, nesses momentos de quietude, mesmo os eruditos devem descansar, repousando junto de Deus, deixando de lado o conhecimento. O saber mais tarde terá muita utilidade no serviço do Senhor. Será tão precioso que eles de maneira alguma iriam desejar não ter se instruído apenas para servir a Sua Majestade, porque as letras ajudam muito. Contudo, diante da Sabedoria infinita, acreditem-me que vale mais um pouco de estudo da humildade e um ato desta virtude do que toda a ciência do mundo. Aqui, não há por que argumentar,12 e sim perceber com franqueza o que somos e, com simplicidade, pôr-nos diante de Deus, que deseja que a alma se faça pequenina e ignorante, como na verdade é, em Sua presença, porque Sua Majestade muito se humilha, sendo nós como somos, suportando-nos diante de Si.

9. A mente também busca dar graças muito elaboradas. Mas a vontade, em quietude, sem ousar sequer levantar os olhos, como o publicano,13 sabe agradecer melhor que a mente com sua retórica e suas belas palavras. Não se deve deixar de todo a oração mental,14 nem algumas palavras, mesmo pronunciadas, caso a alma queira ou consiga dizê-las; porque, se a quietude for profunda, mal se poderá falar, exceto com muito esforço.

A meu ver, sentimos quando se trata do espírito de Deus ou quando esse es­tado é provocado por nós; neste caso, se Deus nos tiver dado um começo de de­voção e quisermos, como eu disse, passar da vontade a essa quietude da vonta­de, nenhum efeito obteremos, pois o estado depressa se acabará, deixando aridez.

10. Se a devoção vem do demônio, penso que qualquer alma experiente o perceberá, visto produzir inquietação, bem como pouca humildade e disposição para os efeitos próprios do espírito de Deus. Nesse caso, não há luz no intelecto nem firmeza de vontade. Talvez isso provoque pouco ou nenhum prejuízo se a alma dirigir o seu deleite e suavidade, que sente nesse estado, a Deus, pondo nele seus pensamentos e desejos, como alertei; o demônio nada pode ganhar se assim agirmos, porque Deus permitirá que ele, com o próprio deleite que causa na alma, perca muito. Esse deleite faz com que a alma, julgando que é sempre de Deus, procure muitas vezes a oração pela avidez de se deleitar. Se a alma for humilde, não curiosa nem movida pelo in­teresse de prazeres, mesmo espirituais, mas amiga da cruz, nenhuma importância dará ao deleite gerado pelo espírito maligno. Quanto às coisas vindas do demônio, este, como é todo mentira, ao ver que a alma se humilha com gos­­to e satisfação (que nisso é preciso, em todas as coisas de oração e em to­dos os prazeres, tentar ser humilde), não volta muitas vezes, ao ver que sai per­dendo.

11. Por isso, e por muitas outras razões, avisei, ao tratar do primeiro mo­do de oração ou primeira água, que é muito importante que as almas, ao co­meçarem a oração, se desapeguem de toda espécie de prazer e entrem nes­se caminho voltadas apenas para ajudar Cristo a carregar a cruz, como bons cavaleiros que, sem pagamento, desejam servir a seu rei, pois sabem que contam com ele, com os olhos voltados para o reino verdadeiro e perpé­tuo que pretendemos ganhar. Especialmente no início, é muito bom lembrar disso; adiante perceberemos, com todas as provas, quão pouco duram todas as coisas e que tudo é nada, não se devendo levar em conta o descanso, visto ser preciso esquecê-lo, em vez de recordá-lo, para viver.

12. Isso parece coisa rudimentar, o que é verdade, pois os avançados na perfeição o considerariam uma afronta e se ofenderiam se pensassem que abandonam os bens deste mundo porque estes têm fim quando, mesmo que durassem para sempre, os deixariam alegremente por Deus; e quanto mais perfeitos forem, e quanto mais esses bens durassem, tanto mais o fariam. Nessas almas, o amor já está amadurecido, sendo ele quem age; para os que começam, no entanto, é importantíssimo fazê-lo — e que não o considerem pouco, pois este meio produz grandes bens, razão por que o recomendo tanto. Haverá momentos, mesmo para os muito adiantados na oração, em que Deus os vai querer testar, momentos em que terão a impressão de que Sua Majestade os abandonou; porque, como eu já disse — e não queria que fosse esquecido —, nesta vida a alma não cresce como o corpo, embora cresça verdadeiramente; mas uma criança, depois que cresce e atinge o desenvolvimento, tornando-se adulta, não volta a ter um corpo pequeno. No caso da alma, no entanto, isso acontece, como eu vi em mim, pois em outro lugar não o vi; isso deve servir para que nos humilhemos em nosso próprio benefício e para que não nos descuidemos enquanto estivermos neste desterro; quanto mais alto estivermos, mais devemos temer e menos confiar em nosso próprio poder. Há ocasiões em que as próprias almas já submetidas por inteiro à vontade de Deus — sendo até capazes de sofrer tormentos e enfrentar mil mortes para não serem imperfeitas — são assoladas por tentações e perseguições. Nessa circunstância, elas devem usar as primeiras armas da oração: voltar a pensar que tudo se acaba e que existem céu, inferno e outras coisas dessa espécie.

13. Voltando ao que eu dizia,15 é fundamental que a alma, para livrar-se dos prazeres e ardis do demônio, decida desde o início seguir com determinação, e sem querer consolações, o caminho da cruz. O Senhor revelou ser essa a trilha da perfeição ao dizer: Toma tua cruz e segue-me.16 Ele é o nosso modelo; quem segue Seus conselhos só para agradá-Lo não tem o que temer.

14. As almas perceberão que as graças não vêm do demônio pelo progresso que virem em si; mesmo que voltem a cair, levantam-se de pronto — o que é um sinal, entre outros de que vou falar, de que o Senhor esteve nelas. Quando o espírito de Deus age, nada é preciso fazer para ter humildade e confusão, porque o próprio Senhor já as dá, e de um modo bem distinto do que nós o fazemos com as nossas ínfimas considerações, que nada são diante da verdadeira humildade iluminada que o Senhor ensina, trazendo tal confusão que a alma parece desfazer-se. É coisa muito conhecida o saber que Deus dá para que percebamos que por nós nenhum bem possuímos; e quanto maiores as graças, maior o entendimento. O Senhor infunde na alma grande vontade de avançar na oração e de nela manter-se, por maior que seja o sofrimento; Ele faz com que a alma se ofereça para tudo; dá-lhe segurança, com humildade e temor, quanto à sua salvação; acaba logo com o temor servil da alma, dando-lhe um temor filial muito mais maduro; faz com que a alma perceba que começa um amor com Deus em que não há interesse próprio e que deseje momentos de solidão para melhor aproveitar esse bem.

15. Para não me cansar, resumo: o princípio de todos os bens está no fato de as flores ficarem num ponto em que não lhes falta quase nada para desabrochar. A alma vê isso com muita clareza e de maneira alguma vai se convencer de que Deus não esteve com ela, até voltar a se ver com falhas e imperfeições, passando então a temer tudo. E é bom que tema, embora haja almas que se beneficiam mais em ter certeza de serem favorecidas por Deus do que com todos os temores que possam surgir em si; porque, se for naturalmente amorosa e agradecida, a memória da graça recebida a faz voltar mais a Deus do que a lembrança de todos os castigos do inferno. Ao menos comigo, embora eu seja tão ruim, isso aconteceu.

16. Os sinais do bom espírito vão ser revelados, mas, como me dá muito trabalho discernir com clareza todos eles, não o faço agora. Creio que, com o favor de Deus, perceberei algo disso; porque, além da experiência, que muito me tem feito aprender, tenho obtido informações de alguns letrados muito eruditos e de pessoas muito santas, que merecem receber crédito. E que as almas, quando chegarem aqui pela bondade do Senhor, não fiquem tão fatigadas, quanto eu fiquei.

Capítulo 16

Trata do terceiro grau de oração e fala de coisas muito sublimes, daquilo que a alma pode fazer quando chega a esse ponto e dos efeitos produzidos por essas graças tão grandes do Senhor. Diz que essas coisas servem para arrebatar o espírito em louvores a Deus e para dar grande consolação a quem chega a esse ponto.

1. Vamos falar agora da terceira água com que se rega esse jardim — a água corrente de rio ou de fonte —, trabalho feito com muito menos esforço, exceto o de canalizar a água. O Senhor quer ajudar o jardineiro aqui de uma maneira em que Ele quase é o jardineiro, encarregando-se de tudo.

É o sono das faculdades, que nem se perdem de todo nem percebem como agem. O gosto, a suavidade e o deleite são bem mais sem comparação que os do grau passado; aqui, a água da graça é posta na garganta da alma; esta já não pode ir adiante, nem sabe como, nem pode voltar atrás; ela gostaria de regozijar--se com uma grandíssima glória. É como um moribundo que está com a vela na mão, prestes a ter a morte que deseja, fluindo daquela agonia com o maior prazer que se pode imaginar. Não me parece senão um morrer quase por inteiro para todas as coisas do mundo e um estar fruindo de Deus.

Não sei explicar em outros termos. Nesse estado, a alma não sabe o que fazer: se fala, se fica em silêncio, se ri ou se chora. É um glorioso desatino, uma loucura celestial, onde se aprende a verdadeira sabedoria, sendo para a alma uma maneira muito deleitosa de se regozijar.

2. O Senhor me deu em abundância essa oração, muitas vezes, creio que há cinco ou seis anos. Eu nem a compreendia nem seria capaz de descrevê--la e, chegando aqui, decidira dizer muito pouco ou nada. Eu entendia bem que não era uma união completa de todas as faculdades, mas que era claramente mais intensa que a precedente; mas confesso que não podia determinar nem compreender essa diferença. Creio que, pela humildade que vossa mercê1 revelou ao querer ser ajudado por alguém tão simples quanto eu, o Senhor me concedeu hoje, quando eu acabava de comungar, esse modo de oração, e eu não pude ir adiante. Ele me mostrou essas comparações, me ensinou a maneira de explicá-lo e o procedimento que a alma deve seguir aqui, sendo muito o meu espanto por ter compreendido logo. Muitas vezes estive desatinada e ébria desse amor, e nunca tinha conseguido compreender. Sabia que isso vinha de Deus, mas não como era a sua ação; porque, na verdade, as faculdades estão unidas quase por inteiro,2 mas não a um ponto que as faça deixar de agir. Gostei deveras de tê-lo compreendido agora. Bendito seja o Senhor, que mo permitiu!

3. As faculdades só têm condições de ocupar-se em Deus; parece que nenhuma ousa mexer-se, nem podemos fazer que se movam, exceto com muito esforço para distrair-nos, e, ainda assim, acho que não poderíamos consegui-lo por inteiro. Vêm então, desordenadamente, muitas palavras de louvor a Deus, que só o próprio Senhor as pode corrigir. O intelecto, pelo menos, de nada vale aqui. A alma fica desejosa de louvá-Lo em voz alta, pois não cabe em si, estando num saboroso desassossego. Eis que as flores já se abrem e já começam a exalar seu odor. A alma gostaria que todos a vissem e compreendessem a sua glória para dar graças a Deus; ela gostaria que a ajudassem nisso e queria comunicar-lhes parte do seu prazer, porque quase não agüenta tanta satisfação. Isso me faz pensar na mulher que, segundo o Evangelho,3 queria chamar ou chamava suas vizinhas. O espírito admirável do grande profeta David, quando tocava a harpa e cantava os louvores de Deus, devia sentir isso. Sou muito devota desse glorioso rei e quisera que todos, especialmente os que somos pecadores, também o fossem.4

4. Oh! Valha-me Deus! Como fica então a alma! Ela desejaria ser toda línguas para louvar o Senhor. Diz mil disparates santos, procurando sempre contentar Quem a deixou assim. Sei de alguém que, não sendo poeta, improvisava estrofes muito sentidas, declarando seu penar, não usando para isso o intelecto; para mais gozar a glória que um penar tão saboroso lhe dava, queixava-se dele ao seu Deus. Essa pessoa gostaria que todo o seu corpo e alma se despedaçassem para demonstrar a alegria que esse sofrimento lhe trazia. Que tormentos poderia haver que ela não tivesse regozijo em passá-los pelo seu Senhor? Via com clareza que os mártires nada faziam em seu próprio benefício quando sofriam torturas, porque conheciam bem que a força vinha de outro lugar. Mas quanto sentirá a alma voltando a recuperar a razão para viver no mundo, tendo de voltar aos cuidados e cortesias nele existentes?

Não creio que eu exagere ao descrever as delícias que o Senhor concede à alma em seu desterro. Bendito sejais para sempre, Senhor! Que todas as coisas Vos louvem para sempre. Permiti agora, Rei meu, eu Vos suplico, porque, ao escrever isto, não estou, por Vossa bondade e misericórdia, fora dessa loucura celestial — pois Vós me concedeis essa graça sem que eu tenha méritos —, que fiquem loucos de Vosso amor todos com quem eu me relacionar, ou que eu já não me relacione com ninguém — ou, então, que eu já não me importe com nada deste mundo, ou que seja tirada dele por Vós! Esta Vossa serva já não pode sofrer tanto por ver-se sem voz, porque, se há de viver, não quer descanso nesta vida, senão em vós! Esta alma queria ver-se livre: o comer a mata; o dormir a aflige; ela percebe que o tempo de sua vida se passa em regalos e que nada a pode regalar fora de Vós; pois lhe parece que vive contra a natureza, já não querendo viver em si, mas em Vós.

5. Ó verdadeiro Senhor e Glória minha! Que cruz leve e pesadíssima reservais aos que chegam a este estado! Leve, porque é suave; pesada, porque às vezes é grande o sofrimento de carregá-la; contudo, a alma jamais queria ver-se livre dela, senão para ver-se já Convosco. Quando percebe que não Vos serviu em nada e que, vivendo, pode servir-Vos, ela deseja carregar cruz muito mais pesada e não morrer até o fim do mundo. Nem pensa em descanso, para Vos prestar um pequeno serviço; não sabe o que desejar, mas entende bem que não deseja outra coisa senão a Vós.

6. Ó filho meu!5 (Que de tão humilde assim quer ser chamado aquele a quem dirijo isto e que me mandou escrevê-lo.) Guarde só para si algumas coisas que vossa mercê considerar excessivas; porque nenhuma razão basta para me controlar quando o Senhor me tira de mim, nem creio que, desde esta manhã, depois que comunguei, seja eu quem fala. O que vejo parece um so­nho e só queria ver enfermos deste mal que me aflige. Suplico a vossa mer­cê que sejamos todos loucos de amor por Quem por nós se fez chamar assim. Vossa mercê diz que me estima, e desejo que o prove, dispondo-se a que Deus lhe conceda essa graça, porque são muito poucos os que não têm ra­zão demasiada quando se trata dos seus próprios interesses. Talvez eu a tenha mais do que todos; que vossa mercê, Padre meu, que também é meu fi­lho, por ser meu confessor, a quem confiei minha alma, não o permita. De­siluda-me com verdade, embora não se costumem dizer verdades.

7. Eu gostaria que esse pacto fosse feito pelos cinco que no momento nos amamos em Cristo;6 assim como outros, nos últimos tempos, se juntavam em segredo contra Sua Majestade e para tramar maldades e heresias, procuremos juntar-nos alguma vez a fim de nos desenganar mutuamente e dizer em que poderíamos nos corrigir e contentar mais a Deus. Porque não há quem se conheça tão bem a si quanto o conhecem os que o observam, se é com amor e cuidado pelo nosso proveito. Digo “em segredo” porque já não se usa essa linguagem. Até os pregadores fazem os seus sermões de maneira a não descontentar. A intenção é boa, e também a obra; mas, dessa maneira, pou­cos se corrigem! E por que não são muitos os que deixam os vícios pú­­blicos por causa dos sermões? Sabe o que me parece? Porque os pregadores têm demasiada prudência. Não estão tomados pelas grandes chamas do amor de Deus como o estavam os Apóstolos, e por isso suas labaredas são bran­das. Não digo que tenham o mesmo fervor, mas gostaria que fosse maior do que o que vejo. Sabe vossa mercê o que ajuda muito? Não ter prazer na vi­da e ter pouca estima pela honra; porque os Apóstolos — para dizerem uma ver­dade e sustentá-la para a glória de Deus — não se incomodavam com per­der tudo ou ganhar tudo, já que, quem de fato arrisca tudo por Deus não distingue entre essas coisas. Não digo que eu seja assim, mas gostaria de sê-lo.

8. É grande liberdade ter por cativeiro viver e comportar-se de acordo com as leis do mundo! Quando alcança essa liberdade do Senhor, não há escravo que não arrisque tudo para ser resgatado e voltar à sua terra. Assim, como este é o verdadeiro caminho, não temos de parar nele, porque só acabaremos de ganhar esse grande tesouro quando a vida acabar. Que o Senhor nos dê para isso o Seu favor.

Se lhe parecer conveniente, rasgue vossa mercê o que eu disse, tomando--o como carta pessoal, e me perdoe, pois me mostrei muito atrevida.

Capítulo 17

Continua a falar do terceiro grau de oração, terminando de descrever os seus efeitos. Fala dos prejuízos trazidos aqui pela imaginação e pela memória.

1. Está razoavelmente descrito esse modo de oração e o que a alma há de fazer, ou, melhor dizendo, o que Deus faz a ela, visto ser Ele que já as­sume o ofício de jardineiro, querendo que ela folgue. A vontade só consente nas graças que recebe, devendo oferecer-se a tudo o que a verdadeira sa­bedoria nela quiser fazer, embora por certo seja preciso ter ânimo; porque é tanto o gozo que, por vezes, parece não faltar quase nada para a alma sair do corpo. E que morte venturosa seria!

2. Aqui, parece-me bom, como se disse a vossa mercê,1 deixar-se por in­teiro nos braços de Deus: se Ele quiser levá-la ao céu, que vá; se ao in­ferno, que não sofra, pois vai com seu Bem; que a vida se acabe por inteiro deve ser o seu desejo; que viva mil anos, também. Que Sua Majestade dispo­nha dela como de algo seu, pois a alma já não pertence a si mesma, estando entregue por inteiro ao Senhor, despreocupada de tudo. Quando Deus concede tão alta oração, a alma pode fazer tudo isso e muito mais, porque esses são seus efeitos, compreendendo o que faz sem nenhum cansaço do intelecto; ela parece estar admirada por ver que o Senhor é um jardineiro tão bom e que não quer que ela tenha trabalho, mas que se deleite em começar a aspirar o perfume das flores. Numa dessas visitas, por menos que dure, é tal o jardinei­ro, na verdade o criador da água, que a dá sem medida; e aquilo que a pobre alma, às vezes com um esforço de vinte anos, que cansa o intelecto, não con­seguiu efetuar, o jardineiro celestial lhe dá num instante, fazendo a fruta cres­cer e amadurecer para que a alma se sustente com o seu jardim, porque assim o Senhor o quer. Mas Ele não lhe permite repartir as frutas até que a alma esteja tão forte com o que comer que não gaste as frutas todas apenas provando-as e dando-as aos outros — o que não lhe traria proveito nem pagamento daqueles a quem as der —, mas que as conserve e não se ponha a dar de comer do seu próprio alimento, ficando talvez a morrer de fome. Vão entendê-lo bem essas inteligências,2 que o saberão explicar melhor do que eu, mesmo me cansando.

3. Enfim, as virtudes ficam agora mais fortes do que na oração de quietude; a alma não pode ignorá-las, porque vê que se tornou outra e não sabe como. Ela começa a realizar grandes coisas com o odor que as flores exalam, pois o Senhor deseja que estas desabrochem para que ela veja que tem virtudes, embora bem consciente de que não as podia — nem pôde — obter em muitos anos, enquanto, naquele pouco tempo, as recebeu do jardineiro celestial. Aqui, a humildade em que a alma fica é muito maior e mais profunda do que antes; ela vê com mais clareza que a única coisa que fez foi consentir que o Senhor lhe concedesse favores e que a vontade os abraçasse.

Esse modo de oração me parece união muito evidente de toda a alma com Deus, mas tenho a impressão de que Sua Majestade permite que as faculdades entendam e fruam do muito que Ele realiza.3

4. Acontece algumas, e até muitas, vezes de, estando a vontade unida — para que vossa mercê veja que é possível e o compreenda quando o tiver; a mim, ao menos, isso traz tontura, e por isso o digo aqui —, ver-se com clareza que a vontade está aprisionada e em júbilo. Quando falo de “ver-se com clareza”, falo da vontade, que está em muita quietude; o intelecto e a memória, por sua vez, ficam livres, podendo tratar de negócios e dedicar-se a obras de caridade.

Embora isso se assemelhe à oração de quietude, há certas diferenças: na primeira, a alma não quer agir nem se mover, fruindo o santo ócio de Maria; na segunda, ela pode também ser Marta. Logo, quase se está ao mesmo tempo numa vida ativa e contemplativa: ocupamo-nos de obras de caridade, tratamos de negócios convenientes ao nosso estado e podemos ler, se bem que não sejamos por inteiro senhores de nós, pois percebemos que a melhor parte de nós se encontra em outro lugar. É como se falássemos com uma pessoa, e outra nos falasse do outro lado; não estaríamos bem com uma nem com a outra. Isso fica muito patente e traz muita alegria e contentamento quando é alcançado, facilitando muito à alma, quando esta tem tempo de solidão ou está livre de negócios, a permanência numa quietude muito tranqüila. É um estado de quem se encontra satisfeito a ponto de não necessitar comer; a pessoa sente o estômago alimentado e não tem vontade de comer nenhum manjar, não estando, no entanto, tão farta que, se vir uma boa iguaria, deixe de comê-la com disposição. Assim, a alma não quer nem se satisfaz com contentamentos do mundo, por ter em si o que mais a farta: maiores alegrias em Deus, ímpeto de satisfazer o seu desejo, de rejubilar-se mais, de estar com Ele, é isso o que ela quer.

5. Há outra maneira de união que, mesmo que não seja completa, ainda é maior do que esta de que acabei de falar, mas não tanto quanto esta terceira água de que falei.4

Vossa mercê gostará muito, quando o Senhor lhe conceder todos esses modos, se é que já não os concedeu, de ver tudo escrito e perceber o que é. De fato, um favor é receber a graça do Senhor, outro é entender qual o favor e qual a graça, e outro ainda saber entender e explicar como é. Embora pareça ser suficiente o primeiro estado, para que a alma não fique confusa e medrosa e siga com mais afinco o caminho do Senhor, pondo sob os pés todas as coisas do mundo, é um grande benefício e dádiva entendê-lo. Cada um desses favores é, para quem o recebeu, razão para louvar muito ao Senhor; quem não os recebeu, também O louve, porque Sua Majestade os concedeu a algum vivente para que nós nos beneficiássemos.

Ora, muitas vezes, neste modo de união que quero explicar, acontece (a mim em especial, pois Deus me concedeu a graça de ter essa sorte com freqüência) de Deus tomar posse da vontade e do intelecto — a meu ver, porque este não raciocina, estando ocupado em fruir do Senhor, como quem está olhando e vê tanta coisa que não sabe o que olhar, já que a visão de muita coisa o desvia da de outra, e ele não sabe dizer o que viu. A memória fica livre, talvez ao lado da imaginação; e, vendo-se sozinha, ela move uma guerra e procura espalhar por toda parte um desassossego, somente para louvar a Deus. Ela me cansa e me aborrece, e, com freqüência, suplico ao Senhor que, se é para me incomodar tanto, tire-a de mim nessas ocasiões. Algumas vezes Lhe digo: “Quando, Deus meu, a minha alma estará toda unida em Vosso louvor, e não aos pedaços, sem poder ajudar a si mesma?” Aqui vejo o mal que o pecado nos causa, sujeitando-nos a não fazer o que queremos: estar sempre ocupados com Deus.

6. Digo que me acontece às vezes5 — e hoje aconteceu, e por isso o tenho bem presente na memória — de ver a minha alma se desfazer devido ao desejo de estar por inteiro onde está a maior parte de mim mesma, mas sem o poder, porque a memória e a imaginação lhe movem tal guerra que não o consigo. E, como faltam as outras faculdades, estas não valem, mesmo para fazer mal, nada, só servindo para trazer desassossego; digo “para fazer mal” porque elas não têm força nem conseguem ficar quietas. Como o intelecto em nada ajuda a memória, esta não pára em nada, andando de um lado para o outro, assemelhando-se a essas mariposinhas noturnas, importunas e irrequie­tas. Essa comparação me parece extremamente adequada, porque, ainda que não possam fazer mal, essas mariposinhas incomodam.

Não conheço remédio para isso, pois até agora Deus não me permitiu entender; se conhecesse, de boa vontade eu o tomaria, pois isso me atormenta, como eu disse,6 inúmeras vezes. Percebemos aqui a nossa miséria e, com muita clareza, o grande poder de Deus, pois a memória, mantendo-se solta, muito nos prejudica e cansa, enquanto as outras faculdades, que estão com Sua Majestade, nos trazem descanso.

7. O último remédio que encontrei, depois de sofrer longos anos, é o de que falei ao tratar da oração de quietude:7 não ouvir mais a fantasia do que se ouve um louco; deixá-la com sua teimosia, que só Deus pode tirar — afinal, ela já está dominada. Temos de suportá-lo com paciência, como Jacó padeceu com Lia,8 porque é grande o favor que o Senhor concede permitindo que tenhamos prazer com Raquel. Digo “já está dominada” porque ela não pode, por mais que faça, atrair para si as outras faculdades; na verdade, estas, sem nenhum trabalho, a atraem muitas vezes para si. Em certas ocasiões, Deus se compadece vendo-a tão perdida e desassossegada, desejosa de unir--se às outras, e lhe permite arder no fogo da luz divina, onde as outras já viraram pó, tendo perdido o seu ser natural, estando quase sobrenaturais, no prazer de tão grandes bens.

8. Em todos esses modos que descrevi falando desta última água de fonte, são tão grandes a glória e o descanso da alma que o corpo participa muito sensivelmente dessa felicidade e alegria — disso não tenho dúvida —, e as virtudes, como eu disse,9 se fortalecem.

Parece que o Senhor quis explicar esses estados em que a alma fica, tanto quanto, a meu ver, é possível fazê-lo aqui. Que vossa mercê fale disso com uma pessoa espiritual que tenha chegado a esse ponto e tenha instrução. Se essa pessoa disser que está certo, creia que foi Deus que lho disse e preze muito Sua Majestade; porque, como eu disse, com o tempo vossa mercê muito prazer terá em entender o que é isso, pois talvez ainda não tenha recebido a graça de compreendê-lo (embora Ele lhe tenha permitido desfrutá--lo). Como Sua Majestade lhe concedeu desfrutá-lo, vossa mercê, com a sua inteligência e instrução, o compreenderá pelo que digo aqui. Que o Senhor seja louvado em todos os séculos dos séculos por tudo, amém.

Capítulo 18

Trata do quarto grau de oração. Começa a fazer uma excelente exposição da grande dignidade a que o Senhor leva a alma que está nesse estado. Isso serve para animar muito os que tratam da oração, para que se esforcem para alcançar estado tão elevado, porque isso é possível na terra, embora não por merecimento, e sim pela bondade do Senhor. Este capítulo deve ser lido com atenção porque a declaração é muito complexa e contém importantes instruções.1

1. Que o Senhor me ensine palavras para que eu possa falar da quarta água. Tenho muita necessidade do seu favor, mais do que para a oração precedente; porque, nela,2 a alma ainda sente que não está totalmente morta, embora já o esteja para o mundo; mas, como eu disse, ela tem consciência para entender que está no mundo e sentir sua solidão, aproveitando-se do exterior para dar a entender o que sente, ao menos por sinais.

Em toda a oração e em seus modos, de que falei, o jardineiro faz algum serviço, se bem que, nestes últimos, o trabalho seja acompanhado de tanto júbilo e consolo que a alma não deseja deixá-lo, não o considerando trabalho, e sim glória. Aqui,3 não há sentir, mas um regozijar-se sem compreensão de sua causa. Sabe-se que se frui um bem que traz em si todos os bens, mas não se com­preen­de esse bem. Todos os sentidos se ocupam desse prazer, não ficando nenhum desocupado para ser empregado em outra coisa, interior ou exterior.

Antes, era-lhes permitido dar mostras da sua grande felicidade; aqui, a alma desfruta incomparavelmente mais, mas o demonstra muito menos, porque não resta poder no corpo nem na alma para a comunicação desse gozo. Nesses momentos, tudo passa a ser grande embaraço, tormento e estorvo para seu descanso; e afirmo que, se é união de todas as faculdades, ainda que queira — encontrando-se nesse estado —, a alma não o pode exprimir e, se o pode, já não é união.

2. Não sei explicar como é essa oração a que chamam união,4 nem o que é. Na teologia mística, ela é explicada, enquanto eu não tenho palavras para dizê-lo, nem sei bem o que é a mente, nem sei diferenciar entre alma e espírito; tudo me parece uma só coisa, embora a alma por vezes saia de si mesma, como se fosse um fogo que está ardendo e se incendeia, e algumas vezes esse fogo aumenta com ímpeto e essa chama se eleva muito acima do fogo, mas nem por isso se distinguem: é a mesma chama que está no fogo. Com sua instrução, vossas mercês o entenderão, pois não sei explicar melhor.

3. O que pretendo explicar é o que a alma sente quando está nessa divina união. O que é união já está entendido: duas coisas separadas se tornam uma. Ó Senhor meu, como sois bom! Bendito sejais para sempre! Louvem-Vos, Deus meu, todas as coisas, pois nos amastes de tal maneira que não faltaría­mos à verdade ao falar da comunicação que tendes com as almas ainda neste desterro! E mesmo com as que não são boas é grande vossa liberalidade e magnanimidade, porque, Senhor meu, dais como quem sois. Ó generosidade infinita, quão magníficas são Vossas obras!5 Isso espanta a quem não tem a mente ocupada em coisas da terra a ponto de não poder perceber verdades. Pois concedeis a almas que tanto Vos ofenderam graças tão soberanas que, quando penso nisso, falta-me o entendimento, e não consigo ir adiante. E para onde eu iria senão para trás? Porque dar-Vos graças por tão grandes benefícios não sei como, aliviando-me algumas vezes com dizer disparates.

4. Acontece-me muito, quando acabo de receber essas graças ou quando Deus começa a agir em mim (porque, como eu já disse, no momento em que as recebemos não podemos fazer nada), de dizer:

“Senhor, olhai o que fazeis, não esqueçais tão rapidamente os grandes males meus; como para perdoar-me Vós os esquecestes, suplico que Vos lembreis deles para moderardes os Vossos favores. Não depositeis, Criador meu, licor tão precioso em vaso tão quebrado,6 pois já vistes que volto a der­ramá-lo. Não guardeis semelhante tesouro num lugar onde ainda não está, como deveria estar, perdida de todo a cobiça de consolações da vida, pois, assim fazendo, o esbanjareis. Como confiais as armas dessa cidade e as chaves de sua fortaleza a governante tão covarde, que no primeiro assédio dos inimigos permite que eles aí penetrem?

Que o Vosso amor não seja tanto, ó Rei eterno, que ponhais em risco jóias tão preciosas. Parece-me, Senhor meu, que isso pode permitir que se tenha pouca estima por Vós, pois as deixais em poder de criatura tão ruim, tão baixa, tão fraca e miserável, e tão sem valor que, embora trabalhe para, com o Vosso favor, não as perder (e é necessário um grande favor, sendo eu quem sou), não consegue beneficiar outras pessoas; em suma, mulher, e não boa, mas ruim. Parece que os talentos não só são escondidos, mas enterrados,7 ao serem depositados em terra tão árida. Não costumais, Senhor, conceder semelhantes riquezas e benefícios a uma alma, a não ser para que muitas aproveitem. Já sabeis, Deus meu, que com toda a vontade e de todo o coração eu Vos suplico, e tenho suplicado algumas vezes: não me importo de perder o maior bem da terra desde que concedais essas graças a quem delas tire maior benefício para que cresça a Vossa glória”.

5. Essas e outras coisas eu disse muitas vezes. Depois, via a minha insensatez e pouca humildade; porque o Senhor bem sabe o que convém e que não havia na minha alma forças para que ela se salvasse se Sua Majestade não as infundisse com tantas graças.

6. Também pretendo falar dos favores e efeitos que permanecem na alma,8 assim como assinalar o que esta pode fazer ou se pode contribuir para alcançar estado tão elevado.

7. Às vezes vem esta elevação de espírito ou junção com o amor celestial (visto que, no meu entendimento, a união é diferente da elevação) nessa mesma união.9 Quem não tiver experimentado esta última não perceberá a diferença. Para mim, embora tudo seja uma coisa só, o Senhor age de maneira distinta; o desapego das criaturas cresce muito mais no vôo do espírito. Tenho visto com clareza que há diferença entre as graças, embora, como eu digo, tudo pareça uma só coisa; mas um fogo pequeno é tão fogo quanto um grande, e é perceptível a diferença entre os dois: num fogo pequeno, leva muito tempo para que um pequeno pedaço de ferro fique em brasas; mas, se o fogo é grande, por maior que seja, o ferro num instante se transforma por inteiro. Assim ocorre, penso eu, com essas duas modalidades de graças do Senhor, e quem tiver chegado a arroubos o entenderá bem. Quem não os tiver experimentado vai pensar que é um desatino, e talvez seja; porque uma criatura como eu querer explicar uma coisa cujo mero esboço parece não haver palavras para fazer é um grande desatino.

8. Mas creio que o Senhor há de me ajudar nisso, pois Sua Majestade sabe que, além de obedecer, tenho a intenção de despertar nas almas a avidez por um benefício tão elevado. Não vou falar de coisas que não tenha vivenciado muito. Assim, quando comecei a escrever sobre esta última água, parecia-me impossível tratar disso, pois é mais difícil do que falar grego. Por essa razão, parei de escrever e fui comungar. Bendito seja o Senhor, que tanto favorece os ignorantes! Ó virtude de obedecer, que tudo podes! Deus me esclareceu o entendimento, às vezes com palavras e, outras vezes, sugerindo-me como exprimi-lo, como o fez na oração passada;10 tal como então, Sua Majestade parece querer dizer o que eu não posso nem sei fazer.

Essas são palavras de verdade; o que for bom é doutrina de Deus, e o mau, claro está, vem do abismo de males que sou eu. Por isso, se houver pes­soas que, tendo chegado às coisas de oração que o Senhor concedeu a esta miserável — e deve haver muitas —, desejem tratar disso comigo, por se sen­tirem desencaminhadas, o Senhor ajudará a Sua serva para que a verdade triunfe.

9. Falando dessa água que vem do céu para, com sua abundância, regar e fartar todo o jardim, se o Senhor nunca deixasse de dá-la oportunamente, já se vê que descanso teria o jardineiro. Além disso, se não houvesse inverno, mas somente uma estação amena e temperada, nunca faltariam flores e frutas, e que delícia haveria de ser! Contudo, enquanto vivermos, isso é impossível; de­vemos sempre ter o cuidado de procurar outra água quando faltar uma. A do céu vem muitas vezes quando o jardineiro menos espera. É verdade que, no princípio, sempre vem depois de uma longa oração mental em que, de de­grau em degrau, o Senhor vai levando essa avezinha e pondo-a no ninho para que descanse. Como viu que ela esvoaçou muito, buscando, com o en­tendimento, com a vontade e com todas as suas forças, a Deus e o Seu con­tentamento, o Senhor deseja recompensá-la ainda nesta vida. E que grande recompensa: basta um momento para pagar todos os sofrimentos que aqui se podem ter!

10. Estando à procura de Deus dessa maneira, a alma se sente, com um gran­de e suave prazer, num desfalecimento quase completo, uma espécie de des­­maio, que lhe tira o fôlego e todas as forças corporais, de modo tal que só com muito esforço é possível mexer as mãos; os olhos se fecham sem que os queiramos fechar, ou, se se mantêm abertos, não vemos quase nada; da mes­­ma forma, se estivermos lendo, não distinguimos as letras, sequer as per­ce­bemos: vemos que há uma letra, mas, como a mente não ajuda, mesmo querendo, não a podemos ler; ouvimos, mas não entendemos o que ouvimos. Assim, os sentidos de nada nos servem, servindo antes para acabar com a felicidade. Falar é muito difícil, pois não conseguimos formar palavras, nem temos for­ças, caso formássemos alguma, para pronunciá-la; porque perdemos todas as forças exteriores, aumentando as da alma para que melhor nos rejubilemos na Sua glória. É grande e bem conhecido o deleite exterior que sentimos.

11. Por mais que dure, esta oração não prejudica; ao menos a mim nunca pre­judicou, nem me lembro de que o Senhor alguma vez me tenha concedido esse favor, por pior que eu estivesse, de uma maneira que me fizesse mal, ha­vendo antes uma grande melhora. Mas que mal poderia fazer bem tão grande? Os seus efeitos exteriores são tão patentes que não é possível duvidar da sua grandeza, visto que essa oração tira as forças com muita suavidade pa­ra torná-las maiores.

12. É verdade que, no princípio, ela é tão rápida — ao menos acontecia assim comigo — que, graças à sua brevidade, não são tão perceptíveis esses sinais exteriores nem a perda dos sentidos, entendendo-se contudo, pela abundância de graças, que a claridade do sol que ali esteve foi imensa, visto ter dei­xado a alma derretida. E observe-se que, a meu ver, por maior que seja, o tempo em que a alma está nessa suspensão de todas as faculdades é sempre curto: meia hora já é muito, e eu, pelo que sei, nunca fiquei tanto tempo. Devo reconhecer que, como nos faltam os sentidos, mal podemos calcular a duração; mas sei que é muito pequena a duração desse estado sem que alguma faculdade volte a si. A vontade se mantém impávida, mas as outras duas faculdades logo voltam a importunar. Como está imóvel, a vontade volta a suspendê-las; elas ficam um pouco mais e então voltam a agitar-se.

13. É possível passar nisso algumas horas de oração, e passamos; porque as duas faculdades,11 quando começam a se embriagar e a degustar o vinho divino, são perdidas outra vez com facilidade para que se ganhe muito mais: elas acompanham a vontade, e as três se inebriam. Mas a sua total suspensão, sem nenhuma imaginação — faculdade que, para mim, também se perde por inteiro —, dura muito pouco, embora as faculdades não sejam recuperadas de todo, ficando algumas horas como que desatinadas, voltando Deus, pouco a pouco, a uni-las a si.

14. Vejamos agora o âmago daquilo que a alma sente. Diga-o quem o sabe, pois não se pode entendê-lo e muito menos explicá-lo!

Depois de comungar e de sair dessa oração de que falo, eu estava pensan­do, para escrever o que a alma fazia naquele momento. O Senhor me disse as seguintes palavras: Desfaz-se toda, filha, para se pôr mais em Mim. Já não é ela que vive, mas Eu. Como não pode compreender o que entende, é um não-entender entendendo.

Quem o tiver experimentado compreenderá alguma coisa disso, pois não posso ser mais clara, visto ser tão obscuro o que ali acontece. Posso dizer ape­nas que temos a impressão de estar junto de Deus, permanecendo uma certeza em que de nenhuma maneira se pode deixar de acreditar. Aqui, todas as faculdades faltam e ficam suspensas a tal ponto que, como eu disse,12 não se percebe absolutamente a sua ação. Se estávamos pensando numa passagem da Paixão, esta nos sai da memória como se nunca tivesse estado ali. Se estávamos lendo ou rezando, não conseguimos nos lembrar do que líamos, nem fixar o pensamento, o mesmo ocorrendo se estávamos rezando.

Desse modo, essa mariposinha importuna da memória tem aqui as asas quei­madas, não mais podendo esvoaçar. A vontade deve estar bem ocupada em amar, mas não percebe como ama. O intelecto, se entende, não sabe como en­tende, ou, ao menos, não pode compreender nada do que entende. Não me parece que entenda, porque não entende a si mesmo. Também eu não consigo entendê-lo!

15. No princípio, atingiu-me uma ignorância de não saber que Deus está em todas as coisas, o que, como Ele me parecia estar tão presente, eu achava ser impossível. Eu não podia deixar de crer que Ele estivesse ali, pois achava quase certo que percebera a sua presença. Os que não tinham letras me diziam que Ele só estava ali mediante a graça. Eu não podia acreditar nisso, porque, como digo, sentia a Sua presença. Por isso, ficava aflita. Um grande teólogo da Ordem do glorioso São Domingos13 me tirou dessa dúvida, ensinando-me que o Senhor está presente e se comunica conosco, o que me trouxe imenso consolo.

Convém observar e compreender que essa água do céu, esse sumo favor do Senhor, dá à alma imensos proveitos, como passo a dizer.

Capítulo 19

Continua com o mesmo assunto. Começa a falar dos efeitos que este grau de oração produz na alma. Insiste muito em que não se volte atrás, mesmo que depois dessa graça se caia outra vez, nem se deixe a oração. Fala dos males decorrentes de não se fazer isso. O tema é digno de atenção e traz grande consolo para os fracos e pecadores.

1. A alma sai dessa oração e união com imensa ternura, desejando desfazer-se, não de tristeza, mas de enorme gozo. Ela se sente banhada de lágrimas, sem que as tenha percebido e sem saber quando ou como as chorou; mas tem grande deleite por ver aplacado o ímpeto do fogo com uma água que a faz crescer mais. Isso parece confuso e de fato o é. Algumas vezes me aconteceu, ao final dessa oração, estar tão fora de mim que não sabia se era sonho ou se era verdadeira a glória que eu havia sentido; vendo-me inundada pela água que com facilidade jorrava com um impulso e uma rapidez da água que cai de uma nuvem, eu percebia que não tinha sido um sonho. Isso acontecia no princípio, quando essa graça era breve.

2. A alma fica animada a ponto de, se naquele momento a fizessem em pedaços por Deus, ela teria isso por grande consolo. Surgem as promessas e determinações heróicas, a vivacidade dos desejos, o começo do aborrecimento do mundo e o claro reconhecimento da sua vaidade. A alma aproveitou muito mais do que nas orações passadas, tendo crescido em humildade, porque vê bem que nada fez, nem contribuiu, para trazer ou ter uma graça tão excessiva e grandiosa. Ela vê com muita clareza que é muito indigna, porque em quarto onde entra a luz do sol não há teia de aranha escondida; a alma vê a sua miséria. A vaidade está tão longe dela que ela tem a impressão de que não pode tê-la, porque com os seus olhos pouco ou nada pode ver, reconhecendo que quase não houve consentimento de sua parte, parecendo antes que, mesmo sem o querer, a porta de todos os sentidos foi fechada para que ela mais pudesse desfrutar do Senhor.

Estando sozinha com Ele, que há de fazer senão amá-Lo? Ela não vê nem ouve, a não ser com muito esforço: pouco merecimento tem. Sua vida passada lhe é apresentada depois, assim como a grande misericórdia de Deus, com grande verdade e sem que seja necessário recorrer ao intelecto, porque a alma acha cozido ali o que vai comer e entender; ela percebe que merece o inferno e que é castigada com a glória; desfaz-se em louvores a Deus, e quisera eu me desfazer agora. Bendito sejais, Senhor meu, que fazeis de lodo tão imundo uma água tão límpida que pode ser levada à Vossa mesa! Sede louvado, ó delícia dos anjos, por desejardes elevar um verme tão vil!

3. Esse proveito da alma permanece por algum tempo: ela entende com clareza que o fruto não é seu e que já pode começar a reparti-lo sem que lhe faça falta.1 Ela começa a se mostrar como alma que guarda tesouros do céu e a ter desejos de reparti-los com os outros, suplicando a Deus que não seja ela a única abastada. Ela passa a beneficiar os que lhe são próximos sem o saber e sem nenhum esforço pessoal; as pessoas o compreendem, porque as flores têm um odor tão forte que despertam o seu desejo de aproximar-se delas. Entendem que há virtudes naquela alma e vêem a fruta, que desperta o paladar; desejam ajudá-la a comer.

Quando a terra é muito estragada por provações, perseguições, murmúrios e doenças — porque poucos chegam aqui sem isso —, e está bem fofa devido ao desapego do interesse próprio, a água nela penetra tanto que quase nunca seca; contudo, se a terra ainda está por ser lavrada e cheia de espinhos, como eu no princípio, sem que a alma se tenha afastado das ocasiões de pecado nem tenha o sentimento de gratidão merecido por graça tão elevada, logo volta a aridez. E se o jardineiro se descuidar e o Senhor, com a Sua bondade, não quiser fazer com que chova outra vez, deveremos considerar perdido o jardim, o que me ocorreu muitas vezes, causando-me espanto, a ponto de eu não poder acreditar se não tivesse acontecido comigo. Escrevo-o para o consolo de almas fracas, como a minha, para que nunca se desesperem nem deixem de confiar na grandeza de Deus; mesmo que, depois de dádiva tão sublime, que é o Senhor fazê-la chegar até aqui, venham a cair, que não desmaiem se não quiserem perder-se de todo; porque as lágrimas tudo conse­guem: uma água traz outra.2

4. Uma das coisas que me animaram, sendo eu quem sou, a obedecer e es­­crever isto, dando conta da minha vida ruim e dos favores que o Senhor me fez, sem que eu O servisse, mas O ofendesse, foi o desejo de alertar sobre isso. É certo que, para que me acreditassem no tocante a isso, eu gostaria de ter grande autoridade. Suplico ao Senhor que Sua Majestade a conceda. Repito, quem começar a ter oração não deve desanimar pensando que, por voltar a ser mau, seja pior continuar na oração. O mal seria deixar a oração e não se cor­­rigir; mas quem não a deixar com certeza voltará à luz.

No tocante a isso, o demônio muito me atacou, fazendo-me sofrer bastan­te ao me sugerir que, por ser eu tão ruim, continuar a oração era ter pouca humilda­de. Por isso, como eu disse, deixei-a por um ano e meio, ou ao menos por um ano, pois não me lembro bem dos outros seis meses. Fazer isso era, e de fato o foi, arro­jar-me eu mesma no inferno, sem que os demônios pre­cisassem me levar até lá.3 Valha-me Deus! Que cegueira tão grande! E como acerta o demônio, para seu propósito, ao concentrar aqui seus ataques! O traidor sabe que a alma que persevera na oração está perdida para ele. Por isso, muito lhe interessa fazê-la cair. Contudo, se ela perseverar na oração, essas mesmas quedas vão ajudá-la, graças à bondade de Deus, a avançar mais em Seu serviço.

5. Ó Jesus meu! O que é ver uma alma que chegou aqui e caiu em pe­­­­cado quando Vós, pela Vossa misericórdia, tornais a lhe dar a mão e a le­­vantais! Como ela reconhece a multiplicidade de Vossas grandezas e miseri­cór­dias, e a sua miséria. Aqui, ocorre o real desfazer-se, o conhecimento de Vossa magnificência, o alçar os olhos para ver o que Vos é devido, o fazer-se devota da Rainha do Céu para que Vos aplaque. Aqui, ela invoca os Santos4 que caíram depois de Vós os terdes chamado, para que a ajudem; pa­rece-lhe demasiado tudo o que lhe dais, pois ela vê que não merece sequer a terra que pisa. Ela recorre aos sacramentos, à fé viva que lhe advém ao per­ceber a vir­tude que Deus infundiu neles; ela Vos louva porque deixastes esse remédio e esse ungüento para as nossas chagas, não somente curando-as por fora, mas extirpando-as por inteiro.5 Ela fica espantada com isso. E quem, Senhor da minha alma, não se espantaria com uma misericórdia tão grande e um fa­vor tão imenso diante de traição tão feia e abominável? Nem sei como meu coração não se parte quando escrevo isto! É porque sou ruim!

6. Com estas lagrimazinhas que aqui verto, dadas por Vós — mas água de um poço ruim, por procederem de mim —, parece que Vos pago por tantas traições, por sempre agir mal e procurar desfazer as graças que me concedíeis. Senhor meu, valorizai-as; tornai límpida água tão turva, pelo menos para evitar a alguém a tentação, que eu tive, de julgar tão erradamente, pensando por que, Senhor, abandonais pessoas muito santas que sempre Vos serviram e trabalharam por Vós, criadas na religião, e sendo religiosas, e não como eu, que disso só tinha o nome, enquanto concedeis graças a mim. Eu via com clareza, Bem meu, que guardáveis a recompensa delas para dá-la de uma vez, enquanto a minha fraqueza precisava desses favores. Elas, sendo fortes, Vos servem sem isso e, assim, Vós as tratais como pessoas esforçadas e não interesseiras.

7. Contudo, Vós sabeis, meu Senhor, que eu clamava muitas vezes diante de Vós, desculpando as pessoas que murmuravam contra mim, pois achava que elas estavam cobertas de razão. Isso, Senhor, ocorreu depois que a Vossa bondade me tomara pela mão para que eu não Vos ofendesse tanto, quando eu já estava me afastando de tudo o que me parecia poder desgostar-Vos; nes­se momento, Vós começastes, Senhor, a abrir os Vossos tesouros para a Vossa serva. Parece que não esperáveis outra coisa de mim, além de vontade e disposição para recebê-los, tamanha a rapidez com que começastes a não só concedê-los, como a querer que os outros percebessem que o fazíeis.

8. Quando o perceberam, as pessoas começaram a ter uma boa opinião da­­que­la cuja maldade ainda não tinham visto, embora ela fosse muito trans­lú­ci­da. Co­meçaram os murmúrios e as perseguições, o que, a meu ver, era bem mo­ti­va­do; e eu não ficava inimiga de ninguém, mas suplicava a Vós que per­ce­­bêsseis quanta razão tinham. Elas diziam que eu queria me fazer passar por santa, in­ven­tan­do novidades, pois não tinha sequer chegado a cumprir toda a mi­nha Re­gra, nem igualara as boas e santas religiosas que havia na casa (nem creio que che­garei a fazê-lo, se Deus, pela sua bondade, não fizer tudo sozi­nho), sendo mais capaz de tirar o que havia de bom e introduzir costumes que não o eram; eu pelo me­nos fazia o que podia para introduzi-los, e era grande a minha ca­pacidade para o mal. Logo, as que me acusavam não tinham culpa. Não eram somente as monjas, mas outras pessoas que me mostravam verdades, pois Vós o permitíeis.

9. Uma vez, ao rezar as Horas, voltando de novo essa tentação, cheguei ao versículo que diz Justus es, Domine, e teus juízos6 e co­mecei a pensar quão grande verdade é essa, porque, quanto a isso, o demônio jamais teve forças para tentar-me de um modo que me levasse a duvidar de que Vós, Senhor meu, tendes todos os bens, nem de qualquer coisa da fé, parecendo-me que, pelo contrário, quanto mais longe do caminho natural as coisas, mais firme era a minha fé e maior a minha devoção. Só de pensar que sois todo-po­deroso, eu incluía todas as grandezas que tendes; nesse aspecto, como digo, nunca tive dúvidas. Quando pensei que, com justiça, permitíeis a muitas ser­vas Vossas, como eu disse,7 seguir sem os consolos e graças que me con­cedíeis, sendo eu quem era, Vós me respondestes: Serve-me e não te en­volvas nisso. Foi a primeira palavra Vossa que ouvi, o que muito me espantou.

Depois vou explicar8 essa maneira de ouvir, ao lado de outras coisas de que não vou falar aqui para não fugir ainda mais do meu propósito, pois mui­to já o fiz, a ponto de quase não saber mais o que estava dizendo. Mas não há como não ser assim, meu filho,9 e vossa mercê há de perdoar esses in­­tervalos; porque, ao pensar no que Deus sofreu de mim e me ver neste es­­tado, não causa surpresa que eu perca o tino do que digo e vou dizer. Queira o Senhor que os meus desatinos sempre sejam esses e que Sua Majes­tade não me permita ter o poder para opor-me a Ele; que Ele antes me consuma agora.

10. Isso já basta para que se vejam Suas grandes misericórdias: o Senhor perdoou tanta ingratidão, não uma, mas muitas vezes. A São Pedro perdoou uma só vez,10 e a mim, muitas; não era sem razão que o demônio me tentava para que eu não desejasse uma amizade íntima com quem eu tinha uma ini­mizade tão pública. Que cegueira imensa a minha! Onde eu pensava, Senhor meu, achar remédio senão em Vós? Que disparate fugir da luz para andar sem­pre tropeçando! Que humildade tão soberba o demônio inventava em mim: afastar-me do apoio da coluna e báculo que há de me sustentar para evi­tar uma queda tão grande!

Faço agora o sinal-da-cruz, e creio que não passei por perigo maior do que essa invenção que o demônio me ensinava como se fosse humildade. Ele me sugeria que, sendo eu uma coisa tão ruim e tendo recebido tantas graças, não podia dedicar-me à oração; bastava-me fazer as orações obrigatórias, como todas, e, como nem isso eu fazia bem, não podia querer fazer mais, pois, assim agindo, desrespeitava e desprezava os favores de Deus.

Uma coisa era pensar e entender isso; mas praticá-lo foi um enor­me mal. Bendito sejais Vós, Senhor, pois me resgatastes.

11. Isso me parece ser o princípio da tentação que o traidor fez a Judas, em­bora ele não ousasse me atacar de maneira tão aberta; mas teria me levado, aos poucos, onde o levou. Todos os que se dedicam à oração considerem bem isto, por amor de Deus. Saibam que, quando vivi sem ela, a minha vida era mu­i­­to pior; observem a boa solução que o demônio me oferecia e a estranha hu­­­­mildade, coisas que me trouxeram grande desassossego. Mas como podia a minha alma estar sossegada? A coitada estava longe do seu descanso, lem­bra­va-se das graças e favores e via que as alegrias da terra merecem asco.

Como pude passar por isso, causa-me espanto. Era com esperança que eu nun­ca pensava11 (se não me falha a memória, já que deve ter acontecido há mais de vinte e um anos), deixava a determinação de voltar à oração; mas es­­perava ficar, antes disso, livre de pecados. Oh, como estava mal-encaminha­da nes­sa esperança! O demônio me manteria nela até o dia do juízo para dali le­­var-me ao inferno.

12. Porque, fazendo oração e leitura — que me faziam ver ver­da­­des e o caminho ruim que eu seguia — e importunando o Senhor muitas vezes com lágrimas, eu era tão ruim que não conseguia me controlar, privada dis­­so, entregando-me a passatempos e com muitas oportunidades e pouca aju­­da — e, ousaria dizer, com nenhuma, a não ser para o mal —, não podendo esperar senão a minha queda.

Creio que muito conseguiu de Deus um frade dominicano, muito instruído, que me despertou desse sonho; ele me fez comungar de quinze em quin­­­ze dias, embora eu não me afastasse tanto do mal. Comecei a voltar a mim, embora não deixasse de ofender ao Senhor; mas, não tendo saído do ca­­­minho, eu ia por ele, mesmo devagar, caindo e levantando; e quem não dei­xa de caminhar e seguir adiante mesmo tarde chega. Creio que perder o ca­­­minho é abandonar a oração. Deus nos livre disso, por quem é!

13. Fique entendido — e, por amor de Deus, atente-se para isso — que a al­ma, mesmo que Deus lhe dê graças tão grandes na oração, não deve confiar em si, porque pode cair, nem se expor de modo algum a ocasiões de queda. Con­sidere-se isso com seriedade, pois muito está envolvido: o demônio pode nos enganar depois, mesmo que a graça venha com certeza de Deus; o traidor se aproveita como pode dela, em especial quando se trata de pessoas não adian­tadas nas virtudes, não mortificadas nem desprendidas, e que por isso não têm for­ça suficiente, como adiante direi,12 para escapar às ocasiões e perigos, por maiores que sejam os seus desejos e determinações…

Eis uma excelente doutrina, que não é minha, mas ensinada por Deus; eu bem queria que pessoas ignorantes como eu a conhecessem. Porque, mesmo que se encontre neste estado, a alma não deve confiar em si para combater, por­que já fará muito se se defender. Faltam-lhe armas para resistir aos demônios, e ela ainda não tem força para lutar contra eles e subjugá-los, como fa­zem os que chegam ao estado de que vou falar.13

14. O demônio se aproveita da alma que, vendo-se tão próxima de Deus e conhecendo a diferença entre os bens do céu e os da terra, bem como o amor que o Senhor demonstra ter por ela, faz nascer desse amor a confiança e a segurança de não perder esse prazer; ela parece ver com clareza o prêmio e julga que não poderia deixar um dom tão suave e delicioso por uma coisa tão baixa e suja quanto o prazer dos sentidos. Tendo ela essa confiança, o de­mônio a leva a esquecer-se de que não deve confiar em si.

E ela, desse modo, se expõe a perigos e começa, com muito zelo, a dis­tribuir sem controle as frutas, acreditando que não há mais o que temer de si. Ela não o faz com orgulho, pois bem compreende que por si não tem po­der, mas por causa de um excesso de confiança indiscriminada em Deus, de­corrente do fato de ela não perceber que só está coberta de penugem, podendo sair do ninho quando Deus a tira de lá, sem, no entanto, poder voar. Porque as virtudes ainda não estão fortalecidas, e ela não tem experiência para conhecer os perigos nem sabe o dano que provoca ao confiar em si mesma.

15. Foi isso o que me destruiu; e, para isso e para tudo, há grande ne­­cessidade de um mestre e de relações com pessoas espirituais. Se a alma que chega a Deus neste estado não se afastar de Sua Majestade por inteiro, não deixará de ser favorecida pelo Senhor, que não permitirá que ela se perca; mas quando, como eu disse,14 cair, que se esforce para não ser enganada e induzida a deixar a oração, como ocorreu comigo por falta humildade, como eu já disse15 e queria dizer muitas vezes.

A alma deve confiar na bondade de Deus, que é maior que todos os males que possamos causar e que não se lembra da nossa ingratidão quando nós, percebendo o que fazemos, desejamos recuperar a Sua amizade. Do mesmo modo, o Senhor não se lembra das graças que nos concedeu para nos castigar por elas; a lembrança delas, pelo contrário, leva-O a nos perdoar mais depressa, por sermos pessoas de Sua casa e que comeram, como se costuma dizer, do Seu pão. Recordem-se de Suas palavras16 e vejam o que Ele fez comigo: embora eu me cansasse de ofendê-Lo, Sua Majestade nunca deixou de perdoar-me. Ele nunca se cansa de dar nem a Sua misericórdia pode se esgotar; que nós não nos cansemos de receber. Que Ele seja bendito para sempre, amém, e que todas as criaturas cantem Seus louvores.