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sábado, 16 de outubro de 2010

CAMINHO DE PERFEIÇÃO

CAMINHO DE PERFEIÇÃO

ImageDepois de termos vivido um ano pastoral (2009-2010) dedicada à leitura, meditação e estudo do Livro da Vida de Santa Teresa de Jesus, no presente ano (2010-2011) são muitas as comunidades que já começaram a ler o Caminho de Perfeição, como faz parte da proposta da Comissão de Preparação das Celebrações do V Centenário do Nascimento da Santa de Ávila.

Enquanto a primeira é uma biografia em que Teresa nos revela a sua alma orante e contemplativa, no Caminho de Perfeição é uma comunidade, a de S.José de Ávila, que é a causa, a inspiração e o motivo pelo qual Teresa escreve esta obra sobre a vida orante e espiritual. Será mais uma oportunidade para bebermos do verdadeira espírito teresiano e o encarnarmos na vida da família carmelita do Séc. XXI.

2010-10-13

A Caminho


ImageHá apenas um ano, a Ordem dos Carmelitas Descalços: monjas, carmelitas seculares e frades, com toda a família carmelitana, começava o caminho apaixonante de preparação para o Vº Centenário do nascimento de santa Teresa de Jesus, através da leitura sapiencial – individual e comunitária – das suas obras.

Esta página Web, sobretudo através das “cartas semanais” nela publicadas, mas também mediante outros muitos materiais, quis prestar uma ajuda para essa leitura, ao mesmo tempo que testemunhava os seus primeiros passos que julgo muito frutuosos.

Presentemente, as nossas comunidades e grupos preparam-se para empreender uma nova etapa desta viagem emocionante: pomo-nos a caminho pela mão do livro de avisos e conselhos que dá Teresa de Jesus às irmãs religiosas e suas filhas, quer dizer, pela mão do Caminho de Perfeição, que tem sido chamado o Evangelho de Santa Teresa.


Um livro escrito há 500 anos, dirigido a pequenas comunidades contemplativas que estreavam um carisma nascente. Terá actualidade para nós? Poderá iluminar a nossa vida cristã?

Passaram efectivamente cinco séculos carregados de acontecimentos, mudanças, retrocessos e evoluções. Mas, sem qualquer dúvida, a Igreja e o mundo, de que somos devedores, continuam a precisar de palavras de vida e verdade. O Caminho assinala, encaminha, Nas suas páginas, Teresa propõe-nos m caminho de autenticidade, de libertação e entrega, que nos aproxima cada vez mais da fonte original da vida.

Conhecedora do caminho, acompanha-nos com a sua palavra – tão viva! – até à fonte, para que a descubramos dentro e, assim, podamos também nós acompanhar outros. Santa Teresa convida-nos, portanto, a viver a própria experiência pessoal, de modo a que redunde em benefício de muitos. Por isso também se tem chamado ao Caminho ‘manual de vida cristã’, porque ilumina os passos do encontro com Jesus ressuscitado, favorecendo uma autêntica experiência de comunhão com o Senhor que cria comunidade missionária e apostólica. E isto em qualquer âmbito, não apenas no interior da vida contemplativa.

Num momento em que o medo se espalhava como joio por toda a parte, em que a suspeita atirava para a sombra os orantes – sobretudo se eram mulheres –, Teresa, angustiada com os problemas da Igreja e conhecedora de que muitos morriam sem conhecer Cristo, oferecerá no Caminho uma proposta positiva, comprometer-se-á eclesialmente com o desejo de desempenhar um papel activo, social: determinar-se-á a servir com a oração e convidará – então e agora – a servir sendo orantes.

Deste modo, face ao hostil e inóspito, santa Teresa dá uma resposta de vida despretensiosa e simples, não como força que se impõe, mas como sussurro e silêncio que se propõe de maneira humilde e vigorosa. A oração é uma proposta: é a força de toda a reforma, porque reforma integralmente todos os crentes. É uma opção de liberdade face a qualquer mordaça, de confiança face ao temor, e de radicalidade face à tibieza.

À volta da oração, alma do Caminho, articula-se o discurso teresiano. Nascendo do amor de uns para com os outros, do desapego de tudo – começando pelo desapego de nós próprios – e da humildade, a oração converte-se na pedra angular de uma comunidade viva ao serviço de todos, que é, desde o amor, a liberdade e a verdade. Uma comunidade determinada à permanente disponibilidade, fruto da contemplação do Mestre através do recolhimento, que nos ajuda a olhá-l’O dentro.

Contemplá-l’O, apostar na comunhão que nos oferece, olhando-nos e deixando-Se olhar, é abrir-se a uma vida em amizade que nos leva a conhece e a descobrira vontade de Deus, numa contínua saída de nós mesmos; e a compreender que Ele pode realizá-la em nós, se lh’O deixarmos: “Porque todos os avisos que vos tenho dado neste livro vão dirigidos a este ponto de nos darmos de todo ao Criador, e pôr a nossa vontade na Sua, desapegar-nos das criaturas, e já tereis entendido o muito que isto nos importa, nada mais digo; somente direi o motivo por que o nosso bom Mestre põe aqui as sobreditas palavras, como quem sabe quanto ganharemos em prestar este serviço a Seu Eterno Pai […].

“Isto é a contemplação, de que me dissestes que escrevesse. E nisto – como já tenho escrito –, nenhuma coisa fazemos da nossa parte: nem trabalhamos, nem negociamos, nem nada mais é preciso; porque tudo o mais estorva e impede de dizer: Fiat voluntas tua: cumpra-se em mim, Senhor, a Vossa Vontade de todos os modos e maneiras que vós, Senhor meu, quiserdes. Se quereis com trabalhos, dai-me esforço e venham; se com perseguições e enfermidades e desonras e necessidades, aqui estou, não voltarei o rosto. Pai meu, nem é razão para voltar as costas. Pois Vosso Filho deu em nome de todos esta minha vontade, não é razão que falhe por minha parte; mas sim me façais Vós mercê de me dar o Vosso Reino para que eu possa fazê-lo, pois Ele mo pediu e disponde de mim como em coisa Vossa, conforme a Vossa vontade” (C 32, 9-10).

Concluindo, este ano recebemos a graça de penetrarmos num caminho que nos ensinará a ser tais como o Senhor nos quer. Talvez muitos, eu o primeiro, nos perguntemos antes de começar a leitura do Caminho: -Que significa para mi ser tal? Tenho a certeza de que, ao acabar este ano, a aproximação vivencial, individual e comunitária, a Caminho de perfeição, porá no nosso coração e nas nossas mãos, uma resposta, a resposta. Assim, este livro se nos revelará não só como um manual de instruções a uso, mas como o que é: palavra viva e eficaz a realizar em nós o que propõe.


Frei Emílio José Martínez González

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

capitulo 33

Capítulo 33

Continua a falar da fundação do mosteiro do glorioso São José. Explica que lhe deram ordens de não se envolver nela, relata o tempo em que obedeceu e algumas provações que teve, dizendo como o Senhor a consolava nisso.

1. Quando os negócios estavam a ponto de se resolver, visto que, no dia seguinte, seriam lavradas as escrituras, nosso Padre Provincial mudou de opinião.1 Pelo que vi depois, creio que ele foi movido por inspiração divina; porque, sendo tantas as orações, o Senhor ia aperfeiçoando a Sua obra e determinando que se fizesse de outro modo. Quando o Provincial não quis admitir a fundação, o meu confessor me ordenou que não mais me envolvesse nisso.2 Mas o Senhor sabe dos grandes sofrimentos e aflições que me tinha custado ter levado o empreendimento até esse ponto. Como ele foi abandonado e as coisas ficaram assim, confirmou-se mais a opinião de tratar-se de disparate de mulheres, aumentando os murmúrios sobre mim, embora tudo tivesse sido feito até então com a concordância do Provincial.

2. A opinião do meu mosteiro3 sobre mim não era das melhores, pois eu queria fazer um mosteiro de clausura mais estrita. As pessoas diziam que eu as ofendia, pois ali também se podia servir a Deus, havendo religiosas melhores que eu. Diziam também que eu não tinha amor pela casa e que melhor seria que procurasse obter recursos para ela do que para outra obra. Umas pensavam que eu devia ser lançada no cárcere;4 umas poucas faziam uma tímida defesa de mim. Eu bem via que em muitas coisas elas tinham razão e por vezes justificava a sua conduta, embora, como não pudesse falar do essencial, que era ter recebido ordens do próprio Senhor, não soubesse o que fazer, deixando assim de falar de outras coisas. O Senhor muito me agraciava porque, em tudo isso, não me deixava inquieta; deixei a obra de lado com muita facilidade e contentamento, como se até então não tivesse feito nenhum esforço. Ninguém pôde acreditar nisso, nem mesmo as almas de oração que tinham relação íntima comigo; pensava-se que eu estava muito confrangida e confusa, o que era a opinião do meu próprio confessor. Quanto a mim, tendo certeza de ter feito tudo o que podia, não mais me sentia obrigada a fazer esforços para cumprir a ordem do Senhor, ficando na casa em que estava muito contente e satisfeita. Se bem que jamais pudesse deixar de acreditar que a casa seria fundada, eu não via os meios para isso nem sabia como nem quando a obra se realizaria, mas achava que viria a existir.

3. O que me causou muito sofrimento foi ter recebido do meu confessor, como se eu tivesse feito coisa contra sua vontade (verdade é que o Senhor devia querer que também desse lado, que mais dores haveria de causar, eu não deixasse de receber sofrimentos), num momento em que uma multiplicidade de perseguições deveriam merecer dele, a meu ver, uma palavra de consolo, uma carta em que dizia perceber, diante do que ocorrera, que a obra não passava de sonho. Na carta, ele me ordenava que doravante desistisse do assunto e não mais falasse dele, devido ao escândalo e a tantas outras coisas lamentáveis.

Isso foi para mim mais lamentável do que todas as outras aflições juntas, dando-me a impressão de que, se eu fora causa e agente de ofensas a Deus, e se as visões que tivera eram uma ilusão, toda a oração que eu tinha era um engano, e eu estava perdida e errada. Isso me afligiu de modo tão extremo que fiquei toda perturbada e muito agitada. Mas o Senhor, que nunca me faltou, e que em todas as provações que me atingiram me consolou e animou muitas vezes — não cabendo relatá-las aqui —, me disse que eu não devia me afligir, que muito O servira, em vez de ofendê-Lo, naquele empreendimento e que obedecesse ao confessor, não me manifestando por enquanto, até que chegasse o momento de retomá-lo. Fiquei tão consolada e contente que toda a perseguição que me moviam me pareceu insignificante.

4. Nesse ponto, o Senhor me ensinou o imenso bem que é passar por so frimentos e perseguições por Ele, porque foi tanto o aumento do amor de Deus que vi em minha alma, ao lado de muitas outras coisas, que fiquei espantada. Isso me faz não poder deixar de desejar tribulações. As outras pessoas pensavam que eu estava envergonhada, e eu de fato estaria se o Senhor não me tivesse favorecido com tanto desvelo ao me conceder graça tão grande. Por essa época, comecei a ter aqueles ímpetos de amor a Deus já referidos5 e arroubos maiores, embora me calasse e não contasse a ninguém os ganhos que obtinha. O santo varão dominicano6 também tinha a mesma certeza minha de que a casa seria fundada; e, como eu não queria me envolver no assunto para não desobedecer ao meu confessor, ele o negociava com a minha companheira, escrevendo a Roma e dando todos os passos necessários.

5. Nesse ponto, o demônio também começou a espalhar, de boca em boca, que eu tinha tido alguma visão sobre o caso; por isso, as pessoas me procuravam, com muito medo, para me dizer que vivíamos tempos ruins7 e que poderiam levantar contra mim falsos testemunhos, denunciando-me aos inquisidores. Achei muita graça e ri, porque nunca tive temor disso, pois bem sabia que, em matéria de fé, eu antes morreria mil vezes do que me oporia a qualquer coisa da Igreja ou a qualquer verdade da Sagrada Escritura. Eu lhes disse que não temessem quanto a isso, pois em estado bem ruim estaria a minha alma se houvesse nela algo que me levasse a recear a Inquisição; se achasse que havia, eu mesma iria procurá-la. Eu disse ainda que, em caso de falsos testemunhos, o Senhor me livraria de tudo e ainda me propiciaria algum benefício.

Procurei o padre dominicano que, como eu disse, era tão instruído8 que eu podia ficar tranqüila diante do que ele me dissesse, e lhe contei todas as visões, o modo de oração e as grandes graças que o Senhor me concedia, com a maior clareza que pude, suplicando-lhe que a tudo examinasse muito bem e me dissesse se havia naquilo algo contra a Sagrada Escritura. Ele me tranqüilizou muito e, a meu ver, tirou algum proveito das minhas confidências, porque, embora fosse já muito bom, doravante se dedicou ainda mais à oração e se recolheu a um mosteiro de sua Ordem, muito mais solitário,9 para melhor poder praticar virtudes, tendo estado ali por mais de dois anos, até que a obediência o tirou dali — o que ele muito lamentou —, visto que as suas qualidades o tornavam necessário em outro lugar.

6. Senti muito quando ele se foi — embora não tenha tentado retê-lo — devido à grande falta que ele me faria. Mas percebi que era para seu proveito porque, estando muito pesarosa com a sua ida, o Senhor me disse que me consolasse e não ficasse assim, pois ele seguia um bom caminho. Quando ele voltou, sua alma tinha aproveitado tanto e avançara a tal ponto no caminho do espírito que ele me disse que não gostaria de ter deixado de ir por nada deste mundo. O mesmo eu podia dizer; porque quem antes me tranqüilizava e consolava apenas com o saber intelectual também passou a fazê-lo com a experiência espiritual, pois tinha muita em coisas sobrenaturais, tendo Deus promovido o seu retorno bem no momento em que viu ser ele necessário para ajudar em Sua obra do mosteiro.

7. Estive, pois, em silêncio, sem tratar nem falar do empreendimento por cinco ou seis meses, e o Senhor nunca me ordenou que o fizesse. Eu não podia saber a causa, mas não perdia a esperança de que o projeto se realizaria. Passado esse tempo, tendo ido daqui o Reitor da Companhia de Jesus, Sua Majestade trouxe outro muito espiritual, com grande ânimo e compreensão e muito douto, e num momento em que eu tinha muita necessidade disso. Porque, como o padre que me confessava era subordinado a um superior e como os jesuítas têm em extremo a virtude de seguir a vontade do seu Maior, esse meu confessor não se atrevia a decidir em algumas circunstâncias, por várias razões, embora entendesse bem meu espírito e desejasse que eu avançasse muito mais. Na época, minha alma já tinha ímpetos tão grandes que muito sofria ao ver-se tão restrita, embora eu de modo algum deixasse de fazer o que ele me mandava.10

8. Estando um dia com uma forte tribulação, pensando que o confessor não acreditava em mim, disse-me o Senhor que eu não me afligisse, pois aquele padecer logo se acabaria. Fiquei muito contente, julgando que não de moraria muito a morrer, sentindo grande alegria quando me lembrava disso. Depois, vi com clareza tratar-se da vinda desse Reitor de que falei; porque o sofrimento acabou, já que ele nada impedia ao Padre que era meu confessor, dizendo-lhe que me consolasse sem nenhum receio e que não me levasse por um caminho tão árduo, deixando agir o espírito do Senhor. Com efeito, às vezes a minha alma ficava, por assim dizer, quase sem poder respirar de vido aos grandes ímpetos do espírito.

9. Esse Reitor foi me procurar, e o confessor me ordenou tratar com ele com toda a liberdade e clareza. Eu costumava me sentir muito inibida diante de contatos como esse. Contudo, ao entrar no confessionário, tive um sentimento interior desconhecido que não me lembro de ter sentido antes nem depois com ninguém; não sei descrevê-lo sequer com comparações. Porque foi um prazer espiritual, uma sensação de que aquela alma havia de entender a minha, de que havia entre elas uma afinidade, embora, repito, eu não saiba como.

Não causaria espanto essa alegria pela esperança de ser compreendida se eu já tivesse falado com ele ou recebido informações a seu respeito, mas isso nunca ocorrera. Vi depois que o meu espírito não se enganara; desse relacionamento adveio, sob todos os aspectos, um enorme proveito para os meus empreendimentos e a minha alma. Ele dirige muito bem as pessoas que o Senhor parece ter elevado bem alto, pois não as faz caminhar passo a passo, e sim correr, buscando desapegá-las de tudo e mortificá-las, pois também nisso, como em muitas outras coisas, o Senhor lhe deu um talento fora do comum.

10. Desde que passei a me relacionar com ele, entendi seu estilo e vi ser ele uma alma pura e santa, dotada pelo Senhor de um talento particular de dis cer nir espíritos, o que muito me consolou. Pouco depois desse contato, o Senhor voltou a me impelir a tratar da questão do mosteiro, mandando-me dizer ao meu confessor e a esse Reitor das muitas razões e motivos para que eles não se tor nassem empecilhos a isso. Algumas dessas razões causaram impressão, porque o Padre Reitor nunca duvidou, depois de estudar com muito cuidado e so licitude todos os efeitos que se manifestavam em mim, de que se tratava do es pírito de Deus. Enfim, por várias razões, eles não se atreveram a me estorvar.11

11. Meu confessor me permitiu outra vez dedicar-me por inteiro à obra. Eu percebia que problemas tinha pela frente, visto estar só e ter muito poucos recursos. Combinamos que tudo se faria em segredo e, assim, fiz que uma irmã minha12 que vivia fora daqui comprasse a casa, e lavrasse a escritura como se fosse para si mesma, com os recursos que o Senhor fez chegar a nós, por certos meios, em quantidade suficiente para a aquisição. Seria extenso narrar aqui como o Senhor foi fazendo isso.

Eu tinha o maior cuidado em nada fazer contra a obediência; mas sabia que, se o dissesse aos meus prelados, tudo se perderia como da vez passada ou até de modo pior. Para conseguir dinheiro, fazer as diligências necessárias, organizar planos e dirigir obras, tive momentos de enorme dificuldade, alguns bem sozinha (minha companheira fazia o que podia, mas podia pouco, e tão pouco que era quase nada, além de permitir que a obra fosse feita em seu nome e com o seu favor; todo o trabalho restante era meu), tendo sofrido de tantas maneiras que agora me espanto de tê-lo podido suportar.

Por vezes, desarvorada, eu dizia: “Senhor meu, como me ordenais coisas que parecem impossíveis? Se eu, mesmo sendo mulher, ao menos tivesse liberdade! Mas, impedida por todos os lados, sem recursos e sem ter aonde buscá-los, mesmo para as despesas do Breve, que posso fazer, Senhor?”

12. Numa ocasião, estando numa necessidade que não sabia resolver, nem tendo com que pagar aos operários, apareceu-me São José, meu verdadeiro pai e senhor, e deu-me a entender que recursos não me faltariam e que eu devia contratá-los. Eu o fiz, sem dispor de um centavo, e o Senhor, por caminhos que espantavam aos que o viam, me forneceu os recursos.13 Comecei a achar a casa muito pequena, e tanto que parecia impossível torná-la um mosteiro; por isso, quis comprar outra (não tinha com que, não havia maneira de fazer a aquisição, nem eu sabia como proceder), situada ao seu lado, também muito pequena para erigir a igreja.

Certo dia, quando eu acabava de comungar, disse-me o Senhor: Já te falei que comeces como puderes.E, exclamando: Ó cobiça do gênero humano, que até a terra pensas que te há de faltar! Quantas vezes dormi ao relento por não ter onde me abrigar! Fiquei pasma e vi que o Senhor tinha razão; fui à casa pequenina, elaborei meus planos e encontrei meios para torná-la um mosteiro regular, se bem que minúsculo. Desisti de comprar mais terras, mas fiz adaptações para que se pudesse viver na casa; tudo era tosco e grosseiro, tendo o suficiente para não prejudicar a saúde; e assim se deve fazer sempre.

13. No dia de Santa Clara, indo comungar, a Santa me apareceu, muito formosa.14 Disse-me que me esforçasse e desse continuidade ao que iniciara, pois teria a sua ajuda. Tomei por ela grande devoção e, em cumprimento de sua promessa, um mosteiro de monjas de sua Ordem15 situado perto deste ajuda a nos sustentar. Além disso, a bem-aventurada Santa elevou pouco a pouco os meus anseios a tamanha perfeição que a pobreza que ela instituiu em seus mos teiros também está presente neste, e vivemos de esmola. Não me tem custado pou cos esforços estabelecer com toda a firmeza e autoridade do Santo Padre que não se aja senão assim e que nunca se tenham rendimentos.16 E o Senhor faz mais ainda, talvez atendendo às súplicas dessa bendita Santa, pois, sem que peçamos, nos fornece o necessário com muita fartura. Bendito seja para sempre, amém.

14. Também por esses dias, eu estava na capela de um mosteiro da Ordem do glorioso São Domingos no dia de Nossa Senhora da Assunção17 considerando os inúmeros pecados que em tempos passados confessara naquela casa e outras coisas da minha vida ruim. De repente, veio-me um arroubo tão intenso que quase perdi os sentidos; sentei-me e creio que não vi a elevação nem ouvi a missa, ficando depois envergonhada disso. Enquanto me encontrava naquele estado, tive a impressão de que me cobriam com uma roupa de grande brancura e esplendor. No início, eu não via quem o fazia, tendo percebido depois Nossa Senhora do meu lado direito e meu pai São José do esquerdo adornando-me com aquelas vestes. Eles me deram a entender que eu estava purificada dos meus pecados.

Depois que acabaram de me vestir, estando eu com enorme deleite e glória, tive a impressão de que Nossa Senhora tomava-me as mãos, dizendo--me que lhe dava muito contentamento ver-me servir ao glorioso São José e que eu estivesse certa de que o mosteiro se faria de acordo com o meu desejo, sendo o Senhor e eles dois muito bem servidos ali. Eu não devia temer que nisso viesse a haver quebra, embora a obediência não fosse bem do meu gosto, porque eles nos guardariam, e o seu Filho já nos prometera andar ao nosso lado. Como sinal de verdade, ela me dava uma jóia.

Tive a impressão de que ela me punha no pescoço um colar de ouro muito formoso do qual pendia uma cruz de muito valor. O ouro e as pedras dessa jóia são tão diferentes dos de cá que não há comparação; porque a sua formosura muito difere do que podemos imaginar aqui, não podendo o intelecto compreender de que era a veste nem imaginar a alvura que o Senhor deseja nos apresentar, de tal modo que todas as coisas deste mundo parecem, por assim dizer, um esboço a carvão.

15. Era grandíssima a beleza que vi em Nossa Senhora, embora não tenha podido observar nenhum traço particular seu, mas o conjunto do rosto, estando ela vestida de branco, com enorme resplendor, não do tipo que deslumbra, mas algo suave. Não vi o glorioso São José tão claro, mas percebi a sua presença, como nas visões de que falei, em que não se vêem imagens.18 Nossa Senhora me pareceu muito jovem. Estiveram comigo mais um pouco, estando eu cheia de glória e de júbilo, numa intensidade que eu talvez jamais tenha sentido e que não quisera ver chegar ao fim.

Pareceu-me então vê-los subir ao céu com uma enorme corte angélica. Fiquei com muita saudade, mas tão consolada, enlevada, recolhida em oração e enternecida que por algum tempo permaneci quase fora de mim, sem poder mover-me nem falar. Veio-me um veemente ímpeto de me desfazer por Deus, ímpeto que teve tais efeitos em mim que nunca pude duvidar da verdade de que todo o ocorrido era coisa de Deus. Fiquei consoladíssima e com muita paz.

16. O que a Rainha dos Anjos dissera sobre a obediência19 referia-se ao fato de eu sentir muito não pôr o mosteiro sob a jurisdição da nossa Ordem, pois o Senhor me falara que não convinha fazê-lo. Indicou-me os motivos pelos quais isso de nenhum modo era conveniente, dizendo-me para recorrer a Roma, por certa via que também me indicou, prometendo que faria vir por esse meio as licenças. Isso de fato ocorreu — quando até então nunca chegávamos a uma solução —, e com pleno êxito, quando segui o caminho indicado pelo Senhor.

Considerando-se as coisas que mais tarde sucederam, foi muito conveniente ter-se prestado obediência ao Bispo. Mas, na época, eu não o conhecia, nem sabia que prelado seria; quis o Senhor que ele fosse muito bom e favorecesse bastante esta casa, o que era bem necessário diante da grande conflagração que a envolveu, como mais tarde vou contar,20 levando-a ao estado em que se encontra. Bendito seja Aquele que assim tudo fez, amém.