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quarta-feira, 13 de abril de 2011

COMO REGAR O JARDIM DA ALMA



COMO REGAR O JARDIM DA ALMA

Parece-me que li ou ouvi esta comparação ‑ como tenho memória ruim, não sei onde nem por quê; mas, para o meu objetivo aqui, basta-me citá-la. Quem principia deve ter especial cuidado, como quem fosse plantar um jardim, para deleite do Senhor, em terra muito improdutiva, com muitas ervas daninhas. Sua Majestade arranca as ervas daninhas e planta as boas. Façamos de conta que isso já aconteceu quando uma alma decide dedicar-se à oração e começa a se exercitar nela. Com a ajuda de Deus, temos de procurar, como bons jardineiros, que essas plantas cresçam, tendo o cuidado de regá-las para que não se percam e venham a dar flores, cujo perfume agradável delicie esse nosso Senhor, para que Ele venha a se deleitar muitas vezes em nosso jardim e a gozar entre essas virtudes.

Vejamos agora a maneira de regar, para sabermos o que fazer e o quanto isso nos há de custar; verificar se o lucro é maior do que o esforço e o tempo que o trabalho levará.

Parece-me que é possível regar de quatro maneiras:

Ø tirando a água de um poço, o que nos parece grande trabalho;

Ø tirá-la com nora e alcatruzes movidos por um torno; assim o fiz algumas vezes:

dá menos trabalho que a outra e produz mais água;

Ø trazê-la de um rio ou arroio; rega-se muito melhor, a terra fica bem molhada, não é preciso regar com tanta freqüência e o jardineiro faz menos esforço;

Ø contar com chuvas freqüentes; neste caso, o Senhor rega, sem nenhum trabalho nosso, sendo esta maneira incomparavelmente melhor do que as outras.

(Vida 11,6-7)

RECOLHIMENTO

Agora, apliquemos à oração essas quatro maneiras de regar, com as quais haveremos de conservar o jardim, que, sem ser irrigado, perecerá. Com esta comparação acredito poder explicar algo dos quatro graus de oração em que o Senhor, pela sua bondade, pôs algumas vezes a minha alma. Queira a Sua bondade que eu o diga de um modo que traga proveito a uma das pessoas que me mandaram escrever, porque o Senhor, em quatro meses, a fez avançar mais do que eu consegui em dezessete anos. Essa pessoa se dispôs melhor do que eu e, assim, rega sem trabalho seu vergel com essas quatro águas, embora a última só lhe venha gota a gota; mas, a prosseguir assim, logo estará mergulhada nela, com a ajuda do Senhor, e gostarei que ria se lhe parecer disparatada a minha forma de dizer.

Pode-se dizer dos que começam a ter oração que apanham a água do poço, o que é muito trabalhoso, como eu disse, porque eles têm de cansar-se para recolher os sentidos, algo que, como não estão acostumados a concentrar-se, requer muito esforço. É preciso que eles vão se habituando a não se incomodar com o que vêem ou ouvem, fazendo-o efetivamente nas horas de oração, ficando em solidão e afastados para pensar em sua vida passada. Na verdade, todos devem fazer isso com freqüência, tanto iniciantes como os que estão avançados, pensando mais ou menos nisso, como depois direi. No princípio, os iniciantes ainda sofrem, por julgarem que não se arrependem dos pecados, embora o seu arrependimento seja sincero, pois estão de fato determinados a servir a Deus. Eles devem procurar pensar na vida de Cristo e, nisso, cansa-se a mente.

Até aqui podemos chegar sozinhos, claro que com o favor de Deus, pois, como se sabe, sem Ele, não podemos ter um único bom pensamento. Isso é começar a tirar água do poço, e queira Deus que este não esteja seco. Pelo menos fazemos a nossa parte, indo apanhar água e fazendo o que podemos para regar as flores. E é o bom Deus que, por motivos que Ele conhece talvez para grande proveito nosso ‑, quer que o poço esteja seco, devendo nós fazer como o bom jardineiro, que, sem água, mantém as flores e faz crescer as virtudes. Chamo de "água" aqui as lágrimas e, à falta delas, a ternura e o sentimento interior de devoção.

(Vida 11, 8-9)

TRABALHANDO PARA O SENHOR

E o que fará aqui quem vir que, em muitos dias, só há secura, desgosto, dissabor e tão má vontade para ir tirar a água? Se não se recordasse de que serve e agrada ao Senhor do jardim e se não receasse perder todo o serviço já feito, além do que espera ganhar com o grande trabalho que é lançar muitas vezes o balde ao poço e tirá-lo sem água, abandonaria tudo? Muitas vezes, nem conseguirá levantar os braços, nem poderá ter um bom pensamento, porque esse trabalho com o intelecto, entenda-se, é tirar água do poço.

Como eu dizia, que fará aqui o jardineiro? Alegrar-se, consolar-se e considerar uma enorme graça trabalhar no jardim de tão grande Imperador. Sabendo que contenta ao Senhor com aquilo, e que a sua intenção não há de ser senão contentar a Ele, louve-O muito, pois o Senhor nele confia, por ver que, sem nada receber, a alma cuida muito do seu trabalho; que o jardineiro o ajude a carregar a cruz e pense que o Senhor nela viveu por toda a vida; que não procure seu reino aqui na terra e nunca abandone a oração. E se determine, mesmo que essa secura dure a vida inteira, a não deixar que Cristo caia com a cruz, pois virá o momento em que toda a sua recompensa lhe será dada de uma vez. Não tenha medo de que o seu trabalho se perca, pois ele serve a bom patrão, que o está olhando. Não se incomode com os maus pensamentos; pense que o demônio também os representava a São Jerônimo no deserto.

Esses trabalhos têm seu valor, eu o sei, pois os fiz durante muitos anos (quando eu tirava uma gota de água desse poço bendito, pensava que Deus me concedia uma graça), sendo necessário, para vencê-los, mais coragem do que para muitos outros trabalhos do mundo. Mas vi com clareza que Deus não deixa de dar grande recompensa, ainda nesta vida; pois é certo que, em uma hora na qual o Senhor me permite rejubilar-me nele, considero pagas todas as angústias por que, para perseverar na oração, passei.

Creio que o Senhor deseja dar, muitas vezes no principio e outras no final, esses tormentos e muitas outras tentações que aparecem, para testar os que o amam e saber se poderão beber o cálice e ajudá-Lo a levar a cruz, antes de lhes oferecer grandes tesouros. E é para o nosso bem que Sua Majestade deseja levar-nos dessa maneira para que compreendamos quão pouco somos; porque as graças que depois vêm têm tamanha dignidade que Ele, antes de dá-las, deseja que, pela experiência, percebamos antes a nossa insignificância, a fim de que não aconteça conosco o que sucedeu a Lúcifer.

(Vida 11, 10-11)

AMAR É SERVIR

Que fazeis Vós, Senhor meu, que não seja para maior bem da alma que já sabeis ser Vossa e que se põe em Vosso poder para seguir-Vos por onde fordes, até a morte na cruz, determinada a ajudar-Vos a carregá-la e a não Vos deixar sozinho com ela?

Quem vir em si essa determinação... de modo algum deve temer. Não tem razão para afligir-se quem se dedica às coisas do espírito. Estando já no nível tão alto que é o do desejo de ficar a sós com Deus e de renunciar aos passatempos do mundo, a alma fez a maior parte. Louvai por isso Sua Majestade e confiai em Sua bondade, pois Ele nunca faltou aos seus amigos. Fechai os olhos da mente para não pensardes: por que Ele dá devoção a alguém em poucos dias e a nega a mim em tantos anos? Acreditemos que é tudo para o nosso bem maior. Guie Sua Majestade por onde quiser. Já não somos nossos, mas Seus. Ele já nos favorece bastante ao nos dar disposição para cavar no Seu jardim e estar aos pés do seu Senhor, que por certo está conosco. Se Ele deseja que essas plantas e flores cresçam, para uns jardineiros com a água que tiram do poço e, para outros, sem ela, que importância tem isso para mim? Fazei Vós, Senhor, o que quiserdes. Que eu não Vos ofenda e que não se percam as virtudes, se alguma já me destes só por Vossa bondade. Desejo padecer, Senhor, pois Vós padecestes. Faça-se em mim, de todas as maneiras, a Vossa vontade, e não permitais que uma coisa tão valiosa quanto o Vosso amor seja dada a quem só Vos serve em busca de consolações.

Deve-se acentuar ‑ e o digo por experiência ‑ que a alma que, nessa trilha da oração mental, começa a caminhar com determinação e consegue de si mesma não fazer muito caso, nem consolar-se ou desconsolar-se muito por faltarem ou não esses gostos e essa ternura, ou por lhos dar o Senhor, já venceu boa parte do caminho; e que não tenha medo de recuar, por mais que tropece, já que começou o edifício com firmes alicerces. Sim, pois o amor de Deus não está em ter lágrimas nem em ter esses gostos e essa ternura, que em geral desejamos e com os quais nos consolamos, mas em servir com justiça, força de ânimo e humildade. Isso me parece mais receber do que dar alguma coisa.

(Vida 11, 12-13)

LIBERDADE E DETERMINAÇÃO

Para mulherzinhas como eu, fracas e pouco constantes, creio que convém, como Deus agora o faz comigo: conduzir-me com regalos, para que eu possa sofrer algumas dificuldades que Sua Majestade desejou que eu tivesse. Mas, para servos de Deus, homens de valor, instruídos, inteligentes, desgosta-me ouvi-los se queixarem tanto de que Deus não lhes dá devoção; não digo que não a aceitem, se Deus a der, tendo-a em alta conta, porque, nesse caso, Sua Majestade sabe que isso lhes convém, mas que, quando não a tiverem, que não se aflijam, entendendo que ela não lhes é necessária, já que Sua Majestade não a dá, e sigam seu caminho. Acreditem que é uma imperfeição. Eu o vi e experimentei. Acreditem que é imperfeição e falta de liberdade de espírito; é mostrar fraqueza para qualquer empreendimento.

Não falo isso tanto para os que começam (embora eu o acentue tanto porque é muito importante para eles começar com essa liberdade e determinação), mas para outros, pois haverá muitos, e há realmente, que começaram e nunca acabam de acabar; e creio que isso se deve em grande parte ao fato de eles não abraçarem a cruz desde o inicio, razão por que ficam aflitos, julgando que nada fazem. Não conseguem suportar que o intelecto deixe de atuar, não percebendo que, então, a vontade aumenta e se fortalece.

Temos de pensar que o Senhor não olha coisas que, embora nos pareçam faltas, não o são. Sua Majestade já conhece a nossa miséria e baixeza natural melhor do que nós mesmos, sabendo que essas almas desejam sempre pensar nele e amá-Lo; o que Ele quer é essa determinação, não servindo essa outra aflição senão para inquietar a alma. Quem está incapacitado de obter frutos durante uma hora assim o estará por quatro. Porque muitíssimas vezes (tenho enorme experiência nisso, e sei que é verdade, porque o examinei com cuidado e disso tratei com pessoas espirituais) tudo vem da indisposição corporal; somos tão miseráveis que essa pobre alma está aprisionada aos males do corpo; e as mudanças do tempo e variações dos humores muitas vezes fazem com que, sem culpa, ela não possa fazer o que quer, padecendo de todas as maneiras. Nesses momentos, quanto mais a quisermos forçar, tanto pior e mais duro será o mal; nesse caso, é preciso ter discrição para ver quando se deve fazer o quê, para não atormentar a pobre. Que elas percebam que estão doentes e mudem a hora da oração, o que amiúde durará alguns dias. Suportem como puderem esse desterro, pois é grande a desventura da alma amante de Deus ao ver que passa por essa desolação, sem poder fazer o que quer, por ter um hóspede tão ruim quanto o corpo.

Eu disse "ter discrição" porque às vezes o demônio age. Assim, é bom que não se deixe sempre a oração quando se está muito distraído e perturbado no intelecto, nem se atormente sempre a alma, obrigando-a a fazer o que não pode.

Há outras ocupações além de obras de caridade e de leitura, mesmo que por vezes nem isso seja possível. Sirva-se então ao corpo por amor a Deus, para que ele, em muitas outras ocasiões, sirva à alma; dedique-se o tempo a conversas virtuosas ou a passeios pelo campo, segundo o conselho do confessor. Em tudo, vale muito a experiência, que nos dá a entender o que nos convém e nos faz ver que em tudo servimos a Deus. Suave é o seu jugo, e muito vale a pena não arrastar a alma, como se diz, mas levá-la com suavidade para seu aproveitamento.

Assim, repito ‑ e mesmo que não pare de fazê-lo, ainda não o terei enfatizado o bastante ‑ que importa muito que não nos atormentemos nem nos aflijamos com essas securas, com a inquietude e com a distração nos pensamentos. Quem quiser obter liberdade de espírito e não ficar sempre atribulado deve começar por não se espantar com a cruz; se o fizer, verá que o Senhor também ajuda a levá-la, e viverá contente e tirando proveito de tudo. É natural, pois se o poço está seco, nós não podemos enchê-lo de água; é verdade que não podemos nos descuidar, para que, quando houver água, a tiremos ‑ porque, nesse caso, Deus deseja por meio dela multiplicar as virtudes.

(Vida 11,14-17)

EM COMPANHIA DO SENHOR

0 que pretendi dar a entender no capítulo anterior ‑ embora tenha enveredado por outras coisas que me pareciam muito necessárias ‑ foi o ponto até o qual podemos chegar por nós mesmos e a maneira como, nessa primeira devoção, podemos valer-nos dos nossos próprios recursos. Porque, ao pensarmos detalhadamente no que o Senhor passou por nós, alcançamos a compaixão, encontrando sabor nesse sofrimento e nas lágrimas que dele vêm; pensar na glória que esperamos, no amor que o Senhor teve por nós e em Sua ressurreição nos dá um prazer que não é de todo espiritual nem dos sentidos, mas é um prazer virtuoso e um pesar muito meritório. Assim são todas as coisas que causam devoção quando o entendimento está envolvido, muito embora, se Deus não a desse, não se poderia merecê-la nem ganhá-la. É muito bom que uma alma que só chegou até aqui graças ao Senhor não procure ir além por si ‑ e muito se atente para isso ‑, para que não obtenha, em vez de lucro, prejuízo.

Neste estado, ela pode fazer muito para se determinar a servir bastante a Deus e despertar o amor, assim como para ajudar a crescer as virtudes, como o diz um livro chamado Arte de servir a Deus, que é muito bom e apropriado para os que estão nesse estado em que a mente age. A pessoa pode imaginar que está diante de Cristo e acostumar-se a enamorar-se da Sua sagrada Humanidade, tendo-O sempre consigo, falando com Ele, pedindo-lhe auxílio em suas necessidades, queixando-se dos seus sofrimentos, alegrando-se com Ele em seus contentamentos e nunca esquecendo-se Dele por nenhum motivo, e sem procurar orações prontas, preferindo palavras que exprimam seus desejos e necessidades.

É excelente maneira de progredir, e com rapidez. E adianto que quem trabalhar para ter consigo essa preciosa companhia, aproveitando muito dela e adquirindo um verdadeiro amor por esse Senhor a quem tanto devemos, terá grande beneficio.

(Vida 12,1-2)

É AÇÃO DE DEUS

Para isso, não façamos caso de não ter devoção sensível ‑ como eu disse ‑, mas agradeçamos ao Senhor, que nos permite estar desejosos de contentá-Lo, embora as nossas obras sejam fracas. Esse modo de trazer Cristo conosco é útil em todos os estados, sendo um meio seguríssimo para tirar proveito do primeiro e breve chegar ao segundo grau de oração, bem como, nos últimos graus, para ficarmos livres dos perigos que o demônio pode pôr.

Pois isso é o que podemos fazer. Quem quiser passar daqui e levantar o espírito a sentir gostos, que não lhe são dados, perde, a meu ver, tudo. Os gostos são sobrenaturais e, perdido o entendimento, a alma fica desamparada e com muita aridez. E como esse edifício tem a sua fundação na humildade, quanto mais próximos de Deus estivermos, tanto maior deverá ser essa virtude, pois, se assim não for, tudo perderemos. E parece algum tipo de soberba querermos ir além disso, visto que Deus já faz em demasia, pelo que somos, ao permitir que nos aproximemos dele.

Não se entenda com isso que não é bom elevar o pensamento a coisas superiores do céu e de Deus, às grandezas que lá há e à sabedoria divina; porque, embora eu nunca o tenha conseguido (porque não tinha capacidade como disse e me achava tão ruim que, mesmo para pensar em coisas da terra, precisava que Deus me fizesse a graça de entender esta verdade, por não ser isso pouco atrevimento, para não falar em pensar em coisas do céu), outras pessoas tirarão proveito disso, especialmente se forem instruídas, pois a instrução é, a meu ver, um grande tesouro para esse exercício, se for acompanhada da humildade. Ultimamente, tenho percebido que alguns estudiosos, que há pouco começaram, tiveram um grande proveito; isso me faz desejar ansiosamente que muitos deles sejam espirituais, como adiante direi.

Quando digo "não se elevem sem que Deus os eleve", uso linguagem espiritual; quem tiver alguma experiência vai me entender, pois, se não o entender, não sei dizer com outras palavras. Na teologia mística, de que comecei a falar o intelecto deixa de agir porque Deus o suspende, como depois explicarei se souber e se Ele me conceder para isso o seu favor. Tentar ou presumir suspendê-lo por nós mesmos, deixar de agir com ele, é o que considero inconveniente, porque assim ficaremos bobos e frios, e não conseguiremos nem uma coisa nem outra. Quando o Senhor o suspende e o faz parar, Ele mesmo lhe dá com que se ocupar e se impressionar, de maneira tal que, no espaço de um credo, podemos compreender, sem raciocinar, mais do que, em muitos anos, com os nossos próprios esforços terrenos. É um disparate querermos conter as faculdades da alma e pensar em aquietá-las.

E repito, ainda que não se entenda: isso não é de grande humildade. Embora não haja culpa, haverá danos, pois será trabalho perdido, e a alma vai ficar um tanto desgostosa, como se estivesse prestes a dar um salto e se sentisse segura por trás, parecendo empregar a força sem conseguir o seu intento. Quem quiser comprová-lo verá o pouco ganho que vai ter, e, neste, a pequena falta de humildade de que falei. Porque numa coisa essa virtude é excelente: o que é feito com o seu apoio nunca deixa desgosto na alma.

Creio que expliquei bem, mas talvez só esteja claro para mim. Que o Senhor abra os olhos dos que isto lerem dando-lhes experiência, que, por pouca que seja, logo os fará entender.

(Vida 12,3-5)

CUIDADO COM ILUSÕES

Por vários anos li muitas coisas e nada entendi; depois, apesar do que Deus me dava, eu não sabia dizer uma palavra que exprimisse essa situação, o que não me custou poucos sofrimentos. Quando deseja, Sua Majestade ensina tudo num momento, e de uma maneira que me espanta.

Para dizer a verdade, mesmo falando com muitas pessoas espirituais que queriam me explicar o que o Senhor me dava, para que eu o soubesse dizer, é certo que a minha rudeza era tanta que eu nada aproveitava; ou, talvez, o Senhor, que sempre foi o meu mestre (seja por tudo bendito, pois bastante confusão me causa poder dizer isto com verdade), tenha querido que nesse aspecto eu não tivesse de agradecer a ninguém; sem que eu quisesse nem pedisse (que nisso não fui nada curiosa ‑ porque teria sido virtude sê-lo ‑, sendo-o apenas em outras vaidades), Deus me deu num momento a graça de entender com toda a clareza e de saber exprimi-lo, de tal modo que os meus confessores se espantavam, e eu mais do que eles, porque conhecia mais a minha rudeza. Foi há pouco que recebi essa graça; e o que o Senhor não me ensinou, eu não o procuro, a não ser o que tem que ver com minha consciência.

Tomo a avisar que é muito importante "não elevar o espírito se o próprio Senhor não o eleva" ‑ o que isso significa logo se entende. Isso é especialmente ruim para mulheres, em quem o demônio poderá causar alguma ilusão; embora eu tenha certeza de que o Senhor não consente que se prejudique quem, com humildade, procura chegar a Ele, fazendo com que, pelo contrário, obtenha mais proveito e lucro daquilo com que o inimigo julgou provocar prejuízo.

Como esse caminho é o mais usado pelos iniciantes, sendo muito importantes os avisos que dei, estendi-me tanto. Há livros em que isso estará escrito melhor, eu confesso, e foi com grande confusão e vergonha que o escrevi, se bem que sem ter tanta quanto deveria ter.

Bendito seja por tudo o Senhor, que deseja e consente que uma pessoa como eu fale de Suas coisas, tão elevadas e sublimes.

(Vida 12, 6-7)

PARA MAIOR APROFUNDAMENTO DO TEMA VEJA “OBRAS COMPLETAS DE SANTA TERESA DE JESUS”, Edições Loyola, 1995, páginas 76 a 140

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Teresa e Maria do Carmelo


ImageNossa Senhora está presente nos momentos mais decisivos da vida de Teresa. Já desde os primeiros balbuceios da sua infância é influenciada pela oração cadenciada do terço.

Com a idade de seis ou sete anos a mãe tinha o cuidado “em fazer-nos rezar e sermos devotos de Nossa Senhora e de alguns Santos”. Teresa continua a contar-nos que desde muito jovem “Procurava solidão para rezar as minhas devoções que eram muitas, em especial o Rosário, do qual a minha mãe era muito devota e assim nos fazia sê-lo”.

Quando Teresa perde sua mãe, que seria entre os treze e quatorze anos de idade, vai-se encomendar a Nossa Senhora. É ela a narrar: “Quando comecei a perceber o que tinha perdido, fui-me, aflita, a uma imagem de Nossa Senhora e supliquei-Lhe, com muitas lágrimas, que fosse minha Mãe. Embora o fizesse com simplicidade, parece-me que me tem valido; porque conhecidamente tenho encontrado esta Virgem soberana, sempre que me tenho encomendado a Ela, e, enfim, tornou-me a Si”.

Por amor e devoção a Nossa Senhora, Teresa entra no Carmelo da Encarnação de Ávila. Neste mosteiro, como em todos os outros, a presença de Maria é uma constante. A tomada de hábito marcou-a profundamente. Tomava o hábito de Nossa Senhora. Para ela, Nossa Senhora do Carmo é como a encarnação do estilo de vida e do espírito da Ordem. A partir da sua experiência mística a presença de Maria torna-se constante e integrante de muitas graças místicas.

São muitas as graças místicas que Teresa recebe ao longo da sua existência e que têm como objecto e conteúdo Nossa Senhora. Algumas são muito significativas para a sua vida e obra de fundadora. Recordo a que ela narra no
Livro da Vida, capítulo 33. É uma espécie de vestidura que Maria faz a Teresa anunciando-lhe o facto de a partir deste momento ser mãe de uma nova família religiosa: o Novo Carmelo. Jesus une sua Mãe a este seu plano. Era no dia de Nossa Senhora da Assunção. Participava na Eucaristia na Capela do Santo Cristo do Convento de S. Domingos e veio-lhe um arroubamento tão grande que ficou fora de si. “Parecia-me, estando assim, que me via vestir uma roupa de muita brancura e claridade. A princípio não via quem ma vestia; depois vi a Nossa Senhora a meu lado direito e a meu Pai S. José à esquerda, que me vestiam aquela roupa. Deu-se-me a entender que já estava limpa de meus pecados. Acabada de vestir e eu com grandíssimo deleite e glória, logo me pareceu Nossa Senhora pegar-me nas mãos. Disse-me que Lhe dava muito gosto sendo devota do glorioso S. José; que tivesse por certo que, o que eu pretendia do mosteiro, se havia de fazer e nele se serviria muito o Senhor e a eles ambos; que não temesse que nisto houvesse jamais quebra, embora a obediência que dava não fosse a meu gosto, porque Eles nos guardariam e já Seu Filho nos tinha prometido andar connosco. Para sinal de que isto se cumpriria dava-me aquela jóia.

Pareceu-me então que me tinha deitado ao pescoço um colar de ouro muito formoso e preso a ele uma cruz de muito valor. Este ouro e pedras são tão diferentes das de cá, que não têm comparação”.

Santa Teresa teve outra graça mística mariana em que ela experimenta a glorificação de Nossa Senhora: “Em dia da Assunção da Rainha dos Anjos e Senhora nossa, quis o Senhor fazer-me esta mercê: num arroubamento representou-se-me a Sua subida ao Céu e a alegria e solenidade com que foi recebida e o lugar onde está. Dizer como foi isto, eu não saberia. Foi grandíssimo o deleite que o meu espírito teve de ver tanta glória. Causou isto em mim grandes efeitos e tirei de proveito ficar com mais e maiores desejos de passar grandes trabalhos e de servir a esta Senhora, pois tanto mereceu” (V 39, 26).

Noutra visão, Teresa compreendeu como o Senhor agracearia as suas irmãs de S. José de Ávila, ao colocá-las sob a protecção de Maria: “Estando todas no coro em oração depois de Completas, vi Nossa Senhora, com grandíssima glória, revestida dum manto branco e, debaixo dele, parecia amparar-nos a todas. Entendi quão alto grau de glória daria o Senhor às desta casa” (V 36, 24).

Apesar de serem muitas as graças místicas marianas experienciadas por Teresa de Jesus, há um parelelismo muito marcado entre a experiência que ela tem de Cristo e de Maria. Depois de tantos trabalhos e sofrimentos passados nas suas fundações Teresa alegra-se com as suas irmãs: “Nós alegramo-nos de podermos em algo servir a Nossa Mãe, Senhora e Padroeira” (F 29, 23). Jesus e Maria são duas criaturas sempre unidas na vida de Teresa e dos seus Carmelos: “Pouco a pouco se vão fazendo outras coisas para honra e glória desta gloriosa Virgem e de Seu Filho. Seja Ele para sempre louvado, ámen, ámen!” (F 29, 28).


P. Jeremias Carlos Vechina, OCD

sábado, 16 de janeiro de 2010

O carmelita buscador do rosto de Deus e seu testemunho



“Quem não conhece o rosto de Deus na contemplação, não o reconhecerá na ação”.
(Von Balthasar)
“Estar diante do rosto de Deus vivo, esta é nossa vocação”, dizia Edith Stein. Buscar o rosto
de Deus... Poucas frases têm tantas raízes bíblicas como esta. Todo o Antigo Testamento não é
mais que uma busca incansável do rosto de Deus. Aí está expresso o profundo desejo do israelita por conhecer a Deus, sua identidade entrar em sua intimidade e participa em sua glória. Será o desejo de Moisés, apesar de que Deus lhe diga: “Meu rosto não podeis ver”(Ex 32,20), a chamada à conversão dos profetas, como Amós que diz: “Buscai o rosto de Deus e vivereis”, o desejo dos sábios em sua busca da sabedoria e a felicidade para o ser humano; porém será sobretudo o grito orante do salmista que uma vez ou outra pede e deseja “ter a visão do rosto de Deus”, que “seu rosto nos ilumine” ou, ao contrário, que “não se afaste de nós seu rosto”.
E quando este rosto apareça e brilhe no de Jesus, nascerá o Novo Testamento e o cristianismo e o monacato para continuar com mais insistência e mais afinco esta busca incansável. Porque nesta busca do rosto autêntico de Deus em Jesus está em jogo o próprio futuro deste cristianismo. Diz-nos, de uma maneira indireta, o Concílio Vaticano II, quando ao falar das causas do ateísmo afirma audazmente: “nesta gênese do ateísmo, grande parte podem ter os crentes, enquanto negligenciando a educação da fé, ou por uma exposição falaz da doutrina, ou por faltas na sua vida religiosa, moral e social, se poderia dizer deles que mais escondem que manifestam a face genuína de Deus e da religião” ( GS, 19) A mesma fundamentação bíblica podemos encontrar para a segunda parte de nossa oração-definição: “ser no mundo testemunhas do teu amor”. Poder-se-ia dizer que toda a Bíblia e em particular o Novo Testamento não é mais que uma exposição de como cada um é testemunho do amor de Deus. Jesus é o testemunho do amor de Deus por excelência e esta será a missão de seus seguidores, testemunhas de sua ressurreição... em definitivo de seu amor. Assim poderíamos dizer que nesta oração está condensada toda a Bíblia.
Dir-se-á, então, que esta é a tarefa de todo religioso, mais ainda, de todo cristão. Por estar correta tal afirmativa é que nós, os carmelitas, necessitamos concretizar esta busca e ser testemunhos com a luz que projeta o ícone de Elias, que é o que inspira esta oração que rezamos todos os dias.
Somente algumas pinceladas. É bem sabido que a tradição elianoprofética está nas origem
do Carmelo Teresiano; porém esta tradição recebeu nova orientação com os filhos de Teresa e
João da Cruz. Elias já não será simplesmente o modelo de ermitão, centrando-se sobretudo em
sua imitação no retiro da fonte de Carit, como faz A instituição dos primeiros monges.
Elias, “guia e pai” dos carmelitas descalços será aquele que vai do córrego Carit ao monte
Horeb, passando pelo Carmelo, o vinhedo de Nabot e ao longo caminhar pelo deserto; ou seja,
abarca toda a vida do profeta contemplando-lhe, sobretudo, quando chega ao alto na visão de
Deus no “sussurro da brisa suave”, como faz São João da Cruz que dos seis textos que falam do
profeta, cinco deles nos falam desta visão do Horeb, e de “assobio/cantar dos ares amorosos”.
Tudo isto resume muito bem as nossas Constituições quando diz em seu artigo 2o : “Entre
os veneráveis personagens bíblicos, rendamos culto especial ao profeta Elias, que contempla
ao Deus vivo e se abrasa no zelo de sua glória, como inspirador do Carmelo, e consideramos
seu carisma profético como ideal de nosso chamamento à escuta e proclamação da palavra de
Deus.”
Elias, nesta dupla faceta se tem convertido hoje para muitos, não só para os carmelitas, em modelo do que se tem começado a chamar “espiritualidade do deserto”, que reflete muito bem a situação na qual se encontra a igreja na atualidade. Há vários anos apareceu na Alemanha um livro que tem este título Espiritualidade do deserto. O autor é um dos teólogos Comunidade Santa Edith Stein
4
mais destacados no panorama atual da teologia; teólogo de altos vôos, de raça, diriam alguns,
quando se atreve escrever um trabalho tão volumoso sobre o mistério trinitário e depois saber
divulgá-lo de uma maneira muito simples ao alcance de qualquer cristão. Estou me referido a
Gisbert Greshake. Alguns anos antes tinham aparecidos, na Holanda, dois livros, um com o
titulo Oásis no desert:. Espaços vitais para a fé e o outro, Quarenta palavras no deserto, ambos
do mesmo autor: Bernard Rootmensen.
Neste livro, Espiritualidade do deserto, Greshake dedica um capítulo completo ao Carmelo:
“A espiritualidade Eliana do deserto no Carmelo”.4
É por tal razão que volto a recordar: “Vive o Senhor, o Deus de Israel, ante cuja presença
estou”. Aí está resumida a espiritualidade Eliana do deserto: estar frente ao rosto de Deus,
buscar continuamente sua presença, para isto se vai ao deserto. Daí, desta imediatez da
presença de Deus brotará “seu zelo, sua paixão por Deus” contra todos os ídolos com uma
radicalidade absoluta. O carmelita teresiano sãojoanista viverá isto desde a meditação da
palavra de Deus dia e noite seguindo a indicação da Regra e o anseio de encontrar o rosto de
Deus se converterá no núcleo da experiência contemplativa.
Teresa de Jesus e João da Cruz e todo o Carmelo descalço assumem a divisa de Elias “Me
consome o zelo, a paixão pelo Senhor” e concretizarão sua radicalidade absoluta nas
formulações marcadas por estas mesmas características. Teresa dirá: “Só Deus basta” e João
da Cruz : “Tudo ou Nada” que levará a uma paixão absoluta pelo Deus da união mística e a luta
sem quartel contra todos os ídolos, com a mesma força e intensidade que Elias no Carmelo e
no Horeb.
Assim, Elias se converte no arquétipo ideal do carmelita, que poderíamos apresentar em
breve resumo, assim: Elias é o profeta solitário que tem sede de Deus vivo e vive em sua
presença (1R 17,1); é um místico que depois de uma longa e esgotadora viagem pelo deserto
aprende a lei e descobre a nova presença de Deus no sussurro do silêncio (1Rs 19, 1-18). É o
homem contemplativo a quem lhe consome uma paixão avassaladora por Deus, uma paixão
transborda para os demais (2Rs 18, 20-46). É o profeta que se preocupa pela vida do povo, que
luta contra os falsos deuses e conduz o povo ao verdadeiro Deus. É o homem solidário com os
pobres e o os abandonados (1Rs 17, 8-24) e que defende aqueles que sofrem a opressão e a
injustiça (1Rs 21, 17-29).
Este é o modelo que se apresenta hoje aos carmelitas nesta espiritualidade do deserto,
uma espiritualidade que como sinal dos tempos, parece estar chamando às portas do Carmelo
Teresiano.

Luciniano Luis Luis, ocd
Tradução:
Nilcéa Maria de Siqueira Pedra, ocds

Santa Teresa de Ávila, amiga de Deus e dos homens



Frei Maximiliano Herráiz, OCD
Por Frei Patrício Sciadini e Andréa Luna
Frei Maximiliano Herráiz é espanhol, Carmelita Descalço, Conselheiro Geral do Carmelo para a América Latina e autor de vários livros sobre os místicos do Carmelo.

Por ser um grande estudioso de Santa Teresa de Ávila e de São João da Cruz, ajuda-nos a compreender que os místicos não pertencem ao ontem da Igreja, mas ao futuro, porque caminham à nossa frente. Teresa é mãe e mestra da oração, uma mestra que antes de ensinar experimentou na própria vida a amizade com Deus e depois foi comunicando esse dom a todos os que conviviam com ela.

Quem é Santa Teresa de Ávila? Fale-nos um pouco de sua trajetória como mulher, Carmelita e Doutora da Igreja.

Frei Maximiliano: Podemos distinguir três etapas na vida de Teresa de Jesus.

O primeiro período vai até os vinte anos, tempo em que ficou na casa paterna. Por volta dos quinze anos perdeu a mãe, tornando-se assim o coração da família. Era uma mulher muito inteligente, gostava de fazer amizades, e tinha o dom de unir as pessoas – esta será uma característica forte na sua espiritualidade.

Foi uma das poucas mulheres que podia ler no século XVI, e gostava muito de fazê-lo, tanto para saber mais quanto para ter o próprio pensamento e ser livre diante dos outros.

Podemos destacar também a vocação de Teresa à oração e a grande devoção à Virgem Maria, sobretudo como mãe. Ela mesma, no livro da Vida, diz que depois da morte de sua mãe colocou-se nas mãos da Virgem e a assumiu como mãe.

O primeiro período, portanto, é fortemente caracterizado pelo trabalho como "mãe" dos irmãos e do pai, em casa, e pelo relacionamento com os outros. Era uma mulher muito aberta, de uma afetividade forte, sentia-se amada e amava intensamente. Porém, uma relação de amizade lhe fez muito mal, ela o diz no livro da Vida, porque a introduziu na escravidão afetiva.

O segundo, é o maior período da sua vida: são 27 anos de vida religiosa carmelita, no Mosteiro da Encarnação, em Ávila. Podemos recordar alguns momentos muito importantes.

A escravidão afetiva durou muito ainda como religiosa, até os 39 anos de idade, quando ocorreu sua conversão definitiva – diante de uma imagem do Cristo muito ferido; disto ela mesma fala no livro da Vida.

Outro acontecimento importante, nesse tempo, foi quando a Inquisição proibiu, sobretudo às mulheres, de ler livros. Os inquisidores sabiam muito bem que a formação torna a pessoa livre, independente, autônoma. Teresa chorou muito, mas foi obediente. Isso foi em 1559.

O terceiro período dura 20 anos: de 1562 a 1582, o ano de sua morte. Esse tempo é dividido em três funções: educadora, fundadora dos mosteiros de monjas e monges, e escritora. Todos os livros que temos foram escritos durante esse período.

Podemos recordar, em 1567, o encontro com São João da Cruz. João tinha 25 anos, e ela 52. Gostou muitíssimo, diz ela, desse jovem carmelita, ao qual convida para acompanhá-la na reforma dos frades carmelitas.

Em 1577, escreveu o último livro, o livro das Moradas, tendo João da Cruz como confessor dela e da comunidade da Encarnação de Ávila. Nesse tempo, há um relacionamento muito íntimo entre eles, de amizade e acompanhamento espiritual que se tornou muito importante na vida de ambos.

Santa Teresa é uma mulher de amizade com Deus e com os homens. Como ela descobriu esse trato de amizade?

A descoberta da amizade com Deus é uma graça particular que tem seu fundamento na natureza de Teresa: uma mulher muito aberta, desde menina, às relações interpessoais.

É uma graça mística. Não é possível que uma menina de sete ou oito anos relacione-se com Deus na base da amizade, sobretudo num tempo em que a Igreja e os teólogos não ensinavam que Deus fosse amigo, mas juiz.

Então, essa graça da natureza foi o que dispôs Teresa à descoberta do Deus amigo, que nunca lhe falta, que fica sempre muito perto dela para dar-lhe a mão e levantá-la quando cai no pecado ou na infidelidade.

Existe um método de oração teresiano?

Não existe um método teresiano de oração. Mas podemos dizer que a amizade, o exercício da amizade divina e humana, é o seu método. E esse método inclui uma relação freqüente na fé mútua. Devemos crer em Deus e uns nos outros.

O método é, portanto, o caminho da amizade. Gosto de convidar as pessoas a pensar na amizade – naquela mais forte, mais bela – e a escrever os passos dessa amizade, ver sua história.

Não temos métodos na relação pessoal: cada amizade é uma descoberta particular, um caminho único que percorremos com aquela pessoa. O amor é a força que alimenta a vida humana e nos faz procurar uma relação mais íntima com a pessoa amada.

Se as pessoas acostumam-se a ler a própria vida, a relação com os outros em termos de amizade, vão descobrir muito bem o que é o método teresiano da oração pessoal, cada pessoa tem um caminho na relação da amizade.

O senhor falou que a base de tudo é o amor. Como se deu a descoberta, a experiência do amor de Deus na vida de Teresa?

Foi muito íntima, sem imagens, sem idéias; foi uma graça muito particular de Deus, uma graça divina e humana, porque ela sabia muito bem que possuía uma graça especial para querer e ser querida pelos outros. Esta é a maior de todas as graças: ter a capacidade de amar e ser amada pelos outros; e devemos pedir esta graça.

Isto é uma questão pessoal. Se você lê todos os livros que falam da amizade, mas não tem uma pessoa amiga, você tem apenas a idéia, mas não sabe o que é a amizade. Com Deus é a mesma coisa: eu posso ter idéias geradas nas leituras e conversas com teólogos, mas conhecer Deus é possível somente pela relação pessoal, isto é, pela oração.

E o senhor, como descobriu o Carmelo e encontrou-se com Teresa?

O desejo de ser carmelita e a descoberta de São João da Cruz e de Santa Teresa aconteceram muito cedo, aos 14 anos de idade, com uma certeza absoluta de que eu não podia ser senão carmelita, como eles.

Como foi isso, não sei. Apenas entendo que houve uma luz muito intensa diante de uma imagem da Virgem, no mês de maio.

Depois, meu relacionamento com São João da Cruz e com Santa Teresa foi o de uma pessoa que quer ser salva numa situação muito difícil: aos 25 anos, eu estudava na universidade de Valência, que respirava o clima e as conseqüências da revolução pós Concílio Vaticano II na Igreja, da revolução social de Paris (maio de 68) e da revolução da primavera de Praga.

Pensei que se não estabelecesse amizade com estes dois profetas da verdade e do amor perderia a minha vida como pessoa, como crente e como carmelita. Então, procurei a sua amizade e comecei a lê-los com muita paixão e todos os dias reservei muitas horas para dialogar com eles porque no entorno não encontrava pessoas com as quais partilhar e iluminar minha situação pessoal.

Que conselho o senhor daria aos jovens de hoje que querem ler Santa Teresa? Como devem começar?

Os místicos não são fáceis de se ler, sobretudo para os jovens de hoje, que não têm tempo nem psicologia para sentar-se e ler tranqüilamente, já que têm a televisão, a música...

Portanto, aconselho em primeiro lugar conhecer alguma coisa da vida de Teresa. Depois, é bom ler alguns textos-chave, que elucidam e explicam os escritos. Não é fácil, nem bom, ler Teresa da primeira à última página.

Outra coisa importante é estar profundamente abertos, porque os escritos dos místicos, como Teresa e João da Cruz, são uma comunicação de experiência.

Os livros mais fáceis são Fundações e Caminho de Perfeição... mas insisto sempre nos textos-chave.

Fale um pouco dos seus livros, que certamente podem ajudar a "descobrir" os místicos.

Escrevi alguns livros sobre Santa Teresa e São João da Cruz. Os primeiros, escrevi sem querer, ou seja, escrevi para mim mesmo, somente.

Só Deus Basta, que foi minha tese de doutorado em Teologia, tem seis edições, mas ainda não existe em português. Posteriormente, depois de muitos anos lendo Santa Teresa e fazendo oração pessoal, em dois meses apenas, escrevi A oração, uma história de amizade; tem sete edições, inclusive em português, pelas edições Carmelitana e Loyola. Escrevi também, de São João da Cruz, um outro livro sobre oração: Palavras de um maestro; também publicado muitas vezes na língua espanhola. E um pequeno livro, intitulado A união com Deus, graça e projeto – catecismo São-Joanita, é um guia de leitura dos livros de São João da Cruz. Depois, fiz também a publicação com notas, introduções e notas de rodapé das Obras Completas de Santa Teresa e de São João da Cruz. E outros livros, como Oração, uma experiência libertadora.

O que Santa Teresa pode dizer aos homens e mulheres do terceiro milênio?

Pode dizer muito! Santa Teresa queria ser uma pessoa livre, independente. Sem liberdade, não podemos ter bons relacionamentos. Então, para ser autônoma, independente, a santa procurou a formação pessoal: ler, estudar, dialogar com pessoas que conhecem, por exemplo, a Teologia, a Bíblia, para que o relacionamento com elas a ajudasse a ter as próprias idéias e não depender de ninguém.

A santa diria também aos homens e mulheres do terceiro milênio que não podemos falar de valores individuais, porque a pessoa é, essencialmente, social, comunitária. Não posso ser eu mesmo sem a relação com os outros. Eu sou o que são as minhas relações com os outros. Portanto, uma pessoa deve abrir-se ao diálogo. Como cristãos, temos a urgente necessidade de lembrar que Jesus faz comunidade. Não é possível seguir Jesus sozinho, mas com os outros. E a Igreja, a comunidade, não pode fechar-se sobre si mesma. Acredito que Santa Teresa estaria muito contente com o documento do Concílio Vaticano II sobre as relações da Igreja com o mundo, porque era uma mulher aberta ao diálogo.

A experiência da relação com os outros nos faz entrar em nós mesmos para descobrir as imensas riquezas que Deus nos dá. Então, que cultivemos a relação com os outros, porque é disso que mais precisamos para crescer.

O matrimônio espiritual de que fala Santa Teresa é apenas para os religiosos e religiosas, ou é também para os leigos que vivem no mundo?

O matrimônio espiritual é o símbolo das relações de Deus com a humanidade, é a partilha mais profunda entre duas pessoas. É a máxima individualização e a máxima comunhão. Não se pode estabelecer uma relação de comunhão se não permaneço "eu" mesmo e o outro não permanece "ele" mesmo. Então, a relação mútua, recíproca, nos faz indivíduos unidos. É a plenitude do amor: acolher o outro e deixá-lo ser ele mesmo e dar-nos a ele com todo o nosso ser. É a relação mais íntima, mais profunda.

Devemos dizer aos cristãos que Deus é amor. E, por ser amor, não chama ninguém a uma vida medíocre, Ele chama todos à plenitude, e a plenitude de vida é uma plenitude de relação. E quando fala de relação com Deus, a santa – como João da Cruz, como a Tradição da Igreja – fala do matrimônio espiritual, que é a história da relação humana mais íntima, mais significativa.

Então, Deus chama todos, sem distinção de leigos, religiosos... Deus chama todos a viver o amor, simplesmente. Porque a nossa vocação é amar tanto quanto somos amados.

Santa Teresa, insistindo muito na oração, não corre o risco de beirar a alienação?

Uma pessoa que crê no amor não pode ser alienada senão de si mesma. A alienação de si mesma é a exigência interna do amor. Quando amo, saio de mim mesmo para colocar meu amigo, minha amiga, no centro da minha vida.

O amor, unicamente ele, faz a alienação positiva, realizadora da pessoa. Por isso Santa Teresa insiste tanto nas obras. Se tenho uma relação íntima contigo, não posso deixar de amar e de fazer o bem a todas as pessoas que tu amas. Teus amigos são meus amigos. Com Deus é a mesma coisa: se tenho uma relação de amizade com Ele, não posso deixar de estar em comunhão com todas as pessoas que Ele ama.

Por que existe tanto interesse pelo Carmelo hoje?

O mundo e a Igreja procuram os místicos carmelitas, Teresa e João da Cruz, sobretudo porque estes receberam de Deus uma graça grandíssima de enamorar-se por Ele e de poder comunicar sua experiência de relação com Deus de uma maneira agradável. As pessoas procuram Teresa e João da Cruz para descobrir o próprio caminho de relacionar-se com Deus.

Quando uma pessoa conta a sua experiência, muitas outras gostam de ouvi-la, porque descobrem as suas possibilidades pessoais e os desejos de fazer o próprio caminho de experiência.

Santa Teresa e São João da Cruz são lidos apenas por católicos?

Não, eles são muito lidos fora da Igreja, por exemplo entre muçulmanos e hindus; e fora do Ocidente, como no Egito, na Líbia, na Índia e no Japão. Porque os místicos não falam propriamente como teóricos da sua fé, mas falam da sua experiência. Então, uma pessoa não crente, quando os lê, procura a experiência espiritual de uma pessoa, uma experiência que é fonte de vida para todos.

O que o senhor sente ao ver uma comunidade nova na Igreja, como a Comunidade Shalom, que tem Santa Teresa como baluarte da sua vocação?

Para mim, significa uma grande alegria. Reconheço que as pessoas que procuram a amizade de Santa Teresa são muito inteligentes, porque procuram uma mulher verdadeiramente enamorada por Deus, com uma capacidade de introduzir as pessoas no caminho da amizade.

Então, quando um grupo de pessoas procura a proximidade com uma pessoa rica espiritual e humanamente, para mim é uma alegria imensa, porque penso que elas farão um caminho muito bonito de realização pessoal e de realização cristã.

Sou carmelita, mas Teresa é uma mulher da humanidade. Uma das grandes pessoas que Deus deu à humanidade para ajudá-la no caminho da realização.

O que o senhor pensa sobre esse tempo novo na Igreja, de leigos consagrados, Movimentos e Comunidades?

Os leigos são para mim a graça maior no conjunto da Igreja pós-Conciliar. Mas existe uma preocupação acerca da formação desses Movimentos e da sua inserção na Igreja Católica, através da inserção nas Igrejas particulares.

Segundo os nossos místicos, a formação – intelectual, moral e espiritual – é o mais importante para a sobrevivência dos Movimentos e Comunidades. Devem ser livres, ser eles mesmos, buscar a especificidade do seu carisma; e que sejam abertos ao conjunto da Igreja, não se fechando sobre si mesmos; tenham também uma profunda relação com aqueles que chamamos místicos, que ensinam a ter o máximo de carisma e o mínimo de estrutura. Quando a vida é fraca, tendemos a multiplicar as estruturas; quando a vida é rica, não precisamos de tantas estruturas.

O senhor poderia citar três pensamentos de Santa Teresa e de João da Cruz de sua preferência?

De São João da Cruz: "A saúde da pessoa é o amor"; "De Deus alcançamos tudo o que esperamos"; "Com Deus estamos unidos, segundo a nossa fé; quanto mais caímos, mais unidos estamos a Deus".

De Teresa de Jesus: "A amizade é a mais verdadeira realização da pessoa"; "A amizade com Deus e a amizade com os outros é uma mesma coisa, não podemos separar uma da outra"; "Quem ama, faz sempre comunidade; não fica nunca sozinho".

Que mensagem o senhor deixaria aos amigos de Santa Teresa e nosso Internautas?

Uma palavra simples: o amor é visível; podemos ver quando uma pessoa ama, porque se torna aberta aos outros, procura fazer-lhes o bem, é receptiva das experiências e palavras dos outros. Quando alguém descobre que é aberto ao amor, então é amigo de Deus.

Lembro também que, como somos racionais, procuramos conhecer o que vivemos. Então, todos devemos discernir, examinar o nosso relacionamento pessoal com Deus.

Minha vocação é de Deus para os demais!

Não sei com que grau de consciência e segurança confessei a meus pais o desejo de ir para o Seminário Menor, por volta dos 12 anos de idade. O certo é que pouco tempo depois iniciei meu caminho. E o mais certo – porque guardo disto uma viva memória, impressa no mais íntimo de mim – é que considerei sempre como o dia de meu verdadeiro chamado, ou ao menos de minha verdadeira resposta à vocação, um dia de maio, em que diante de uma imagem da Virgem Maria tive a convicção de que só poderia ser carmelita. A decisão foi evidente: o Diretor do Seminário me disse que, se eu não tivesse tão boas notas, já teria me expulsado, "porque era muito rebelde"; no ano seguinte àquela experiência luminosa, recebi um prêmio de bom comportamento.

No noviciado – dos 16 aos 17 anos – minhas experiências levaram-me a uma convicção luminosa e maravilhosa de minha vocação. Lia incansavelmente e possuía notável inclinação para a oração, o que proporcionou nesse período um contato muito pessoal com Teresa e João da Cruz. Conformava-me em experimentar o gosto de estar com eles, de escutá-los no silêncio de minha cela.

Mais tarde tive de dar um salto: por volta de meus 28 anos, redescobri o valor daqueles contatos de juventude com meus pais, Teresa e João, quando vivia bem minha vocação – já no quarto ano de sacerdócio – e uma desafortunada atuação de meus superiores me pôs à beira do precipício. A luz se acendeu em meu interior. Quando me insinuaram – pessoas de cujo amor fraterno não tinha nem tenho dúvida alguma – a saída, surpreendi-me dizendo a mim mesmo: só Teresa e João, meus pais, me dirão a verdade de que necessito.

Devo dizer que jamais me passou pela mente deixar a Ordem e pus-me a dialogar (não simplesmente ler) com eles com muita urgência e paixão. Jamais esquecerei o deleite, o gozo profundo e a luz deslumbrante que – partindo do espírito de meus mestres e amigos – tantas vezes adentraram em meu espírito. Costumo dizer que minha experiência com Teresa e João da Cruz resume-se no seguinte: evangelizaram-me, aproximaram-me do Deus e Pai de Jesus; a misericórdia divina banhou as profundidades do meu ser.

Porque se deu este diálogo tranqüilo, amoroso, orante, estou onde e como estou. Em plena efervescência dos 68 anos, de convulsões profundas, vivendo em uma universidade civil, estudando Filosofia muitas horas por dia. Penso que até a Igreja teria deixado se não houvesse me abrigado à sombra protetora de Teresa e de João da Cruz.

Fonte: comshalom.org