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terça-feira, 17 de novembro de 2009

LIVRO DA VIDA









- CAP 1 A 9

Apresentação

É para mim grande alegria poder apresentar esta nova edição brasileira das Obras de Teresa de Jesus, Doutora da Igreja.

Cada nova edição trata de dar um passo adiante no caminho da exposição dos escritos de uma mulher que imprimiu marca própria na história da humanidade.

Teresa de Jesus não perde atualidade e continua exercendo, em suas obras — fruto de uma experiência de Deus na vida —, um magistério espiritual de primeira grandeza.

Apesar da distância de tempo e lugar, a experiência da de Ávila é iluminadora: por ser experiência evangélica, é capaz de superar as barreiras do tempo e do espaço.

Teresa de Jesus ensina-nos particularmente uma série de atitudes básicas para responder — como ela o fez — ao Senhor da história. Ele, que a interpelou, questiona-nos a nós, os cristãos da América Latina, comprometidos em um trabalho de evangelização libertadora em meio a nossos povos que, apesar de oprimidos, crêem.

Parece-me que Teresa nos ensina especialmente quatro atitudes fundamentais neste momento:

saber responder às interpelações de Deus com discernimento teologal;

saber responder às interpelações de Deus centrando-nos em Cristo;

saber responder às interpelações de Deus em comunhão com a Igreja;

saber responder às interpelações de Deus pelo compromisso de uma esperança ativa.

Necessitamos, primeiramente, de discernimento teologal. Teresa nos ensina a discernir por meio de uma oração comprometida no seguimento de Jesus. Explicando os caminhos do discernimento, ela fixa como centro desse processo a oração, entendida como trato de amizade com Deus e como caminho de amadurecimento e crescimento. A oração exige uma conversão permanente e leva a ter uma “determinação determinada” no seguimento de Jesus, contemplado na história.

A segunda atitude fundamental que a Santa nos ensina no caminho de nossa vida vida é contemplar a humanidade de Jesus. Para Teresa, o lugar central do projeto do Pai é ocupado por Jesus de Nazaré, o Filho de Deus, que assumiu verdadeiramente a aventura humana. Por meio da leitura e meditação do Evangelho, ela descobre a humanidade de Jesus e seu papel central na história da salvação. Situa Cristo em sua vida terrena. Contempla-o como mestre e modelo, como livro vivo, e ressalta que seguir Jesus é partilhar de seu destino. Faz-nos ver que, quando alguém vive “em Cristo”, tem a força de servir a Ele nos irmãos, aceitando os trabalhos e fadigas que isso comporta.

Conhecida e proverbial é a expressão que revela o amor que Teresa de Jesus professou à Igreja: “Por fim, Senhor, morro filha da Igreja”. Em seus escritos, ela convida a viver a atitude fundamental de responder às interpelações de Deus em comunhão com a Igreja. Viveu e morreu a serviço do Povo de Deus, em todas as circunstâncias, inclusive as mais adversas. Sentiu-se sempre filha da Igreja e buscou a ela ser fiel. Escolheu como sinal de santidade autêntica o serviço evangelizador e o amor à Igreja até o fim da vida.

Por fim, a Santa de Ávila indica-nos o caminho do compromisso de uma esperança ativa no cumprimento de nossa missão. Ela enfrentou os trabalhos de revitalizar o Carmelo. Expôs-se à contradição e a todo tipo de dificuldades. Em meio a tudo isso, viveu a certeza da bondade e misericórdia do Senhor como fonte de esperança e de consolo; como impulso para seguir avante, não obstante tudo e todos. Em meio aos atropelos de suas fundações, soube manter o ritmo de seu compromisso e de seu trabalho pessoal mediante uma esperança animada e confiante.

Estou certo de que esta nova edição das Obras completas de Teresa d’Ávila servirá de instrumento para todos os que buscam viver as dimensões de uma espiritualidade cristã encarnada na realidade da América Latina.

Roma, 15 de outubro de 1994

Fr. Camilo Maccise, OCD

Prepósito Geral

Prefácio

Quem é Teresa de Ávila? Uma mulher que fala de Deus. Fala de Deus como de Alguém conhecido. Quem mergulhar na leitura destas suas Obras terá a real impressão de que ela se encontrou com Ele, antes de se pôr a escrever.

Mas nem todos viram a Santa de Ávila por esse prisma, houve quem dissesse tratar-se de uma mulher inquieta, andarilha, desobediente e teimosa, que a título de devoção inventava más doutrinas, andando fora da clausura, contra o que ordenara o Concílio de Trento e os prelados; ensinando como mestra, contra são Paulo, que ordenara às mulheres não ensinar.

Teresa de Ávila teve por inimigos aqueles que viam em nossa monja um perigo permanente: ela se apresentava como modelo de liberdade e de acesa busca do Absoluto, caminheira incansável e defensora da verdade. As ações, palavras e escritos dessa mulher audaciosa perturbaram a tantos, mas iluminaram a muitos outros em seu tempo e ao longo da história. A sua doutrina tornou-se um texto de indiscutível sabedoria, onde todos vão beber com segurança, em busca de uma autêntica experiência de Deus.

Teresa nasceu em 28 de março de 1515, em Ávila, e morreu em 4 de outubro de 1582, em Alba de Tormes. Viveu 67 anos, dos quais apenas vinte de intensa atividade como fundadora, escritora, contemplativa e caminheira de Deus pelas terras da Espanha do século XVI.

Educada com esmero, ouvia nas longas noites invernais, ao calor da lareira, a leitura da vida dos santos mártires, feita por seus pais. Animada por essas leituras, aos 7 anos Teresa sente a necessidade de fugir para a terra dos mouros, com seu irmão, Rodrigo. Fuga frustrada. Mas o ideal da fuga — “quero ver a Deus” — torna-se o seu horizonte de vida.

A morte da mãe, doña Beatriz, provavelmente em 1529, foi uma experiência cruciante, a partir da qual ela decide tomar Nossa Senhora por Mãe. Não obstante, confessa, continuou a viver uma vida medíocre, dedicando-se à leitura de romances de cavalaria, do que se sentiria culpada por muito tempo.

O pai, preocupado com o futuro da filha, decide levá-la para o colégio de Nossa Senhora das Graças (1531), onde Teresa foi recuperando o antigo fervor. A saúde é que se debilita, e Teresa é forçada a deixar o colégio em 1532 e a voltar para casa. Recuperada a saúde, pede ao pai para ingressar no Carmelo da Encarnação em Ávila. A recusa paterna leva-a a tomar uma atitude drástica: no dia 2 de novembro de 1535, junto com seu irmão, Antônio, que queria ser dominicano, foge de casa e é aceita entre as Carmelitas.

Em 1538, abandona o convento para restabelecer-se de uma enfermidade misteriosa que quase a levou à morte. A leitura do famoso livro Abecedário espiritual, do franciscano Francisco de Osuña, será para a jovem madre Teresa o início do despertar espiritual e do amor pela oração. O encontro com as Confissões de Santo Agostinho constituirá também uma retomada da vida de oração, ante a angústia que vai tomando forma em sua vida. Nesse processo, a presença de São Pedro de Alcântara, franciscano austero, um pouco extravagante em penitência, mas possuidor de grande sabedoria, será para a santa auxílio determinante.

A idéia de assumir como projeto de vida a regra primitiva do Carmelo foi se tornando lentamente o ponto de referência para a meditação e vida de Teresa.

No dia 24 de agosto de 1562, ela inicia nova vida no pequeno mosteiro de São José, em Ávila. Um desejo cada vez mais veemente leva Teresa a cuidar da propagação de sua obra. As fundações se sucedem com rapidez. Visões e graças místicas surgem como estímulo à doação integral e à radicalidade na vida de oração.

O sucesso da iniciativa teresiana estende-se de forma providencial e maravilhosa, com o auxílio de São João da Cruz, outro inquieto com a mediocridade do Carmelo. João planejava ir para a Cartuxa, mas Teresa o conquista para sua obra.

O duro período da reforma teresiana encontra madre Teresa atenta aos sinais do Espírito, sempre pronta a trabalhar sem desanimar em favor da obra que iniciara. Nem mesmo o seqüestro e prisão de João da Cruz no cárcere conventual de Toledo abatem o espírito dessa mulher, totalmente entregue à ação de Deus, tornada instrumento em Suas mãos. Ao redor da contemplativa carmelita encontramos um séquito de discípulos que passa a seguir sua doutrina. Assessorada por teólogos, doutos e sábios, consegue fugir à caçada da Inquisição. Problemas internos à reforma dos descalços a preocupam, mas sua personalidade de madre e fundadora não permite que dissensões internas entravem o assentamento da obra.

Teresa, obediente à Igreja, questionadora da Igreja, submissa à autoridade, procura caminhos para levar à frente os desígnios de Deus, defendendo, acima de tudo, a felicidade de ser filha da Igreja. Como tal, falece em 1582.

Com seus escritos, Teresa rompe os limites do mundo dos carmelitas descalços e das monjas carmelitas descalças. Seu nome, sua mensagem ultrapassam a Igreja e conquistam pessoas de todas as raças e religiões, em busca do Infinito e do desejo de Deus.

Não se pode hoje aprofundar o tema da necessidade do encontro do homem com Deus sem recorrer à experiência e doutrina teresianas. Os escritos teresianos se configuram como incomparável fonte de esperança. E Teresa tornou-se mestra e doutora.

O povo, que, com suas intuições, normalmente precede a Igreja, desde o início descobriu em Teresa a mestra dos espirituais. Paulo VI, no dia 27 de setembro de 1970, a proclamou solenemente doutora da Igreja.

A melhor forma de compreender a figura dessa mulher é aproximar-se de seus escritos em atitude de simplicidade, sem esquecer que Madre Teresa fala mais ao coração que à inteligência. A sua afetividade encontra pleno transbordamento no íntimo diálogo com Deus. O método de oração teresiano é o caminho que devemos seguir para obter a água da fonte para regar o jardim de nossa alma.

Nada te turbe,

nada te espante.

Todo se pasa,

Dios no se muda.

La paciencia

todo lo alcanza.

Quien a Dios tiene

nada le falta.

Sólo Dios basta!

Frei Patrício Sciadini, OCD

Introdução geral

Teresa de Ahumada sentiu vocacão literária desde muito cedo. Por volta dos 14 anos, escreveu um pequeno romance de cavalaria para diversão de seus amigos e amigas. Mas sua tarefa de “escritora espiritual” é posterior. Surge ao mesmo tempo de sua chegada ao porto da maturidade humana e cristã e se desenvolve ao compasso de sua atividade de fundadora e reformadora. Começa por volta dos 45 anos, quando ela dá início a seu projeto fundacional do primeiro Carmelo. Termina aos 67 anos, antevéspera de sua morte. Inaugura-se com obras-primas: Vida e Relações e se conclui com uma brilhante narrativa, quase juvenil — a fundação de Burgos —, escrita com pena ágil, em páginas densas e grafia vigorosa.

Teresa é autodidata. Não teve ensino técnico. Toda sua formação foi doméstica, recebida num lar onde as armas e as letras tinham lugar de honra. Leu muito. Quando menina, relatos ingênuos no Flos sanctorum. Mais tarde, em plena adolescência, os enredos fantásticos dos romances de cavalaria. Jovem ainda, encontra-se com as páginas de um escritor de peso: as cartas de São Jerônimo, ante as quais não consegue manter-se neutra. A partir dos 20 anos, suas leituras serão quase exclusivamente religiosas. Tem bom critério de seleção: entusiasmam-na os livros de Padre Granada; lê com gosto os espirituais franciscanos, Osuna, Laredo, Pedro de Alcântara; e livros fundamentais: a Vida de Cristo do cartuxo Ludolfo de Saxônia, traduzida pelo poeta da rainha Isabel, Ambrósio de Montesinos; as Moralia de São Gregório e as Confissões de Santo Agostinho. Este foi quem mais incisivamente marcou o estilo teresiano de pensar e de dizer, combinando o relato, a exposição e o solilóquio. Porém, diferentemente de Santo Agostinho, ela ignorou as regras da retórica, a arte da ênfase, a busca do efeito e o tentar causar impressão.

Ela consegue falar com o leitor, apesar do papel e da pena, como fala com seu grupo de monjas na sala capitular e no recreio, ou como o faz em tantas de suas cartas. E como o faz com Deus, quando interrompe o relato para iniciar o solilóquio.

As primeiras obras

Seus primeiros escritos são autobiográficos. Inicia com três Relações de dimensões reduzidas e culmina com a “relação grande”, o livro de sua Vida. Páginas introspectivas e testemunhais. Com amplo filão de autocrítica e muito espaço para a doxologia: cantar, como na Bíblia, as misericórdias de Deus. Daí provêm os dois planos ocupados pelo relato autobiográfico: um de superfície, suas peripécias humanas e religosas; outro de fundo, o drama inefável de sua experiência mística.

Mais páginas autobiográficas

Por toda a vida, Teresa terá de pagar tributo à necessidade de dirigir-se ao mundo exterior por meio de seus escritos. Escreverá longa série de Relaciones, 67 em nossa edição; muitas das quais se perderam pelo caminho. Não têm unidade, nem se assemelham a um diário reservado para jornadas excepcionais. São antes um florilégio de peças esparsas, de tom e dimensões variados, algumas delas com não mais de três linhas. Em geral, intimistas ou de conteúdo muito reservado; para ela apenas ou para o confessor. Uma delas (R. 4), dirigida a um censor da Inquisição, chega a ser impessoal e protocolar. A última (R, 67) é testamento e profecia para seus frades carmelitas.

Pedagogia e mistagogia

Duas obras maiores preenchem o espaço central do magistério teresiano: o Caminho de perfeição e o Castelo interior, obras de formação espiritual para suas monjas. Todavia, para Madrre Teresa, “ensinar”, longe de teorizar, é transmitir convicções e comunicar experiências.

No Caminho dará indicações para a prática da vida cristã na consagração religiosa e no ideal do Carmelo. No Castelo, propor-se-á chegar ao mais profun­do do mistério cristão e acenar para o pleno desenvolvimento da vida interior.

Ela ensina comprometendo-se pessoalmente: o que ela viveu é suporte do que propõe; o leitor saberá como pensa e vive a autora, como ora, que se pas­sa entre ela e Deus, entre ela e os demais. E se sentirá pessoalmente atin­gido, interpelado, chamado. Não será fácil seguir indiferente ao testemunho espiritual dessa mulher ou impedir que adentre o próprio espaço interior.

Narrativa

Um livro dedicado a contar a história de suas fundações: viagens, peripécias, êxitos. É o Livro das Fundações. Ela o escreveu enquanto viajava. Na Vida, narrara a fundação de São José de Ávila (caps. 32-36; ano de 1565). Abre o novo relato em 1573, quando já fundara outros sete Carmelos (Medina, Malagón, Valladolid, Toledo, Pastrana, Salamanca, Alba de Tormes), além do de Duruelo por meio dos padres Antônio e João da Cruz. Reinicia várias vezes a narração, à medida que as fundações prosseguem. Leva o manuscrito a Burgos, e ali mesmo escreve o último episódio, com muita vivacidade, pouco antes de empreender a última viagem (1582).

A Santa se propõe fazer história e não lenda piedosa. Mas a seu modo. Não só inclui excertos de sua vida mística em pleno relato familiar ou humorístico, como interrompe de vez em quando a narração — como quando seu carro de fundações é forçado a parar no caminho — para conversar sobre o tema de sempre: o espiritual, conselhos às prioras, estímulo à obediência, oração e amor fraterno, advertências sobre a melancolia…

Duas pequenas obras de governo

Para o Carmelo de São José de Ávila escreve as Constituições, que depois retoca e destina a todos os seus conventos. Ao lado delas, há que situar um escrito íntimo: Modo de visitar os conventos, sugestões enviadas ao prelado (Padre Gracián), pensando na visita canônica dos Carmelos. No novo estilo de vida religiosa por ela implantado — suavidade, oração, amor, experiência de Deus… —, a visita canônica vem a ser o momento excepcional de tensão e revisão de vida. É quando ela indica a Gracián como quer que os reverendos prelados puxem os fios sem cortá-los.

Obras menores e escritos esparsos

Entre as composições da Santa, há duas menos afortunadas: umas elevações sobre “motivos” seletos do Cântico dos Cânticos, editadas pelo Padre Gracián com o título barroco de Conceitos do amor de Deus, mas que já antes haviam sido objeto da hostilidade de um teólogo censor. Terminada a redação, a própria autora lançou o autógrafo ao fogo, quando Padre Yanguas desaprovou que “uma mulher ousasse comentar o Cântico Bíblico”. Também perdemos o autógrafo de uma série de solilóquios teresianos, publicados por frei Luis de León sob o título de Exclamações. Entre os escritos esparsos da Santa, há duas peças de qualidade: o Vexame e a Resposta a um desafio.

O primeiro é um escrito espiritual, crítico e humorístico, que ousa atribuir es­pi­ritualismo excessivo a São João da Cruz. A Resposta, porém, é uma espécie de retorno ao divino dos torneios da época e dos desafios dos livros de cavalaria, mas com uma lição espiritual plena de colorido e autenticidade. A Santa deixou mais papéis esparsos, que figuravam ou como registro de algum fato em seu breviário ou recordavam um dado de interesse pessoal. São poucos, mas nunca insignificantes. Arquivados nos Carmelos primitivos, há ainda cadernos de outro tipo: “livros de tombo”, “contratos de fundação”, cadernetas de “compras e gastos”.

Poesias

Teresa não era poeta, mas às vezes via-se levada a compor “de repente versos muito sentidos”; o mesmo que lhe ocorria com a música: não tinha afinação, mas caía em êxtase ouvindo por exemplo irmã Isabel de Jesus cantar. Entre seus poemas, há alguns compostos sob a pressão das graças místicas: “Vivo sem viver em mim”, “Oh formosura que excedeis”; há cançonetas para cantar e dançar nas festas de Natal e uma série de composições festivas, para celebrar tomadas de véu, profissão de votos e procissões caseiras.

Autógrafos e difusão

Madre Teresa não fez seus escritos para a imprensa, mas para uso doméstico. Graças a isso seus autógrafos não caíram em mãos de tipógrafos, podendo assim chegar quase íntegros até nós. Nenhum outro escritor clássico teve tanta sorte. Nem mesmo Leonardo da Vinci.

Depois de sua morte, um egrégio mecenas, Filipe II, reclamou seus autógrafos para a Biblioteca do Escorial. Padre Doria conseguiu reunir uns quantos: a Vida, o Caminho (primeira redação), as Fundações e o Modo de visitar os conventos, e o Rei os integrou aos presumidos autógrafos de dois escritores fundamentais — São João Crisóstomo e Santo Agostinho. Em que pesem quatro séculos de guerras e deportações, esses quatro autógrafos teresianos permanecem no Escorial.

O autógrafo do Castelo interior se conserva nas Carmelitas Descalças de Sevilha e o do Caminho de perfeição (segunda redação) nas Carmelitas de Valladolid, em excelente estado de conservação. Dispersos pelo mundo inteiro, conservam-se quase duzentos autógrafos menores: cartas, relações, memoriais… Os mais numerosos encontram-se na Espanha, Portugal e Itália; em menor escala, encontram-se autógrafos na França, Bélgica, Polônia, Áustria, Inglaterra, México, Cuba, Equador, Peru e Chile.

O primeiro editor das “Obras” da Santa foi frei Luis de Léon. Precederam-no Padre Gracián (Constituciones, Alcalá 1581), D. Teutônio (Caminho, Évora 1583), outra vez Padre Gracián (Camino, Salamanca 1585), São João de Ribera (?) (Camino, Valência 1586). Mas Frei Luis responsabilizou-se pelas “obras completas”: Vida e Relações, Caminho e Avisos (sendo estes espúrios), Castelo e Exclamações. Foram impressos em dois tomos por Guillermo Fóquel, em Salamanca 1588. No mesmo ano e com o mesmo texto de frei Luis, Jayme Cendrat publicava as Obras completas em Barcelona, reeditando-as em Salamanca no ano seguinte. Os quatro séculos seguintes vêem manter-se esse ritmo inicial, ano após ano, com leves oscilações.

Fora da Espanha, a difusão das obras da Santa tem início ainda no século XVI na Itália: Vita della M. Teresa… tradotta dal R. Mons. Giovanni Bordini… in Roma appresso Guglielmo Facciotto, 1599. Depois na França (Paris, chez Guillaume de la Nouë, 1601), com tradutores de grande fôlego: J. de Brétigny y Quintanadueñas, Cipriano de la Natividad, Arnaldo d’Andilly. O processo de difusão continua em latim (edições de Mogúncia, Roma, Colônia, Antuérpia, Colônia outra vez, todas no primeiro terço do século XVII) e nas principais línguas européias, atingindo hoje as línguas africanas e asiáticas.

A Argentina e o México foram na América os dois focos de mais intensa difusão. Recorde-se que “o primeiro impresso de Buenos Aires — 1780” foi uma “Letrilla que llevaba por registro em su Beviario la Seráfica Madre Santa Teresa de Jesús: Nada te turbe, nada te espante”.

Unidade orgânica da mensagem

Todos os escritos teresianos são ocasionais, não obedecem a um plano prévio nem se voltam para um mesmo objetivo. Têm destinatários sumamente diversos: o livro de sua Vida, um cenáculo de leitores íntimos; as Relações, uma série de diretores espirituais: Ibáñez, Gracián, Rodrigo Alvarez, Alonso Velázquez e talvez, no caso de algumas delas, frei João da Cruz; o Caminho, o Castelo e as Fundações, suas monjas. Mas em que pese essa desarticulação, trata-se na realidade de peças unidas entre si, que oferecem ao leitor uma mensagem única.

O ponto de partida é a experiência vivida pela Autora. Ela fala da cátedra de sua vida, testemunhando (obras autobiográficas). Sua lição doutrinal deriva da experiência: indicações ascéticas paa encaminhar-se à fonte de água viva (Caminho) e convite a entrar no profundo da alma e preparar-se para a celebração nupcial da união mística com Deus (Castelo). Por fim, um terceiro bloco de escritos reflete e acompanha a vida (Fundações).

Uma idéia de conjunto dos escritos teresianos está no quadro sinótico abaixo:

Plano da experiência:

Vida (1565). Relações (1560-1581)

Mensagem ascética:

Caminho de perfeição (1566); Constituições (1567-1581); Modo de visitar os conventos (1576)

Ensinamento místico:

Castelo interior (1577); Exclamações; Conceitos de amor de Deus

Comunhão e vida de grupo:

Fundações (1537-1582); Epistolário; Poesias

Escritos humorísticos:

Vexame; Desafio

Nossa edição

Publicamos as obras e os escritos menores. Na apresentação dos textos, adotamos os critérios do Padre Silverio de Santa Teresa, cuja edição crítica fixou o que se pode chamar de “textus receptus”, especialmente no que concerne à numeração interna a cada capítulo. Revisamos a leitura e pontuação (é de todos sabido que a Santa emprega um sistema ortográfico original, muito sóbrio em parágrafos e pontuação). Em notas de rodapé, procuramos registrar dados úteis para a compreensão do texto e o estudo da doutrina teresiana. Demos especial atenção à indicação dos lugares paralelos aos quais a Autora se refere sem remissão.

A cada obra, antepusemos uma breve introdução histórica e doutrinal.

Apresentamos as obras da Santa na seguinte ordem:

— Obras maiores

1. Vida; 2. Caminho de perfeição; 3. Castelo interior; 4. Livro das Fundações

— Obras menores

5. Relações; 6. Conceitos do amor de Deus; 7. Exclamações; 8. Constituições; 9. Modo de visitar os conventos; 10. Vexame e Resposta a um desafio; 11. Poesias; 12. Notas, pensamentos, memoriais.

Devemos agradecer à Serva de Deus, madre Maria José de Jesus (Honorina Capistrano de Abreu), monja carmelita descalça do mosteiro de Santa Teresa no Rio de Janeiro, o ter traduzido pela primeira vez no Brasil as Obras completas de Santa Teresa.

Sua tradução foi feita com todo o esmero, mas o decorrer dos anos mostrou-nos a necessidade de uma nova tradução, fiel ao texto original, mas mais ágil, mais próxima da atual forma brasileira de expressar-se.

A longa e profunda amizade do Carmelo com Pe. Gabriel Galache, SJ, diretor das Edições Loyola, proporciona agora ao público brasileiro uma nova tradução das Obras completas, para a qual se utilizou o texto do nosso amigo e mestre Frei Tomás Alvarez, OCD, o melhor existente no mundo.

As Obras completas de Santa Teresa serão, sem dúvida, um instrumento de trabalho para os estudiosos e um meio eficaz de meditação para os que querem mergulhar na experiência e conhecimento vivo do Deus-amor.

Para obra poética, mantivemos a tradução de madre Maria José de Deus. Grande poetisa, ela contou com a assistência de Manuel Bandeira para o estabelecimento do texto brasileiro.

Cronologia

1515 28 de março: nasce Teresa de Ahumada em ávila; 4 de abril: batismo

1519 nasce seu irmão, Lourenço

1520 nasce seu irmão, Antônio

1521 nasce seu irmão, Pedro

1522 (?) foge com Rodrigo para a terra dos mouros: nasce seu irmão, Jerônimo

1527 nasce seu irmão, Agostinho

1528 novembro/dezembro: falece sua mãe, doña Beatriz

1531 (?) casamento de sua irmã mais velha, Maria, com Martin de B.; entra em Santa Maria da Graça

1533 (?) convalescente em Hortigosa y Castellanos de la Cañada

1534-35 partem para a América Hernando (Peru) e Rodrigo (Rio da Prata)

1535 2 de novembro: foge de casa para a Encarnação

1536 2 de novembro: toma o hábito

1537 3 de novembro: professa como carmelita no convento da Encarnação

1538 outono: sai enferma do convento da Encarnação. Lê o Tercer abecedario

1539 primavera: em Becedas; 15 de agosto: colapso de quatro dias na casa paterna; regressa ao convento da Encarnação; paralítica durante “quase três anos”

1542 curada, abandona a oração

1543 24-25 de dezembro: morre seu pai, don. Alonso; à época, Pe. Vicente Barrón é seu diretor espiritual

1546 18 de janeiro: batalha de Iñaquito; morre seu irmão, Antônio, devido aos ferimentos

1548 verão: peregrina ao santuário de Guadalupe

1554 quaresma (?): converte-se perante um Cristo chagado

1554-55 primeiros confessores jesuítas (Cetina, Prádanos)

1556 confessor: Pe. Baltasar Alvarez

1557 colóquio com São Francisco de Borja

1559 “Eu te darei o livro vivo”: visões de Jesus Cristo

1559-60 visão do inferno; projeto de fundação do convento São José; encontro com São Pedro de Alcântara; escreve a primeira Relação

1561 trâmites para a fundação; 24 de dezembro: ordem de mudar-se para Toledo para a casa de doña Luisa de la Cerda

1562 janeiro-junho em Toledo; 7 de fevereiro: rescrito apostólico autorizando a fundação; junho: conclui a primeira redação da Vida; 24 de agosto: inaugura a fundação do convento São José

1563 priora do convento São José

1564 21 de outubro: primeiras profissões no convento São José

1565 17 de julho: bula de Pio IV, pobreza do novo Carmelo

1566 redige Caminho de Perfeição; agosto(?): visita do Pe. Maldonado, misionário na Índia

1567 18 de fevereiro: Rubeo inicia a visita ao Carmelo de Ávila; 27 de abril: Rubeo concede-lhe autorização para fundar; 13 de agosto: sai para a fundação de Medina

1568 abril: fundação de Malagón; 9 de agosto: de Medina a Valladolid, com frei João da Cruz; 15 de agosto: fundação do Carmelo de Valladolid; 28 de novembro: fundação dos frades descalços em Duruelo

1569 14 de maio: fundação do convento de Toledo; 22 de junho: fundação do convento das monjas em Pastrana; 26 de agosto: nomeação de visitadores dominicanos

1570 1º de novembro: fundação em Salamanca

1571 25 de janeiro: fundação de Alba de Tormes; 6 de outubro: priora do convento da Encarnação, em Ávila

1572 no final: escreve Resposta a um desafio; 18 de novembro: graça do matrimônio espiritual

1573 25 de agosto: começa a redação das Fundações em Salamanca

1574 março: viaja de Alba para Segóvia com João da Cruz; 19 de março: fundação de Segóvia; 7 de abril: chega a Segóvia a comunidade de Pastrana; 6 de outubro: termina no convento da Encarnação o seu mandato de priora; regresso a São José de Ávila

1575 24 de fevereiro: fundação de Beas; abril-maio: encontro com Gracián em Beas; 29 de maio: fundação de Sevilha; julho: Inquisi­ção toma o autógrafo de Vida; 12 de agosto: chega da América à Espanha Lourenço de Cepeda; denunciada à Inquisição de Sevilha

1576 4 de junho: viaja de Sevilha a Toledo; verão: escreve Modo de visitar os Conventos

1577 janeiro-fevereiro: episódio do Vejámen; 2 de junho: começa a escre­ver o Castelo interior; 27 de julho: em Ávila, o Carmelo de São José passa à jurisidição da Ordem; 29 de novembro: conclui o Castelo interior; 24 de dezembro: cai da escada e desloca o braço esquerdo

1578 em Ávila, chegam os Breves condenatórios de Sega (23 de julho-20 de dezembro)

1579 6 de junho: Quatro avisos aos Descalços; viaja a Medina, Valladolid, Salamanca, Alba, Ávila, Toledo e Malagón; 24 de novembro: chega a Malagón

1580 fevereiro: funda em Villanueva de la Jara. Viaja de Villanueva a Toledo, Madrid, Segóvia; 22 de junho: Breve de separação dos Descalços; 26 de junho: morre seu irmão, Lourenço, em La Serna; agosto: gravemente enferma em Valladolid; 20 de dezembro: fundação de Palencia

1581 3 de março: capítulo de Alcalá; escreve a Relação 6; 3 de junho: fundação de Soria; viaja para Soria, Osma, Villacastin, Ávila; 10 de setembro: priora no convento São José de Ávila

1582 janeiro: sofrida viagem de Ávila a Burgos; 20 de janeiro: São João da Cruz e Ana de Jesus fundam em Granada; abril: sai a primeira expedição de carmelitas missionários para a África; 19 de abril: fundação de Burgos; 26 de julho: deixa Burgos; viagem para Palencia, Valadolid, Medina, Alba de Tormes; 20 de setembro: chega a Alba de Tormes, enferma; 4 de outubro: morre em Alba de Tormes

Livro da Vida

JHS

1. Quisera eu que, assim como me mandaram e deram ampla licença para escrever o modo de oração e as mercês que o Senhor me tem concedido, também ma dessem para que, com muita freqüência e clareza, dissesse os meus grandes pecados e vida ruim; isso seria para mim grande consolo. Mas não quiseram e, antes, preferiram que a isso me restringisse. E por isso peço, por amor de Deus, que quem ler este relato da minha vida tenha diante dos olhos que fui tão ruim que não encontro santo dentre os que voltaram para Deus com quem me consolar. Porque considero que depois de o Senhor os ter chamado, não O tornavam a ofender. Eu não só voltava a ser pior, como parecia estudar a maneira de resistir às mercês que Sua Majestade me concedia, como quem se visse obrigado a servir mais e percebesse não ser capaz de pagar parte mínima do que devia.

2. Bendito seja Ele para sempre, que tanto me esperou; e, com todo o meu coração, suplico me dê graça para, com toda clareza e verdade, fazer este relato que meus confessores me mandam. Que o Senhor o quer, eu o sei há muitos dias, mas não me atrevi; e que seja para glória e louvor Seu e para que, doravante, conhecendo-me eles melhor, ajudem-me na minha fraqueza para que eu possa compensar algo do que devo ao Senhor, a Quem sempre devem louvar todas as coisas. Amém.

Capítulo 1

Trata de como o Senhor começou a despertar a sua alma na infância para as coisas virtuosas e de quanto contribui para isso serem os pais virtuosos.

1. Não fosse eu tão ruim, bastaria ter pais virtuosos e tementes a Deus como favor do Senhor para que fosse boa.1 Meu pai gostava de ler bons livros e os tinha em vernáculo para que seus filhos os lessem. E isso,2 ao lado do cuidado de minha mãe em fazer-nos rezar e ter devoção por Nossa Senhora e por alguns santos, começou a despertar-me com a idade de, ao que me parece, seis ou sete anos. Ajudava-me não ver em meus pais inclinação senão para a virtude. Tinham muitas.

Meu pai era homem muito caridoso com os pobres e piedoso com os enfermos e até com os criados; tanto que jamais se pôde conseguir que tivesse escravos,3 porque tinha deles grande dó. Estando certa vez uma escrava de um seu irmão em sua casa, ele a tratava como a seus filhos. Dizia que o fato de não ser ela livre em nada prejudicava a sua piedade. Era muito sincero. Ninguém jamais o viu praguejar ou murmurar. Era de extrema honestidade.

2. Minha mãe também tinha muitas virtudes e passou a vida com grandes enfermidades. Grandíssima honestidade. Embora muito bela, nunca deu ensejo a que se pensasse ser ela vaidosa, porque, apesar de morrer aos trinta e três anos, seu traje já era o de uma pessoa de muita idade. Muito pacífica e de grande entendimento. Foram enormes os trabalhos por que passou enquanto viveu. Morreu muito cristãmente.

3. Éramos três irmãs e nove irmãos. Pela bondade de Deus, todos se pareciam com os pais na virtude, menos eu, embora fosse a mais querida de meu pai. E, antes de começar a ofender a Deus, parece que eu tinha alguma razão para isso; porque me lastimo quando me recordo das boas inclinações que o Senhor me dava e de quão mal delas tirei proveito.

4. Pois os meus irmãos em nada me prejudicavam no servir a Deus.4 Um deles, quase da minha idade, juntava-se a mim na leitura da vida dos santos (ele era aquele a quem eu mais queria, embora tivesse grande amor por todos, e eles por mim). Como via os martírios que as santas passavam por Deus, parecia-me que pagavam muito pouco o gozo de Deus, e eu desejava muito morrer assim, não pelo amor que achava ter por Ele, mas para gozar, tão cedo, dos grandes bens que lia haver no céu; e, com esse meu irmão, discutia o meio que haveria para isso. Combinávamos ir para a terra dos mouros, pedindo pelo amor de Deus que nos decapitassem. E parece-me que o Senhor nos daria ânimo em tão tenra idade se víssemos algum meio, mas o fato de ter pais nos parecia o maior problema.5

Espantava-nos muito a afirmação, no que líamos, de que a pena e a glória eram para sempre. Ocorria de passarmos muito tempo tratando disso e nos agradava dizer muitas vezes: para sempre, sempre, sempre! Por dizer isso muito devagar, ficava impresso em mim, em tão tenra idade, o caminho da verdade — com que o Senhor era servido.

5. Quando vi ser impossível ir aonde me matassem por Deus, resolvemos ser eremitas; e, numa horta que havia na casa, tentávamos, como podíamos, fazer ermidas, amontoando pedregulhos, que logo vinham abaixo. E assim em nada achávamos remédio para nosso desejo; como se reforça agora a minha devoção ver que Deus me dava tão cedo o que perdi por minha culpa.

6. Eu dava esmola como podia, e pouco podia. Procurava a solidão para rezar as minhas devoções, que eram muitas, em especial o rosário, de que a minha mãe era muito devota, e, assim, nos fazia sê-lo. Gostava muito, quando brincava com outras meninas, de fazer mosteiros, como se fôssemos monjas; e parece-me que eu desejava sê-lo, embora não tanto quanto as outras coisas de que falei.

7. Recordo-me de que, quando minha mãe morreu, eu tinha doze anos, ou um pouco menos.6 Quando comecei a perceber o que havia perdido, ia aflita a uma imagem de Nossa Senhora e suplicava-lhe, com muitas lágrimas, que fosse ela a minha mãe. Parece-me que, embora o fizesse com simplicidade, isso me tem valido; porque reconhecidamente tenho encontrado essa Virgem soberana sempre que me encomendo a ela e, enfim, voltou a atrair-me a si.7 Incomoda-me agora ver e pensar no motivo por que não me mantive íntegra nos bons desejos com que comecei.

8. Ó Senhor meu! Como pareceis ter determinado que eu me salve, praza a Vossa Majestade que assim seja; e, concedendo-me tantas mercês como me tendes concedido, não teríeis podido fazer que, não para meu proveito mas por respeito a Vós, não se sujasse tanto a pousada onde com tanta freqüência haveríeis de morar? Aflige-me, Senhor, até dizer isso, pois sei que foi minha toda a culpa; porque não me parece que vos faltasse desvelo para levar-me, desde essa idade, a ser toda Vossa. Quanto a queixar-me de meus pais, tampouco posso, porque não via neles senão todo bem e cuidado pelo meu bem.

Porque, depois dessa idade, em que comecei a entender as graças de natureza que o Senhor me dera — que, segundo diziam, eram muitas — e, devendo começar a dar graças por elas, passei a me utilizar de todas para ofendê-Lo, como agora direi.

Capítulo 2

Trata de como foi perdendo essas virtudes e de quanto importa, na infância, tratar com pessoas virtuosas.

1. Parece-me que começou a me prejudicar muito o que agora vou dizer. Considero algumas vezes o mal que fazem os pais em não procurar que seus filhos vejam sempre, e de todas as maneiras, coisas virtuosas. Porque, sendo minha mãe, como eu disse,1 tão virtuosa, ao chegar ao uso da razão não aproveitei tanto do bem, enquanto o mal muitos prejuízos me trouxe. Ela gostava de livros de cavalaria,2 e esse passatempo não lhe fazia tão mal quanto a mim, porque ela não deixava seu labor, somente nos dando liberdade para lê-los. E é possível que o fizesse para não pensar nos grandes sofrimentos que tinha, e para ocupar seus filhos, evitando que se perdessem em outras coisas. Isso pesava tanto a meu pai, que era preciso ter cuidado para que ele não o visse. Acostumei-me a lê-los; e aquela pequena falta que nela eu via fez esfriar em mim os desejos, levando-me a me descuidar das outras coisas; e não me parecia ruim passar muitas horas do dia e da noite em exercício tão vão, escondida de meu pai. Era tamanha a minha absorção que, se não tivesse um livro novo, em mais nada encontrava contentamento.

2. Comecei a enfeitar-me e a querer agradar com a boa aparência, a cuidar muito das mãos e dos cabelos, usando perfumes e entregando-me a todas as vaidades. E eram muitas as vaidades, porque eu era muito exigente.3 Não tinha má intenção, não desejava que alguém ofendesse a Deus por minha causa. Durou muitos anos esse requinte demasiado, ao lado de outras coisas que não me pareciam pecado. E agora vejo que mal deviam trazer.

Alguns primos irmãos meus4 eram os únicos a freqüentar a nossa casa, porque o meu pai era muito recatado; e quisera Deus que também o tivesse sido com esses, pois agora percebo o perigo que vem do contato, na idade em que se deve começar a ter virtudes, com pessoas que, não reconhecendo a vaidade do mundo, nos atraem para ela. Meus primos eram quase da minha idade, sendo pouco mais velhos que eu. Andávamos sempre juntos. Eles gos­tavam muito de mim, e conversávamos sobre todas as coisas que lhes davam prazer. Eu os ouvia falar de suas aspirações e leviandades, que nada tinham de boas. Pior ainda foi que a minha alma começou a não resistir ao que lhe causava todo o mal.

3. Se eu tivesse de aconselhar, diria aos pais para se acautelarem com as pessoas que têm contato com seus filhos nessa idade. É grande o perigo, já que a nossa natureza tende mais para o mal do que para o bem.

Foi o que aconteceu comigo. Eu tinha uma irmã mais velha do que eu,5 e não aprendi nada com a sua grande honestidade e bondade, mas assimilei todo o mal de uma parenta que freqüentava muito a nossa casa. Sua grande levian­dade levara minha mãe a se esforçar muito para afastá-la de casa; ela parecia adivinhar o prejuízo que, me sobreviria, e eram tantas as oportunidades de vi­sitas que minha mãe nada pôde fazer. Passei a gostar dessa parenta. Com ela tinha conversas e entretenimentos, porque ela me ajudava em todas as di­versões do meu agrado e até me atraía para elas, tornando-me ainda confi­dente de suas conversas e vaidades. Até o momento em que com ela convivi, por volta dos meus catorze anos, ou um pouco mais (quando ela era minha amiga e eu ouvia as suas co­n­fi­dên­cias), não creio ter me afastado de Deus por algum pecado mortal nem perdi­do o temor d’Ele, embora fosse mais forte o sentimento da honra. Este foi forte o bastante para que eu não a perdesse de todo; e tenho a impressão de que nada neste mundo poderia me fazer mudar nesse aspecto, nem o amor de ne­nhuma pessoa era capaz de me fazer fraquejar quanto a isso. Teria sido muito melhor se eu tivesse usado essa força para não ofender a honra de Deus, em vez de empregar tanto esforço em não fracassar no que considerava a honra do mundo! E, no entanto, eu a perdia de tantas outras maneiras!

4. Eu exagerava nesse inútil apego à honra. Não empregava os meios necessários para conservá-la, preocupando-me apenas em não me perder por inteiro.

Meu pai e minha irmã tinham muito desgosto com essa amizade, repreen­dendo-me freqüentemente por mantê-la. Como não podiam evitar que a parenta fosse à nossa casa, foram inúteis os seus esforços, pois era grande minha esperteza para o mal. Às vezes, o prejuízo que vem das más companhias me causa espanto e, se não tivesse passado por isso, não poderia acreditar; especialmente na época da mocidade, deve ser maior o mal que isso traz. Eu gostaria que os pais, com o meu exemplo, se acautelassem e observas­sem bem isso. A verdade é que essa amizade me transformou a tal ponto que quase nada restou da minha inclinação natural para a virtude; e me parece que ela e outra moça, que gostava do mesmo tipo de passatempo, imprimiam em mim seus hábitos.

5. Isso me faz entender o enorme proveito que vem da boa companhia, e estou certa de que, se naquela idade tivesse tido contato com pessoas vir­tuosas, a minha virtude teria se mantido intacta; porque, se tivesse tido, nes­sa idade, pessoas que me ensinassem a temer a Deus, a minha alma teria se fortalecido contra a queda. Tendo perdido esse temor de Deus, ficou-me ape­nas o de perder a honra, o que, em tudo o que eu fazia, me trazia aflição. Pensando que não se teria como descobrir, atrevi-me a fazer coisas contra a honra e contra Deus.

6. Foram essas coisas que, em princípio, me fizeram mal, e creio que a culpa não devia ser dessa parenta, mas minha, visto que já bastava minha própria inclinação pa­ra o mal; havia na casa criadas, que em tudo me ajudavam em minhas vai­dades; se alguma me tivesse dado bons conselhos, talvez eu tivesse aprovei­tado. Mas dominava-as o interesse; e a mim, a afeição. Eu não me entregava a pecados graves, porque não gostava, por natureza, de coisas desonestas, mas me dedicava a conversas agradáveis — o que não impedia que eu estivesse em perigo, exposta a situações arriscadas, expondo a elas também meu pai e meus irmãos. De tudo isso Deus me livrou, e de um modo que mostrou com clareza estar Ele procurando, até contra a minha vontade, evitar que eu me perdesse por inteiro. Mas o meu proceder não permaneceu tão oculto a ponto de não lançar dúvidas contra a minha honra e criar suspeitas em meu pai. Eu estava envolvida nessas vaidades há uns três meses, quando me levaram a um mosteiro existente no lugar;6 nele, criavam--se pessoas em condições semelhantes, embora não de costumes tão ruins quanto os meus; e isso de maneira tão discreta, que só eu e um parente o soubemos. Dessa maneira, esperaram uma ocasião adequada, que não parecesse estranha: foi o casamento da minha irmã, que me deixou só, sem mãe, o que não parecia próprio.7

7. Era tão grande o amor de meu pai por mim, e tanta a minha dissimulação, que ele não acreditava que eu fosse tão má, razão por que não perdeu a confiança em mim. Como o período dessas minhas leviandades foi curto, embora alguma coisa tivesse sido percebida, nada se podia dizer com certeza; com o grande cuidado que eu tinha para que nada se soubesse, visto que temia tanto pela minha honra, eu não via que não podia ocultar algo de quem tudo vê. Ó Deus! Que mal faz ao mundo não se levar isso em conta e pensar que alguma coisa contra Vós possa ser secreta! Estou certa de que muitos males seriam evitados se soubéssemos que o importante não é nos ocultar dos homens, mas evitar descontentar a Vós.

8. Os primeiros oito dias foram dolorosos, e mais por eu temer que minha vaidade tivesse sido divulgada do que por estar ali. Na época, eu já estava cansada e passara a temer muito a Deus quando o ofendia, procurando confessar-me tão logo pudesse. Isso me causava tanto desassossego que, depois de oito dias no mosteiro, talvez antes, eu estava muito mais feliz que na casa de meu pai. Todas estavam satisfeitas comigo, pois o Senhor me concedeu a graça de agradar a todos onde quer que eu estivesse, sendo assim muito querida. Naquele tempo, desgostava-me a idéia de tornar-me monja; apesar disso, eu apreciava ver as boas religiosas daquela casa, muito honestas, fervorosas e recatadas. E, no entanto, isso não impedia o demônio de me tentar nem as pessoas de fora de me desassossegar com recados. Como, porém, eu os desencorajasse, breve tudo teve fim. Minha alma reencontrou o bem de minha meninice, e vi o grande favor que Deus concede a quem põe em companhia dos bons. Creio que Ele buscava incessantemente a melhor maneira de me trazer a Si. Bendito sejais, Senhor, que tanto sofrestes por mim! Amém.

9. Havia algo que, não fossem tantas as minhas culpas, talvez pudesse me desculpar: minhas amizades podiam acabar bem, resultando em casamento. Meu confessor e outras pessoas que me aconselhavam diziam que muitas coisas que eu fazia não eram contrárias a Deus.

10. Em nosso dormitório de educandas dormia uma monja8 por meio da qual o Senhor quis, ao que parece, começar a iluminar-me; falarei disso agora.

Capítulo 3

Trata de como a boa companhia serviu para reavivar seus desejos e de como o Senhor começou a dar-lhe algum conhecimento sobre o engano pelo qual se deixara atrair

1. Comecei a gostar da boa e santa conversa dessa monja, agradando-me ouvi-la falar tão bem de Deus. Ela era muito discreta e virtuosa. Em nenhum momento, penso eu, perdi o prazer de ouvir essas coisas. Ela me contou que decidira ser monja apenas por ter lido as palavras do Evangelho: Muitos são os chamados e poucos os escolhidos.1 Ela me falava da recompensa dada pelo Senhor a quem deixa tudo por Ele. Essa boa companhia foi dissipando os hábitos que a má tinha criado, elevando o meu pensamento no desejo das coisas eternas e reduzindo um pouco a imensa aversão que sentia por ser monja. Eu tinha muita inveja quando via alguma monja chorar ao rezar ou praticar outras virtudes. Nesse período, meu coração era tão duro que a leitura de toda a Paixão não arrancaria de mim uma lágrima, o que me deixava muito pesarosa.

2. Fiquei nesse mosteiro um ano e meio, tendo melhorado muito. Comecei a fazer muitas orações vocais e a pedir a todos que me encomendassem a Deus, para que Ele me indicasse o caminho em que melhor o servisse. Eu queria, no entanto, que não fosse como monja, que Deus não me desse esse desejo, muito embora temesse o casamento.

Ao final do tempo que ali passei, já aceitava mais a condição de monja, mas não naquele lugar, porque havia ali algumas práticas virtuosas que me pareciam exageradas. Algumas das colegas mais novas eram também dessa opinião. Teria sido muito bom se todas pensassem igual. Além disso, eu tinha uma grande amiga2 em outro mosteiro e decidira ser monja, se isso tivesse de acontecer, apenas onde ela estivesse. Eu me entregava mais ao que agrada­va à minha sensualidade3 e vaidade do que àquilo que era para o bem da minha alma. Tinha algumas vezes bons pensamentos de dedicar-me a Deus, mas estes logo passavam, e eu não me convencia a fazê-lo.

3. Nessa época, embora não me dedicasse à minha salvação, o Senhor cuidava mais de mim, encaminhando-me para o estado que mais me servia. Ele me deu uma grave doença, que me fez voltar para a companhia de meu pai. Curada, fui levada à casa de minha irmã, que morava numa aldeia,4 para fazer-lhe uma visita. Era muito grande o seu amor por mim e, por sua vontade, eu nunca deixaria a sua companhia. Seu marido compartilhava disso; pelo menos demonstrava-me grande afeição. Uma das grandes graças que devo ao Senhor é ter sido querida em todo lugar em que estive, e eu em troca o servia sendo o que sou.

4. Um irmão de meu pai morava no caminho. Pessoa muito experiente, muito virtuosa, viúvo, ele estava sendo preparado pelo Senhor para o Seu serviço. Tendo deixado tudo o que tinha em idade avançada, abraçou a vida religiosa e morreu em tamanha santidade que deve estar na companhia de Deus.5 A pedido seu, detive-me com ele alguns dias. Ele costumava dedicar--se à leitura de bons livros em castelhano e de modo geral falava sobre Deus e a vaidade do mundo. Meu tio fazia-me lê-los e, embora não me agradassem esses livros, eu mostrava que sim; porque, no tocante a dar prazer aos outros, mesmo que me custasse sacrifícios, eu me esforçava muito. E a tal ponto que em outras pessoas teria sido uma virtude, enquanto em mim era, reconheço, enorme defeito, visto agir muitas vezes sem discrição.

Valha-me Deus! De que maneira Sua Majestade dispunha de mim para a condição em que quis se servir de mim! Sem que eu o quisesse, obrigou--me a me fortalecer! Bendito seja para sempre. Amém.

5. Fiquei poucos dias na casa desse meu tio. A força das palavras de Deus, tanto lidas como ouvidas, e a boa companhia me fizeram compreender as verdades que entendera quando menina: a inutilidade6 de tudo o que há no mundo, a vaidade existente neste, a rapidez com que tudo acaba. Passei a pensar e a temer que talvez fosse para o inferno caso morresse naquele momento. Apesar de a minha vontade de ser monja não ser absoluta, percebi ser essa a condição melhor e mais segura; e, assim, aos poucos, decidi forçar--me a abraçá-la.

6. Passei três meses nessa batalha, lutando comigo mesma com o seguinte raciocínio: os trabalhos e o sacrifício de ser monja não podiam ser maiores do que os do purgatório, e eu bem que merecia os do inferno; por isso, não seria demais viver como no purgatório se depois fosse diretamente para o céu. E assim me decidi.

Nesse esforço para decidir sobre a escolha de estado, acredito que me impelia mais um temor servil do que o amor. O demônio insinuava que eu não ia suportar as exigências da vida religiosa, por gostar tanto de comodidades. Eu replicava com a lembrança dos sofrimentos de Cristo, acreditando que não seria demais passar por alguns por Ele; achava também que Ele me ajudaria — mas não tenho certeza disso. Foram muitas as tentações por que passei.

7. Afligiam-me nessa época constantes desmaios, bem como febres. Minha saúde nunca foi muito boa. O que me ajudou foi já ter me tornado amiga dos bons livros. Lia as Epístolas de São Jerônimo,7 que me animaram a tal ponto que decidi dizê-lo a meu pai. Isso quase equivalia a tomar o hábito, porque, sendo tão briosa, de maneira alguma voltaria atrás, tendo-o declarado. Era tanto o amor que meu pai me dedicava que de forma alguma pude convencê--lo, nem o conseguiram as pessoas a quem pedi que lhe falassem. O máximo que ele disse foi que, depois de sua morte, eu faria o que quisesse. Eu sabia que não podia confiar em mim mesma e temia que a minha fraqueza me fizesse recuar, e por isso achei que devia insistir e fiz esforços que me conduzissem a isso por outro caminho, como vou contar agora.

Capítulo 4

Diz como o Senhor a ajudou a triunfar sobre si mesma para tomar o hábito e das muitas doenças que Sua Majestade começou a lhe dar.

1. Na época em que eu estava preocupada com essas decisões, convenci um dos meus irmãos a se tornar frade,1 persuadindo-o da vaidade do mundo; e re­solvemos ir juntos um dia, bem de manhã, ao mosteiro onde estava aquela mi­nha amiga — esse era o mosteiro que mais me agradava.2 Naquele momento, eu es­tava de tal modo decidida a ser monja que teria ido a qualquer mosteiro on­de pudesse servir mais a Deus ou que agradasse ao meu pai. Eu estava voltada para curar a minha alma e dedicava o maior descaso à minha comodidade.

Lembro-me bem, e creio que com razão, que o meu sofrimento ao deixar a casa paterna não foi menor que a dor da morte.3 Eu tinha a impressão de que os meus ossos se afastavam de mim e que o amor de Deus não era maior do que o amor ao meu pai e à minha família, sendo necessário fazer tamanho esforço que, se o Senhor não me tivesse ajudado, as minhas conside­rações não teriam bastado para que eu prosseguisse. No momento certo, o Senhor me deu ânimo na luta contra mim mesma e, assim, levei adiante o meu propósito.

2. Quando tomei o hábito, o Senhor logo me fez compreender como favorece os que se esforçam por servi-Lo. Ninguém percebeu o meu esforço, mas só a minha imensa vontade. Ao fazê-lo, tive tal alegria de ter abraçado aquele estado que até hoje permaneço com ela; Deus transformou a aridez que tinha a minha alma em magnífica ternura. As observâncias da vida religiosa eram um deleite para mim; na verdade, nas vezes em que varria, em horários que antes dedicava a divertimentos e vaidades, me vinha uma estranha felicidade não sei de onde, diante da lembrança de estar livre de tudo aquilo.

Quando me lembro disso, não existe nada, por mais difícil e penoso, que eu deixe de realizar se puder. Na minha experiência de muitas ocasiões, se faço o esforço inicial, determinando-me a fazê-lo (sendo só por Deus, Ele quer — para o nosso maior merecimento — que a alma sinta aquele pavor até começar e, quanto maior ele for, maior a recompensa, e mais saborosa se tor­na depois), ainda nesta vida nos premia Sua Majestade por caminhos que só quem passa por isso o entende. Sei disso por experiência, como disse, em mu­i­tas coisas deveras graves; por isso, jamais aconselharia, se tivesse de fazê-lo, que, quando vier uma boa inspiração repetidas vezes, se deixe, por me­do, de empreendê-la; porque, se o fizermos somente por Deus, não há por que temer o fracasso, pois poderoso é Ele em tudo. Bendito seja para sempre. Amém.

3. Bastariam, ó sumo Bem e descanso meu, as mercês que me tendes feito até aqui: trazendo-me, por tantos rodeios da Vossa piedade e grandeza, a uma condição tão segura e a uma casa com tantas servas Suas que me podem servir de exemplo para ir crescendo em Vosso serviço. Não sei como prosseguir ao me lembrar como cheguei à minha profissão,4 a grande determinação e contentamento com que o fiz, a aliança que fiz convosco. Não posso dizê-lo sem lágrimas; e estas teriam de ser de sangue, despedaçando-me o coração, e ainda assim não seria demasiado pelo tanto que depois Vos ofendi.

Tenho agora a impressão de que estava certa em recusar tão grande dignidade, pois a haveria de usar muito mal. Mas Vós, Senhor meu, quisestes ser — nos quase vinte anos em que tenho empregado mal essa mercê — o ofendido, para que eu fosse melhorada. Até parece, Deus meu, que prometi não cumprir nada do que Vos havia prometido, embora na época esse não fosse o meu propósito; mas, depois, prossegui de tal maneira que já não sei o que pretendia. Isso manifesta ainda mais quem sois Vós, Esposo meu, e quem sou eu. Pois é verdade que muitas vezes o sentimento de minhas grandes culpas é temperado pelo contentamento que me dá a compreensão da multiplicidade das Vossas misericórdias.5

4. Em quem, Senhor, poderiam essas misericórdias brilhar senão em mim, que tanto obscureci com minhas obras más os grandes favores que co­­me­çastes a me conceder? Ai de mim, Criador meu, que não posso me descul­par por nenhuma desculpa ter, só podendo culpar a mim mesma! Para retribuir um pouco do amor que começastes a me mostrar, só em Vós eu poderia empregar o meu amor, o que teria remediado todo o mal. Como não o mereci, nem tive tanta ventura, valha-me agora, Senhor, a Vossa misericórdia.

5. Mudar de vida e de alimentação causou-me danos à saúde. Embora fosse grande a alegria, não o suportei. Os desmaios aumentaram, com uma dor no coração de tamanha intensidade que todos os que me viam se espantavam, ao lado de tantos outros males. O primeiro ano, eu o fui passando com a saúde bem abalada, embora não me pareça ter ofendido muito a Deus. Era tão grave a doença que eu ficava quase sempre privada de sentidos, chegando às vezes a perdê-los de fato. Meu pai se empenhava em encontrar algum remédio. Como os médicos daqui não resolveram, ele decidiu me levar a um lugar muito famoso na cura de outras enfermidades, onde, pelo que lhe disseram, eu também me livraria do meu mal.6 Acompanhou-me a amiga que, como eu disse, era antiga na casa,7 porque em nosso convento não se fazia voto de clausura.

6. Fiquei quase um ano naquele lugar. Por três meses, padeci tanto, devido ao rigoroso regime a que fui submetida, que não sei como suportei o tormento. Por fim, embora eu tenha resistido, minha compleição delicada se abalou, como direi.8 O tratamento iria começar no princípio do verão, mas fui para lá no início do inverno. Passei todo esse tempo na casa de minha irmã,9 que vivia numa aldeia pouco distante, para esperar o mês de abril, e para evitar idas e vindas.

7. Quando eu ia, aquele tio que morava, como eu disse, no caminho, me deu um livro; chamava-se Terceiro Abecedário e ensinava a oração de recolhimento.10 Nesse primeiro ano, eu havia lido bons livros (pois não quis mais usar outros, visto que já entendia o mal que me tinham causado), mas não sabia como agir na oração nem no recolhimento, e por isso aquele livro me deu grande alegria. Decidi seguir aquele caminho com todas as minhas forças.11 Naquela época, o Senhor já me tinha dado o dom das lágrimas, e, como eu gostava de ler, comecei a ter momentos de solidão, a confessar-me com freqüência e a seguir aquele caminho, tendo o referido livro por mestre. Outro mestre, isto é, algum confessor que me entendesse, busquei durante vinte anos, mas não o encontrei, o que me prejudicou e me fez retroceder muitas vezes, podendo ter me levado à ruína total. Se tivesse tido um confessor, eu teria sido ajudada em evitar as ocasiões de ofender a Deus.

Sua Majestade começou a me dar tantas graças desde o início que, ao fim do tempo que ali passei (aproximadamente nove meses de solidão; não vi­­via tão livre de ofender a Deus como o livro recomendava, mas passava por cima disso; parecia-me quase impossível evitar tudo; tinha cuidado para não co­meter pecados mortais, e quisera Deus que sempre o tivesse tido; dos ve­­niais, eu fazia pouco caso, e foi isso o que me destruiu)…12 me concedia tan­ta força para seguir esse caminho que me agraciava com a oração de quie­tude e até de união. Eu ainda não compreendia nenhuma dessas coisas, nem quanto mereciam ser prezadas; teria sido um grande bem compreendê-lo. É verdade que a oração de união durava muito pouco, talvez menos do que uma ave-maria. Causava, no entanto, efeitos tão grandes que eu, com me­­nos de vinte anos de idade,13 tinha a impressão de estar pairando acima do mun­do. Lembro que lastimava quem seguia as coisas do mundo, embora lícitas.

Eu buscava com todas as forças manter dentro de mim Jesus Cristo, nos­so bem e Senhor, sendo esse o meu modo de oração. Se me ocorria al­gum passo da Paixão, eu o representava no meu íntimo; mas a maior parte do tempo eu dedicava a ler bons livros, sendo essa toda a minha recrea­ção. Não recebi de Deus o dom de orar discursivamente nem de aproveitar a imaginação — é tão fraca a minha que, mesmo para pensar e representar para mim, como tentava fazer, a humanidade do Senhor, nunca consegui. É verdade que, não podendo usar o intelecto, quem persevera chega mais depressa à contemplação, mas com muitos sofrimentos e aflições. Se não há o em­prego da vontade, nem o amor tem com que se ocupar, a alma fica sem apoio e sem exercício; a solidão que sobrevém, acompanhada de aridez, é cau­sa de grande sofrimento e instala um enorme combate aos pensamentos.

8. Quem não consegue agir com o intelecto precisa de mais pureza de consciência do que quem o faz. De fato, quem medita sobre o que é o mundo, sobre o quanto deve a Deus, os muitos sofrimentos de Cristo, o pouco que rea­liza a seu serviço e o que o Senhor concede a quem o ama tem como de­fender-se dos pensamentos, das ocasiões e dos perigos. Porém, quem não pode tirar proveito disso se expõe a maior risco e precisa se ocupar muito da leitura, pois por si mesmo não consegue fazer boas reflexões; esse modo de pro­ceder na oração causa muito sofrimento a essas pessoas. Por mais curta que seja, a leitura tem utilidade para elas e é até necessária para que se re­colham; ela supre a oração mental que elas não conseguem fazer. Se o mes­tre que ensina insistir que a oração seja sem leitura (sendo a leitura uma grande ajuda para que essas pessoas se recolham), pessoas assim não conseguem perseverar muito tempo na oração. E, se lutarem, elas sentirão um en­­­fraquecimento, porque o combate é muito penoso.

9. Agora acho que a Providência Divina quis que eu não encontrasse quem me ensinasse. Eu não teria conseguido perseverar na oração nos dezoito anos em que me acometeram tamanhos sofrimentos e aridez, visto não po­der fazer oração discursiva, sem as leituras. Por todo esse tempo, eu não me atrevia a começar a orar sem livro, exceto quando acabava de comungar; minha alma temia tanto orar sem livro que era como se tivesse de enfrentar um exército. Com esse recurso, que era uma companhia ou escudo que amor­tecia os golpes dos muitos pensamentos, eu obtinha consolo. Porque a aridez não costumava vir quando eu tinha um livro; os pensamentos se recolhiam ca­rinhosamente, e o espírito se concentrava. Muitas vezes, o simples fato de ter o livro à mão bastava. Em algumas ocasiões, eu lia pouco e, em outras, mui­to, a depender da graça que o Senhor me dava.

Eu tinha a impressão, nesses primeiros anos de que falo, de que, com li­vros e solidão não corria o risco de perder tanto bem; e creio, com o favor de Deus, que o teria perdido se tivesse tido mestre ou alguma pessoa que desde o início me ensinasse a fugir dos perigos ou a evitá-los tão logo me vis­se enredada neles. E, se o demônio me atacasse abertamente na época, pen­­so que de nenhuma maneira me levaria a cometer um pecado grave. Mas ele foi tão sutil, e eu, tão imperfeita, que pouco aproveitei de todas as minhas de­terminações, embora aqueles dias em que servi a Deus, sofrendo as terríveis doenças que tive, com toda a grande paciência que Sua Majestade me deu, muito me tenham servido.

10. Muitas vezes pensei, espantada, na grande bondade de Deus, ficando minha alma maravilhada ao ver sua grande magnificência e misericór­dia. Ben­dito seja Ele por tudo, pois sempre vi com grande clareza que, mes­mo nesta vida, Ele não deixa de recompensar nenhum bom desejo. Por piores e mais imperfeitas que fossem as minhas obras, o Senhor as melhorava, aperfei­çoava e tornava meritórias, apressando-se a esconder minhas faltas e pecados. E, mais do que isso, Sua Majestade cegava e tirava a memória dos que ti­nham visto essas minhas faltas e pecados. O Senhor doura as culpas, faz com que res­plandeça uma virtude que Ele mesmo põe em mim, quase me maltratando para que eu a tenha.

11. Quero voltar à ordem que me deram e dizer que, se fosse contar com detalhes o modo como o Senhor se relacionava comigo nesses princípios, seria necessário um talento maior que o meu para mostrar o valor do que lhe devo, e para revelar minha grande ingratidão e maldade, pois esqueci tudo isso. Que Ele seja para sempre bendito, pelo tanto que me tem suportado. Amém.

Capítulo 5

Continua a falar das grandes enfermidades que teve e da paciência que o Senhor lhe deu para suportá-las, e diz como Ele do mal extrai o bem, como se verá pelo que aconteceu a ela no lugar ao qual foi para curar-se.

1. Esqueci de dizer que, no ano de noviciado, tive grandes desassossegos com coisas que, em si, pouca importância tinham. Culpavam-me muitas vezes sem que eu tivesse culpa, e eu sofria com muitos desgostos e imperfeições, em­bora o meu grande contentamento com o fato de ser monja a tudo compen­sasse. Como me viam buscar a solidão, bem como chorar algumas vezes por meus pecados, pensavam que eu estivesse descontente, e o diziam.

Eu gostava de todos os costumes religiosos, mas não tolerava sofrer o que me parecesse menosprezo. Apreciava que gostassem de mim, dedicava--me a tudo o que fazia. Tudo me parecia virtuoso, embora isso não me sirva de des­culpa, porque eu sabia procurar o que me dava prazer, razão por que a ignorância não me tira a culpa. O fato de o mosteiro não estar fundado em muita perfeição pode relevar algumas faltas minhas; contudo, por minha ruin­dade, eu acolhia o que era defeituoso e desprezava o que era bom.

2. Uma das religiosas sofria então, prostrada por grande e dolorosa enfer­midade; devido a uma obstrução, fizeram-lhe abertura no ventre, por onde re­gurgitava tudo o que comia. Em pouco tempo faleceu. Eu via todas temerem aquele mal, mas tinha grande inveja de sua paciência; pedia a Deus que, dando-me semelhante paciência, também me desse as enfermidades que dese­jasse. Parece-me que eu não temia nenhuma, pois estava tão determinada a obter bens eternos que me dispunha a ganhá-los por qualquer meio. E espanto-me porque então ainda não tinha — a meu ver — amor a Deus, como acreditei que tivesse depois que comecei a fazer orações. Tratava-se apenas de uma luz que me levava a ver o pouco valor do perecível e o alto preço dos bens que com ele se podem ganhar, visto serem eternos.

Sua Majestade me ouviu tanto que, em menos de dois anos, a minha condição era tal que, embora diferente daquela, a minha enfermidade não foi menos dolorosa nem deu menos trabalho; durou três anos, como agora vou narrar.

3. Chegado o momento de ir me tratar, que eu aguardava com a minha irmã nesse lugar,1 esta, o meu pai e a monja amiga minha que viera comigo, e que muito gostava de mim, me levaram com extremo cuidado.

O demônio logo começou a inquietar minha alma, mas Deus retirou dis­so grandes benefícios. No lugarejo onde fui me curar,2 morava um sacerdo­te que, além de nobre e inteligente, tinha alguma instrução. Comecei a confessar­--me com ele, porque sempre fui amiga das letras, apesar do grande dano que me tinham feito confessores mais ou menos letrados, a quem eu recorria por não encontrar algum mais instruído. Sei por experiência que é melhor que os re­­­li­gio­sos, sendo virtuosos e de vida santa, sejam antes totalmente ignorantes do que doutos pela metade. Os ignorantes não confiam em si, consultando os mais sábios; os verdadeiramente cultos nunca se enganam, ao passo que os ou­tros, embora não pretendam enganar, também não sabem mais do que ensinam. Eu achava que os confessores de pouca instrução fossem competentes, julgando que bastava apenas lhes dar crédito. Por outro la­do, a doutrina que me transmi­tiam era ampla e de maior liberdade. Se assim não fosse, sou tão ruim que por certo buscaria outros. O que era pecado ve­nial, eles me diziam não ser pe­cado; o que era pecado mortal gravíssimo, diziam que era venial. Isso me fez tanto mal que é preciso dizê-lo aqui, para alertar ou­tras pessoas sobre os danos que isso traz. Bem sei que isso não é desculpa aos olhos de Deus; o simples fato de certas coisas não serem boas em si devia ser suficiente para que eu as evi­tasse. Creio que, por causa dos meus pecados, Deus permitiu que esses con­fessores se enganassem e me enganassem. E eu en­ganei outras tantas pes­soas por lhes transmitir o mesmo que eles me tinham dito.

Fiquei com essa cegueira, creio eu, por mais de dezesseis anos, até que um padre dominicano,3 grande erudito, dissipou esses erros; os da Companhia de Jesus incutiram em mim um saudável temor, revelando-me a gravida­de de princípios tão maus, como depois vou contar.

4. Assim, comecei a confessar-me com o sacerdote de que falei; ele se afei­ço­ou muito a mim, porque então eu tinha pouco o que confessar, em com­paração com o que tive, depois de me tornar monja. Sua afeição não era má, mas, em seu excesso, deixou de ser boa. Ele passou a acreditar que eu jamais faria coisas graves contra Deus por nada deste mundo; ele também me assegurava isso, sendo muita a confiança recíproca. Fascinada por Deus, o que mais me agradava era falar somente Dele. E, sendo eu tão jovem, o sa­cerdote ficou, diante disso, muito confuso. Por fim, dada a grande amizade que tinha por mim, começou a me confessar a perdição em que vivia. E não era pouca, porque há quase sete anos ele estava em situação muito perigosa, com amizade e relações com uma mulher do lugar, mas, ainda assim, dizia missa. Era uma coisa tão pública que ele perdera a honra e a fama, e ninguém ousava contestá-lo. Isso me entristeceu muito, pois era grande a minha amizade por ele. Eu tinha a grande leviandade e cegueira, que me parecia virtude, de ser grata e pagar na mesma moeda aos que me queriam bem. Maldito seja esse princípio, que chega a ponto de ser contra os de Deus! É um despropósito comum no mundo que me desatina: devemos todo o bem que nos fazem a Deus, mas temos como virtude, embora indo contra Ele, manter essa ami­za­de. Ó cegueira do mundo! Quem dera, Senhor, que eu tivesse sido in­grata com todos, mas sem me opor em um único ponto a Vós! No entanto, devido aos meus pecados, ocorreu o contrário.

5. Procurando saber e me informar com as pessoas de sua casa, entendi melhor a sua perdição e percebi que o pobre não tinha tanta culpa; porque a desventurada mulher havia posto feitiços num idolozinho de cobre, que lhe rogara trouxesse ao pescoço por amor a ela. E ninguém tinha sido capaz de tirá-lo dele.

Decididamente não acredito em feitiços; mas digo o que vi, para avisar aos homens que se afastem de mulheres que recorrem a semelhantes ardis. Acre­ditem que, sendo obrigadas, mais do que os homens, a ter honestidade, as mulheres, ao perderem a vergonha diante de Deus, em nada merecem con­fiança, porque, para levar adiante a sua vontade e o desejo que o demônio lhes incute, são capazes de tudo. Embora tenha sido tão ruim, eu nunca caí em nada dessa espécie, e jamais pretendi fazer mal ou forçar alguém, mesmo que pudesse, a gostar de mim, porque o Senhor me protegeu disso; mas, se Ele me tivesse permitido, eu também teria feito mal em outros planos, pois em mim não há nada digno de confiança.

6. Assim, como soube disso, comecei a demonstrar-lhe mais afeição. A minha intenção era boa, mas a ação, má, pois não se deve, por maior que seja o bem que se deseje conseguir, fazer um pequeno mal. Eu falava muito de Deus. Isso devia lhe trazer proveito, mas creio que ele era movido, sobretudo, por me querer muito. Desejando agradar-me, terminou por me entregar o ido­lozinho, que eu logo mandei jogar no rio. Assim que este desapareceu, ele começou, como quem desperta de um grande sono, a se dar conta de tudo o que fizera naqueles anos; e, espantado consigo mesmo, sofrendo pela sua per­­dição, começou a libertar-se dela. Nossa Senhora deve tê-lo ajudado muito, pois ele era muito devoto de sua Conceição, festejando-a, naquele dia, com muito fervor. Por fim, deixou de ver a mulher, e não se cansava de dar graças a Deus por havê-lo iluminado.

Exatamente um ano depois que o conheci, ele faleceu. Por todo esse tempo, perseverou no serviço de Deus. Nunca achei que a sua afeição por mim fosse má, embora pudesse ter sido mais pura; mas também houve ocasiões em que, não estivesse a lembrança de Deus bem presente, ele podia ter cometido ofensas mais graves. Como já disse,4 eu não seria capaz de cometer o que considerasse pecado mortal. Parece-me que essa minha disposição o aju­dava a ter amizade por mim; pois creio que todos os homens devem ser mais amigos de mulheres inclinadas à virtude; por esse caminho, elas têm mais a ganhar, como depois direi. Tenho certeza de que aquele sacerdote está no caminho da salvação. Morreu muito bem, e bem afastado de suas antigas faltas. Parece que o Senhor desejou salvá-lo por esse meio.

7. Penei naquele lugar durante três meses, porque o tratamento foi mais forte do que a minha compleição. Em dois meses, graças aos remédios, a mi­nha vida quase chegou ao fim; as dores no coração, de que me fora curar, au­mentaram tanto que eu às vezes sentia que ele era rasgado por dentes agudos, a ponto de temerem que eu tivesse contraído raiva. Fiquei muito fra­ca (porque não podia comer nada, apenas bebendo um pouco, e com esfor­ço), com febre contínua, e muito desgastada, devido a quase um mês de pur­ga­tivos diários. Estava tão ressequida que meus nervos começaram a doer de maneira insuportável, não me dando descanso nem de dia nem à noite. Sentia uma tristeza muito profunda.

8. Diante disso, meu pai voltou a me levar aos médicos; todos me desen­ganaram, dizendo que, além de todos os males, eu estava tuberculosa. Isso não me incomodava muito; o que me fatigava eram as dores, porque eram con­tínuas, e dos pés à cabeça. Os próprios médicos diziam serem essas dores es­pasmódicas intoleráveis. Eu sofria duros tormentos e, graças a Deus, não perdi, por minha culpa, tantos méritos.

Fiquei sofrendo assim por três meses; e parecia impossível que alguém pu­­desse suportar tantos males ao mesmo tempo. Hoje me espanto e considero gran­de graça do Senhor a paciência que Ele me deu, pois era claro que vinha De­le. Para tê-la, muito me serviu ter lido a história de Jó, nas Moralia5 de São Gre­gório. Creio que o Senhor me preparou com isso, e com a oração, que eu co­meçara a fazer, para eu poder suportar os meus males com tanta conformida­de. Meu pensamento estava sempre no Senhor. Lembrava-me amiúde das pala­vras de Jó, que costumava repetir: Se das mãos do Senhor recebemos os bens, por que não sofreremos também os males?6 Ao que parece, isso me dava forças.

9. Veio a festa de Nossa Senhora de Agosto. O tormento vinha desde abril, embora tivesse aumentado nos últimos três meses. Apressei-me a confessar-me, pois sempre gostei de fazê-lo freqüentemente. Pensaram que eu tinha medo de morrer e, para não me alarmar, meu pai não consentiu. Ó amor carnal demasiado, que mesmo vindo de um pai tão católico, e tão esclarecido, o que ele era em grande grau, não tendo agido por ignorância, tanto mal me poderia fazer! Naquela noite, tive um paroxismo tão forte que fiquei sem sentidos por quase quatro dias. Administraram-me o Sacramento da Unção dos Enfermos, pensando que eu poderia morrer a qualquer hora. Não paravam de repetir o Credo, como se eu entendesse alguma coisa. Tinham tanta certeza de que eu morreria que até cera achei depois nos olhos.7

10. Foi grande o pesar do meu pai de não me ter permitido confessar-me; muitos foram seus clamores e orações a Deus. Bendito seja Aquele que se dignou ouvi-lo; há um dia e meio a sepultura estava aberta no meu mosteiro à espera do corpo, e já tinham sido feitas as exéquias num convento de frades fora da cidade, quando o Senhor quis que eu recuperasse os sentidos. Desejei logo confessar-me. Comunguei com muitas lágrimas; para mim, contudo, não eram só de sentimento e de pena por ter ofendido a Deus — isso teria bastado para me salvar, não me desculpando o engano, em que alguns confessores me fizeram cair, ao dizerem que não eram pecado mortal certas coisas que sem dúvida o eram. Porque as dores com que fiquei eram insuportáveis, não me permitindo a plena recuperação dos sentidos, embora, a meu ver, a minha confissão tenha incluído todas as minhas faltas contra o Senhor. Entre outras, Sua Majestade me concedeu a graça de, depois que comecei a comungar, jamais deixar de confessar qualquer coisa que eu considerasse pecado, mesmo venial. Mas por certo acho muito duvidosa a minha salvação se eu tivesse morrido então; de um lado, por serem tão pouco instruídos os confessores e, de outro, por ser eu tão ruim — para não dar muitos outros motivos.

11. Neste ponto da minha vida, vendo que, de certa maneira, o Senhor me ressuscitou, é tão grande o meu espanto que chego a tremer. Creio que foi para que visses, alma minha, de que perigo o Senhor te livrava; já que por amor não dei­xavas de ofendê-lo, tu o fizeste, ao menos, por temer os castigos, porque Ele po­­deria matar-te outras mil vezes numa condição ainda mais pe­rigosa. Acho que não exagero muito ao falar outras mil, mesmo que seja re­preendida por quem me mandou ter moderação ao narrar os meus pecados. Por isso, formoseados vão.

Peço que, pelo amor de Deus, essa pessoa em nada diminua as minhas cul­pas, para que brilhe mais a magnificência de Deus e se perceba o que sofre uma alma. Bendito seja Ele para sempre. Queira Sua Majestade que eu antes me consuma a deixar de lhe ter amor.

Capítulo 6

Trata do muito que ficou devendo ao Senhor por este lhe ter dado conformidade em tão grandes sofrimentos e de como tomou por mediador e advogado o glorioso S. José, e do grande proveito que disso obteve.

1. Fiquei, depois desses quatro dias de paroxismo, num estado tal que só o Senhor pode saber os insuportáveis tormentos que sentia em mim. De tão mordi­da, a língua estava dilacerada; a garganta, devido a eu nada ter ingerido e à mi­­nha grande fraqueza, me deixava quase sem respirar, pois nem água eu po­­dia engolir; eu parecia estar inteiramente desconjuntada, com a cabeça em grande desatino. Aquele tormento me fez ficar encolhida, como se fos­­se um novelo, incapaz de mover os braços, os pés, as mãos e a cabeça, co­­mo se estivesse morta, sem ajuda; creio que só movia um dedo da mão di­­­reita. Era difícil me tocarem, pois eu sentia tantas dores que não podia su­­portá-lo. Usavam um lençol, que duas pessoas seguravam, uma de cada la­do, para me mudarem de posição.

Isso durou até a Páscoa Florida. Eu só sentia alívio quando não se apro­ximavam de mim; as dores então muitas vezes cessavam, e eu, por descan­sar um pouco, me considerava curada, o que traía o temor de que me viesse a faltar paciência. Fiquei muito contente quando deixei de sentir dores tão con­tí­nuas e agudas, embora ainda fossem insuportáveis quando me acome­tiam os calafrios intensos das violentas febres interminentes que ainda me afligiam; todo alimento me repugnava.

2. Eu tinha tanta pressa de voltar ao meu mosteiro que fiz com que me le­­vassem para lá nesse estado. Receberam viva quem esperavam morta; o corpo, no entanto, estava pior do que morto, dando pena vê-lo. Era tamanha a minha fraqueza que posso dizer: tinha apenas ossos. Fiquei nessa condição por mais de oito meses. Mesmo tendo melhorado, fiquei pa­ralítica por quase três anos. Quando comecei a andar de gatinhas, louvei a Deus. Padeci com grande conformidade e, exceto no começo da doença, até com alegria. Em comparação com as dores e tormentos do princípio, tudo o mais pouco representava. Eu estava conformada com a vontade de Deus, mesmo que Ele me deixasse para sempre naquele estado.

Eu ansiava pela cura, unicamente para voltar a ter solidão e orar, o que, na enfermaria, não era possível. Confessava-me com freqüência e sempre falava de Deus, de maneira que todas as companheiras se sentiam edificadas, admirando-se da paciência que o Senhor me concedia; porque, sem a intervenção de Sua Majestade, parecia impossível alguém sofrer tanto mal com tanta alegria.

3. Muito me beneficiaram as dádivas recebidas do Senhor na oração; esta me levava a compreender o que era amá-lo. Naquele pouco tempo, vi surgirem em mim novas virtudes, embora não de todo fortes, visto não me terem sus­tentado no caminho da justiça: não tratar mal a ninguém, por menos que fosse. Em geral, eu evitava todos os murmúrios, pois tinha bem presente não querer dizer de outra pessoa o que não queria dissessem de mim. Eu le­vava isso ao extremo nas diversas ocasiões; a perfeição não era tanta, pois havia ocasiões, e não eram raras, em que eu fracassava; e em geral era assim. Isso convenceu a tal ponto as pessoas que me cercavam e que se relacionavam comigo que elas passaram a praticá-lo. Todas vieram a entender que, onde eu estava, não ti­nham o que temer quando se fossem; nesse aspecto, seguiam aquelas com quem eu tinha amizade e parentesco, e a quem ensinava; embora, em outras coi­sas, eu tenha boas contas a prestar a Deus pelo mau exemplo que lhes dava.

Que Sua Majestade me perdoe, pois causei muitos males, embora a mi­nha intenção não fosse tão má quanto depois o foram os atos.

4. Passei a desejar a solidão, amiga de tratar e falar de Deus; se en­contrasse alguém com quem fazê-lo, eu obtinha disso mais alegria e satisfação do que em todos os requintes — melhor dizendo, em toda a grosseria — da conversação do mundo; comungava e confessava-me com muito mais freqüência, sempre desejando fazê-lo. Amiga de ler bons livros. Quando ofendia a Deus, eu muito me arrependia, a ponto de, muitas vezes, não ousar fazer oração por temer o profundo pesar que ia sentir por tê-Lo ofendido, o que era um grande castigo para mim. Essa atitude cresceu a tal ponto que não sei a que comparar esse tormento. E não era por temor, pouco ou muito, ja­mais! Afligia-me a lembrança dos dons que o Senhor me fazia na oração e do muito que lhe devia, e de quão insignificante era a minha retribuição. Es­sa idéia me perturbava ao extremo, e foram muitas as lágrimas que derramei por minhas culpas, pois via que eu pouco me corrigia; pois não bastavam mi­nhas decisões nem a dor que me vinha para que eu não fraquejasse. Pare­ciam-me lágrimas enganosas, aumentando a minha culpa, porque eu via a grande graça que o Senhor me dava ao conceder-lhes por companhia um tão grande arrependimento. Eu procurava me confessar logo e tudo fazia para voltar à graça.

O mal estava todo em não cortar pela raiz as ocasiões e no fato de eu ter confessores que pouco me ajudavam; se eles me dissessem que eu corria perigo e que tinha a obrigação de evitar aqueles tratos, tudo sem dúvida se remediaria; porque, se disso tivesse consciência, eu de forma alguma passaria um só dia em pecado mortal.

Todos esses sinais de temor a Deus vieram-me com a oração; e, melhor que tudo, o amor substituiu o temor, sem que eu me lembrasse do castigo. No período em que a minha saúde ia tão mal, a minha consciência sempre foi despertada para os pecados mortais. Oh! Valha-me Deus! Eu desejava a saúde para melhor servi-Lo, e isso causou todo o meu mal!

5. Vendo-me tão tolhida com tão pouca idade, e por não me valerem os médicos da terra, resolvi recorrer aos do céu para que me curassem; embora suportasse os sofrimentos com muita alegria, eu ainda desejava a saúde, imaginando que, com ela, serviria muito mais a Deus, embora pensasse que, se ficar curada servisse para me condenar, seria melhor continuar doente. Um dos nossos enganos é não nos submeter por inteiro ao que o Senhor faz, pois Ele sabe melhor do que nós o que nos convém.

6. Comecei a mandar celebrar missas e a fazer orações aprovadas, pois nunca fui amiga de outras devoções praticadas por certas pessoas, mulheres em es­pecial, com cerimônias que, parecendo-me insuportáveis, lhes causavam devo­ção; depois entendi que não convinham, que eram supersticiosas. Assim, to­mei por advogado e senhor o glorioso São José, encomendando-me muito a ele. Vi com clareza que esse pai e senhor meu me salvou, fazendo mais do que eu podia pedir, tanto dessa necessidade como de outras maiores, referentes à honra e à perda da alma. Não me lembro até hoje de ter-lhe suplicado algo que ele não tenha feito. Espantam-me muito os grandes favores que Deus me conce­deu através desse bem-aventurado Santo, e os perigos, tanto do corpo como da alma, de que me livrou. Se a outros santos o Senhor parece ter concedido a graça de socorrer numa dada necessidade, a esse Santo glorioso, a minha experiência mos­tra que Deus permite socorrer em todas, querendo dar a entender, que São José, por ter-Lhe sido submisso na terra, na qualidade de pai adotivo, tem no céu todos os seus pedidos atendidos.

O mesmo viram, por experiência própria, outras pessoas a quem aconselhei que se encomendassem a ele, também por experiência; e há hoje muitas que lhe são devotas de novo, experimentando essa verdade.1

7. Eu procurava festejá-lo com toda a solenidade, movida mais pela vai­dade do que pelo espírito, querendo que tudo fosse perfeito e primoroso, em­bora com boa intenção. Mas havia algo de mau: se o Senhor me dava a gra­ça de fazer um bem, eu o fazia com imperfeições e muitas faltas. Para o mal, para os exageros e para a vaidade, era grande a minha esperteza e di­ligência. Que o Senhor me perdoe!

Eu queria persuadir todos a serem devotos desse glorioso Santo, pela mi­nha grande experiência de quantos bens ele alcança de Deus. Não conheço nenhuma pessoa que realmente lhe seja devota e a ele se dedique particularmente, que não progrida na virtude; porque ele ajuda muito as almas que a ele se encomendam. Há alguns anos, sempre lhe peço, em seu dia, alguma coisa, nunca deixando de ser atendida. Se a petição vai algo torcida, ele a endireita para maior bem meu.

8. Se eu fosse pessoa cujos escritos tivessem autoridade, de bom gra­do des­creveria longamente as graças que esse glorioso Santo tem feito a mim e a outras pessoas; mas, para não fazer mais do que me mandaram, em mui­tas coisas serei mais breve do que gostaria e, em outras, me alargarei mais do que devo, como quem em tudo o que é bom tem pouca discrição. Só peço, pelo amor de Deus, que quem não me crê o experimente, vendo por ex­pe­riência o grande bem que é encomendar-se a esse glorioso patriarca e ter-lhe devoção. As pes­soas de oração, em especial, deveriam ser-lhe afeiçoadas; não sei como se pode pensar na Rainha dos Anjos, no tempo em que tanta angústia passou com o Menino Jesus, sem se dar graças a São José pela ajuda que lhes prestou. Quem não encontrar mestre que ensine a rezar tome por mestre esse glorioso Santo, e não errará no caminho. Quei­ra o Senhor que eu não tenha cometido erro por me atrever a falar dele; pois, embora apregoando que lhe sou devota, em servi-lo e imitá-lo sempre falhei.

Pois ele mostrou quem é ao fazer que eu me levantasse, andasse, e não mais ficasse paralítica. Também eu mostrei quem sou, usando tão mal esse favor.

9. Quem diria que eu cairia tão depressa depois de receber tantas bênçãos de Deus, depois de haver sua majestade começado a dar-me virtudes que me estimulavam a servi-lo, depois de, quase morta, correndo o risco da condenação, ter tido a alma e o corpo ressuscitados, provocando a admiração de todos? Que é isso, Senhor meu? Teremos de viver vida tão perigosa? Enquanto escrevo isto, parece-me que, com o Vosso favor e a Vossa misericórdia, eu poderia dizer, com São Paulo, embora sem tanta perfeição, que: Não sou eu quem vive; é Cristo, Criador meu, que vive em mim.2 Pelo que sei, Vossa mão me sustenta há vários anos; percebo-o agora pelos meus desejos e determinação de nada fazer, por mais insignificante, contra a Vossa vontade. E, de algum modo, eu o tenho provado por experiência, nesses anos, em muitas coisas, por pequenas que sejam, não obstante muito tenha ofendido a Vossa Majestade sem o saber. E também me parece que não há tarefa que eu deixe de executar, com grande empenho, por amor a Vós. Na verdade, em muitas ocasiões tenho tido, para realizá-la, ajuda Vossa. Nada quero com o mundo nem com as suas coisas, nem me traz alegria o que não vem de Vós; tudo o mais me parece uma pesada cruz.

É bem possível que eu me engane, não tendo o que digo; mas Vós s­abeis, meu Senhor, que, pelo que me é dado saber, não minto, e temo, com muita razão, que volteis a me abandonar. Conheço bem o ponto a que chegam minha força e minha pouca virtude quando não me confortais nem me ajudais para que eu não me afaste de Vós. Queira Vossa Majestade que, agora mesmo, eu não esteja afastada de Vós por sentir como meu o que acabo de dizer.

Não sei como queremos viver, já que tudo é tão incerto. Parece-me, Senhor meu, que já me é impossível deixar-Vos tão inteiramente como já Vos deixei tantas vezes; não posso evitar temer que, se Vos apartardes um pouco de mim, tudo venha abaixo. Bendito sejais para sempre, porque, mesmo quando Vos deixei, Vós não vos afastastes de mim por inteiro, dando-me sempre a mão para que eu voltasse a me levantar; muitas vezes, Senhor, eu não a queria, nem procurava ouvir quando me chamáveis de novo, como agora direi.

Capítulo 7

Conta como foi perdendo as graças que o Senhor lhe fizera e a vida ruim que começou a ter. Fala dos males decorrentes de os mosteiros de monjas não serem muito fechados.

1. E assim comecei, de passatempo em passatempo, de vaidade em vaidade, de ocasião em ocasião, a envolver-me tanto em tão grandes ocasiões e a estragar a alma em grandes vaidades que tinha vergonha — em tão particular amizade como é tratar de oração — de me aproximar de Deus. Contribuiu para isso o fato de que, como os pecados aumentaram, o gosto e a alegria da prática da virtude começaram a escassear.1 Eu via muito claramente, Senhor meu, que isso me faltava por eu faltar a Vós.

Esse foi o mais terrível engano que o demônio me podia fazer sob a capa de humildade: por me ver tão perdida, passei a temer a oração. E eu tinha a impressão de que era melhor andar como os muitos.2 Porque, em ser ruim, eu era das piores, rezando apenas as orações a que estava obrigada, e vocalmente, pois não era justo fazer oração mental e relacionar-se tanto com Deus quem merecia estar na companhia dos demônios e enganava os outros, visto que, no exterior, mantinha as aparências. A casa onde eu estava não tem culpa, porque eu, com a minha malícia, fazia com que me tivessem em alta conta. Mas eu não o fazia em sã consciência, fingindo cristandade; porque, em termos de vanglória e hipocrisia — glória a Deus! —, não me lembro de O ter um dia ofen­dido, pelo que posso julgar. Ao primeiro sinal, era tanto o meu pesar que o demônio era derrotado, e eu lucrava; nesse aspecto, poucas tentações tenho tido. Se por acaso Deus tivesse permitido que eu fosse tentada nisso com a mes­ma intensidade com que o tenho sido em outras coisas, eu também teria caído; mas Sua Majestade até agora me tem protegido disso. Seja para sempre bendito! Na realidade, desgostava-me muito que gostassem de mim, porque eu sabia o que havia em segredo em mim.

2. Não me julgavam tão ruim porque, apesar de eu ser jovem e de estar fre­qüentemente exposta a tantas oportunidades de pecado, as pessoas viam que eu inúmeras vezes me afastava, buscando a solidão para rezar e ler, falar muito de Deus, fazer pintar a sua imagem em vários lugares e conservar o ora­tório, colocando nele coisas que produzissem devoção. Eu não falava mal dos outros, havendo ainda em mim outros hábitos aparentemente virtuosos. E eu, iludida, sabia aproveitar as coisas que o mundo em geral estima. Assim, da­vam tanta liberdade a mim quanto às mais antigas, e até mais. Eu era obje­to de grande confiança. De fato, cometer certas ousadias ou fazer coisas sem licença, como falar por alguma fresta, por cima dos muros ou à noite, num mosteiro, não eram do meu feitio. Nunca o fiz, porque o Senhor me segurava com a mão. Creio — porque com atenção e ponderação eu observava muitas coisas — que eu não queria correr o risco de, pela minha ruindade, pôr em perigo a honra de tantas boas religiosas. Como se fossem dignas outras coisas que eu fazia! Na verdade, ainda que fosse muito, o mal não era tão consciente, como o seria se eu fizesse essas coisas.

3. A meu ver, causou-me grande prejuízo não estar num mosteiro enclau­su­rado. Porque a liberdade que as que eram boas podiam ter sem culpa (por­que não lhes era exigido mais, já que não prometiam clausura)3 a mim, que sou ruim, por certo teria levado ao inferno se eu não tivesse sido libertada desse risco por tantos meios, remédios e dons particulares do Senhor. Por isso, considero muito perigosos mosteiros de mulheres com liberdade. Eles se tornam portas abertas para que as que quiserem ser ruins tomem o caminho do inferno, em vez de remédio para as suas fraquezas.

Isso não se aplica ao meu.4 Nele, há muitas que servem ao Senhor com sinceridade e bastante perfeição, não podendo Sua Majestade, por ser bom, deixar de favorecê-las; além disso, não é dos mais abertos e, nele, respeita--se toda a observância. Falo de outros, que conheço e vi.

4. Muito me entristece que o Senhor precise fazer apelos particulares — e não uma, mas repetidas vezes — para que as monjas se salvem, dada a permissão para cortesias e entretenimentos mundanos e o tão mau entendimento daquilo a que estão obrigadas. Queira Deus que elas não tenham por virtude o que é pecado, como tantas vezes fiz. Compreender essas verdades é tão difícil que, para consegui-lo, é necessário que o Senhor ponha nisso realmente a Sua mão.

Se quisessem seguir o meu conselho, os pais que põem as filhas em mosteiros onde elas, em vez de encontrar recursos para seguir o caminho da salvação, correm maiores riscos do que no mundo fariam melhor, para a própria honra das filhas, se as casassem, mesmo em condições humildes, ou as mantivessem em casa. Isso é preferível a tê-las nesses mosteiros, a não ser que elas tenham ótimas inclinações. Mesmo assim, que Deus as ajude a conservá-las. Na casa dos pais, o mau comportamento só se mantém oculto por pouco tempo; nesses mosteiros, pelo contrário, mantém-se até que o Senhor tudo revele. Os danos atingem não apenas a culpada, mas a todas. Às vezes, as pobrezinhas não têm culpa, porque seguem o que vêem; é uma lástima verificar que, com freqüência, afastando-se do mundo e acreditando que vão servir ao Senhor e preservar-se dos perigos, elas se encontram em dez mundos juntos, sem saber como se valer nem remediar; a mocidade, a sensualidade e o demônio as convidam e inclinam a seguir coisas que são do próprio mundo; elas vêem ali o que é considerado bom, por assim dizer. Acho que elas são em parte como os desventurados hereges, que querem cegar a si mesmos e ensinar que é bom aquilo que seguem, e assim o crêem, embora não acreditem de fato, porque têm dentro de si quem lhes diga que é mau.

5. Ó enorme mal, enorme mal dos religiosos — refiro-me tanto às mu­lhe­res como aos homens —, que vivem onde não se guarda a religião, num mos­teiro onde existem dois caminhos, igualmente trilhados: o da virtude e da religião, e o da falta de religião. Não faço justiça, eles não são igualmente trilhados; devido aos nossos pecados, o mais seguido, e mais favorecido, é o mais imperfeito. O da verdadeira religião é tão pouco percorrido que quem desejar de fato vivê-lo em tudo, seguindo sua vocação, deve temer mais os de sua própria casa do que toda a corte demoníaca. Essas pessoas devem ter mais cautela e reserva ao falarem da amizade que desejam ter com Deus do que de outras amizades e vontades introduzidas nos mosteiros pelo demônio. Não vejo de fato razão para estranharmos os tantos males que há na Igreja se os que de­veriam ser modelo de virtude exibem uma imagem tão apagada que não lembra o primor que os santos do passado, com o seu espírito, dei­xa­ram nas ordens religiosas. Que a divina Majestade remedie tanto mal, como vê que é preciso, amém.

6. Porque, tendo começado a participar dessas coisas, visto não me parecer — por ser costume — que disso viessem para a minha alma o prejuízo e a distração — o que só mais tarde constatei —, tive a impressão de que essas visitas, tão generalizadas em muitos mosteiros, não fariam maior mal a mim que às outras, cuja bondade eu conhecia. Eu não via que elas tinham muito mais virtudes e que, onde para elas talvez não houvesse perigo, para mim havia. Não duvido de que, mesmo limitadas à perda de tempo, essas coisas envolvem perigo. Estando com uma pessoa que há pouco conhecera, percebi que o Senhor queria dar-me a entender que aquelas amizades não eram convenientes, alertando-me e me esclarecendo sobre a minha grande ce­gueira: de fato, eis que vi Cristo representado diante de mim, com muito ri­gor, mostrando-me o quanto aquilo lhe pesava.5 Vi-o, com os olhos da alma, com mais clareza do que o poderia ver com os olhos do corpo. A sua imagem tornou-se tão indelével que até hoje, mais de vinte e seis anos depois, ainda tenho a sensação de vê-lo. Tomada de um profundo temor e de grande perturbação, não quis mais receber a pessoa com a qual me encontrava então.

7. Muitos prejuízos me causou não saber ser possível ver sem usar os olhos do corpo; e o demônio me ajudou para que eu assim pensasse, fazendo--me entender que isso era impossível, que seria imaginação, artes diabólicas e coisas semelhantes. No fundo, porém, mantive a impressão de que se tratava de obra de Deus; mas, como aquela lembrança não me agradasse, procurei me dissuadir, sem ousar contar aquilo a pessoa alguma. Insistiam muito comigo, garantindo-me que receber aquela visita não me prejudicava e que, em lugar de perder a boa fama, eu, fazendo-o, a aumentaria. Por isso, voltei atrás. A partir de então, em outras oportunidades e com outras pessoas, permaneci vários anos nesse divertimento pestilento. No entanto, eu não o considerava, visto participar dele, como mau, embora visse claramente que não era bom. Mas nenhuma pessoa me trouxe tanta dissipação quanto essa, dada a afeição que eu nutria por ela.

8. Certa vez, entretida em sua companhia, vimos — e outras pessoas que estavam ali também o viram — uma espécie de sapo grande dirigir-se para nós, caminhando com uma rapidez que não é própria dessas criaturas.6 Não tenho como explicar o aparecimento, em pleno dia, de semelhante criatura naquele lugar, pois aquilo nunca ocorrera. E o que isso me causou por certo envolvia mistério, jamais tendo saído da minha lembrança. Ó Deus, quão grandioso sois! Com que solicitude e piedade me avisáveis de todas as maneiras, e que pouco proveito tirei!

9. Havia ali uma monja, minha parente, antiga e grande serva de Deus, muito religiosa. Ela também me alertava algumas vezes; eu, porém, não acreditava nela e ainda ficava desgostosa, pensando que ela se escandalizava sem motivo.

Disse isso para que se entenda a minha maldade, e a grande bondade de Deus, e para que se veja o quanto mereci o inferno por tamanha ingratidão. E também para que, se em algum momento Deus ordenar, e for obedecido, que se leia isto, as monjas possam tirar proveito de minhas experiências. Peço a todas que, por amor a Nosso Senhor, fujam dessas recreações. Possa Sua Majestade, através de mim, resgatar as tantas pessoas que enganei sem desejar, dizendo-lhes que isso não era ruim, e promovendo tão grande perigo com a cegueira que tinha. Certo é que, devido ao mau exemplo, como eu disse,7 causei bastante mal, sem pensar que o fazia.

10. Estando doente naqueles primeiros dias, antes que pudesse valer-me a mim mesma, eu tinha grande desejo de fazer o bem aos outros — tentação muito comum aos iniciantes, que comigo teve bons resultados. Era tanto o meu amor pelo meu pai que resolvi transmitir-lhe o tesouro que acreditava ter encontrado na oração, que eu considerava o maior desta vida. Fazendo rodeios, da maneira possível, também tentei levá-lo a ter aquele bem que tanta alegria me dava. Com esse propósito, dei-lhe livros. Ele, muito virtuoso, como já falei,8 se dedicou tanto a esse exercício que em cinco ou seis anos fizera muitos progressos; com isso, vinha-me um grande consolo, e eu muito louvava o Senhor. Provações de grande monta o atingiram de todos os lados, tendo ele sofrido todas em perfeita concordância com a vontade de Deus. Ele me visitava muitas vezes, consolando-se ao falar sobre coisas de Deus.

11. Mais tarde, quando eu andava tão destruída e sem ter oração, não tolerei dei­xá-lo pensar que eu era a mesma de antes; porque passei mais de um ano sem ter oração, acreditando ser com isso mais humilde. Essa, como depois di­rei,9 foi a maior tentação que tive porque, por meio dela, eu acabaria de me perder. Enquanto ora­va, mesmo ofendendo a Deus algumas vezes, eu conseguia, com o Seu au­xílio, recolher-me e apartar-me da ocasião. Como o bendito ho­mem se apegava a esses assuntos, eu sofria por vê-lo tão enganado ao pen­sar que eu tratava com Deus como costumava e lhe disse que já não orava, mas não lhe contei a causa. Atribuí-o às minhas enfermidades, porque, embo­ra curada daquela doença tão grave, sempre tive e tenho ainda outros grandes ma­les. É verdade que há algum tempo tenho melhorado, pois as dores não são tão intensas; no entanto, elas não deixam de me afligir de várias maneiras.

Em especial, tive durante vinte anos vômitos pela manhã, o que me impedia de alimentar-me até o meio-dia e, por vezes, até mais tarde. Agora que freqüento mais vezes a comunhão, é à noite, antes de me deitar, com muito mais sofrimento, que tenho de provocá-los com penas ou outras coisas, porque, se não o faço, é muito grande o meu mal-estar; e vejo que quase nunca estou sem muitas dores, às vezes bem graves, especialmente no coração, se bem que esse mal, antes contínuo, agora é bem raro. Há oito anos curei-me da paralisia aguda e das freqüentes febres. Incomodo-me tão pouco com todos esses males que é comum eu ter alegria, porque tenho a impressão de com isso servir ao Senhor de alguma maneira.

12. E o meu pai acreditou ser essa a causa, porque, como ele não dizia mentira, considerou, conforme o que eu tratava com ele, que também eu não a diria. Acrescentei, tentando convencê-lo mais, que já era muito esforço rezar o ofício no coro (embora eu visse que não havia desculpa para isso). Por outro lado, isso não era suficiente para deixar de fazer uma coisa que não exige força corporal, mas só amor e costume. Quando queremos, o Senhor dá sempre oportunidade. Sempre, repito, visto que, se em certas circunstâncias ou em caso de doença, não se consegue ter muito tempo de solidão, há outras ocasiões em que a saúde o permite. Na doença e em situações difíceis, a alma que ama tem como verdadeira oração fazer a dádiva dos seus sofrimentos, lembrar-se daquele por quem os padece, conformar-se com as suas dores, havendo muitas outras coisas possíveis. Trata-se do exercício do amor; pois não somos obrigados a orar quando temos momentos de solidão, porque, mesmo à falta destes, sempre se pode orar. Com um pouquinho de boa vontade, obtêm-se muitos lucros nos momentos em que o Senhor nos tira o tempo da oração com sofrimentos. E assim era comigo quando a minha consciência era boa.

13. Mas ele, com a sua opinião de mim e o amor que me tinha, em tudo acreditou, e de mim teve pena. Mas o seu espírito tinha se elevado tanto que eram rápidas as suas visitas. Logo depois de me ver, partia, dizendo que permanecer era tempo perdido. Como eu desperdiçava tempo com outras vaidades, nem me dava conta disso.

Também tentei fazer com que outras pessoas tivessem oração. Mesmo acossada por essas vaidades, eu percebia que elas gostavam de rezar e lhes dizia como meditar, e lhes dava livros, o que lhes trazia proveito. Porque esse desejo de que outros servissem a Deus, eu o tinha, como já disse,10 desde que comecei a fazer oração. Eu julgava justo que, como não servia ao Senhor de acordo com a minha consciência, a iluminação que Sua Majestade me dera não se perdesse, levando outros a servi-lo por mim. Narro-o para que se veja a minha grande cegueira ao me deixar perder e procurar ao mesmo tempo salvar os outros.

14. Nessa época meu pai foi acometido da doença que o matou, e que durou alguns dias. Fui cuidar dele, estando mais enferma da alma do que ele do corpo, presa de muitas vaidades, embora não de forma que — pelo que eu sabia — estivesse em pecado mortal nesse tempo perdido de que falo, pois, entendendo-o eu, de nenhuma maneira o estaria.

Enfrentei grandes trabalhos durante a sua doença. Creio tê-lo compensado pelo que ele passara com as minhas. Apesar de estar muito mal, eu me esforçava, pois, faltando-me ele, faltar-me-iam todo o bem e todo o consolo que ele me trazia.11 Fingindo nada sentir, mostrei-me forte, sem deixá-lo perceber a minha pena, tendo ficado ao seu lado até que expirasse; no entanto, tive a impressão, ao ver que a sua vida acabava, de que me arrancavam a alma, tanto era o amor que lhe tinha.

15. A sua morte e a sua vontade de morrer foram dignas de louvores ao Senhor. Ele nos aconselhou, depois de ter recebido a Santa Unção, encarregando-nos de encomendá-lo a Deus, de pedir misericórdia para ele; disse-nos que sempre O servíssemos, que nos lembrássemos de que tudo desta vida se acaba. Falava-nos, em lágrimas, do grande pesar de não ter servido ao Senhor como deveria; meu pai desejava ter sido um frade que seguisse a mais estreita observância.

Tenho certeza de que, quinze dias antes, o Senhor o fizera ver que não havia de viver; porque, antes disso, embora estivesse mal, não pensava nisso; a partir de então, embora melhorasse e fosse consolado pelos médicos, pouco caso fazia disso e só se importava em preparar a alma.

16. O que mais o afligia era uma permanente dor, muito forte, nas costas; esta se tornava às vezes tão aguda que o atormentava. Eu lhe disse que, por ser ele tão devoto do Senhor carregando a cruz, pensasse que Sua Majestade desejava, com essa dor, levá-lo a sentir algo do que sofrera com aquela dor. Foi tal a sua consolação que, pelo que sei, ele nunca mais gemeu.

Ele passou três dias quase sem sentidos. No dia da morte, o Senhor lhe devolveu a consciência de um modo tão perfeito que nos causou admiração. Assim se manteve até que, no meio do Credo, que ele mesmo dizia, expirou. Parecia um anjo — e estou convencida de que realmente o fosse, por ter alma tão boa, bem como disposição.

Não sei por que contei isso, a não ser para culpar mais a minha vida ruim depois de ter visto aquela morte e de ter entendido aquela vida. Eu deveria ter melhorado, pelo menos para ser um pouco parecida com o meu pai. Seu confessor, um dominicano12 muito erudito, falou que não duvidava de que meu pai tivesse ido direto para o céu. Como o confessava há alguns anos, esse dominicano louvava a sua pureza de consciência.13

17. Esse padre dominicano, virtuoso e temente a Deus, muito me ajudou. Confessei-me com ele, e ele se encarregou de zelar pela minha alma e de alertar-me para a perdição a que eu me entregara. Ele me fazia comungar de quinze em quinze dias. E, pouco a pouco, no contato com ele, falei-lhe de minha oração. Ele me disse que não a abandonasse, que ela só me podia trazer proveito. Comecei a voltar a ela, embora sem evitar as ocasiões de pecado, e nunca mais a deixei.

A minha vida era trabalhosa ao extremo, porque, na oração, eu via melhor as minhas faltas. De um lado, Deus me chamava; do outro, eu seguia o mun­do. Davam-me grande alegria todas as coisas de Deus, mas eu me via li­gada às do mundo. Tenho a impressão de que desejava conciliar esses dois co­ntrários, tão inimigos um do outro: a vida espiritual e os gostos, alegrias e divertimentos dos sentidos. Na oração, eu passava por grandes trabalhos, por­que o espírito não era senhor, mas escravo; por isso, eu não podia me recolher dentro de mim (que era o meu modo de proceder na oração) sem levar comigo mil vaidades.

Passei assim muitos anos, a ponto de agora me espantar com o fato de uma criatura poder sofrer tanto tempo sem deixar um ou outro desses contrá­rios. Bem sei que deixar a oração já não estava em minhas mãos, porque Aquele que me queria para me conceder maiores graças me sustentava com as Suas.

18. Oh! Valha-me Deus! Se eu pudesse dizer as ocasiões de que Sua Majestade me livrou nesses anos, e de como eu tornava a me envolver nelas, para não falar do risco, de que Ele me afastou, de perder todo o crédito. E eu, nas minhas obras, revelava quem era, enquanto o Senhor, encobrindo o mal, fazia surgir alguma pequena virtude, se é que eu a tinha, tornando-a gran­­de aos olhos de todos, de modo que estes sempre me tinham em alta conta! Porque, apesar de algumas vezes as minhas vaidades se evidenciarem, todos viam outras coisas que pareciam boas e por isso não acreditavam naquelas.

O Conhecedor de todas as coisas já via então que isso era necessário para que eu tivesse algum crédito mais tarde, quando me dedicasse a Seu serviço. Sua soberana grandeza não via os grandes pecados, mas sim os desejos que eu muitas vezes tinha de servi-Lo e o pesar por não ter em mim forças para levá-lo a efeito.

19. Ó Senhor da minha alma! Como poderei enaltecer as graças que me concedestes nesses anos? E o fato de, na época em que eu mais Vos ofendia, Vós logo fazerdes com que eu me arrependesse para fruir dos Vossos favores e consolações? Na verdade, escolhíeis, Rei meu, o castigo mais delicado e mais penoso que podia existir, pois bem sabíeis o que mais dores me causaria. Castigáveis as minhas faltas com enorme ternura.

E não acredito dizer desatinos, embora pudesse estar desatinada, ao recordar a minha ingratidão e maldade.

Para mim, era muito mais penoso receber mercês, tendo cometido graves faltas, do que receber castigos. Uma única graça por certo me abalava, confun­dia e fatigava mais do que as minhas muitas enfermidades, ao lado de outras provações. Estas últimas, como eu bem o via, eram merecidas, expiando de alguma maneira um pouco dos meus grandes pecados (embora tudo fosse pouco, porquanto eles eram muitos). Mas ser recebida com ternura outra vez, tendo sido tão ingrata nas anteriores, era um tormento ine­narrável para mim e, acredito, para todos os que têm algum conhecimento ou amor de Deus, algo que, sendo virtuosos, podemos perceber aqui. Vinham­-me lágrimas e aborrecimentos por eu ver o que sentia, percebendo-me prestes a cair outra vez, embora a minha determinação e o meu desejo fossem fi­rmes naquela hora.

20. Grande mal é estar a alma só entre tantos perigos. Tenho a im­pressão de que, se tivesse com quem falar disso tudo, eu teria tido ajuda para não fraquejar outra vez, ao menos por vergonha, já que, com relação a Deus, já não a tinha.

Por isso, eu aconselharia aos que têm oração que, especialmente no prin­­­cípio, procurem ter amizade e relações com pessoas que se ocupem da mesma coisa. Isso é importantíssimo, pois, além da ajuda mútua nas orações, muito há a lucrar aí! E não sei por que (já que, para conversas e prazeres hu­­manos, mesmo que não sejam muito bons, procuramos amigos com quem folgar e melhor aproveitar esses prazeres vãos) não se há de permitir à alma que começa a amar e a servir a Deus com sinceridade que compartilhe da companhia de pessoas que têm oração, confiando-lhes suas alegrias e tris­te­zas, visto serem os seus sentimentos os mesmos. De fato, quem realmente deseja obter a amizade do Senhor não deve temer a vanglória, para que, ao primeiro sinal de fraqueza, possa escapar com mérito. Creio que, tendo esse objetivo, obterá maior proveito para si e para os seus ouvintes, adquirirá mais experiência e, ainda sem entender como, ensinará a seus amigos.

21. Quem se vangloriar por conversar sobre isso também terá vanglória em ouvir a missa com devoção quando estiver sendo observado, bem como em praticar outras coisas que, a não ser que deixe de ser cristã, a pessoa tem de fazer sem temer a vanglória.

Porque isso tem tamanha importância para almas que não estão fortalecidas na virtude — que têm tantos inimigos e amigos a incitá-las ao mal — que não sei como insistir mais. Acho que o demônio usa um ardil que muito lhe serve: ele leva os bons a ocultar o fato de buscarem realmente amar e contentar a Deus; e tem incitado a que se descubram outras amizades pouco honestas, tão em uso, quase se gloriando delas e chegando a apregoar as ofensas que, assim agindo, cometem contra Deus.

22. Não sei se falo despropósitos. Se o faço, que Vossa Mercê os revele; e, se não o faço, suplico-vos que me ajudeis na minha ignorância, acrescentando aqui outros elementos. Porque as coisas do serviço de Deus já andam tão fracas que é necessário, aos que O servem, apoiarem-se mutuamente para irem em frente, tal é a fama de bondade dos divertimentos e vaidades mundanos — para os quais poucos olhos estão atentos.14 Contudo, se uma única al­ma começa a cuidar de Deus, são tantos os murmúrios que ela é obrigada a procurar defesa e companhia até ficar forte e não ter medo de padecer. Se não o fizer, ver-se-á em grandes apuros.

Creio ser esse o motivo de muitos santos irem viver nos desertos; é pró­prio do humilde não confiar em si mesmo, mas acreditar que o Senhor lhe da­rá auxílio em atenção àqueles com quem conversa, pois a caridade aumenta ao ser transmitida, havendo mil benefícios a ser obtidos, de que eu não falaria se não tivesse grande experiência da enorme importância disso.

Reconheço ser mais fraca e ruim que todos os nascidos, mas acredito que quem se humilha, embora sendo forte, nunca perde, razão por que precisa dar crédito a quem tem mais experiência. Quanto a mim, digo ape­­nas que, se o Senhor não me tivesse revelado essa verdade e me dado con­­dições de ter contatos freqüentes com pessoas que têm oração, eu teria ter­­minado, caindo e levantando, no centro do inferno. Para a queda, tinha a aju­­­da de muitos; para levantar-me, no entanto, estava tão sozinha que até hoje me espanta não ter caído de vez. Louvo a misericórdia de Deus, pois só Ele me dava a mão.

Bendito seja para sempre e sempre. Amém.

Capítulo 8

Fala do grande bem que obteve do fato de não se afastar por inteiro da oração para não perder a alma e do grande auxílio que isso é para se recuperar o que se perdeu. Defende essa prática por parte de todos. Diz que são grandes os ganhos dela decorrentes e que, mesmo que a deixem, é muito bom fruir por algum tempo de tão grande bem.

1. Houve uma causa para que eu insistisse tanto em relatar essa época da minha vida. Sei bem que não agrada a ninguém ver coisa tão ruim, e por cer­to eu gostaria que os que lessem isto me detestassem ao ver uma alma tão teimosa e ingrata para com quem tantas graças lhe tem dado. Gostaria de ter permissão para falar das muitas vezes que, nessa época, falhei diante de Deus, por não1 me ter apoiado na forte coluna da oração.

2. Singrei esse mar tempestuoso durante quase vinte anos, caindo e levan­tan­do — levantando-me mal, pois voltava a cair. Era tão pouca a minha per­­feição que quase não me importava muito com os pecados veniais, e, em­bora temendo os mortais, nem por isso me afastava dos perigos. Trata-se de uma das vidas mais penosas que, a meu ver, se pode imaginar: eu não me rejubilava em Deus nem me alegrava no mundo. Nos contentamentos mundanos, era atormentada pela lembrança do que devia a Deus; quando estava com Ele, era perturbada pelos contentamentos do mundo. É tão dura essa batalha que nem sei como suportaria um mês, quanto mais tantos anos.

Porém, vejo claramente a grande misericórdia do Senhor ao me dar ânimo para orar enquanto eu tratava com o mundo. Digo ânimo, porque não creio que haja na terra algo que exija mais coragem do que trair o rei, sabendo que ele o sabe, sem conseguir sair de sua presença. Naturalmente, todos estão sempre diante de Deus; mas, para quem trata da oração, isso ocorre em outro plano; enquanto estes percebem que o Senhor os olha, os outros conseguem às vezes passar muitos dias sem nenhuma lembrança de que Deus os vê.

3. É verdade que, nesses anos, houve muitos meses e, talvez, anos em que eu não ofendi ao Senhor, dedicando-me à oração e me esforçando para não desagradá-lo. Digo-o para não faltar à verdade. Pouco me lembro dessas boas épocas, que devem ter sido raras, já que as outras foram muito mais numerosas. Poucos dias passei sem ter longos períodos de oração, a não ser que estivesse muito mal de saúde ou bastante ocupada; quando estava doente, relacionava-me melhor com Deus, procurando levar as pessoas próximas a assim ficarem, suplicando ao Senhor que as ajudasse e falando dele freqüentemente.

Desse modo, afora o ano de que falo, em vinte e oito anos de oração, passei mais de dezoito nessa luta entre lidar com Deus e lidar com o mundo.2 Nos outros, de que ainda vou falar, mudou a razão da contenda, mas a guerra ainda é dura. Contudo, estando, a meu ver, a serviço de Deus e com conhecimento da vaidade que é o mundo, tudo foi suave, como adiante direi.

4. Eu me estendi tanto, como já disse,3 para que se vejam a misericórdia de Deus e a minha ingratidão, bem como para que se compreenda o grande be­nefício que Deus dá à alma dispondo-a a ter oração com vontade, mesmo que a sua dis­posição não seja a necessária. Com perseverança, tenho certeza de que o Senhor conduzirá a alma a um porto de salvação, como — pelo que vejo agora — fez comigo, apesar dos pecados, tentações e mil quedas que o de­mônio ocasiona. Queira Sua Majestade que eu não volte a me perder.

5. O bem que quem pratica a oração — refiro-me à oração mental — obtém já foi tratado por muitos santos e homens bons. Glória a Deus por isso! Se assim não fosse, embora pouco humilde, eu não sou tão soberba que me atre­vesse a falar disso.

Do que tenho experiência posso falar: quem começou a ter ora­ção não deve deixá-la, por mais pecados que cometa. Com ela, terá como se recuperar e, sem ela, terá muito mais dificuldades. E que o demônio nunca tente ninguém como tentou a mim, levando-me a abandonar a oração por hu­­mildade; creiam-me que as palavras do Senhor não hão de faltar se nos arre­pendermos de verdade e tivermos o firme propósito de não mais ofendê-Lo; nesse caso, Ele nos recebe com a mesma amizade, concedendo-nos as mes­mas graças de antes e, às vezes, se o arrependimento fizer jus a isso, muitas mais.

Por isso, peço aos que ainda não começaram que, por amor a Deus, não se privem de tanto bem. Não há o que temer, mas o que desejar. Porque, mes­mo que não vá adiante nem se esforce pela perfeição, a ponto de merecer os gostos e regalos que Deus dá aos perfeitos, ao menos irá conhecendo o ca­minho que leva ao céu. Se perseverar, tudo espero da misericórdia de Deus, pois ninguém fez amizade com Ele sem dele obter grande recompensa.4 Para mim, a oração mental não é senão tratar de amizade — estando muitas vezes tratando a sós — com quem sabemos que nos ama. E se ainda não O amais (porque, para que o amor seja verdadeiro e duradoura a amizade, deve haver compatibilidade; o Senhor exige, como se sabe, que não se cometam faltas, que se seja perfeito; nós, no entanto, somos viciosos, sensuais e ingratos), não podeis por vós mesmos chegar a amá-Lo, porque não é de vossa condição; mas, levando-se em conta o muito que Ele vos ama e o quanto vale ter a Sua amizade, passai pelo sofrimento de estar muito na presença de quem é tão diferente de vós.

6. Ó infinita bondade do meu Deus, que me parece que Vos vejo e me vejo dessa maneira! Ó delícia dos anjos, que, ao ver isso, todo o meu ser gostaria de desfazer-se em Vosso amor! Como é certo que sofreis com quem sofre por ter-Vos junto a si. Que bom amigo sois, Senhor meu! Como vais brindando a alma, e sofrendo, à espera de que ela alcance Vossa condição, suportando a sua, até que ela o consiga! Considerais, Senhor meu, os instantes em que ela o quer e, por um vislumbre de arrependimento de sua parte, esqueceis que ela Vos tem ofendido!

Vi isso com clareza em mim mesma, e não entendo, Criador meu, por que o mundo inteiro não procura travar convosco essa amizade particular. Os maus, que não têm a Vossa condição, deviam fazê-lo para que nos fizésseis bons. Isso acontecerá se eles permitirem que estejais com eles ao menos duas horas por dia, mesmo que não estejam convosco, mas às voltas com mil cuidados e pensamentos do mundo, como eu fazia. Devido ao esforço que fazem por querer estar em tão boa companhia, sabeis que, no princípio, e até depois, não podem fazer mais; Vós, como recompensa, impedis os ataques dos demônios, reduzindo a força destes a cada dia, ao mesmo tempo que for­taleceis a alma. Jamais matais os que confiam em Vós e que Vos querem por amigo — Vida de todas as vidas! Vós lhes sustentais a vida do corpo, dan­do-lhes mais saúde, vivificando a alma.

7. Não entendo o que temem os que temem começar a ter oração mental, nem sei de onde vem esse medo. Bem sabe o demônio criá-lo para provocar o verdadeiro mal, levando-me, pelo terror, a não pensar em que ofendi a Deus nem no muito que Lhe devo; assim agindo, ele não deixa que pensem no inferno, na glória e nos grandes sofrimentos e dores que Deus passou por mim.

Nessas coisas consistiu toda a minha oração enquanto eu corria esses perigos, sendo esses os meus pensamentos quando eu podia. E muitas vezes, durante alguns anos, eu me preocupava mais em desejar que passasse o tempo para mim determinado de estar ali e em escutar quando batia o relógio, do que em outras coisas boas. Com freqüência, acolhia com maior vontade alguma penitência grave do que o recolhimento em oração.

E é certo que a força que o demônio fazia — ou o meu mau costume — era tão incomparável, e tamanha a tristeza que eu sentia ao entrar no oratório, que eu precisava empregar todo o meu ânimo (que, dizem, não é pouco, tendo Deus me feito mais corajosa do que a maioria das mulheres, embora eu a tenha usado mal) para me obrigar, contando por fim com a ajuda do Senhor.

E, depois de me ter obrigado assim, eu ficava com maior quietude e alegria do que algumas vezes em que tinha desejo de rezar.

8. Porque, se o Senhor suportou por tanto tempo alguém tão ruim quanto eu, sendo claro que foi por isso que se curaram todos os meus males, que pessoa, por pior que seja, poderá temer? Porque, por mais que o seja, não o será por tantos anos depois de ter recebido tantas graças do Senhor. Quem poderá duvidar disso se o Senhor tanto me suportou, apenas porque eu desejava e procurava algum lugar e tempo para que Ele estivesse comigo, e isso muitas vezes sem vontade, graças à grande força que eu empregava contra mim ou que o próprio Senhor usava em mim? Se para os que não O servem, mas O ofendem, a oração faz tão bem e é tão necessária, quem poderia objetar que não há maior dano para os que servem a Deus e O querem servir do que deixar de fazê-la? Com certeza não posso entender que as pessoas passem com mais dores pelos sofrimentos da vida ao fecharem para Deus a porta através da qual Ele lhes daria a verdadeira felicidade. Na verdade, tenho pena delas, pois servem a Deus prejudicando a si mesmas, enquanto os que se dedicam à oração recebem a ajuda do Senhor, que, por menos que eles se esforcem, lhes dá contentamento para que suportem os sofrimentos.

9. Como tratarei adiante das alegrias dadas pelo Senhor aos que perseveram na oração, nada falarei aqui. Digo apenas que a oração foi a porta que me levou às grandes graças que recebi; se a fecharmos, não sei como Ele as poderá conceder; porque, ainda que queira entrar para deliciar-se com uma alma e cumulá-la de contentamento, Deus não terá por onde, pois a quer sozinha, pura e com vontade de recebê-Lo. Se lhe impusermos obstáculos e nada fizermos para retirá-los, como Ele poderá vir até nós? E ainda queremos que Deus nos conceda grandes favores!

10. Para que todos vejam a misericórdia de Deus e o grande benefício que tive por não ter abandonado a oração e a lição ou leitura, falarei, pois importa muito que se entenda isso, de como o demônio ataca uma alma para conquistá-la, e do artifício e benevolência com que o Senhor busca levá-la para Si. Digo-o para que se acautelem dos perigos que não evitei. Peço sobretudo, por amor de Nosso Senhor e pela grande afeição com que Ele procura fazer-nos voltar para Si, que se evitem as ocasiões de pecado; porque, uma vez nelas, em nada podemos confiar numa guerra onde tantos inimigos nos combatem e onde são tão fracas as nossas defesas.

11. Eu gostaria de saber descrever a escravidão da minha alma naquela época, porque bem entendia que estava cativa, mas não percebia em que con­sistia o cativeiro, nem podia crer de todo que aquilo que os confessores não consideravam tão grave fosse tão ruim como eu o sentia em minha alma. Um deles, a quem consultei a respeito de uma reserva minha, disse-me que, mesmo que eu chegasse a um alto grau de contemplação, as relações e conversas de que eu me ressentia não me fariam mal.

Isso aconteceu nos últimos tempos, quando eu, com o favor de Deus, me afastara mais dos grandes perigos, apesar de não evitar por inteiro as ocasiões. Como me viam com bons desejos e ocupada com a oração, pensavam que eu fazia muito; minha alma, contudo, sabia que eu não fazia o que Aquele a quem eu tanto devia merecia. Lamento agora o quanto a minha alma sofreu, e a pouca ajuda que recebeu, a não ser de Deus, bem como a liberdade que lhe era dada para os passatempos e alegrias por aqueles que os consideravam lícitos.

12. Não era pequeno o meu tormento nos sermões, de que gostava muito. Quando eu via alguém pregar com espírito e discorrer bem, adquiria por essa pes­soa uma afeição particular, sem que eu a procurasse e sem saber de onde me vi­nha. Quase nunca o sermão me parecia tão ruim que eu não o ouvisse com von­tade, embora os presentes dissessem que [o pregador] não pregava bem. Se fosse bom, causava-me um deleite particular. Eu quase nunca me cansava de falar de Deus ou de ouvir sobre Ele depois que comecei a ter oração. De um lado, con­se­guia grande consolo nos sermões, mas, de outro, me atormentava, porque eles me faziam ver que em muitas coisas eu não era como devia ser. Eu suplicava ao Senhor que me ajudasse; mas, pelo que vejo agora, eu não depositava total con­fiança em Sua Majestade nem perdia de todo a que punha em mim. Eu pro­curava soluções, fazia esforços; mas ainda não compreendia que isso de nada serve se, mesmo não confiando por inteiro em mim, eu não pusesse a confiança em Deus.

Eu desejava viver, pois bem entendia que não vivia, combatendo, em vez disso, uma sombra da morte, sem que ninguém me desse vida e sem poder consegui-la eu mesma; e quem podia dá-la a mim tinha razão para não socorrer--me, pois tantas vezes me chamara a Si e outras tantas fora abandonado.

Capítulo 9

Conta de que modo o Senhor começou a despertar a sua alma, dando-lhe luz em tão grandes trevas, e a fortalecer suas virtudes para não ofendê-Lo.

1. A minha alma já estava cansada e, embora quisesse, seus maus costumes não a deixavam descansar. Aconteceu-me de, entrando um dia no oratório, ver uma imagem guardada ali para certa festa a ser celebrada no mosteiro. Era um Cristo com grandes chagas que inspirava tamanha devoção que eu, de vê-Lo, fiquei perturbada, visto que ela representava bem o que Ele passou por nós.1 Foi tão grande o meu sentimento por ter sido tão mal-agradecida àquelas chagas que o meu coração quase se partiu; lancei-me a seus pés, derramando muitas lágrimas e suplicando-lhe que me fortalecesse de uma vez para que eu não O ofendesse.

2. Eu era muito devota da gloriosa Madalena e muitas vezes pensava em sua conversão, em especial quando comungava, certa de que o Senhor estava dentro de mim, pondo-me a Seus pés, por ter a impressão de que as minhas lá­grimas não seriam desdenhadas; e eu não sabia o que dizia (pois muito fa­zia quem permitia que eu as derramasse, já que eu logo esquecia aquele sen­timento), encomendando-me a essa gloriosa Santa para que ela me alcanças­se o perdão.

3. Mas esta última vez, com a imagem de que falei, parece-me ter sido mais proveitosa, porque eu já desconfiava muito de mim mesma e depositava toda a minha confiança em Deus. Creio que eu disse que não me levantaria dali enquanto a minha súplica não fosse atendida. Tenho certeza de que isso me beneficiou, porque a partir de então fui melhorando muito.

4. Eu rezava assim: como não podia raciocinar com o intelecto, esforçava-me por representar Cristo dentro de mim, e sentia-me melhor — ao que pa­rece — nas passagens onde o via mais sozinho. Eu acreditava que, estando só e aflito, Ele haveria de me acolher, sendo eu pessoa necessitada. Eram mui­tas as minhas simplicidades desse tipo.

Eu me sentia muito bem, em especial na oração do Horto, onde Lhe fazia companhia; ficava pensando no suor e na aflição que ele sofrera, desejando, caso fosse possível, enxugar-Lhe o suor tão doloroso, mas lembro-me de que nunca ousei fazê-lo, pois vinham à lembrança os meus graves pecados; eu fi­cava ali, com Ele, enquanto os meus pensamentos deixavam, porque eram muitos os que me atormentavam. Por longos anos, quase todas as noites, antes de dormir, ao me encomendar a Deus para dormir, eu sempre pen­­sava um pouco nessa passagem da oração do Horto, mesmo antes de ser monja, porque me disseram que com isso se obtinham muitos perdões; e tenho para mim que a minha alma muito ganhou com isso, porque comecei a orar sem saber que o fazia, tendo esse costume ficado tão constante que nunca o aban­donei, assim como nunca deixei de me persignar para dormir.

5. Voltando ao que dizia do tormento que os pensamentos me tra­ziam: proceder sem o discurso do entendimento requer que a alma esteja muito con­centrada ou perdida, perdida em distrações. Aproveitando, é grande o ga­nho da alma, por ser progresso no amor. Mas, para chegar a isso, fazem--se grandes esforços, a não ser que o Senhor se digne conduzir a alma, num breve espaço de tempo, à oração de quietude, o que acontece com algumas pessoas que conheço. Para quem segue esse caminho, é útil um livro que leve ao rápido recolhimento. Eu também me beneficiava de ver campos, águas, flores; encontrava nessas coisas a lembrança do Criador, isto é, elas me despertavam e me recolhiam, servindo-me de livros, ao mesmo tempo que me lembrava da minha ingratidão e dos meus pecados. Era tão grosseiro o meu intelecto que jamais pude imaginar coisas do céu ou coisas elevadas, até que o Senhor as representasse de outra maneira para mim.

6. Eu era tão pouco hábil na representação de imagens mentais que, se não visse com os meus próprios olhos, pouco uso fazia da imaginação, ao contrá­rio de certas pessoas que conseguem servir-se dela quando se recolhem. Eu só podia pensar em Cristo como homem, mas nunca pude representá--Lo no meu interior, por mais que lesse sobre a Sua beleza e por mais que con­­templasse as Suas imagens; eu agia como uma pessoa cega ou no escuro, e que, falando com outra, sabe que está com ela porque tem certeza da sua pre­sença (digo, percebe e crê que ela está ali, mas não a vê); assim ficava eu quando pensava em Nosso Senhor. E por isso eu gostava tanto de imagens. In­felizes os que por sua culpa perdem esse bem! Bem parece que não amam o Senhor, porque, se o amassem, gostariam de ver o Seu retrato, como no mun­do há prazer em contemplar o retrato daqueles a quem se quer bem.

7. Deram-me nessa época as Confissões de Santo Agostinho.2 Parece que o Senhor o ordenou, porque nunca as procurei nem as tinha visto. Sou muito afei­çoada a Santo Agostinho, porque o mosteiro onde fui secular era de sua Ordem,3 e também por ele ter sido pecador. Nos santos que o foram e, de­pois de sê-lo, foram atraídos outra vez pelo Senhor eu encontrava muito con­solo, parecendo-me que neles encontraria ajuda e que, como os havia per­doado, o Senhor também poderia me perdoar. Só uma coisa me desconso­lava, como eu disse:4 o Senhor só os chamou uma vez, e eles não voltaram a cair; quanto a mim, já eram tantos os chamados que isto me afligia. Mas, considerando o amor que Ele tinha por mim, eu me reanimava, pois da Sua misericórdia jamais duvidei, enquanto de mim duvidava com freqüência.

8. Valha-me Deus! Como me espanta a teimosia da minha alma, apesar de tanta ajuda de Deus! Traz-me medo ver minha grande fraqueza e os vín­culos que me impediam de me entregar por inteiro a Deus.

Começando a ler as Confissões, tive a impressão de me ver ali. Passei a encomendar-me muito a esse glorioso Santo. Quando cheguei à sua conversão e li que ele ouvira uma voz no jardim,5 senti ser o Senhor quem me fa­lava, tamanha foi a dor do meu coração. Passei muito tempo chorando, com grande aflição e sofrimento. Como sofre uma alma, valha-me Deus, por perder a liberdade de ser senhora de si mesma, e que tormentos padece! Hoje me admiro por ter podido viver com tanta aflição. Glória a Deus, que me deu vida para eu sair de uma morte tão mortal.

9. A minha alma ganhou grandes forças da Divina Majestade, que deve ter ouvido minhas súplicas e ter-se condoído por tantas lágrimas. Aumentou em mim a vontade de ficar mais tempo com Ele; passei a fugir das ocasiões de pecado porque, livre delas, logo voltava a amar Sua Majestade. Eu bem sabia que o amava, mas não compreendia, como iria entender, o que é amá--Lo verdadeiramente.

Creio que eu nem bem me dispunha a querer servi-Lo e Sua Majestade já recomeçava a me deliciar. Eu via que aquilo que os outros procuram adquirir com muito esforço, o Senhor instava comigo para que eu o recebesse, visto que, nos últimos anos, já me concedia gostos e regalos.6 Jamais me atrevi a suplicar que me desse isso ou ternura de devoção; eu lhe pedia apenas que me desse graças para que não O ofendesse e que perdoasse os meus grandes pecados. Vendo-os tão grandes, nunca me atrevi conscientemente a desejar regalos ou gostos. Para mim, a Sua piedade já fazia demais permitindo-me permanecer diante de Si e trazendo-me à Sua presença, pois eu via bem que, se Ele não me procurasse tanto, eu sozinha nunca o faria.

Lembro-me apenas de uma ocasião em que Lhe pedi consolações, por estar muito necessitada; porém, vendo que o fazia, fiquei tão confusa que a dor de me ver com tão pouca humildade me deu o que eu me atrevera a pedir. Eu sabia que não era errado pedi-las, mas achava que quem as merecia eram os que estavam bem dispostos, e que tinham procurado a verdadeira devoção com todas as suas forças, sendo esta não ofender a Deus e estar pronto e determinado para todo bem. Eu pensava que as minhas lágrimas eram coisinhas de mulher, ineficazes, pois eu não conseguia com elas o que desejava. No entanto, acho que me valeram; porque, especialmente depois dessas duas vezes7 de tão grande arrependimento e de tanta dor no coração, passei a me dedicar mais à oração e a me afastar das coisas que me pudessem trazer a perdição, embora não o fizesse de todo, contando com a ajuda de Deus para delas me separar. Como Sua Majestade só esperava alguma correspondência de minha parte, as graças espirituais foram aumentando da maneira como vou contar. Trata-se de algo incomum, porque o Senhor as costuma dar aos que têm maior pureza de consciência.


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