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domingo, 1 de maio de 2011

PALESTRAS DO I CICLA SUL AMERICA LATINA PARTE III E IV


A dimensão apostólica na formação do Discípulo Missionário - a partir do Documento de

Aparecida, II parte, capítulos V e VI.

I Cicla Sul OCDS

· Texto elaborado por Frei Fabiano Alcides, ocd


Introdução

A Igreja pós-Concílio Vaticano II convida a todos os cristãos a uma vivência mais comprometida com a sociedade na qual vivemos. Para tanto pede aos seus filhos que se disponham a preparar-se bem para que sua atuação no mundo seja eficaz e possa se tornar um sinal visível da presença de Cristo.

Este nosso encontro tem por finalidade ajudar-nos neste aprofundamento da nossa vocação cristã e carmelitana para exercermos bem este projeto da Igreja.

Este texto apresenta uma síntese dos Capítulos V e VI da segunda parte do Documento de Aparecida acerca do processo formativo dos discípulos missionários de Jesus Cristo. Essa síntese procura enfocar esse processo formativo, a partir da vocação carmelitana secular à luz da Ratio e do Caminho de Perfeição, a fim de nos ajudar a amar e servir a Igreja como era o desejo de Santa Teresa.

Contexto histórico

Com o intuito de receber uma formação verdadeiramente apostólica para fazer com que a missão da OCDS seja realmente fecunda no meio da sociedade, faz-se necessário compreender um pouco a realidade atual na qual estamos inseridos, tendo sempre em vista que “a formação é para a missão” e que “a missão é inseparável do discipulado” (DA 278, e).

O DA já ressalta claramente os desafios que o mundo de hoje apresenta à Igreja de Jesus (185). Percebe-se uma grande saída dos fiéis da Igreja para frequentarem seitas e vários outros grupos religiosos; verifica-se também o crescimento de correntes culturais contrárias a Cristo e à Igreja, mas que atraem os fiéis, direta ou indiretamente; certa desmotivação dos sacerdotes diante dos desafios pastorais; a escassez de sacerdotes em muitos lugares; uma grande mudança de paradigmas culturais; o fenômeno da globalização, o relativismo, a secularização; os graves e grandes problemas de violência, pobreza e injustiça; a crescente cultura da morte que afeta a vida em todas as suas formas.

A família, chamada a ser uma “célula viva da sociedade”, “patrimônio da humanidade” encontra-se destruída pelo egoísmo, é substituída pelos trabalhos, gerando falta de tempo, falta de afeto, falta de diálogo e até mesmo o divórcio, etc.

A escola apresenta “um sério reducionismo antropológico, tentando se adaptar às novas exigências que se vão criando com a mudança global, concebem a educação somente em vista da produção, da competitividade e do mercado. Tantas vezes propiciam a inclusão de fatores contrários à vida, à família e à sexualidade” (328). Não podemos perder de vista que todo processo formativo deve promover a formação integral de toda a pessoa e da pessoa toda.

Tendo em vista esta realidade na qual a Igreja está inserida, o DA destaca que “a formação dos leigos e leigas deve contribuir, antes de mais nada, para sua atuação como discípulos missionários no mundo, na perspectiva do diálogo e da transformação da sociedade” (283). Para que haja um discipulado que seja realmente missionário, “é urgente uma formação específica para que possam ter incidência significativa nos diferentes campos, sobretudo, como afirma a Encíclica Evangelii Nuntiandi, “no vasto mundo da política, da realidade social e da economia, como também da cultura, das ciências e das artes, da vida internacional, dos meios de comunicação e de outras realidades abertas à evangelização” (70).

A Ratio da OCDS coloca entre os aspectos essenciais da formação, “a capacidade de perseverar nos compromissos”, uma formação que tende a aumentar o apreço pela consagração batismal, o fervor em viver as exigências do seguimento de Cristo, a formação carmelitana como uma confirmação da identidade carmelitana através da formação para o apostolado como fundamento no ensinamento eclesial” (13-15).

É com esta consciência e com este interesse pela formação que os leigos do Carmelo Secular poderão ser “sal da terra e luz do mundo”, pois na medida em que crescem na consciência de sua consagração batismal, na sua vocação específica e na sua entrega radical ao serviço do Reino por meio da identidade carmelitana, é que poderão anunciar com suas vidas a Boa Nova de Cristo.

A tarefa da Ordem, como afirma a Ratio, “consiste hoje em ser continuadores da linha ininterrupta de educadores deixada pela tradição e que preparam no e para nosso tempo, pessoas atuais para a Igreja” (21).

Que a virgem Maria possa estreitar nossos vínculos fraternos, para que, unidos a ela, possamos também nós Carmelitas, sermos geradores de vida para a sociedade e sermos como Maria, a grande missionária, bons anunciadores do Reino de Deus.

A dimensão apostólica na formação do Discípulo missionário a partir do Documento de Aparecida, II parte, capítulos V e VI

Para compreendermos bem a dimensão apostólica na formação dos discípulos missionários é necessário partir do imperativo dado por Jesus: “Ide por todo o mundo e fazei que todos se tornem meus discípulos e batizai-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” (Mt 28, 16-20). É, imbuídos desta certeza que nos empenhamos neste caminho da formação, pois a cada instante aumentam as exigências do mundo, da Igreja, da família e temos que estar prontos para o anúncio.

Cada vez mais, devido às grandes transformações na sociedade, se faz necessário uma preparação mais qualificada dos discípulos missionários. Tal preparação não é um privilégio, mas sim uma necessidade que brota da exigência do Evangelho. Por meio da consciência deste imperativo de Jesus é que nós nos empenhamos e vemos tal imperativo não como uma obrigação nem como um fardo pesado para carregar, mas sim um dom, um chamado para anunciar que o nosso Deus é um Deus vivo (Dt 5,26), que liberta dos opressores (Ex 3,7-10), que perdoa incansavelmente (Ex 34,6; Eclo 2,11), que restitui a salvação perdida (Sl 116,3), que é Deus dos vivos (Mc 12,27).

O processo formativo, inerente à espiritualidade teresiana, nos leva ao encontro com Cristo, pois nos convida a ter uma vida orante, a um encontro pessoal com Cristo, autor e consumador de nossa vocação. Nosso Mestre “nos convida a encontrar com Ele e a que nos vinculemos estreitamente a Ele, porque é a fonte da vida (Jo 15,1-5) e só Ele tem palavras de vida eterna” (Jo 6,68; DA 131). Este encontro com Cristo se alimenta na medida em que cresce a consciência de que somos de Deus, necessitamos de Deus, e que Deus é nosso, como nos ensina Santa Teresa “meu Amado é para mim e eu sou para o meu Amado” (Poesia III).

Nesta intimidade com Cristo vamos percebendo, como os discípulos também perceberam, que não fomos nós que escolhemos este caminho, mas foi o Senhor quem nos escolheu (Mc 1,16-20). Jesus também nos chama para que nos vinculemos intimamente à pessoa d’Ele (Mc 1,17), para que possamos ser enviados a pregar (Mc 3,14) e assim poder participar da sua missão anunciando com alegria a boa nova da dignidade humana, a boa nova da vida, da família, a boa nova da dignidade humana nos nossos trabalhos, através da ciência e da tecnologia, do destino universal e da ecologia, etc.

O Documento de Aparecida ressalta que “neste encontro com Cristo, queremos expressar a alegria de sermos discípulos do Senhor e de termos sido enviados com o tesouro do Evangelho” (28). É justamente com esta alegria, com esta certeza que nos vem da fé, que assumimos nossa vocação como um dom e esta dimensão apostólica na formação como uma necessidade.

Assim sendo, a Igreja cumpre sua missão que é evangelizar, anunciar, proclamar a Boa Nova que é o próprio Jesus. Seguindo o exemplo de Cristo, “nós, como discípulos missionários, queremos e devemos proclamar o Evangelho, que é o próprio Jesus. Anunciamos a nossos povos que Deus nos ama, que sua existência não é uma ameaça para o homem, que Ele está perto com o poder salvador e libertador de seu Reino, que Ele nos acompanha na tribulação, que alenta nossa esperança em meio à tribulação” (DA 30).

É olhando para Cristo, nosso Mestre e Modelo, que a Igreja aprende e assume sua missão. “Ele que sendo rico, se fez pobre, sendo Senhor, se fez servidor e obediente até a morte de cruz” (Fl 2,8). Como mãe, a Igreja, através de seus filhos, manifesta a gratuidade e a generosidade de Deus.

Este processo formativo do carmelita secular deve fazer crescer a consciência da comunhão eclesial, pois “não há discipulado sem comunhão” (DA 156). Entre os aspectos essenciais da formação, a Ratio OCDS destaca com clareza que a formação cristã “aumenta nosso apreço por nossa consagração batismal” (R 14). É justamente o batismo que nos coloca no seio da Igreja e nos impele a confessar Jesus como Filho de Deus. Portanto, neste processo formativo faz-se necessário aprender a valorizar a consagração batismal, pois é através do nosso batismo que se inicia nossa comunhão com a Igreja.

Tal experiência nos leva a perceber que “uma dimensão constitutiva do acontecimento cristão é o fato de pertencer a uma comunidade concreta na qual podemos viver uma experiência permanente de discipulado e de comunhão com os sucessores dos apóstolos e com o papa” (DA 156). Esta consciência do nosso batismo nos leva a perceber também que pertencemos a uma Ordem religiosa com carisma próprio, uma espiritualidade particular, mas estamos vinculados, em todos os sentidos, aos nossos pastores, nossas dioceses, estamos inseridos em nossas paróquias, pois é ali, onde somos chamados a alimentar nossa fé, nossa vocação, nossa consagração, através dos sacramentos que a Igreja nos oferece. Santa Teresa ensina e exorta aos carmelitas, a serem filhos e filhas da Igreja (C 1-3).

A Ratio no número 15 afirma que “a formação carmelitana confirma nossa identidade através da formação para o apostolado, fundamento no ensinamento eclesial, assumindo o estado laical no apostolado da Ordem”. Assumir o estado laical com autenticidade nos faz perceber que somos discípulos e missionários com vocações específicas e que somos chamados a colaborar com a Igreja em sua missão evangelizadora, cada um em seu estado de vida. Aprender a reconhecer a beleza, a dignidade e especificidade de cada vocação é deixar que a espiritualidade do Carmelo desperte em nós o desejo de um compromisso apostólico maior, pois cada um saberá até onde alargar seu campo de trabalho apostólico, tendo em vista que nem sempre podemos estar presente em todos os lugares para evangelizar, segundo a vocação que cada um recebeu do Senhor (C 12,5).

A dimensão apostólica da formação carmelitana faz com que os formadores valorizem os dons e os carismas que cada um dos formandos recebeu. Portanto o processo formativo tende a “preparar a pessoa” (R 5). Aqueles que procuram a OCDS são leigos que trazem consigo dons, talentos, carismas, e que devem ser trabalhados e enriquecidos para serem colocados a serviço da Igreja e da Ordem. Faz-se necessário aprender valorizar cada um, sabendo acolher o outro como ele é e com aquilo que traz. De fato, “cada batizado é portador de dons que deve desenvolver em unidade e complementaridade com os dons dos outros, a fim de formar o único Corpo de Cristo, entregue para a vida do mundo” (DA 162).

Na medida em que cresce em nós a consciência de que o outro foi enriquecido pelo Senhor com dons e talentos específicos, cresce também o desejo de viver a comunhão com o outro, pois “a comunhão e a missão estão sempre unidas entre si... A comunhão é missionária e a missão é para a comunhão” (ChL 32).

Por ocasião de uma visita “ad limina” dos bispos do Brasil o Papa João Paulo II disse: “O fiel leigo, na sua própria vida cristã e em sua atuação na Igreja, não é um mero auxiliar do Bispo ou do Padre. O batismo lhe dá direito e, portanto, também o dever de realizar em sua existência a ação sacerdotal de Cristo”. Daí a justa autonomia do fiel leigo naquilo que lhe é próprio: em qualquer estado ou condição de vida, cada pessoa na sociedade, independentemente da sua raça e cultura, tem o lugar que lhe é devido e é chamado “a exercer a missão que Deus confiou à Igreja para esta realizar no mundo” (CDC §204).

O Caminho de formação dos discípulos missionários

A dimensão apostólica da formação nos leva a pensar quem são os leigos. A Lumen Gentium afirma que “os fiéis leigos são os cristãos que estão incorporados a Cristo pelo batismo, que forma o povo de Deus e participam das funções de Cristo: sacerdote, profeta e rei. Realizam, segundo sua condição, a missão de todo o povo cristão na Igreja e no mundo” (31). O Documento de Puebla afirma que os leigos “são homens da Igreja no coração do mundo, e homens do mundo no coração da Igreja” (786). Justamente por causa desta afirmação do Concílio Vaticano II é necessário o empenho no processo formativo dos discípulos missionários, dada a importância da presença deles no coração da Igreja e do mundo, onde vivem a dimensão apostólica da vocação.

O lugar onde os fiéis leigos são chamados a viver sua fé, sua experiência com Cristo, “é o vasto e complexo mundo da política, da realidade social e da economia, como também da cultura, das ciências e das artes, da vida internacional, dos ‘mass media’, e outras realidades abertas à evangelização, como o amor, a família, a educação das crianças e adolescentes, o trabalho profissional e o sofrimento” (EN 70). Devido a esta exigência, a formação deve contribuir para que a missão do leigo possa ter incidência em todos os campos de atuação.

Este caminho de formação deve iniciar através do encontro com Cristo que se dá através da escuta da Palavra de Deus. Palavra que nos alimenta e nos orienta, nos faz crescer no conhecimento da Pessoa de Jesus e nos leva a uma comunhão de vida mais profunda com “Aquele que sabemos que nos ama” (V 8,5) e o próprio Jesus será o nosso “Livro vivo”. É condição imprescindível para a formação, a leitura, a meditação, o acolhimento da Palavra, que “é lâmpada para os nossos passos luz para os nossos caminhos” (Sl 119, 105). A formação cristã, segundo a Ratio OCDS no número 15, afirma que “a formação confirma nossa identidade carmelitana através do estudo e da leitura espiritual das Escrituras e a prática da Lectio Divina”. Aqui podemos perceber a comunhão de idéias entre a Ratio e o DA.

A Eucaristia, elemento primordial na espiritualidade carmelitana, deve ser acolhida, vivida e valorizada, pois ali está o ponto central da fé da Igreja. Santo Agostinho nos lembra que “a Eucaristia é o maior de todos os sacramentos”. É acolhendo este mistério do amor de Deus que vamos descobrindo quem é que somos nós e quem é Aquele que vem ao nosso encontro, pois “o Cristo manifesta o homem ao próprio homem e o faz entender sua altíssima vocação” (LG 22). Ou pensamos que “é pouca coisa ter tão grande amigo assim tão perto?” (C 33-34). A celebração do mistério eucarístico aumenta em nós a consciência da comunhão trinitária da Igreja e nos coloca dentro desta mesma comunhão. Lembremos que “a Eucaristia, fonte inesgotável da vocação cristã é, ao mesmo tempo, fonte inextinguível do impulso missionário” (DA 251).

O documento Novo Millennio Ineunte afirma que “é necessário aprender a orar, voltando sempre a aprender esta arte dos lábios do mestre” (33). Tanto a oração pessoal quanto a comunitária são lugares privilegiados, onde o discípulo missionário cultiva uma relação de profunda amizade com Cristo e procura assumir a vontade do Pai. Santa Teresa já nos ensina que o propósito da oração é que “nasçam sempre obras”, pois “obras quer o Senhor” e “quem foge da oração, foge de todo bem”. A oração robustece nossa consciência apostólica, pois é o próprio Senhor que suscita em nós este desejo ardente de anunciar a boa nova.

A comunidade neste processo formativo assume uma especial importância, pois ela “é o lugar apropriado para a formação do candidato que busca a missão” (R 28). Sendo assim, cada um de seus membros tem uma responsabilidade formativa, e se torna responsável pela sua formação. É papel de toda a comunidade contribuir para o crescimento e o amadurecimento de todos, tendo em vista que ali “todos hão de se amarem e de se quererem”, pois “a vida fraterna é um lugar privilegiado onde se aprofundam, se formam e amadurecem” (R 26).

A Igreja como mãe nos oferece os sacramentos como sinais visíveis da graça para alimentar nossa vida de fé em vista do nosso apostolado. Dada a importância dos sacramentos para a vida da Igreja, a Ratio procurando nortear os princípios básicos que guiam o processo formativo, exorta aos fiéis que, “pelas promessas o carmelita secular deve manifestar mais ainda o poder da vida sacramental” (18). É vivendo esta experiência de graça, acolhendo o amor do Senhor que vem ao nosso encontro que o secular se sentirá robustecido em sua formação e consciência apostólica.

Por fim, dentre outros pontos, podemos e devemos ressaltar a presença de Maria neste processo de formação da consciência apostólica dos discípulos missionários. Partindo da Sagrada Escritura, podemos perceber que ela fala pouco de Maria, mas se olharmos bem, fala tudo, pois nos apresenta Maria como Aquela que sabe ouvir, acolher e fazer a vontade de Deus. Estamos inseridos na cultura do barulho onde ninguém sabe ouvir ninguém, não existe interesse pelo outro, gerando o egoísmo, o individualismo, etc. Maria é aquela que auxilia em neste processo formativo, pois nos ensina que devemos estar atendo à voz do Senhor, acolher sua palavra e fazer sua vontade.

Maria com sua presença materna “enche a vida da Ordem com sua presença como modelo de oração e abnegação para o caminho da fé, e como mulher entregue de corpo e alma à escuta e contemplação das palavras do Senhor” (Const. ocd 48).

Assim sendo, temos que deixar claro que o processo formativo deve promover uma formação que seja integral e integradora, querigmática e permanente. Processo este que deve contribuir para uma formação que abrange as diversas dimensões que deverão integrar-se harmonicamente ao longo de todo processo formativo, ou seja, deve ser valorizada a dimensão humana e comunitária, a dimensão espiritual e intelectual, bem como a dimensão pastoral e missionária. Tal formação deve respeitar os processos das comunidades bem como o desenvolvimento de cada um.

Conclusão

A partir do documento de Aparecida e da Ratio OCDS se concretiza mais uma vez que os fiéis leigos são cristãos que têm uma missão especial na Igreja e na sociedade. Por meio do sacramento do batismo, receberam do Senhor essa vocação que devem vivê-la intensamente a serviço do Reino de Deus e da Igreja.

O processo para se formarem os discípulos missionários que tenham uma vocação apostólica é um empenho pessoal e comunitário, pois todos são chamados a “iluminar, com a luz do Evangelho, todos os âmbitos da vida social” (DA 501). É, contemplando o rosto de Cristo e fazendo experiência da profundidade do seu amor por meio da oração, que poderemos ser “sal da terra e luz do mundo”, pois “é Cristo mesmo quem suscita em nós tanto o quer quanto o fazer” (Fl 2,12-16).

Para que este processo formativo seja eficaz, é imprescindível uma vida de oração, para buscar em todos os momentos da vida, fazer a vontade do Senhor, seguindo o exemplo do Mestre que não veio para fazer a sua vontade, mas a Daquele que o enviou. É meditando os mistérios da vida de Cristo e reconhecendo o contexto no qual a Igreja está inserida, vendo a necessidade do povo que está sedento de Deus, que se formará nossa consciência de discípulos missionários.

Que a Virgem Maria, mãe da Igreja e do Carmelo, possa orientar a cada um dos membros da Ocds, formandos e formadores, para que todos, seguindo seu exemplo, empenhem-se com prontidão diante da grande exigência de anunciar o Reino de Deus aos povos da América Latina.





TERESA DE JESUS E O CAMINHO DE PERFEIÇÃO:

“avisos e conselhos”

aos inquietos e andarilhos de Deus

José Eduardo M. Manfredini Júnior[1]

1.

1. “Avisos e Conselhos”

Muito já foi escrito sobre o livro “Caminho de Perfeição”. Inúmeros estudiosos, teólogos e religiosos já se debruçaram sobre as páginas dessa grande obra de Santa Teresa de Jesus e colheram copiosas reflexões que sua ágil pena deixou ali impressas. Disso surgiram outros trabalhos que aprofundaram e ou interpretaram o ensinamento da santa.

Considerado por muitos como o “evangelho teresiano”, o Caminho de Perfeição, dentre os outros escritos, foi o livro que mais exigiu a atenção e a dedicação de Teresa, tendo ela por este um grande carinho. Isso, a primeira vista pode parecer estranho, mas se torna compreensível logo no prólogo, onde a santa expõem suas principais motivações para voltar a escrever, visto que, fazia pouco tempo que tinha entregado ao seu confessor o relato de sua “Vida”.

Sabendo as irmãs deste Mosteiro de São José que eu tinha licença do Padre Presentado Frei Domingo Bañes, da Ordem do glorioso São Domingos, meu atual confessor, para escrever algumas coisas de oração, em que poderei acertar por ter tratado com muitas pessoas espirituais e santas, têm insistido comigo para que eu lhes diga algo sobre esse assunto; assim, resolvi obedecer-lhes, vendo que o grande amor que têm por mim pode tornar mais aceitável aquilo que eu lhes disser, de maneira imperfeita e num mau estilo, do que alguns livros muito bem escritos por quem sabia o que escreveu. (CAMINHO DE PERFEIÇÃO, pról. 1, 1995, p. 300)

Denominado como “[...]avisos e conselhos que Teresa de Jesus dá às irmãs religiosas e filhas suas [...]” (CAMINHO DE PERFEIÇÃO, prefácio, 1995, p. 299), e somente mais tarde chamado, com o consentimento de Teresa, de “Caminho de Perfeição”, compreende-se dessa forma, o seu objetivo. O livro é destinado para a formação das monjas, ou seja, da comunidade religiosa que se formou em torno da santa. “Caminho é um livro do grupo. Surgiu da comunidade e para a comunidade. Fruto de diálogos comunitários, fixação dos mesmos, conversação que modela e prolonga” (HERRAIZ, 1981, p. 15, tradução nossa)[2].

Destarte, o Caminho tem como tema principal a “iniciação da carmelita à vida de oração”.[3] Teresa deseja que suas filhas “muito avancem no serviço do Senhor” e, para isso, ela se compromete em não falar “de coisa de que não tenha experiência” (CAMINHO DE PERFEIÇÃO, pról. 3, 1995, p. 301). Além disso, o Caminho de Perfeição

[...] trata-se de um livro de grandes horizontes: rompe os muros do Carmelo para tor­nar-se, pouco a pouco, patrimônio da humanidade e clave fundamental para os que almejam chegar a uma experiência calma, serena e decisiva de Deus. (CAMINHO DE PERFEIÇÃO, introdução, 1995,p. 297)

Sendo assim, o trabalho de escrever mais algumas linhas sobre essa obra de santa madre Teresa, visto o objetivo primordial do livro, o intervalo de tempo que nos separa e, principalmente, o nosso estado laical, torna a tarefa, ao mesmo tempo, instigante e temerosa. Fazer uma releitura dos “avisos e conselhos” às monjas do século XVI para leigos, inquietos e andarilhos, do século XXI, desejosos de viver um “tratado de amizade com Deus”, é, no mínimo, um trabalho complexo. Deixaremo-nos conduzir pelo Espírito, que sabemos que tudo rege e transforma, e que só por Ele essa empreitada será possível.

Contudo, essa tarefa se torna aparentemente mais fácil, visto que trataremos do carisma teresiano e do seu principal eixo, a vida de oração, como afirma frei Maximiliano Herraiz: “a insistência na oração não é só, nem principalmente “resposta” ao pedido de suas monjas. É elemento essencial, configurante do carisma vocacional de Teresa” [4] (1981, p. 24, tradução nossa). Isso é o que nós abraçamos e desejamos viver com toda a intensidade, mesmo que amiúde nós nos desviamos, ou então, nos acovardamos diante dos desafios e obstáculos que nos são apresentados diariamente.

A partir dessa óptica, permear as páginas do Caminho nos proporcionará um momento de reavaliação vocacional, de oração individual e comunitária, e de formação na escola teresiana. Pois,

Ensinar a orar o tratar do modo de proceder que se leva na primitiva comunidade teresiana, é ensinar a ser livres, simplesmente a ser pessoas que optam conscientemente pela amizade com Deus. Todo aquele que atente contra a liberdade fecha o caminho da oração. E todo aquele que a alimenta e consolida abrirá a uma oração autentica e renovadora[5]. (HERRAIZ, 1981, p. 25, tradução nossa).

Uma “oração autêntica e renovadora” exige que, ao adentrar nesse caminho espiritual, a pessoa se disponha a caminhar sem parar, com “alegria e liberdade” (VIDA 13, 1.1995,p. 84), ou ainda, “[...] de percorrer esse caminho com liberdade, entregues às mãos de Deus [...]” (Vida, 22, 12. 1995, p. 146). Desse modo, o peregrino não se cansa, pois sabe que essa liberdade o fortalece, uma vez que ela provém de sua fé no Cristo Jesus que nos diz: “[...] e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (Jo 8, 32).

Iniciar o “Caminho de Perfeição” é mais do que ler as páginas da obra teresiana, é iniciar uma aventura que exige

[...] ter uma grande e muito decidida determinação de não parar enquanto não alcançar a meta, surja o que surgir, aconteça o que acontecer, sofra-se o que se sofrer, murmure quem murmurar, mesmo que não se tenham forças para prosseguir, mesmo que se morra no caminho ou não se suportem os padecimentos que nele há, ainda que o mundo venha abaixo. (CAMINHO DE PERFEIÇÃO 21, 2. 1995, p. 363)

Então caríssimos, não tenhamos medo de começar a trilhar esse “Caminho”, pois, caso ainda exista receio, “Fitai vosso esposo: Ele vos há de sustentar” (Caminho de Perfeição 2, 1. 1995, p. 303). Digamos como os discípulos de Emaús: “Permanece conosco, pois cai a tarde e o dia já declina” (Lc 24, 29). Sem delongas, iniciemos!

2. Antes do “Caminho”, algumas considerações

O século XVI foi um século marcado por inúmeras mudanças na Europa. Mudanças políticas, econômicas, sociais e religiosas que iriam dar uma nova configuração ao mundo. Para não sermos prolixos, citaremos como exemplo o processo de colonização da América e a reforma protestante, dentre outros acontecimentos, que corroboraram para acelerar essas modificações.

Nesse contexto turbulento, a própria Teresa afirma: “O mundo está sendo tomado pelo fogo [...]” (CAMINHO DE PERFEIÇÃO 1, 5. 1995, p.303), e de fato estava. As reformas protestantes de Lutero (1517), Calvino (1533) e Henrique VIII (1531) associada a outros fatores, deram à Europa uma nova cara. A Igreja perdeu seu poder de até então e com isso a sua primazia em quase todo o continente.

Para tentar reverter esse processo, a Igreja convocou o concílio de Trento (1545-1563) e com ele um projeto que ficou conhecido como Contra Reforma. No fundo, isso foi uma tentativa desesperada para frear os avanços dos protestantes, não só no âmbito religioso, mas também nos setores da economia e da política.

Para isso, a Igreja criou um arsenal de medidas para por em prática sua “guerra” contra os protestantes. Isso revelou a situação decadente pela qual a instituição passava, principalmente no âmbito moral. No que concerne ao campo doutrinário, viu-se mais um retrocesso em comparação àquilo que os protestantes reivindicavam e faziam. Dentre essas medidas, o códex de livros proibidos e a “santa inquisição” foram as que mais se fizeram sentir.

Teresa, filha de seu tempo, sentiu “na pele” esses acontecimentos. Não foi por acaso que, segundo testemunhas, morreu dizendo “Enfim, moro filha da Igreja!”, haja vista as perseguições que sofreu pelos censores, teólogos, e letrados.

[...] Caminho é uma caixa de ressonância do batimento do coração da Igreja do tempo de Teresa. É um pronunciamento decidido, valente, de amor crítico sobre certas questões “espirituais” que agitavam os ânimos e dividiam fortemente os membros da comunidade eclesial. [...] Muitas páginas do Caminho são indecifráveis se não se tem em conta o contexto histórico em que nasce[6]. (HERRAIZ, 1981, p. 35, tradução nossa)

Levar em consideração o contexto histórico é importantíssimo para podermos compreender e aproveitar melhor os ensinamentos de Teresa de Jesus. Se assim não o fizermos, corremos o risco de “perder certos conselhos e avisos” que ainda hoje são muitos significativos, ou então, poderemos considerar ou interpretar de forma errônea outros.

Como dissemos acima, o Caminho de Perfeição foi o livro que mais contou com o cuidado da santa, escrito provavelmente em 1566, após o livro da Vida (1565). Teresa escreveu o Caminho duas vezes e, ainda hoje, se conservam as duas cópias autógrafas. A primeira sem divisão de capítulos, na Biblioteca do Escorial[7], e a segunda, em forma de livro, no Carmelo de Valladolid.

Os motivos que a levaram a escrever duas vezes são vários, dentre eles:

[...] para dar-lhe formato de livro, de mais fácil leitura em sua comunidade; para ater-se às indicações do teólogo amigo, que revisou o manuscrito e apagou numerosas passagens; e para reduzi-lo ao tom coloquial e confidencial da prmeira redação, de alusões polêmicas e de referência à própria experiência religiosa. Todavia depois de redigido o livro pela segunda vez, submeteu-o a revisão dos teólogos censores que apagaram numerosas passagens e fizeram arrancar numerosas folhas [...] (ALVAREZ, 2009, p. 131)

Após ter em mãos a versão final da obra e com o início das fundações de outros mosteiros da ordem nascente, a partir de 1567, Teresa desejou que se fizessem cópias para que, dessa forma, todas as monjas tivessem acesso aos seus “avisos e conselhos”. Contudo, essas cópias saíram com muitos erros, o que exigiu da santa fazer várias correções e emendas. Daí nasceu o desejo e a necessidade de editá-lo, trabalho que só seria concluído em fevereiro de 1583, quatro meses depois de sua morte. Em seguida, várias outras edições foram feitas.

3. Partes de um Caminho: é preciso caminhar

Santa Teresa é pedagógica e, naturalmente, uma mestra em didática. Prova disso é seu estilo direto, simples, e profundo. Seu pensamento é dialogal, fraterno, doce, úbere. Simplesmente comunitário. Sabe atrair o interesse de suas monjas e, hoje, o nosso.

Por meio das analogias, Teresa exemplifica e nos envolve no seu pensamento. “Dotada de uma imaginação viva, intuitiva por natureza, ela expressa o seu pensamento, compartilha com as monjas, suas irmãs, a própria experiência contemplativa e mística por meio de analogias e comparações analógicas” (GRIMANI, 2008, p.15). Assim, ela vai tecendo, ou melhor, construindo o “Caminho” pelo qual quer ver suas filhas e filhos peregrinar, inclusive cada um de nós.

Para isso, a santa madre dividiu a sua obra em partes, que, é claro, estão interligadas. O Caminho de Perfeição se apresenta em 42 capítulos divididos em quatro partes. Frei Maximiliano Herraiz (1981, p. 27, tradução nossa) nos apresenta essa divisão:

I. “Grande empresa” do Carmelo (o carisma) (capítulos 1-3)

II. Pressupostos da oração ou “virtudes grandes” (capítulos 4-25)

III. Oração: natureza e desenvolvimento, exigências (capítulos 26-35)

IV. Efeitos da Oração- contemplação (capítulos 36-42)[8]

Contudo, não vamos neste trabalho detalhar todas as partes. Vamos rapidamente focar a primeira, a terceira e a quarta parte, visto que, para essa ocasião, tratam de temas que exigem um estudo e um conhecimento mais profundo, além de alongar demais essa reflexão. Deteremo-nos na segunda parte, ou seja, na prática das virtudes.

Nesse ponto, pensamos que se pode fazer uma releitura mais prática, uma vez que Teresa põe as virtudes como os pressupostos da oração, como o “cimento do Castelo Interior” (7M 4, 9) e sua prática depende do nosso esforço. Com isso, a proposta da santa é que primeiro, a pessoa que deseja “tratar de amizade com Deus” se comprometa em renovar seu interior e “se revista do Homem Novo” (Ef 4, 24).

4. Assim nasceu o Carmelo Descalço: motivações e missão (1ª parte)

Teresa no livro da Vida[9] discorre sobre as causas que a levaram a fundar o mosteiro de São José de Ávila. Porém, no Caminho, ela apenas faz uma menção daquilo que ali tinha escrito, acentuando nesse livro o contexto histórico que expomos rapidamente acima, mais especificamente em relação à reforma protestante. Diante desse fato, Teresa resolve agir. Ela nos diz o seu sentimento em relação ao avanço dos protestantes na Europa: “ Isso me deixou muito pesarosa [...]” (CAMINHO DE PERFEIÇÃO 1, 2. 1995, p. 302). Mas, o que poderia fazer uma monja enclausurada? Uma “mulher” naquele contexto?

Decidi-me então a fazer o pouco que posso: seguir os conselhos evangélicos com toda a perfeição e ver que essas poucas irmãs que aqui estão fizessem o mesmo. E, em seguida, ela fala da missão eclesial do Carmelo: Assim, ocupadas todas em orar pelos que são defensores da Igreja [...] (CAMINHO DE PERFEIÇÃO 2, 2. 1995, p. 302, grifo nosso).

Teresa sabia da importância que tem para a Igreja ter santos sacerdotes, teólogos e letrados comprometidos com o Evangelho. Na sua óptica, a fidelidade dela e das irmãs era uma maneira eficaz de defender a Igreja.

[...] procuremos ser de tal maneira que as nossas orações possam ajudar esses servos de Deus que, com tanto trabalho,se fortaleceram com o conhecimento e com uma vida,empenhando-se gora em ajudar o Senhor. (CAMINHO DE PERFEIÇÃO 3, 2. 1995, p. 307)

Isso se daria particularmente pela vida que abraçaram. Uma vida onde a pobreza, teria um lugar especial, sinônimo de desapego e simplicidade interior que necessariamente teria que se manifestar no exterior, “na casa, nas roupas, nas palavras e, muito mais, no pensamento” (CAMINHO DE PERFEIÇÃO 2, 8. 1995, p. 305).

Assim, Teresa esperava contribuir com aqueles que lutavam para garantir a integridade da fé e dos princípios que a Igreja era portadora. Todavia, a santa não se eximia de fazer suas críticas, ironias e declarações de amor. Declarações que encontravam ecos em seu coração e, sobretudo, em sua vida.

É essa também a nossa missão, amar a Deus e sua Igreja, mormente, aquela Igreja que sofre e que tantas vezes é esquecida pela Igreja que não sofre o flagelo da fome, da injustiça, do desprezo, da violência, da corrupção, da pobreza e de tudo aquilo que destrói o ser humano.

5. Oração: desejo, esforço, prática e graça (3ª e 4ª partes)

O processo oracional é uma experiência que muitos desejam iniciar, entretanto, nem todos têm coragem de se deixarem levar pelos silenciosos clamores de Deus, que nos chama para sermos seus amigos.

Em Teresa, perguntar pelo caminho da oração é indagar pelo caminhante. Ela não traça caminho; o caminho é a pessoa. Que não está feita, e que tem de ser feita. Contando com todas as dificuldades, as que se apresentam de frente e as que agem sorrateiramente na indefinição e no anonimato. Mas considerando também as possibilidades reais com que o fiel conta para percorrer o caminho da oração. Deus, amando-nos, nos fez capazes de amar; entregando-se a nós, abriu-nos a possibilidade de nos entregarmos. A relação amistosa pessoal é um dom real que o homem tem por “pura graça” de Deus. (HERRAIZ, 1993, p. 157)

Na Espanha do século XVI, a vida espiritual era tema de muitos tratados e debates, particularmente, entre teólogos e místicos. No entanto, a vida espiritual se tornava um assunto demasiadamente complexo, afastando ou impedindo que muitos sequer pensassem em “ter amizade com o Senhor”. Era preciso estar atento. Nada poderia ameaçar a ortodoxia e a unidade de fé da Igreja. Teresa de Jesus, diante das experiências que vivia, entra nessas discussões com a autorização do seu confessor. Primeiro com o relato de sua “Vida” e depois com o “Caminho de Perfeição”.

A santa queria por em prática, com perfeição, aquilo que a regra primitiva recomendava aos filhos e filhas da Bem Aventurada Virgem Maria do Monte Carmelo: meditar “dia e noite na lei do Senhor e velando na oração” (REGRA DO CARMO 10, p.1). Esse era o desejo da madre para com suas filhas, que fossem fiéis à regra e ao modo de vida que abraçaram.

5.1. Oração vocal e mental: duas faces de uma mesma oração

Para Teresa, era necessário desfazer e esclarecer as dúvidas; desvanecer o medo e a confusão entre as várias denominações que a oração recebia naquele momento. Ao adentrar no assunto sobre a oração mental, no capítulo 22 do Caminho, Teresa fala antes da oração vocal.

Com sua perspicácia, a santa soluciona com simplicidade um problema que atormentava muitas de suas irmãs. A oração, vista por esta perspectiva, se tornava uma coisa simples e profunda; “Sim, aproximai-vos pensando e compreendendo com quem ides falar ou com quem estais falando” (CAMINHO DE PERFEIÇÃO 22, 7. 1995, p. 367). Para ela “se, falando, entendo perfeitamente e percebo que falo com Deus, concentrando-me mais nisso do que nas palavras que digo, estão juntas aqui a oração mental e a vocal” (CAMINHO DE PERFEIÇÃO 22, 1. 1995, p. 366). No entanto, ela advertia enfaticamente: “Mas não fiqueis falando com Deus e pensando em outras coisas” (CAMINHO DE PERFEIÇÃO 22, 8. 1995, p. 368).

Teresa, a princípio, põe no mesmo patamar essas duas formas de oração, definindo-as assim:

[...] pensar e entender o que falamos, com Quem falamos e quem somos nós que nos atrevemos a falar com tão grande Senhor. Oração mental é pensar nisso e em outras coisas semelhantes, como no pouco que O temos servido e no muito que estamos obrigadas a servir; não penseis que seja uma coisa complicada, nem vos espanteis com o nome. Rezar o pai-nos­so e a ave-maria ou qualquer outra coisa é oração vocal. (CAMINHO DE PERFEIÇÃO 25, 3. 1995, p. 374)

Essa definição simples e direta faria com que muitas pessoas que tinham medo da oração mental[10] passassem a praticá-la, pois, para a santa, a oração é “uma via régia para o céu” (CAMINHO DE PERFEIÇÃO 21, 1. 1995, p. 362).

Esse medo era o medo de perder alma, de ser enganado pelo demônio e de ir para o inferno. Inclusive, esse foi a principal motivação de Teresa para entrar no mosteiro[11]. No fundo, era resquício de uma mentalidade medieval, que, inclusive, também está presente no pensamento teresiano. Os conceitos sobre o demônio, o mal e o inferno, foram “reelaborados” durante a idade média para servirem como meio de coerção e manipulação do povo por parte da Igreja, e, de certa forma, essas imagens perduraram, principalmente no período das grandes transformações do século XVI, chegando, alguma delas, até os nossos dias.

Na Espanha e em outros países que se mantiveram fiéis e submissos à Igreja, o pensamento medieval se enraizou na sociedade, sendo diluído, mas sem deixar suas marcas, séculos depois. Por esse motivo, Teresa aconselha: “Pois digo que é muito importante começar com grande determinação [...]” (CAMINHO DE PERFEIÇÃO 23, 1. 1995, p. 369). Ela sabia dos perigos existentes e das distorções que existiam e faziam em torno da vida espiritual.

Mais à frente, a santa dá um exemplo ainda mais simples do que é a oração e como a pessoa deve fazer para praticá-la.

O que está em vossas mãos é tentar trazer uma imagem ou retrato desse Senhor que atenda ao vosso gosto; não para guardá-la consigo e nunca olhar, mas para falar com Ele muitas vezes, pois Ele mesmo vos ensinará o que dizer. Se falais com outras pessoas, por que vos haveriam de falar palavras para falar com Deus? Não acrediteis nisso; eu ao menos não acredito que isso aconteça se vos acostumardes a dirigir-vos a Ele. A falta de hábito é que nos torna estranhas quando falamos com alguém, levando-nos a não saber como tratar com as pessoas; temos a impressão de não conhecê-las, mesmo que sejam parentes nossas. Com a falta de comunicação, o parentesco e as amizades se perdem.

Também é muito útil usar um bom livro, mesmo para recolher o pensamento e vir a rezar bem vocalmente; assim, vai-se acostumando pouco a pouco a alma, com carinhos e artifícios, para não amedrontá-la. (CAMINHO DE PERFEIÇÃO 26, 9-10. 1995, p. 377)

Teresa insiste, é preciso determinar-se à dedicar-Lhe um tempo[12], de acostumar-se a tratar “com Ele como com um pai, um irmão, um Senhor e um Esposo, às vezes de uma maneira e às vezes de outra; Ele vos ensinará o que tendes de fazer para contentá-Lo” (CAMINHO DE PERFEIÇÃO 28, 3. 1995, p. 381). Eis a oração que Teresa nos ensina.

5.2. Oração de quietude e contemplação: o Amigo se faz presente totalmente

Com o esforço e a prática, a pessoa que se determina a começar a trilhar esse caminho, avança. A luta que se travava antes, para recolher-se ou concentrar-se para oração se torna mais fácil. Assim,

Este modo de rezar, mesmo vocalmente, recolhe o intelecto com muito mais rapidez, além de ser uma oração que traz consigo muitos bens. Chama-se recolhimento, porque a alma recolhe todas as faculdades e entra em si mesma com seu Deus; seu divino Mestre vem ensiná-la com mais brevidade e lhe dá a oração de quietude, de uma maneira que nenhum outro modo de oração propicia. (CAMINHO DE PERFEIÇÃO 28, 4. 1995, p. 381).

A oração de quietude “é coisa sobrenatural, que não podemos obter por nós mesmas, por mais esforços que façamos” (CAMINHO DE PERFEIÇÃO 31, 2. 1995, p. 390). Para alcançá-la, Teresa insiste na importância da pessoa empenhar-se no recolhimento, que “É um retirar os sentidos das coisas exteriores, abandonando-as de tal maneira que, sem compreender, ela vê os seus olhos se fecharem para não as contemplar [...]” (CAMINHO DE PERFEIÇÃO 28, 6. 1995, p. 382).

A oração de quietude é quando

[...] a alma se põe em paz, ou o Senhor a põe com Sua presença, melhor dizendo, como fez com o justo Simeão, já que todas as faculdades sossegam. A alma compreende, de uma maneira muito longe do alcance dos sentidos exteriores, que já está junto do Seu Deus e que, com mais um pouquinho, chegará a formar uma única coisa com Ele por meio da união. (CAMINHO DE PERFEIÇÃO 31, 2. 1995, p. 390).

Após essa graça, a contemplação se faz mais próxima. Talvez seja complicado essas terminologias empregadas para denominar os graus de oração. Sem dúvida, causa estranhamento. Mas, por meio dessas denominações e explicações da santa madre, fica evidente que a prática oracional é um processo de aperfeiçoamento, do qual, até um certo ponto, depende do empenho da pessoa e, depois, é graça divina. Isso não significa que o orante não tenha que se manter vigilante no caminho, pois, caso contrário retrocederá.

Assim como a oração de quietude, a contemplação também é graça divina. No Caminho de Perfeição, Teresa não explica detalhadamente o que é essa graça[13], apenas faz algumas alusões. “Poder-se-ia condensar-se em duas palavras: presença e amor de Deus. E através de ambos, nova atitude frente a todo o humano e todo o criado. Presença amorosa do divino, que vai impregnando todo o espaço existencial” (ALVAREZ, 2009, p. 228).

Mas, apesar de ser graça divina, Teresa deixa um recado:

Não digo que deixemos de esforçar-nos por alcançar a contemplação. Afirmo que em tudo deveis exercitar-vos, visto não estar em vossas mãos, mas nas do Senhor, o escolher; mas, se depois de muitos anos Ele quiser dar a cada qual o seu ofício, bela humildade seria a vossa se desejásseis escolher por vós mesmas. Dai total liberdade de ação ao Senhor da casa, que é sábio e poderoso, compreendendo o que convém para vós, bem como o que Lhe é conveniente.

Ficai seguras de que, fazendo o que está ao vosso alcance, e preparando-vos para a contemplação com a perfeição de que falei, só não a recebereis Dele (e creio que Ele não deixará de concedê-la, desde que o desapego e a humildade sejam verdadeiros) se Ele vos tiver guardado esse regalo para vos dar no céu, para onde, como eu já disse, Ele vos quer levar como almas fortes, dando-vos aqui a cruz que Sua Majestade sempre teve. (CAMINHO DE PERFEIÇÃO 17, 7. 1995, p. 349).

A preparação que a santa se refere acima trata-se da prática das virtudes que são “coisas tão necessárias que as que as seguirem, mesmo não sendo muito contem­plativas, poderão avançar muito no serviço do Senhor; é impossível, não as seguindo, ser muito contemplativa, e quem pensar que o é estará muito enga­nado” (CAMINHO DE PERFEIÇÃO 4, 3. 1995, p. 311). Mais adiante ela afirmará que “sempre há mais segurança na humildade, na mortificação, no desapego e em outras virtudes. Quem assim for não há de temer deixar de chegar à perfeição que os muito contemplativos alcançam” (CAMINHO DE PERFEIÇÃO 17, 4. 1995, p. 348).

Desse modo, vamos nos debruçar agora sobre aquilo que Teresa de Jesus aconselha àquelas pessoas que querem trilhar o Caminho de Perfeição, ou seja, a prática das virtudes.

6. Algumas coisas necessárias: as virtudes (2ª parte)

A pessoa que quiser se tornar um peregrino no caminho de Teresa deve, além da determinação, se revestir de três virtudes fundamentais aos olhos da santa. Torna-se vital compreendê-las e buscá-las, pois, “é muito importante percebermos o grande proveito de guardar essas coisas para ter a paz interior e exterior que o Senhor tanto nos encomendou”. E a mestra de oração assim as apresenta: “A primeira é o amor de umas para com as outras; a segunda, o desapego de todo o criado; a terceira, a verdadeira humildade — que, embora tratada por último, é a principal, abarcando todas” (CAMINHO DE PERFEIÇÃO 4, 4. 1995, p. 312). No caminho, essas virtudes serão como o cajado, o cantil e as sandálias do peregrino, que, a passos largos caminha rumo ao seu destino, à sua meta e, por isso, leva apenas o necessário.

6.1. Amor: “amai-vos uns aos outros como eu vos amei” (Jo 13, 34)

Ao iniciar a sua reflexão, Teresa dá um conselho muito significativo às suas filhas, que seria muito proveitoso como critério de julgamento diante de algum tipo de desentendimento. O eixo desse critério é o amor, “ porque não há problema que não seja resolvido com facilidade entre os que se amam, e deve ser grave a coisa capaz de causar um problema” (CAMINHO DE PERFEIÇÃO 4, 5. 1995, p. 312). A inobservância dessa virtude traz grandes danos para a comunidade e, consequentemente, para a pessoa que deseja caminhar.

Contudo, a santa desenvolveu seu pensamento em torno de duas maneiras distintas de amor, “uma, espiritual, porque parece que nada tem com os sentidos nem com a ternura da nossa natureza a ponto de ser privada de sua pureza; a outra também é espiritual, mas é acompanhada da nossa sensibilidade e da nossa fraqueza” (CAMINHO DE PERFEIÇÃO 4, 12. 1995, p. 314). Vejamos.

6.1.1. O amor espiritual: o perfeito amor

Teresa é enfática: “todas as irmãs devem se amar” (CAMINHO DE PERFEIÇÃO 4, 6. 1995, p. 312), ou seja, para ela nenhuma pessoa deve se eximir dessa obrigação, desse critério que o próprio Cristo impõe aos seus discípulos[14] e que ela reforça como critério vocacional da espiritualidade do Carmelo Descalço.

O amor espiritual, para a mestra de oração, é mais perfeito, pois se deve amar aquilo que não está no exterior. “Amemos as virtudes e a beleza interior, empenhando-nos sempre, com muito cuidado, para não dar importância ao que é exterior” (CAMINHO DE PERFEIÇÃO 4, 7. 1995, p. 313). Talvez, hoje, isso se torna para nós uma tarefa extremamente difícil, visto que somos, muitas vezes, impelidos a julgar e a valorizar aquilo que vemos à primeira vista, ou seja, apenas aquilo que reluz, aquilo que é belo e que, sobretudo, nos agrada. Esquecemo-nos de ir além da imagem que nos é apresentada. De enxergar primeiramente em todos, sem exceção, a imagem Daquele que nos criou e que nos ama loucamente, e deseja que façamos o mesmo.

Teresa dá o alerta, é necessário prudência no início da amizade. Para ela, a amizade deve levar a alcançar os bens verdadeiros[15]. As pessoas que amam dessa forma “vão além dos cor­pos e põem os olhos nas almas, vendo se há o que amar. Se não hou­ver, mas en­con­trarem alguma semente de virtude ou disposição para tal, a ponto de, se cavarem, acharem ouro na mina, elas não poupam esforços, pois têm amor a isso [...]”, e Teresa continua, “A pessoa que ama de verdade conhece e tem experiência de todas as coisas, não sendo possível enganá-la” (CAMINHO DE PERFEIÇÃO 6, 8. 1995, p. 320).

A preocupação maior desse amor é a salvação da alma que é amada. É o desejo de vê-la imersa no coração de Deus, de tê-la como companheira de peregrinação. Por isso, a santa afirma, “Tudo o que se deseja e quer é ver a alma amada plena de bens celestes. Isso é amor [...](CAMINHO DE PERFEIÇÃO 7, 1. 1995, p. 321). Para ela, o verdadeiro amor é aquele que leva à Deus e aos seus tesouros. No entanto, ela adverte: “Afirmo que quem assim ama traz pesada cruz” (CAMINHO DE PERFEIÇÃO 7, 4. 1995, p. 322).

E mais uma vez Teresa chama a atenção para o fato de que “Essa maneira de amar é a que eu queria tivéssemos pelas outras. Mesmo que no princípio não o façamos de modo tão perfeito, o Senhor haverá de aperfeiçoá-lo” (CAMINHO DE PERFEIÇÃO 7, 5. 1995, p. 322). Dessa forma, é o Senhor quem nos ensinará a amar da mesma maneira que Ele nos ama, basta que queiramos e nos esforcemos nesse sentido, ou seja, que saibamos nos desapegar de tudo aquilo que nos impede de amar.

6.1.2. O amor espiritual: sensibilidade e fraqueza

Teresa trata esse tipo de amor com muita cautela e cuidado. Tendo presenciado os prejuízos causados por esse modo de amar a vida espiritual e comunitária, ela fala por experiência. Por isso, vai insistir com suas irmãs nos cuidados que se há de tomar em relação às amizades particulares, sem sequer esquecer-se das amizades com os confessores.

Na realidade, Teresa está falando às suas irmãs do perigo que há de apegar-se às amizades, pois, isso acaba “impedindo a total dedicação ao amor de Deus” (CAMINHO DE PERFEIÇÃO 4, 5. 1995, p. 312), o que poria tudo a perder. Para a santa, esse tipo de amizade “raramente está voltada para a ajuda mútua no aumento do amor a Deus” (CAMINHO DE PERFEIÇÃO 4, 6. 1995, p. 312) e isso é o que deve direcionar as verdadeiras amizades, ou seja, o amor fraterno.

A mestra de oração adverte:

Se, no entanto, a nossa amizade inclinar-se mais para uma do que para outra irmã (o que nem sempre pode ser evitado, por ser natural, levando-nos muitas vezes a amar o pior se ele tiver mais atrativos naturais), tenhamos muito cuidado para não nos deixar dominar por essa afeição.

Não consintamos, ó irmãs, que a nossa vontade seja escrava de ninguém senão daquele que a comprou com o Seu sangue; vede que podeis, sem perceber como, ficar apegadas sem conseguir recursos contra isso. (CAMINHO DE PERFEIÇÃO 4, 7-8. 1995, p. 313)

Esse cuidado que a santa insiste em recomendar às suas filhas está vinculado à vocação ao Carmelo Descalço, ou seja, nada e ninguém pode atrapalhar o tratado de amizade com Deus. Assim, santa madre Teresa enfatiza: “Para impedir essas parcialidades, deve-se ter um grande cuidado desde que a amizade começa, mais com jeito e amor do que com rigor” (CAMINHO DE PERFEIÇÃO 4, 9. 1995, p. 313). Todo cuidado é pouco. Teresa quer evitar o máximo o risco da alma se apegar à criatura ao invés de se apegar ao Criador.

Esse tipo de amor tem efeito contrário, ele prende quando deveria libertar. Escraviza a alma, pois se trata de afeição e de apego. É um amor “Deformado y deformante” (HERRAIZ, 1981, p. 55). Para o peregrino não existe maior tormento que não poder caminhar. Estar preso significa não poder seguir em frente, significa correr o risco de nunca alcançar a meta. Dessa forma, entende-se porque Teresa insiste tanto nesse assunto. Nesse caminho exige-se liberdade para andar, para correr para os braços do Pai que nos espera[16].

Para santa madre a verdadeira amizade não deve tirar a paz e a liberdade[17], bem porque, “havendo prudência, tudo é amor perfeito” (CAMINHO DE PERFEIÇÃO 7, 7. 1995, p. 324). A santa sabia os males que poderiam advir desse tipo de amor, ao ponto dela considerar, se caso isso ocorresse, tudo acabado.

Se por acaso vos escapar alguma palavrinha dita de repente, corrigi logo a situação e orai muito. Quando qualquer coisa como essa perdurar, se­jam grupinhos, desejos de ser mais do que as outras ou questiúnculas ligadas à honra (e parece que o sangue gela em minhas veias quando escrevo isto, só de pensar que algum dia essas coisas venham a acontecer, pois vejo ser esse o principal mal dos mosteiros), quando isso acontecer, dai-vos por perdidas.

Pensai e crede que expulsastes vosso Esposo de casa e que O obrigastes a procurar outra pousada, pois O deixastes fora do Seu lar. (CAMINHO DE PERFEIÇÃO 7, 10. 1995, p. 325)

Essa é a consequência desse amor “imperfeito”. Simplesmente o fim. Mas Teresa vai mais longe dizendo: “Afastai de vós essa pestilência; cortai como puderdes os ramos e, se isso não bastar, arrancai a raiz” (CAMINHO DE PERFEIÇÃO 7, 9. 1995, p. 324). Disso podemos concluir o quanto o apego, esse tipo de afeição, sem o objetivo de levar ao Senhor, pode atrapalhar aquele que se põe a caminho.

6.2. O desapego de todo o criado: o verdadeiro valor das coisas

É interessante o valor que Teresa de Jesus dá a essa virtude. Logo no início do capítulo 8 do Caminho, ela declara: “Falemos agora do desapego que devemos ter, porque nisso está tudo, se o guardamos com perfeição”. Mas o que seria esse “tudo” que Teresa fala? Ela responde:

Digo que tudo está aqui porque, quando nos apegamos apenas ao Criador e consideramos nada todas as coisas criadas, Sua Majestade nos infunde as virtudes de maneira tal que nós, trabalhando pouco a pouco de acordo com as nossas forças, não teremos mais lutas a travar [...] (CAMINHO DE PERFEIÇÃO 8, 1. 1995, p. 325).

Ela afirma que, por meio da prática do desapego, o Senhor concede à alma as virtudes, principalmente, aquelas que ela considera como alicerce da vida espiritual. Todavia, “considerarmos nada todas as coisas criadas” não significa deixá-las de lado, ou então, recusá-las veementemente, uma vez que, também aqui o ser humano está inserido. Ao contrário disso, quando Teresa aconselha em “considerar nada as coisas criadas”, seguindo o pensamento da época, ela está dizendo que se deve reconhecer o devido “valor e lugar” da criação no processo espiritual, inclusive, o nosso lugar.

A criação deve ser o ponto de partida para o verdadeiro conhecimento de Deus[18]. É contemplando a criação que alma encontrará “vestígios” do Amado e, por meio disso, deverá se fortalecer para buscá-Lo.

Entretanto, reconhecer o lugar e o valor das coisas e pessoas não é fácil. Teresa reconhece “[...] é mais fácil escrever do que fazer” (CAMINHO DE PERFEIÇÃO 8, 2. 1995, p. 326). Isso se deve ao fato que por mais que nos esforçamos, às vezes, esquecemo-nos que a culpa é somente nossa, “[...] que não há pior ladrão do que o que fica em casa [...]” (CAMINHO DE PERFEIÇÃO 10, 1. 1995, p. 329).

A santa chama a atenção para a importância de reconhecer a brevidade das coisas criadas, “Pois tudo passa. Só Deus não muda” (EFICÁCIA DA PACIÊNCIA, 1995, p. 981). Depois disso, a pessoa estará livre para permanecer imóvel na presença Daquele que nos ama, “Assim, tiram-se as afeições das coisas fúteis, ficando elas livres para se concentrar no que nunca há de se acabar” (CAMINHO DE PERFEIÇÃO 10, 2. 1995, p. 329).

Se no tempo de Teresa desapegar-se era uma tarefa árdua, difícil, daí tantos conselhos e avisos, hoje não é diferente. Exige a “determinada determinação” de continuar, de, ao menos, tentar. A mestra de oração diz que: “[...] quando a alma começa a esforçar-se, Deus age tanto nela e lhe concede tantas graças que tudo quanto se possa fazer nesta vida lhe parece pouco” (CAMINHO DE PERFEIÇÃO 12, 1. 1995, p. 333), por isso ela é enfática ao afirmar que “quem começa a servir ao Senhor verdadeiramente o mínimo que pode Lhe oferecer é a vida [...].Enfim, não devemos nos apegar às coisas perecíveis; e, pensando que cada hora é a última, quem não vai se esforçar?” (CAMINHO DE PERFEIÇÃO 12, 2. 1995, p. 334).

Talvez, esses conselhos possam parecer duros demais para nós leigos. No entanto, é preço a se pagar se, de fato, queremos caminhar no caminho de perfeição traçado por Teresa de Jesus. Ela avisa que qualquer pessoa “ pode ser desprendida e humilde em qualquer lugar, mesmo com maiores esforços” e que, com isso, “a oração perfeita termina por eliminar os ressentimentos[...]” (CAMINHO DE PERFEIÇÃO 12, 5. 1995, p. 335), o que significa, ser a prova que a pessoa está desprendida de si.

Entretanto, não estamos sozinhos, Ele caminha conosco. Teresa acalma aqueles que se sentem desanimados ao dizer que está “[...] bem certa de que o Senhor favorece muito a quem se determina com fervor [...]” (CAMINHO DE PERFEIÇÃO 14, 1. 1995, p. 339). Então, está em nossas mãos não desistir de trilhar esse caminho, está em nossas mãos “[...] acostumar-nos a coisas muito pequenas para alcançarmos a vitória nas grandes” (CAMINHO DE PERFEIÇÃO 15, 3. 1995, p. 341).

Teresa afirma que a prática dessa virtude traz a liberdade[19] e, de fato, não poderia ser diferente. O caminho, por vezes, é longo e cheio de obstáculos; por isso, exige que se carregue o menos possível. É o Senhor quem nos avisa: “Não leveis ouro, nem prata, nem cobre nos vossos cintos, nem alforje para o caminho, nem duas túnicas, nem sandálias, nem cajado [...]” (Mt 10, 9-10). Desapegados dos bens terrestres, andaremos mais rápido rumo à meta, ao nosso objetivo, àquilo que é o desejo do Mestre: “Portanto, deveis ser perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5, 48, grifo nosso).Contudo, realizar esse desejo do mestre exige, da nossa parte, a humildade para reconhecermos “quem somos e quem Ele é”.

6.3. A Humildade: a “rainha” de todas as virtudes

Para Teresa a lógica do processo espiritual se resume em uma experiência de amor entre Deus e a alma. Entretanto, intrínseco a esse processo, é necessário que a pessoa se disponha a renovar seu interior, com implicações no exterior, a partir da prática das virtudes. Para a santa, o amor está fundado na humildade e vice-versa. “Não consigo entender como há ou pode haver humildade sem amor ou amor sem humildade, do mesmo modo como não compreendo como pode haver essas duas virtudes sem que haja grande desapego de todas as coisas criadas” (CAMINHO DE PERFEIÇÃO 16, 2. 1995, p. 343).

Destarte, pode-se ver o quanto Teresa de Jesus destaca essas virtudes. Não é à toa que ela disse que as virtudes da humildade e do desapego “andam, [...], sempre juntas; são duas irmãs inseparáveis” (CAMINHO DE PERFEIÇÃO 10, 3. 1995, p. 329). Exigência, passaporte, luz no caminho, a humildade é a virtude que conquistará o Senhor[20], que o fará se reder à alma.

Segundo Teresa, “[...] a verdadeira humildade reside em nossa disposição de nos contentarmos com aquilo que o Senhor quiser de nós e em nos considerar sempre indignas de ser tidas por servas Suas” (CAMINHO DE PERFEIÇÃO 17, 6. 1995, p. 349). Talvez, ao escrever isso, ela tinha em mente o conselho do Senhor: “Assim também vós, quando tiverdes cumprido todas as ordens, dizei: Somos servos inúteis, fizemos apenas o que devíamos fazer (Lc 17, 10). Cumprir esse preceito exige, sobretudo, humildade.

No fundo, a humildade também implica em deixar o Mestre agir em nós, o que exige muita coragem e um forte propósito, pois acolhê-Lo exigirá expandir o nosso coração à sua presença e à presença, às vezes despercebida, dos irmãos. Teresa nos aconselha: “Dai total liberdade de ação ao Senhor da casa, que é sábio e poderoso, compreendendo o que convém para vós, bem como o que Lhe é conveniente” (CAMINHO DE PERFEIÇÃO 17, 7. 1995, p. 349).

Porém, a santa adverte que é necessário vencer as tentações e ter cuidado com a soberba, ou seja, achar que já se tenha as virtudes ou que se é humilde: “[...] mesmo que tenhais a impressão de ter uma vi­rtude, duvidai sempre, temendo estar enganadas; porque o verdadeiro humil­de sempre duvida de suas próprias virtudes, e é muito comum que julgue mais certas e de maior valor as que vê no próximo (CAMINHO DE PERFEIÇÃO 38, 9. 1995, p. 417).

Sendo a humildade um critério, talvez um dos mais importantes, para a vida espiritual, essa virtude está presente em toda a obra de Teresa. Ela sempre se refere a ela e às outras virtudes. Dessa forma, compreende-se o quanto esse tema é caro à santa madre e determinante no caminho traçado por ela. Aí deve residir também a nossa atenção, “Porque, como não temos a vista desimpedida, o pó nos cega à medida que vamos caminhando. Aqui, o Senhor nos conduz ao fim da jornada sem que entendamos como” (CAMINHO DE PERFEIÇÃO 19, 7. 1995, p. 356).

Que nós possamos acolher e praticar o conselho que Teresa de Jesus nos dá: “Andai alegres, servindo no que vos é mandado, como eu disse, e se vossa humildade for verdadeira, felizes de vós que servis na vida ativa [...]” (CAMINHO DE PERFEIÇÃO 18, 5. 1995, p. 351). Que desse modo, possamos, assim como Teresa, colher os frutos prometidos pelo Senhor e saboreá-los na certeza de que um dia estaremos todos juntos na casa do Pai “cantando eternamente as misericórdias do Senhor”[21].

7. Considerações Finais: Caminhemos!

Pôr-se a caminho no “Caminho de Teresa” é a exigência e a consequência imediata para aquele ou aquela que abraça a vocação carmelitana descalça. Esse caminho não é outro senão o do próprio Cristo Jesus. É um convite que ela fez, faz e continuará fazendo a todos aqueles que se aproximam de seu carisma, de seus escritos e, sobretudo, àqueles que desejam ser amigos íntimos do Senhor.

Sua voz maternal, a mesma voz que aconselhou e avisou as monjas que com ela conviveu, venceu a barreira do tempo e como a brisa que encontra o nosso rosto pela manhã de um dia de primavera, essa voz encontra hoje os nossos ouvidos e desce ao nosso coração. É um convite atual, pois ser amigo de Deus é a vocação primordial do ser humano, está em nossa gênese, no cerne da vida do homem e da mulher criados à Sua imagem e semelhança[22].

Teresa nos ensina que a “Oração, epifania de Deus, revelação de Deus. E também do homem. Com papéis bem definidos: Cristo, Mestre; homem, discípulo[23].” (HERRAIZ, 1981, p. 85, tradução nossa). É reconhecer-se no Senhor, na sua humanidade perfeita. É por Ele, com Ele, e Nele entramos no coração do Pai, para ali sermos abrasados do mais puro amor.

Ler, reler, estudar o Caminho de Perfeição é ao mesmo tempo conhecer o projeto e o convite de Teresa, e alimentar o desejo de caminhar e continuar caminhando. É deixar a preguiça, o medo, o desânimo, as tristezas de lado e seguir em frente.

Teresa desejava que todas as monjas do seu tempo tivessem acesso e lessem o Caminho, “seus avisos e conselhos”, para que, mormente, conhecessem melhor porque estavam ali e quais eram as implicações da vida escolheram. Hoje a Ordem nos chama a debruçarmos sobre os escritos de sua santa fundadora. Momento singular na história, quando frades, monjas e nós leigos voltamos o olhar e a atenção para os escritos de Teresa de Jesus. Momento de conhecermos e assumirmos com mais ardor a nossa vocação diante da humanidade que é e está sedenta de Deus.

Seus avisos e conselhos são atuais. Reflexo da sua mente aberta, de vanguarda, do seu amor incondicional ao Senhor e à sua Igreja, seus irmãos. Cabe à nos que somos “inquietos e andarilhos”, - inquietos porque estamos sempre à procura do Senhor e andarilhos porque estamos sempre caminhando de lá para cá, mesmo que às vezes caindo – a nosso ver essas são as melhores denominações para o estado laical, contribuirmos com o seu projeto aonde quer que estejamos. Então irmãos:

Caminhemos!

sem olhar para trás.

Com as mãos firmes no arado,

pois o terreno é extenso e o tempo é apressado.

Caminhemos !

Sem medo.

Com amor e temor,

com os olhos fixos no Senhor.

Caminhemos!

Com esperança.

Como a criança,

que nunca se cansa.

Caminhemos!

Com liberdade.

Sem esquecer a amizade,

que é a mais pura igualdade.

Caminhemos!

Com desapego e humildade,

virtudes que provém da Amizade.

É disso que precisa a humanidade.

Caminhemos!

Com determinação,

escutando a voz que vem do coração.

Caminhemos!

Na Oração,

no Caminho de Perfeição.

8. Referências Bibliográficas

ALVAREZ, T. In: SCIADINI, P. (org.). Dicionário de Santa Teresa de Jesus. São Paulo: LTR, 2009.

BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém. São Paulo: 2000.

Catecismo da Igreja Católica. 9. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1997.

GRIMANI, S. A analogia a serviço da vida espiritual nas obras de Santa Teresa. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2008.

HERRAIZ, M. A Oração, experiência libertadora. São Paulo: Loyola, 1993.

___________ Introduccion a Camino de Perfeccion de Teresa de Jesus. Valencia: Bernés, 1981.

TERESA DE JESUS. Obras Completas. São Paulo: Loyola, 1995.



[1] O autor é membro da Comunidade Santa Face da OCDS de Tremembé – SP.

[2] “Camino es um libro del grupo. Ha surgido de la comunidad y para la comunidad. Fruto de diálogos comunitários, fijación de los mismos, conversación que plasma y prolonga”

[3] Para maior compreensão sobre isso, ver a introdução ao Caminho de Perfeição contida nas obras completas, Loyola, 1995. p. 296.

[4] “la insistência en la oración no es sólo, ni principalmente “repuesta” a la demanda de sus monjas. Es elemento esencial, configurante del carisma vocacional de Teresa”.

[5] Ensenãr a orar o tratar del modo de proceder que se lleva em la primitiva comunidad teresiana, es ensenãr a ser libres, simplesmente a ser personas que optan conscientemente por la amistad com Dios. Todo lo que atente contra la libertad cierra El camino de la oración. Y todo que la alimente y consolide abrirá a uma oración auténtica y renovadora.

[6] “[...] Camino es uma cajá de resonancia Del latido de la Iglesia Del tiempo de Teresa. Y um pronunciamiento decidido, valiente, de amor crítico sobre ciertas cuestiones “espirituales” que agitaban los ânimos y dividían fuertemente a los miembros de la comunidad eclesial. [...] Muchas páginas de Camino son indescifrabes si no se tiene em cuenta El entorno histórico em que nace”.

[7] Escorial é um grande complexo formado pelo palácio, biblioteca, museu e mosteiro. Foi costruído a pedido do rei Filipe II. As obras iniciaram em 1563 e foi concluída em 1584. Está localizado San Lorenzo de El Escorial, município situado 45 km a Noroeste de Madrid.

[8]

I. “Gran empresa” del Carmelo (capítulos 1-3)

II. Presupuestos de la oraión o “virtude grandes” (capítulos 4-25)

III. Oración: naturaleza y desarollo, exigências (capítulos 26-35)

IV. Efectos de la contemplación (capítulos 36-42)

[9] cf. os capítulos 32-36.

[10] cf. Caminho de Perfeição 24, 1

[11] cf. Vida

[12] cf. Caminho de Perfeição 23, 2.

[13] Cf. Caminho de Perfeição 25, 4.

[14] cf. Jo 13, 34

[15] Cf. Caminho de Perfeição 6, 5.

[16] cf. Lc 15, 20

[17] cf. Caminho de Perfeição 7, 2 e nota 3. 1995, p. 322.

[18] cf. Catecismo da Igreja Católica, 31 e 36.

[19] cf. Caminho de Perfeição 15, 7.

[20] cf. Caminho de Perfeição 16, 2.

[21] cf. Vida 14,10-11

[22] cf. Gn 1, 26-31

[23] “Oración, epifanía de Dios, revelación de Dios. Y también Del hombre. Com papeles bien definidos: Cristo, Maestro; hombre, discípulo”.