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segunda-feira, 27 de outubro de 2014

TERESA , MULHER EM PROCESSO




“…Leia-lhe a última morada, e diga-lhe que
naquele ponto a que chegou aquela pessoa
e com aquela paz que aí está,
e assim se vai com a vida bastante descansada,
e que grandes letrados dizem que vai bem” 

A Maria de São José 8.11.1581 (18)
Fundamentais:
A D. Luísa de la Cerda. Ávila 7.11.1571
MC 38. EDE 34. BAC 36.
A D. Maria de Mendoza. Ávila, 7.3.1572. MC 41. EDE 37. BAC 39
A Ambrósio Mariano. Toledo, 16.2.1577
MC 183. EDE 179. BAC 180
A Maria de São José. Ávila, 8.11.1581
MC 412, EDE 397, BAC 396
A D. Lorenzo de Cepeda (filho). Ávila, 15.12.1581. MC 427. EDE 412. BAC 411

Complementares (sobretudo):
A D. Juana de Ahumada: Toledo, dezembro 1569, ou Ávila, dezembro 1577. MC 23. BAC 24. EDE 216
A Maria Bautista. Sevilha, 28.8.1575
MC 88. EDE 85. BAC 87
A J. Gracián: Sevilha, finais de novembro 1575. MC 96. EDE 92. BAC 94


2. Pistas gerais de leitura e partilha (cf. Ficha 1)

Além da ajuda de uma boa cronologia da santa, atender e anotar:
Que diz Teresa de si mesma? Fixamo-nos no que diz explicitamente e também no que se pode captar de forma implícita: características da sua personalidade que vão aparecendo.
Que diz do contexto e da realidade? Identificamos temas, preocupações, decisões, critérios, conselhos…
Que diz de Deus, da vida espiritual? Também de forma explícita ou de forma implícita.
Claro é sempre importante reparar nas dúvidas e dificuldades ou nas questões que nos tenham surpreendido positivamente, para as retomar e aprofundar, consultar, comentar, partilhar



3. Para refletir, orar… depois da leitura dos textos.

Para o modo de citar as cartas e a forma de aproveitar as sugestões e observações dos pontos seguintes, veja-se o indicado na Ficha 1.

1. Começámos esta secção na ficha anterior pelas relações afetivas com os seus familiares (e tudo o que implicam, incluso a solicitude por os ajudar economicamente) e este novo grupo de cartas também trata dessa dimensão da nossa vida tão fundamental: nada transforma tanto como o afetivo. Assim pois, aparece solícita com o amigo que sofre, ao mesmo tempo que repreende com tato as queixas por supostos esquecimentos e até por ciúmes e demandas de mais atenção: 7.11.1571 (1.6), 28.8.1575 (9.13). Não obstante essas repreensões, que também são parte de uma sã relação interpessoal, de um processo afetivo adulto (as faço, as recebo, se dão no meu contexto ou comunidade…?), voltamos à importância do cuidar das amizades, agradecê-las e manifestar-lhes amor… daí a sua preocupação pelas cartas que se perdem e, portanto, pelos carinhos que não chegam: 28.8.1575 (16).Os cuidamos? Os comunicamos…?

2. Se o afeto com benfeitores e amigos é fundamental, não o é por se tratar de uma concessão a leigos; o amor é a chave no humano e no divino, na vida espiritual em geral (“pois também o quer nosso Senhor”) e das suas comunidades em particular; e não só expresso na oração mútua, mas que “se me quer bem, que lho pago [correspondo] e gosto que mo diga”: 8.11.1581 (1-2).

3. Na ficha anterior pudemos comprovar que a sua muita relação com alguns familiares e, por outro lado, as suas também muitas restrições a esse respeito como fundadora e legisladora (cf. CV 8-9, Const. V 6-7, etc.) não eram nenhuma contradição, mas deviam-se às razões teologais, que esses mesmos textos carismáticos aduziam: tratar com eles quando seja pelo seu bem espiritual, pelas suas virtudes… De novo, estas cartas justificam essa predileção pelo seu irmão Lorenzo [28.8.1575 (2-3)], que mais tarde se verá prolongada na sua filha Teresita, já adolescente, e cuja proximidade é motivo de alegria e consolo para a santa na sua velhice: 8.11.1581 (6), 15.12.1581 (3). Podemos aprofundar em tudo isto numa linha algo atrevida e polémica: parece-te tudo isto relações teologais de verdade ou mais bem a desculpas para justificar compensações, como a de uma possível maternidade frustrada? Como são as tuas relações com familiares e seres queridos? Também podemos aprofundar nestes textos, tanto no conhecimento da santa como no conhecimento próprio, reparando no ‘surpreendente’ pedido a favor da sua sobrinha (carmelita descalça!): quer que os seus irmãos não a deixem só e lhe escrevam e regalem para lho mostrar 15.12.1581 (3f).

4. A solidariedade familiar concretizada no económico é uma constante desde as primeiras cartas propostas este curso, daí que Teresa não conceba que possa haver descuidos nisto: repare-se bem nas advertências e exortações ao seu sobrinho (15.12.1581) e de modo especial com as suas obrigações para com a sua filha ‘ilegítima’, além das considerações sobre a dignidade e inocência da menina em toda essa história.

5. Nas primeiras cartas que lemos, a santa se alegrava – apesar de que lhe resultasse “não pequena cruz” – das suas habilidades negociadoras e, em consequência, de poder ajudar o seu irmão, no material e no espiritual, com esses conhecimentos: 17.1.1570 (5.12-13). Não obstante, nas cartas propostas para esta ficha começam já a notar-se algumas importantes complicações que lhe aconteceriam, por isso, no fim da sua vida: 8.11.1581 (8-12), 15.12.1581 (1.3f); ainda que mais adiante teremos mais detalhes, quando nos adentremos noutras cartas dessa época. Talvez o que chame mais a atenção agora, em todo este processo é que, ao contrário do que sucedeu com o seu irmão Lorenzo, tem que acabar por se alegrar com a volta dos seus parentes à América ou pedindo que fiquem ali [15.12.1581 (2f.10)]: por causa da crise dos 70 em Castela? Para sua própria tranquilidade, para não ter que continuar a responsabilizar-se pelos mais necessitados desses parentes? Por outro lado, ainda que também nesta linha familiar e económica, que pensar do contraste entre o seu desprendimento de honras e dinheiro e, ao mesmo tempo, a sua euforia pela prosperidade nisso dos seus sobrinhos: 15.12.1581 (1-4)?

6. Talvez possa parecer pouco adequado insistir tanto na conexão do amor de Deus e dos irmãos com questões materiais, mas a nossa grande mística opinava precisamente o contrário: “ainda que pareça coisa não conveniente começar pelo temporal, pareceu-me que para que o espiritual ande sempre em aumento é importantíssimo” (Modo de visitar os conventos 2). Vamos ter ocasião de o comprovar em muitos momentos e cartas ao longo deste curso. Agora podemos aprofundar algo sobre o que supôs aceitar uma má renda no seu primeiro convento de S. José de Ávila: 8.11.1581 (2f-3.21f), 15.12.1581 (6).

7. Em continuidade com a importância do temporal para o espiritual, chama a atenção o contraste entre o seu ideal de vida e de bens nos seus mosteiros e a difícil realidade que lhe toca viver na Encarnação com 130 freiras, quando aí regresse como priora: 7.3.1572 (2m). Não obstante, o que mais chama a atenção nestas alusões à Encarnação, contra certa ideia superficial de dito convento, é a rápida melhoria das suas religiosas: 7.11.1571 (4), 7.3.1572 (3). Onde estão as chaves da mudança? Seríamos capazes, eu, a minha comunidade, província… de aceitar reformas de costumes tão simples como as que ali se deram, e que além disso não supunham nenhuma invenção mas fidelidade às próprias constituições? Com frequência o processo que necessitamos de ativar não consiste em grandes originalidades, mas em recuperar certas raízes ou prioridades.

8. No seu processo como fundadora, já tratámos na ficha anterior o constante discernimento entre rigor e suavidade. No final da sua vida continua firme na sua intenção inicial de que os mosteiros sejam de “grandíssimo encerramento (assim de nunca sair, como de não ver, se não têm véu diante do rosto), fundadas em oração e em mortificação” [23.12.1561 (2)], ainda que em contraste com o que entendem os frades por mortificação, ela se reafirma naquela certeza, também presente desde os seus inícios, da importância do recreio comunitário, a poesia e a alegria: 8.11.1581 (13-14). Interessante igualmente o que o uso do véu parece significar e, em consequência, com quem o usar e com quem, muito excecionalmente “não se sofre” (ib.7). Tem isto a ver com o devido afeto e comunicação que temos vindo a sublinhar desde o princípio desta secção? Que pode significar para tantas e tantos que não levamos véu, mas estamos chamados a cuidar da qualidade das nossas relações interpessoais?

8. E de novo outro tema que vai aparecer com frequência e ganhando em matizes com as cartas que iremos lendo: o dos critérios vocacionais para discernir as candidatas aos seus carmelos: 7.3.1572 (4-7), 28.8.1575 (5-8), 15.12.1581 (8m).

10. No que à vida espiritual se refere, volta a aparecer a importância do céu e a “verdade de quando menina” (cf. Ficha 1, 4.11): 7.11.1571 (2.6m), 15.12.1581 (8f.10f). Talvez o que agora traz mais novidade é a sua própria surpresa ante essa mescla de esperança e dor que acarreta: “não sei como sentimos os que vão a terra segura […] é querer-nos a nós mesmos e não aos que vão gozar de maior bem”: 7.11.1571 (5). Enfim, o mesmo Senhor chorou por Lázaro, e a Virgem até à extenuação pelo seu Filho: não será um afã mais estoico que evangélico querer ‘sobrevoar’ certas experiências cruciais da vida, querer afastar o processo de luto…? Por outro lado, cuidado com algumas formas de respeito à nossa própria humanidade e contingência que quase inconscientemente a contrapõem à abertura à transcendência e à fé: lembras-te de algum exemplo disto? Entre ambas as tentações, angelismo ou horizontalismo, qual te parece a mais frequente no teu ambiente e porquê? Como ajudar a fazer processo a partir dela? …

11. Pelo que respeita também à vida espiritual e ao processo pessoal de cada um, hoje, mais do que nunca, sabemos que é imprescindível saber aceitar e integrar os limites da existência, o conflito ou os conflitos que a vida vai provocando ao idealismo infantil dos nossos desejos básicos… Evidentemente a santa usa uma linguagem muito mais religiosa: há que crer e agarrar-se a que “o prémio dos trabalhos é o amor de Deus”: 7.11.1571 (2), cf. 16.2.1577 (1m). E tendo isso como rocha firme tratar de superar o conflito: cuidar da saúde, se é o caso, e alegrar-se com as melhorias; ‘aceitar’ as injustiças e perseguições, quando tocam, mas buscar todos os meios, por mais sofisticados que sejam, para as corrigir…: 7.11.1571 (3.8), cf. 16.2.1577 (3-5).

12. Entre as cartas ‘complementares’ há pelo menos um par de detalhes nos que reparar também. Em primeiro lugar o texto, “E uma das coisas que me faz estar aqui contente [momentos iniciais da sua longa e complicada estancia em Sevilha] e há-de… fazer estar mais, é que não há memória dessa farsa de santidade que havia por lá, que me deixa viver e andar sem medo de que essa torre de vento havia de cair sobre mim… que já passou tanto tempo sem a ver”: 28.8.1575 (12).

13. Em segundo lugar: “Muitos anos há que não tive tanto trabalho como depois que andam estas reformas; que ali e aqui sempre digo mais do que quereria, e não tudo o que desejo”: finais 11.1575 (8). Escrupulosa pelas possíveis faltas de caridade nos comentários contra os calçados e outros opositores da sua reforma e, ao mesmo tempo, pelos esquecimentos importantes ou os silêncios por excesso de prudência ou cobardia…? Ou melhor, é a finura de consciência a que move a sua preocupação? Pode-se e convém evitar essa tensão entre o caritativo e o justo, em tantas ocasiões ou, pelo contrário, é uma parte essencial da vida e do processo pessoal e espiritual? Há exemplos concretos que te importem especialmente agora? Podes partilhá-los com o grupo?..

14. Deste-te conta do curioso paradoxo entre a citação da santa copiada no começo desta ficha sob o título (paz, descanso…) e a intensidade e dinamismo de todos os temas apontados nesta secção “Para refletir, orar…”? Isto sugere-te paralelismos com o final das Moradas? 



2013-12-05




segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Os Cantares de Teresa de Jesus

 



                                      CÂNTICO DOS CÂNTICOS


Poema bíblico que contém uma coleção de cantos de amor. De autor anônimo. Supostamente atribuído a Salomão. Assim o crê também Teresa, que os intitula “Cantares de Salomão” (prólogo de Conc., 1), ou simplesmente “os Cantares” (R 24,1; 44,2; V 27,10; E 16,2), ou “Cânticos” (Conc 1,3.6; 3,14; 6,8). Livro de transmissão bíblica singular, pois provocou uma dupla atitude em sua leitura: por um lado, receio e grande reserva; por outro, encanto e admiração. Esta segunda atitude prevalece nos místicos. Também em Teresa, que entretanto é ao mesmo tempo testemunha da primeira atitude, agravada em seu tempo não só pelo dramático episódio de frei Luís e sua tradução dos Cantares ao castelhano, mas oposição de certos teólogos a que a Bíblia fosse lida por mulheres.
Nesse contexto histórico é surpreendente a postura de Teresa frente ao poema. Será este o único livro bíblico expressamente comentado por ela. Durante vários anos - a fase de sua efervescente exaltação mística: período extático -, a leitura dos Cantares é seu refúgio e consolo, “Tem me dado o Senhor, de alguns anos para cá, um gosto muito grande cada vez que ouço ou leio algumas palavras dos Cânticos...” (Conc. prol. 1). Reiterado mais expressamente, embora no anonimato: “E sei de uma que ficou muitos anos com muitos temores, não havendo coisa que lhe desse segurança até que o Senhor fosse servido de que ela ouvisse algumas coisas dos Cânticos, e nelas entendesse que a sua alma estava no caminho certo” (1,6).
Freqüentemente ela pediu aos teólogos a explicação profunda do texto, “rogando-lhes eu que me declarassem o que o Espírito Santo quer dizer e o verdadeiro sentido dessas palavras (dos Cânticos)...” (1,8). Não é improvável que tenha possuído e lido a tradução manuscrita dos Cantares por frei Luís, tradução destinada por esses anos (1561...) a outra monja, Dª Isabel de Osório, e difundida largamente em Castela e Portugal, e inclusive na América, até que o tradutor frei Luís cai no cárcere inquisitorial de Valladolid (1572).
Seria não muito antes dessa data quando a Madre Teresa decidiu-se a comentar “para as monjas” de seus Carmelos (Conc. Prol. 1) alguns versos do livro bíblico: “para consolo das Irmãs (carmelitas) que Nosso Senhor leva por este caminho, e até para o meu” (ib 2). Uma vez escritas suas “meditações” sobre versos seletos do Cantar, submeteu suas cartilhas à aprovação dos teólogos dominicanos, implicados ao menos um deles no episódio de frei Luís de León, cuja primeira proposição delatada soava que “o Cântico dos Cânticos é um poema amoroso para a filha do Faraó, e ensinar o contrário é fútil”, e a segunda proposição: que “o Cântico se pode ler e explicar em língua vernácula”. O primeiro teólogo, Diego de Yanguas, foi de parecer negativo com relação ao escrito teresiano: “por lhe parecer que não era justo que mulher escrevesse sobre a Escritura, afirmou-lhe, e ela foi tão pronta na obediência..., que o queimou prontamente” (BMC 18,320). Ao contrário, o outro consultor, Domingo Báñez, mais prestigioso e mais metido na polêmica da versão castelhana dos Cantares, foi de parecer positivo. Tarde demais. Quando já o original teresiano sucumbiu ao fogo, escreveu ele de próprio punho uma das cópias salva das chamas: “Vi com atenção estes quatro caderninhos, que entre todos tem oito páginas e meia, e não encontrei nada que seja má doutrina, mas antes boa e proveitosa. No Colégio de São Gregório de Valladolid, 10 de junho de 1575. Frei Domingo Báñez”. (Códice de Alba: BMC 4,268).
Esta tomada de posições por parte do famoso teólogo dominicano reveste especial importância por vários motivos: porque em sua autoridade se apoiaram as duas proposições antes citadas sobre os Cânticos e sua tradução vernácula; porque na data de sua assinatura a favor da autora, está em seu transe crucial o processo de frei Luís, preso na mesma cidade de Valladolid onde Báñez comunica sua aprovação; e porque, igualmente por essas datas, o teólogo dominicano tem em suas mãos o autógrafo teresiano do “Livro da Vida”, já denunciado a Inquisição.
Quando em 1588 frei Luís editar pela primeira vez as Obras da Madre Teresa, omitirá este comentário aos Cantares, e evita assim novas tribulações ao escrito e provavelmente também ao editor.

A leitura teresiana do poema bíblico

A Santa enfrenta a tarefa de interpretar com absoluta espontaneidade. Propõe-se escrever o que o texto bíblico lhe sugere. Sabe que o poema tem outro tipo de leitura, literal e teológica, na qual deve-se empenhar os letrados, responsáveis da palavra de Deus: eles “hão de trabalhar nisso” (Conc 1,2). Mas essa leitura-estudo não exclui, segundo ela, a leitura livre, a partir da vida mesma: “O que pretendo é que, assim como eu me regalo com o que o Senhor me dá a entender quando ouço algumas dessas palavras (dos Cânticos), o dizer-vos talvez vos console como a mim” (Conc 1,8). Nem ficam excluídas desta leitura as mulheres, pois “nós, mulheres, também não haveremos de ficar tão longe de gozar das riquezas do Senhor; fiquemos fora, sim, de entrar em disputas a seu respeito” (1,8). Teresa está convencida de que o poema tem “palavras que muito ferem” (3,14), capazes de atingir a leitores e leitoras altamente enamorados. Chega a pensar que algumas palavras dos Cânticos não se lhas poderá apropriar o leitor senão a partir de um alto grau de enamoramento: que não se pode dizer “com o beijo de sua boca” senão a partir dos contíguos do êxtase: “essas palavras são proferidas pelo amor... Assim é que essas palavras suscitariam verdadeiramente temor se quem as diz estivesse em si, mesmo tomadas ao pé da letra. Mas a quem Vosso amor tirou de si, Senhor, bem perdoareis que diga isso e mais, embora seja atrevimento” (1,12). Eis aqui um espécime desse tipo de leitura:
“ Ó Senhor do céu e da terra! Como é possível que, estando-se ainda nesta vida mortal, se goze de Vós com amizade tão particular! E que o Espírito Santo o diga tão às claras nessas palavras, e que mesmo assim não queiramos entender como são os prazeres com que tratais as almas nesses Cânticos? Que delicadeza, que suavidade! Deveria bastar-nos uma só palavra destas para nos desfazer em Vós...” (3,14).
Geralmente, Teresa prefere dar ao poema valor de simbolismo nupcial entre Deus e o homem. Mais que a tradicional versão esponsal cristológica e eclesial (amor entre Cristo e a Igreja), ela se inclina pelo simbolismo interpessoal: Deus e a alma, ou Cristo e ela. Mas dando por suposta a abertura do símbolo a outros setores.
Desde o ponto de vista literal ou textual, não sabemos quantos e quais versos do Cântico Teresa comentou, devido às mutilações e lacunas com que nos chegaram seu comentário. De fato, naquilo que nos resta de seu escrito aparecem comentados os seguintes versos:
-“Beije-me com o beijo de sua boca...” (Cant 1,1: Conc 1,1).
-“Mais valem teus peitos do que o vinho, fragrantes como os mais preciosos bálsamos” (Cant 1,1-2: Conc 4,1)
-“À sua sombra, como desejei, estou sentada, e seu fruto é doce à minha boca” (Cant 2,3: Conc 5,1)
-“Ele me introduziu no celeiro do vinho e o estandarte erguido sobre mim é o amor” (Cant 2,4: Conc 6,1)
-“Amparai-me com bolos de uva, reanimai-me com maçãs, pois estou doente de amor ” (Cant 2,5: Conc 7,1).
-implícita alusão ao texto da vulgata “lectulus noster floridus” (Cant 1,15: Conc 2,5. -Frei Luís havia traduzido: nosso leito está florido”. No comentário Teresa cita livremente: “Oh, Sua Majestade faz uma cama de rosas e flores para Si na alma”.
-“Eu sou para meu Amado, e meu Amado é para mim” (Cant 6,2; 2,16: Conc 4,8)
-“Ele a mantém com maçãs”: Cant 2,5: Conc 5,5
-“Toda bela és, ó minha bem-amada”: Cant 4,7: Conc 6,9
-“Quem é essa que se eleva como a aurora, bela como a lua, resplandecente como o sol”: Cant 6,9: Conc 6,11
-“Sob a macieira eu te despertei”: Cant 8,5: Conc 7,8.


O poema bíblico nos demais escritos da Santa

Como se sabe, o Cântico dos Cânticos, teve seu melhor eco e prolongação poética no Cântico Espiritual de são João da Cruz. Também em Teresa teve repercussão poética. Na breve coleção de poemas da Santa há duas peças inspiradas no Cântico.
Uma delas comenta o verso “meu Amado para mim” (Cant 6,2), e o incorpora ao estribilho de cada estrofe: “Entreguei-me toda, e assim / Os corações se hão trocado / Meu Amado é para mim / E eu sou para meu Amado”. A este lema inicial seguem duas oitavinhas nas quais reaparecem sendo motivos poéticos do Cântico: a caça do amor (“Quando o doce Caçador / Me atingiu com sua seta,...”), e “era aquela seta eleita, ervada em sucos de amor”, que faz recordar as “palavras que muito ferem” dos Conceitos (cf E 16,2).
O segundo poema não tem tão estreita vinculação com o Cântico. Reproduz o “colóquio amoroso” dos amantes, e pretende a igualdade de amor entre ambos: “Deus meu, se o amor que me tendes,/ É como o amor que vos tenho...”.
Mas além dos poemas, a imagem e simbolismo do livro bíblico estão presentes em quase todos os escritos teresianos, a partir do Livro da Vida. a) O mútuo olhar: “...sem que percebamos, estes dois amantes se olham, face a face, como diz o Esposo à Esposa no Cântico dos Cânticos, ou ao menos acho que ouvi dizer que é aí que diz” (V 27,10, com referência a Cant 4,9 e 6,4: “com um só de teus olhares me enamoraste”, que frei Luís havia traduzido: “roubaste meu coração com um só de teus olhos”). -b) Esse momento simbólico do olhar recíproco recordá-lo-á a seus leitores do Caminho (26,3): “Peço-vos apenas que olheis para Ele..., que o vosso Esposo nunca tira, filhas, os olhos de vós... Vede que Ele, como diz à esposa, não está esperando outra coisa”. -c) Reaparecerá várias vezes nas Exclamações, onde evocará ao menos dois versos não mencionados nos Conceitos: o conjuro das filhas de Jerusalém que vão pelas ruas e praças (Cant 3,2: Excl 16,3), e a Exclamação final, em que se apropria o verso “forte como a morte é o amor, e duro como o inferno” (Cant 8,6), comentado assim: “Ó, quem se visse já morto às vossas mãos e arrojado nesse divino inferno de onde já não esperasse poder sair, ou melhor, já não temesse ver-se expulso!” (E 17,3).
Contudo, o mais decisivo influxo do Cântico bíblico na espiritualidade teresiana acontece nas Moradas, não já pela evocação de versos soltos (cf M 5,1,12; 6,4,10; 6,7,9; 7,3,13), mas porque só neste livro a autora leva a pleno desenvolvimento o símbolo nupcial herdado do Cântico, e que lhe serve para estruturar a seção mística do Castelo. Será aqui, nas Moradas, onde melhor articulará em torno ao símbolo nupcial os outros símbolos dos Cantares: o vinho, a adega, a embriaguez de amor, a flecha, a ferida, o fogo... e o selo, que nos Cânticos é impressão da face da esposa no braço ou no coração do amado (8,6), e que no Castelo é profunda impressão do rosto do Amado na cera da alma (M 5,2,12).
Em um de seus poemas festivos (“Na cruz está a vida...”), Teresa identifica a cruz do Senhor com a “árvore desejada” da Esposa dos Cantares (2,3):

“É o madeiro verdejante
E desejado
Da Esposa, que à sua sombra
Se há sentado,
A gozar de seu Amado,
O Rei Jesus.
Pois ao Céu é a única senda
Que conduz”,

identifica de novo a cruz com a palma preciosa dos Cantares:

“Da cruz é que diz a Esposa
A seu Querido,
Que é a palmeira preciosa
Aonde há subido;
Cujo fruto lhe há sabido

Ao seu Jesus...” (Po 19).


Bibliografía - A. M Pelletier, Lecture du Cantique des Cantiques, Roma 1989, 370-378

T. Alvarez

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Pistas gerais de leitura para estudo das obras menores



Obviamente uma ajuda imprescindível será ter diante uma boa cronologia da santa, para partir de uma ideia básica do contexto no que se escreve cada carta: idade e momento do seu processo espiritual, residência e atividade principal, obras literárias que tem entre mãos (se as houver) … Mas passemos às pistas propriamente ditas:
Que diz Teresa de si mesma? Fixamo-nos no que diz explicitamente e também no que se pode captar de forma implícita: características da sua personalidade que vão aparecendo.
1.      Que diz do contexto e da realidade? Identificamos temas, preocupações, decisões, critérios, conselhos…
Que diz de Deus, da vida espiritual? Também de forma explícita ou de forma implícita.
Claro é sempre importante reparar nas dúvidas e dificuldades ou nas questões que nos tenham surpreendido positivamente, para as retomar e aprofundar, consultar, comentar, partilhar…

2.      Evidentemente, se se tem atenção a estas pistas e, sobretudo, se se for tomando notas precisas, o trabalho deste curso dará lugar a um índice de grandes temas teresianos: relações familiares e afetivas, questões económicas e organizativas, critérios de discernimento vocacional, chaves de acompanhamento espiritual… Naturalmente, e como vem sendo habitual em todos estes anos de preparação para o V Centenário do Nascimento de Santa Teresa, confiamos em que o trabalho pessoal (com cada ficha) culmine e se enriqueça com encontros e reflexões em comum.


3.      Primeiras impressões

Em geral: Que pensais que vos pode trazer a leitura e o trabalho sobre as cartas?
Um exercício de imaginação: se não conhecesses nada de Teresa de Jesus, e se o primeiro contacto com ela fosse através destas cartas que acabas de trabalhar, como descreverias esta mulher? Que dirias dela?


Para refletir, orar… depois da leitura dos textos

4.      Cita-se só com a data da carta, salvo se houver outras com a mesma data no epistolário teresiano; casos em que se acrescenta o destinatário. Os números depois das datas e entre parêntesis indicam os parágrafos concretos da carta a que nos referimos, segunda a edição do Monte Carmelo (se levam uma letra unida: a = em cima, m = meio, e f = fim do parágrafo) de que estão tiradas as 40 selecionadas para este curso pela Comissão do Centenário.


5.      As questões que se colocam nesta secção, como em anos anteriores, não pretendem esgotar a reflexão nem a açambarcar, mas sugerir possibilidades, de modo a que cada pessoa ou grupo utilize só as que lhe sejam úteis. Como se recordará de outros cursos, em cada número se convida a reparar no tema ou paradoxo proposto (se se está de acordo, justificá-lo…), rever a própria vida e a da comunidade e contexto (tem-se em conta, como o aplicar ou concretizar…), orá-lo pessoalmente (agradecer, suplicar, interceder, contemplar…) e em grupo… Portanto, não repetiremos estas pistas ao final de cada número; baste para isso este recordatório inicial.


6.       Algo pouco surpreendente e que salta à vista – pelas datas e destinatários das suas cartas em geral e pelo conteúdo das primeiras que lemos em particular – é a vinculação destas à sua tarefa como fundadora. No entanto, sim que resulta surpreendente e deve dar que pensar, rezar, partilhar… a muita relação com a sua família biológica, sobretudo se recordamos as restrições com respeito a isso que ela mesma decide (cf. CV 8-9, Const. V 6-7, etc.). Atenção pois, nestas primeiras cartas, à intensidade afetiva com os seus familiares e incluso as preocupações e implicações económicas com eles.



7.       Entre as primeiras expressões que pudemos ler, algumas parecem muito ‘providencialistas’, por exemplo, acerca da oportunidade de certas esmolas [23.12.1561 (1f.3m)] ou a oração de intercessão e o valor das relíquias e certos sacrifícios [23.12.1561 (12.13m), 17.1.1570 (14f.17)]. No entanto e ao mesmo tempo, encontramos Teresa muito ativa e astuta: 23.12.1561 (3m.4.15f: grande ‘indireta’ ao seu irmão!), ao rei D. Filipe II 19.7.1575…


8.      Outro desses paradoxos do Senhor: a santa sabe-se inspirada divinamente como fundadora e formadora (escritora): 23.12.1561 (2a), a D. Teotónio 22.7.1579 (1). Mas só depois de o contrastar e muito com letrados: 23.12.1561 (2a), 17.1.1570 (11m), maio 1575. E nós: cremos possível o primeiro? Usamos o segundo?


9.      As primeiras notícias que encontramos acerca da finalidade da sua fundação incluem a oração, mas parecem destacar mais o rigor físico [23.12.1561 (2m)]. Que pensar então da atenção que dá ao cuidado com a saúde? “Enfim, ainda que pobre e pequena [a casa-convento], mas com lindas vistas e campo” [23.12.1561 (3f)], cf. E ainda: 23.12.1561 (3f), 17.1.1570 (4), 4.2.1572 (1), a Mª de S. José 16.6.1581

10.   A propósito de saúde, em 17.1.1570 (4) encontramos uma clara confirmação da experiência que canta no poema-lema do Centenário Vuestra soy, para Vos nací / ¿qué mandáis hacer de mí?: “Dadme muerte, dadme vida / dad salud o enfermedad / honra o deshonra me dad (…) que a todo digo que sí / ¿qué mandáis hacer de mí?”


11.   Já sabemos que a inspiração divina do projeto teresiano não exclui, mas exige os seus cuidados organizativos (cf. acima as citações finais da questão 2), sobretudo, segundo estas primeiras cartas lidas, os de tipo económico: 17.1.1570 (5.11-12.18f). Portanto, parece que viver pobre, austeramente, é oposto a improvisar; requere um constante discernimento, como por exemplo no caso de receber candidatas com dote ou sem ele: 17.1.1570 (17-18).


12.   Interessantes critérios vocacionais se podem extrair dos seus comentários sobre a sua prima Ana Cepeda e, ainda que bastante menos, sobre a sua sobrinha Magdalena de Guzmán: 17.1.1570 (9.10f)


13.  Também desde estes começos fica indicada já a finalidade evangelizadora e missionária da sua reforma: 17.1.1570 (13).


14.  No que diz respeito à vida espiritual, as suas cartas ao seu irmão Lorenzo vão-nos ensinar muito e, de facto, terão uma ficha própria. De momento fica claro que, ainda que haja uma possível alusão a fenómenos extraordinários [23.12.1561 (2a)], Deus, ordinariamente, atua através de mediações normais, sobretudo pessoas: o seu irmão Lorenzo a quem não se cansa de agradecer as esmolas a si e a tantos; ela própria (já notámos nas suas inspirações e cuidados organizativos); Guiomar de Ulloa (ibid. 3a); António Morán (ibid. 6) … Portanto, a vida espiritual tem a ver com essa generosidade com os próprios bens e energias, e não é compatível com uma forma ‘instalada’ de viver conforme aos critérios e costumes do “mundo”: 23.12.1561 (5), 17.1.1570 (1.13).


15.  A vida espiritual não é questão de técnicas ou estratégias: la santa aponta, ainda que nestas cartas muito de passagem, a uma relação interpessoal (servir a alguém) e, sobretudo, destaca o seu carácter dinâmico, de processo, uma luta constante, que pede ir crescendo “cada dia pelo menos um pouquinho”: 23.12.1561 (5). Também destaca que esta relação e processo tem de ser cuidado e educado desde crianças: 17.1.1570 (8).


16.  Nesta forma de tratar e animar a vida espiritual, há um evidente protagonismo do que o céu significa (cf. “a verdade de quando menina”: Vida 3,5 e a ficha correspondente): 23.12.1561 (5), 17.1.1570 (6). Sem que isso contradiga a importância do compromisso com a terra; mais ainda, quanto mais graças e autoridade se tem, maior tem de ser este compromisso como mostra o seu próprio caso (cf. Acima questões 1, 2, 6 e 9) ou as suas ‘exortações’ ao rei [19.7.1575 (4f)] e a D. Teotónio [22.7.1579 (6)].

17.   Nestas primeiras cartas é óbvio que sobressaem duas grandes paixões e preocupações: as suas famílias, a biológica e a religiosa. Não obstante também diz aqui “esses índios não me custam pouco” [17.1.1570 (13)], e além disso encontramos uma apaixonada carta dedicada a mediar a paz entre Espanha e Portugal, a paz entre os cristãos [a D. Teotónio 22.7.1579 (3-7)].

18.   Ainda que talvez nem todos tenhamos fácil acesso à carta ‘complementar’ de setembro de 1568, merece a pena notar como nela, junto ao carácter carinhoso e cheio de detalhes da santa (de sobra provado no resto das cartas lidas), se põe de manifesto e ela mesma o confessa o seu carácter forte: “eu que sou a própria ocasião, que me aborreci com ele [João da Cruz] às vezes.” (2) Conheces casos em que a santidade e este tipo de carácter estejam unidos? Parece-te possível? Como se explica? …


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