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terça-feira, 24 de maio de 2016

"A ORAÇÃO DO CORAÇÃO"





(por Henri Nouwen)

"A oração hesicástica, que leva ao descanso em que a alma habita com Deus, é a oração do coração. Para nós que damos tanta importância à mente, aprender a rezar com o coração e a partir dele tem importância especial. Os monges do deserto nos mostram o caminho. Embora não exponham nenhuma teoria sobre a oração, suas narrativas e seus conselhos concretos apresentam as pedras com as quais os autores espirituais ortodoxos mais tardios construíram uma espiritualidade magnífica. Os autores espirituais do monte Sinai, do monte Atos e os startsi da Rússia oitocentista apoiam-se todos na tradição do deserto. Encontramos a melhor formulação da oração do coração nas palavras do místico russo Teófano, o Recluso: "Rezar é descer com a mente ao coração e ali ficar diante da face do Senhor, onipresente, onividente dentro de nós". No decorrer dos séculos, essa perspetiva da oração tem sido central no hesicasmo Rezar é ficar na presença de Deus com a mente no coração, isto é, naquele ponto de nossa existência em que não há divisões nem distinções e onde somos totalmente um. Ali habita o Espírito de Deus e ali acontece o grande encontro. Ali, coração fala a coração, porque ali ficamos diante da face do Senhor, onividente, dentro de nós. É bom saber que aqui a palavra "coração" é usada em seu sentido bíblico pleno. em nosso meio, ela se tornou lugar-comum. Refere-se à sede da vida sentimental. Expressões como "coração partido" e "sentido no coração" mostram ser comum pensarmos no coração como o lugar quente onde se localizam as emoções, em contraste com o frio intelecto onde têm lugar nossos pensamentos. Mas, na tradição judeu-cristã, a palavra "coração" refere-se à fonte de todas as energias físicas, emocionais, intelectuais, volitivas e morais.

No coração, originam-se impulsos impenetráveis, além de sentimentos, disposições e desejos conscientes. O coração também tem suas razões e é o centro da perceção e do entendimento. Finalmente, ele é a sede da vontade: faz planos e chega a uma boa decisão. Assim, é o órgão central e unificador de nossa vida pessoal. Nosso coração determina nossa personalidade e é, portanto, não só o lugar onde Deus habita, mas também o lugar ao qual Satanás dirige seus ataques mais ferozes. Esse coração é o lugar da oração. A oração do coração dirige-se a Deus a partir do centro da pessoa e, assim, afeta toda a nossa compaixão.
Um dos monges do deserto, Macário, o Grande, diz: "A tarefa principal do atleta (isto é, do monge) é entrar em seu coração". Isso não significa que o monge deva procura encher sua oração de sentimento; significa que deve esforçar-se para deixar que ela remodele toda a sua pessoa. O discernimento mais profundo dos monges do deserto é que entrar no coração é entrar no Reino de Deus. Em outras palavras, o caminho para Deus é pelo coração. Isaac, o Sírio, escreve:

"Procure entrar na câmara do tesouro... que está dentro de si e então descobrirá a câmara do tesouro do céu. Pois ambas são a mesma coisa. Se conseguir entrar numa, verá ambas. A escada para este Reino está escondida dentro de si, na sua alma. Se purificar a alma, ali verá os degraus da escada que deve subir."
E João de Cárpato diz: "É preciso grande esforço e luta na oração para alcançar aquele estado da mente que é livre de toda perturbação; é um céu dentro do coração (literalmente 'intracardíaco'), o lugar onde, como o apóstolo Paulo assegura, "Cristo está em vós" (2Cor13,5).

Em suas falas, os monges do deserto nos indicam uma visão bastante holística de oração. Eles nos afastam das nossas práticas intelectuais, nas quais Deus se transforma em um dos muitos problemas com os quais temos de lidar. Mostram-nos que a verdadeira oração penetra no âmago de nossa alma e não deixa nada sem tocar. A oração do coração não nos permite limitar nosso relacionamento com Deus a palavras interessantes ou emoções piedosas. Por sua própria natureza, essa oração transforma todo o nosso ser em Cristo, precisamente porque abre os olhos de nossa alma à verdade de nós mesmos e também à verdade de Deus. Em nosso coração passamos a nos ver como pecadores abraçados pela misericórdia de Deus. É essa visão que nos faz clamar: "Senhor Jesus Cristo, Filho do Deus vivo, tem misericórdia de mim, pecador". A oração do coração nos exorta a não esconder absolutamente nada de Deus e a nos entregar incondicionalmente a sua misericórdia.

Assim, a oração do coração é a oração da verdade. Desmascara as muitas ilusões sobre nós mesmos e sobre Deus e nos conduz ao verdadeiro relacionamento do pecador com o Deus misericordioso. Essa verdade é o que nos dá o "descanso" da hesicasta. Quando ela se abriga em nosso coração, somos menos distraídos por pensamentos mundanos e nos voltamos mais sinceramente para o Senhor de nossos corações e do universo. Assim, as palavras de Jesus: "Felizes os corações puros: eles verão a Deus" (Mt 5,8) tornam-se reais na nossa oração. As tentações e as lutas continuam até o fim das nossas vidas, mas com um coração puro ficamos tranquilos, mesmo em meio a uma existência agitada.

Isso levanta o problema de como praticar a oração do coração num ministério bastante agitado. É a essa questão de disciplina para a qual precisamos agora voltar a atenção.

Oração e Ministério
Como nós, que não somos monges nem vivemos no deserto, praticamos a oração do coração? Como ela influencia nosso ministério cotidiano?
A resposta a essa pergunta está na formulação de uma disciplina definitiva, uma regra de oração. Há três características da oração do coração que nos ajudam a formular essa disciplina:
A oração do coração alimenta-se de orações breves e simples.
A oração do coração é incessante.

A oração do coração inclui tudo.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Carta Sobre A Vida Contemplativa Ou Escada Dos Monges


Carta Sobre A Vida Contemplativa Ou Escada Dos Monges



Extraído do livro: Lectio Divina, Ontem e Hoje, Edições Subiaco, 2005 – Tradução de D. Timóteo Amoroso Anastácio

Esta carta sobre a Vida Contemplativa ou Escada dos Monges, proveniente do século XII, é um clássico da espiritualidade monástica, enquanto retoma e sistematiza os ensinamentos da tradição monástica anterior sobre a lectio divina, e enquanto guiou gerações de monges nos caminhos da oração interior, como o testemunha o grande número de manuscritos que chegaram até nós. Seu autor é Guigo II, nono prior da Grande Cartuxa, que exerceu este cargo entre os anos 1174 e 1180, vindo a falecer em 1188. Escreveu ainda Doze Meditações e um opúsculo sobre o Magnificat.
A Escada dos monges, sua obra-prima e também da espiritualidade ocidental, foi primorosamente traduzida por D. Timóteo Amoroso Anastácio, antigo abade do Mosteiro de S. Bento da Bahia, diretamente do texto crítico latino, editado por E. Colledge, O.S.A. e James Walsh, S.J., na coleção Sources Chrétiennes no. 163, Ed. Do Cerf, Paris, 1970, 81-123.



Carta de Dom Guigo, Cartuxo, ao Ir. Gervásio, sobre a vida contemplativa

I
Ao seu dileto irmão Gervásio, o irmão Guigo: o Senhor seja o seu deleite.
Amar-te, irmão, é para mim uma dívida, pois foste tu que, primeiro, começaste a me amar. E sou obrigado a te responder, porque, anterior, tua carta me convida a escrever-te.
Proponho-me, assim, a te transmitir certas coisas que pensei sobre o exercício espiritual dos monges, a fim de que possas julgar e corrigir meus pensamentos a propósito de um assunto que tu melhor conheces por experiência, do que eu pela reflexão.
É justo que eu te ofereça, em primeira mão, as primícias do meu trabalho. Pois convém que colhas os primeiros frutos da recente plantação que, em louvável furto, subtraíste à servidão do Faraó e à mole servidão, e colocaste no exército em ordem de batalha, enxertando sabiamente na oliveira o ramo habilmente cortado da oliveira selvagem (cf. Sl 144, 2; Ex 13, 14; Ct 6, 3-9 e Rm 11, 17.24)


OS QUATRO DEGRAUS
     
II
Um dia, ocupado no trabalho manual, comecei a pensar no exercício espiritual do homem. E eis que, de repente, enquanto refletia, se apresentaram a meu espírito quatro degraus espirituais: a leitura, a meditação, a oração e a contemplação.
Esta é a escada dos monges, que os eleva da terra ao céu. Embora dividida em poucos degraus, ela é de imenso e incrível comprimento, com a ponta inferior apoiada na terra, enquanto a superior penetra as nuvens e perscruta os segredos do céu (cf. Gn 28, 12).
Estes degraus, assim como são diversos em nome e em número, também se distinguem pela ordem e o valor.
Se alguém examina diligentemente suas propriedades e funções, o que produz cada um deles para nós, e como diferem e se hierarquizam entre si, achará pequeno e fácil por sua utilidade e doçura todo o trabalho e esforço que lhes dedicar.
A leitura é o estudo assíduo das Escrituras, feito com aplicação do espírito.
A meditação é uma ação deliberada da mente, a investigar com a ajuda da própria razão o conhecimento duma verdade oculta. A oração é uma religiosa aplicação do coração a Deus, para afastar os males ou obter o bem.
A contemplação é uma certa elevação da alma em Deus, suspensa acima dela mesma, e degustando as alegrias da eterna doçura.
Notada, assim, a descrição dos quatro degraus, resta-nos ver a função de cada um em relação a nós.

QUAL A FUNÇÃO DE CADA UM DOS CITADOS DEGRAUS

III
A leitura procura a doçura da vida bem-aventurada, a meditação a encontra, a oração a pede, a contemplação a experimenta.
A leitura, de certo modo, leva à boca o alimento sólido, a meditação o mastiga e tritura, a oração consegue o sabor, a contemplação é a própria doçura que regala e refaz.
A leitura está na casca, a meditação na substância, a oração na petição do desejo, a contemplação no gozo da doçura obtida. Para que se possa ver isto de modo mais expressivo, suponhamos um exemplo entre muitos.

A FUNÇÃO DA LEITURA

IV
À leitura, eu escuto: Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus (Mt 5, 8).
Eis uma palavra curta, mas cheia de suaves sentidos para o repasto da alma. Ela oferece como que um cacho de uvas. A alma, depois de o examinar com cuidado, diz em si mesma: “Pode haver aqui algum bem, voltarei ao meu coração e tentarei, se possível, entender e encontrar esta pureza. Pois é preciosa e desejável tal coisa, cujos possuidores são ditos bem-aventurados, e à qual se promete a visão de Deus, que é a vida eterna, e que é louvada por tantos testemunhos da Sagrada Escritura.”
Desejosa de explicar mais plenamente a si mesma esta coisa, começa a mastigar e a triturar essa uva, e a põe no lagar, enquanto excita a razão a procurar o que é e como pode ser adquirida tão preciosa pureza.

A FUNÇÃO DA MEDITAÇÃO

V
Começa, então, diligente meditação. Ela não se detém no exterior, não para na superfície, apóia o pé mais profundamente, penetra no interior, perscruta cada aspecto.
Considera, atenta, que não se disse: Bem-aventurados os puros de corpo, mas sim, os puros de coração. Pois não basta ter as mãos inocentes de más obras, se não estivermos, no espírito, purificados de pensamentos depravados. Isto o profeta confirma por sua autoridade, ao dizer: Quem subirá o monte do Senhor? Ou quem estará de pé no seu santuário? Aquele que for inocente nas mãos e de coração puro (Sl 24, 3-4).
Depois ela considera quanto o próprio profeta deseja essa pureza, ao orar: Cria em mim, ó Deus, um coração puro (Sl 51, 12) e ainda: Se olhei a iniqüidade no meu coração, o Senhor não me ouvirá (Sl 66, 18).
A meditação pensa em como era o bem-aventurado Jó solicito por essa guarda, pois dizia: Fiz um pacto com os meus olhos para não pensar em nenhuma virgem (Jó 31, 1). Eis como se dominava o santo homem que fechava seus olhos para não ver o que é vão, evitando olhar imprudentemente o que depois desejaria contra a sua vontade.
Depois de ter refletido sobre esses pontos e outros semelhantes no que toca à pureza do coração, a meditação começa a pensar no prêmio: Como seria glorioso e deleitável ver a face desejado do Senhor, mais bela do que a de todos os homens (Sl 45, 3), não mais abjeta e vil (cf. Is 53, 2), não mais tendo a aparência com que o revestiu sua mãe, mas envergando a estola da imortalidade, e coroado com o diadema que seu Pai lhe deu no dia da ressurreição e da glória, o dia que o Senhor fez (Sl 118, 24).
Ela concebe que nesta visão haverá aquela saciedade esperada pelo profeta, ao dizer: Serei saciado quando aparecer a tua glória (Sl 17, 15).
Vês quanto licor emanou daquela pequena uva, quanto fogo nasceu duma centelha, quanto se alargou na bigorna da meditação, este pequeno pedaço de metal: Bem-aventurado os puros de coração, porque verão a Deus!
Mas, quanto mais poderia alargar-se, se alguém experiente viesse ajudar!
Sinto como “é fundo o poço”, mas não passo ainda de um noviço rude, que mal cheguei a tirar poucas gotas.
Inflamada por esses fachos, incitada por tais desejos, a alma começa a pressentir, quebrado o alabastro, a suavidade do ungüento. Não é ainda o gosto, mas é já o cheiro.
Por esse, a alma compreende quão suave seria experimentar essa pureza, cuja meditação a faz saber quanta alegria ela dá. Mas que fará ela?
Ardendo ao desejo de possuí-la, não encontra em si como a pode ter. E quanto mais a procura, mais tem sede.
Enquanto se dá à meditação, sua dor aumenta, porque ainda não sente a doçura que a meditação mostra existir na pureza de coração, mas sem a dar.
Porque não cabe a quem lê nem a quem medita sentir tal doçura, se não recebe do alto (Jo 19, 11) esse dom. Ler e meditar é comum tanto aos bons quanto aos maus, e os próprio filósofos pagãos encontraram, pelo exercício da razão, em que consiste, em suma, o verdadeiro bem.
Mas, tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus (Rm 1, 21) e, presumindo de suas forças, diziam: Venceremos graças à nossa língua, nossos lábios são nossos (Sl 12, 5). Assim, não mereceram receber o que tinham podido ver. Perderam-se em seus pensamentos (Rm 1, 21), e a sua sabedoria foi devorada (Sl 107, 27).
A sabedoria deles tinha as suas fontes no estudo das ciências humanas, e não no Espírito de sabedoria que é o único a dar a verdadeira sabedoria, isto é, a ciência saborosa que alegra e nutre, com inestimável sabor, a alma que a possui. É dela que foi escrito: A sabedoria não entrará na alma perversa (Sb 1, 4).
Esta procede só de Deus. E como o Senhor deu a muitos a missão de batizar, mas guardou só para si o poder e a autoridade de perdoar os pecados pelo batismo, o que levou João a dizer, por antonomásia e de modo preciso: É ele que batiza, assim também podemos dizer: “É ele que dá sabor à sabedoria, e faz saborosa a ciência da alma”.
A palavra é dada a todos; a sabedoria do espírito, que o Senhor distribui a quem quer e quando quer (cf. 1 Cor 12, 11), a poucos é dada.


A FUNÇÃO DA ORAÇÃO

VI
Vendo, pois, a alma que não pode por si mesma atingir a desejada doçura do conhecimento e da experiência, e que quanto mais se aproxima do fundo do coração (Sl 64, 7), tanto mais distante é Deus (cf. Sl 64, 8), ela se humilha e se refugia na oração. E diz: “Senhor, que não és contemplado senão pelos corações puros, eu procuro, pela leitura e pela meditação, qual é, e como pode ser adquirida a verdadeira doçura do coração, a fim de por ela conhecer-te, ao menos um pouco.”
Eu buscava, Senhor, a tua face, a tua face Senhor, eu buscava (cf. Sl 27, 8); meditei muito tempo em meu coração, e na minha meditação cresceu um fogo (cf. Sl 39, 4) e o desejo de te conhecer ainda mais.
Quando me repartes o pão da Sagrada Escritura, na fração do pão te tornas conhecido por mim (cf. Lc 24, 35). E quanto mais te conheço, tanto mais desejo conhecer-te, não já na casca da leitura, mas no sabor da experiência.
Isto não peço, Senhor, por meus méritos, mas pela tua misericórdia. Confesso-me indigna pecadora, mas até os cãezinhos comem das migalhas que caem da mesa dos seus donos (Mt 15, 27).
Dá-me, pois, Senhor, o penhor da herança futura, uma gota ao menos da chuva celeste, para arrefecer a minha sede, pois ardo de amor (cf. Ct 2, 5).


EFEITOS DA CONTEMPLAÇÃO

VII
Com essas e outras palavras, a alma inflama o seu desejo, mostra assim o que nela se fez, por encantações invoca o seu Esposo. E o Senhor, cujos olhos são fixos nos justos e cujos ouvidos estão não só atentos às suas preces (cf. Sl 34, 16), mas presentes nelas, não espera a prece acabar. Pois, interrompendo o curso da oração, apressa-se a vir à alma que o deseja, banhado de orvalho da doçura celeste, ungido dos perfumes melhores.
Ele recria a alma fatigada, nutre a que tem fome, sacia a sua aridez, lhe faz esquecer tudo o que é terrestre, vivifica-a, mortificando-a por um admirável esquecimento de si mesma, e embriagando-a, sóbria a torna.
Como em certas funções carnais a alma se deixa a tal ponto vencer pela concupiscência, que perde o próprio uso da razão e o homem se torna todo carnal, assim, ao contrário, nessa contemplação superior, os movimentos carnais são de tal modo vencidos e absorvidos pela alma, que a carne não contradiz em nada ao espírito, e o homem se torna quase todo espiritual.


SINAIS DA VINDA DA GRAÇA

VIII
Mas, Senhor, como descobrir quando realizas tudo isso, e qual é o sinal da tua vinda?
São por acaso, os suspiros e as lágrimas os mensageiros e testemunhos da consolação e da alegria? Se assim é, estamos em presença duma nova antinomia e de uma significação inusitada.
Qual é, com efeito, a relação entre consolação e suspiros, alegria e lágrimas? Se é que se podem chamar lágrimas estas lágrimas, e não antes, abundancia transbordante do orvalho interior derramado do céu, indício da purificação interior, limpeza do homem exterior.
No batismo de crianças, a purificação do homem interior é figurada e significada pela ablução exterior. Aqui, ao contrário, a purificação exterior procede da ablução interior.
Ó felizes lágrimas, pelas quais são lavadas as manchas interiores, e as labaredas do pecado se apagam! Bem-aventurados os que assim chorais, porque rireis (cf. Mt 5, 5).
Nessas lágrimas reconhece, ó alma, o teu Esposo, abraça o Desejado, embriaga-te em torrente de delícias, suga do seio da consolação o leite e o mel. Estes são os maravilhosos presentinhos e consolos que teu Esposo te distribui e concede, isto é, tuas lágrimas e suspiros.
Ele te trouxe nessas lágrimas a poção sob medida, o pão de dia e de noite, aquele pão que confirma o coração do homem e é mais doce do que o favo de mel.
Ó Senhor Jesus, se são tão doces essas lágrimas que brotam da tua lembrança e do teu desejo, quão doce haverá de ser o gozo experimentado em tua visão manifesta!
Se é tão doce chorar por ti, quanto mais doce será gozar de ti?
Mas, por que exprimimos de público tais secretos colóquios? Por que me esforço por revelar em termos comuns essas inefáveis ternuras? Os que não as experimentaram, não as compreenderão. Eles as leriam mais claramente no livro da experiência, onde a unção divina ensina por si mesma (cf. 1Jo 2, 27).
De qualquer modo, porém, a letra exterior não aproveita ao leitor, pois a leitura da letra exterior é de pouco sabor, a não ser que uma explicação tire do coração o sentido interior.


A GRAÇA SE ESCONDE

IX
Ó minha alma, prolonguei por muito tempo este discurso. Pois era bom para nós estar ali, e contemplar com Pedro e João a glória do Esposo, e ficar largo tempo com ele, se ele quisesse fazer ali não duas, nem três tendas (cf. Mt 17, 4), mas uma só em que estaríamos juntos, e juntos nos deleitássemos.
Mas eis que já diz o Esposo, deixa-me partir, pois já sobe a aurora (Gn 32, 26), já recebeste a luz da graça e a visita que desejavas.
Dada, pois, a benção e mortificado o nervo da coxa, e mudado o nome de Jacó para Israel (cf. Gn 32, 25-32), o Esposo longamente desejado se retira por um pouco de tempo, depressa escapa.
Ele se arreda, tanto em relação à visita de que falei, quanto à doçura da contemplação. Mas permanece sempre presente, quanto à direção, à graça, à união.


COMO A OCULTAÇÃO DA GRAÇA COOPERA PARA O NOSSO BEM

X
Mas não temas, esposa, não desespere, não penses que és desprezada, se o esposo te oculta por algum tempo a sua face. Tudo isso concorre ao teu bem (cf. Rm 8, 28), e ganhas com a partida e com a vinda.
Ele veio para ti, e é também para ti que ele se afasta. Vem para a consolação, afasta-se por cautela, a fim de que, a grandeza da consolação não te ensoberbeça, evitando que a presença contínua do Esposo, te leve a desprezar as companheiras e atribuas a consolação não à graça, mas à tua natureza.
Esta graça, o esposo a concede quando quer e a quem ele quer, e não se possui como direito hereditário. É conhecido o provérbio que diz que a familiaridade excessiva gera o desprezo. Ele se afasta, pois, para não ser desprezado, se é demais assíduo, e para que, ausente, seja mais desejado, e desejado seja procurado com maior ardor, e longamente querido, seja, enfim, achado com maior alegria.
Além disso, se nunca faltasse essa consolação, que em relação à futura glória a revelar-se em nós (cf. Rm 8, 18) é enigmática e parcial, talvez julgássemos que temos aqui cidadania permanente e procuraríamos menos a futura.
Assim, para não tomarmos o exílio por pátria, o penhor pelo pleno valor, é que o Esposo vem de tempo em tempo, ora trazendo consolação, ora a substituindo pelo leito de doente (cf. Sl 41, 4).
Ele permite que saboreemos por um pouco de tempo a sua doçura, mas antes que ela seja plenamente sentida, ele se esvai. Assim, voejando sobre nós de asas abertas, ele nos provoca a voar (cf. Dt 32, 11), como se dissesse: Experimentastes um pouco da minha suavidade e doçura, mas, se quereis saciar-vos plenamente, correi atrás de mim ao odor dos meus perfumes (cf. Ct 1, 3), levantai os corações para o alto onde estou à direita do Pai. Aí me vereis, não mais em figuras e em enigma, mas face a face, e então, o vosso coração gozará plenamente, e o vosso gozo ninguém vos tirará (Jo 16, 22).


COM QUE CUIDADO A ALMA DEVE SE COMPORTAR DEPOIS DA VISITA DA GRAÇA

XI
Mas, acautela-te, ó esposa. Quando o Esposo se ausenta, não vai para longe. Se não o vês, ele sempre te vê. Ele é cheio de olhos à frente e atrás (cf. Ez 1, 18). Jamais podes fugir da sua vista. Tem junto de ti seus enviados, espíritos que são como que mensageiros muito sagazes, que vejam como te conduzes na ausência do Esposo, e te acusem diante dele se descobrirem em ti algum sinal de impureza e de leviandade.
Este Esposo é cheio de zelo. Se, acaso, acolheres um outro amante, ou te empenhas em agradar mais a um outro, ele logo se afasta de ti e se une a outras virgens fiéis.
É delicado esse Esposo, é nobre, é o mais belo dos filhos dos homens (Sl 45, 3), e assim, não quer ter uma esposa senão perfeitamente bela. Se ele vir em ti uma mancha, ou uma ruga, logo desvia o seu olhar.
Ele não suporta nenhuma impureza. Sê, pois, casta, sê reservada e humilde, para merecer a visita freqüente do teu Esposo.
Temo que este discurso se tenha prolongado demais, mas a matéria abundante me obrigou a isto, assim como a sua doçura. Não prolonguei por minha espontânea vontade, foi o seu encanto que me arrastou sem sentir.

RECAPITULAÇÃO DO QUE FOI DITO

XII
Para que se possa ver melhor em conjunto o que foi dito em forma mais desenvolvida, vamos recapitulá-lo em resumo.
Assim como foi notado nos exemplos propostos, podes ver como os ditos degraus se ligam uns aos outros entre si. E como um precede a outro, tanto no tempo, como na casualidade.
Qual primeiro fundamento vem a leitura. Ela fornece a matéria e nos leva a meditação.
A meditação, por sua vez, perscruta com maior diligencia o que se deve desejar, e como que cavando, acha e mostra o tesouro. Mas, como não pode por si mesma obtê-lo, leva-nos à oração.
A oração, elevando-se a Deus com todas as suas forças, obtém o tesouro desejável, a suavidade da contemplação.
Sobrevindo a contemplação, ela recompensa o trabalho dos três degraus referidos, embriagando a alma sedenta com o orvalho da doçura celeste.
A leitura é feita segundo um exercício mais exterior, a meditação, segundo uma inteligência mais interior; a oração, segundo o desejo; a contemplação passa acima de todo sentido.
O primeiro degrau é dos principiantes; o segundo dos que progridem; o terceiro, dos fervorosos; o quarto, dos bem-aventurados.

COMO OS MESMOS DEGRAUS SÃO LIGADOS UNS AOS OUTROS

XIII
Estes degraus são de tal modo ligados, e de tal forma servem uns aos outros, que os precedentes pouco ou nada aproveitam sem os seguintes, e os seguintes, por sua vez, nunca ou só raramente, podem ser adquiridos sem os precedentes.
Que adianta, com efeito, ocupar o tempo em contínua leitura, percorrer os feitos e os escritos dos santos, se não esprememos o seu suco, mastigando e ruminando, e não o passamos até ao mais íntimo do coração, engolindo, a fim de por eles considerarmos diligentemente o nosso estado, e cuidarmos de praticar as obras daqueles cujos feitos queremos ler freqüentemente?
Mas, como haveremos de cogitar estas coisas, ou como podemos evitar que, meditando coisas erradas e vãs, se transgridam os limites constituídos pelos santos Pais, a não ser que sejamos antes instruídos a tal respeito pela leitura ou pelo ensino?
O ensino, de certo modo, se relaciona com a leitura, o que nos leva habitualmente a dizer que lemos para nós mesmos ou para os outros, mas também o que ouvimos dos mestres.
Igualmente, que vale ao homem ver pela meditação o que deve praticar, se não pode fazê-lo senão pelo auxilio da oração e pela graça de Deus? Porque todo dom excelente e todo dom perfeito vem de cima e desce do Pai das luzes (Tg 1, 17).
Sem ele nada podemos, ao passo que ele faz em nós as obras, mas não sem nós. Pois somos cooperadores de Deus (1 Cor 3, 9), como diz o apóstolo. Deus quer que lhe supliquemos, quer que abramos à graça que vem e bate à porta, o seio da nossa vontade, e lhe demos o nosso consentimento.
O Senhor exigia esse consentimento da Samaritana, quando dizia: chama o teu marido (Jo 4, 16), como se dissesse: Quero te infundir a graça; aplica o teu livre arbítrio.
Dela exigia a oração: Se soubesses o dom de Deus, e quem é que te diz: Dá-me de beber, serias tu que lhe terias pedido a água viva (Ib. 10).
Inflamada, pois, pelo desejo, volta-se para a oração, dizendo: Senhor, dá-me desta água, a fim de que eu não tenha mais sede. Assim, portanto, a palavra do Senhor que ouvira e depois meditara, a incitou à oração.
Como haveria de tornar-se solícita na súplica, se antes, a meditação não a tivesse feito arder? Ou de que lhe serviria a precedente meditação, se a oração seguinte não obtivesse o que aquela lhe mostrara?
Para que seja, pois, frutuosa a meditação, é preciso que se lhe siga o fervor da oração, da qual é como um efeito a doçura da contemplação.

CONSEQUÊNCIAS DO QUE FOI DITO
     
XIV
De tudo isso podemos concluir que a leitura sem a meditação é árida, a meditação sem a leitura é errônea, a oração sem meditação é morna, a meditação sem oração é infrutífera.
A oração com fervor obtém a contemplação, mas a aquisição da contemplação é rara ou miraculosa sem a oração.
Deus, com efeito, cujo poder não tem limites, e cuja misericórdia se estende a todas as suas obras, às vezes suscita das pedras filhos de Abraão (cf. Mt 3, 9).
É o que se dá quando força corações duros e rebeldes a querer. Ele é como o pródigo que, segundo se costuma dizer, “dá o boi com os chifres”, quando vem sem ser chamado e se envolve sem ser procurado.
Embora tenha isso acontecido a alguns, como a Paulo e alguns outros, não devemos, no entanto, tentar a Deus presumindo tais dons, mas fazer o que nos compete, isto é, ler e meditar a lei de Deus, e rogar-lhe que ajude a nossa fraqueza, e veja a nossa imperfeição. Ele próprio nos ensina a fazer assim, quando diz: Pedi e recebereis, procurai e achareis, batei e abrir-vos-á (Mt 7, 7). Pois agora o reino dos céus sofre violência, e são os violentos que dele se apoderam (Mt 11, 12).
Eis, pois, que as distinções acima assinaladas permitem perceber as propriedades dos vários degraus, como se concatenam entre si, o que produz em nós cada um deles.
Feliz o homem que, tendo o espírito vazio de outros cuidados, deseja sempre passar e repassar por esses degraus. É aquele que, vendendo tudo que possui, compra o campo em que está escondido o tesouro desejável, que é recolher-se e ver como é suave o Senhor (cf. Sl 34, 9).
Feliz, sim, aquele que, exercitado no primeiro degrau, bem atento no segundo, fervente no terceiro, alçado acima de si no quarto, se eleva cada vez mais forte, por essas subidas, até ver o Deus dos deuses em Sião (Sl 84, 8).
Bem-aventurado é aquele, a quem é dado permanecer, ainda que por pouco tempo, nesse último degrau, e que pode dizer: Eis que sinto a graça de Deus, eis que contemplo com Pedro e João a sua glória no monte, eis que gozo com Jacó os abraços da bela Raquel.
Mas acautele-se ele depois de tal contemplação, para não cair nos abismos por uma queda desordenada, nem voltar, depois de tão grande visita, aos lascivos atos do mundo e às seduções da carne.
Como não pode a fraca ponta da mente humana sustentar mais longamente o esplendor da verdadeira luz, desça suavemente e com ordem algum dos três degraus pelos quais subira, e assim, alternadamente, ora em um ora em outro, demores segundo a moção do livre arbítrio e as circunstancias de lugar e de tempo. A meu ver, ele estará tanto mais próximo de Deus, quanto mais longe do primeiro degrau. Como é, infelizmente, frágil e miserável a condição humana!
Vemos, pois, abertamente, com o auxílio da razão e os testemunhos das Escrituras, que a perfeição da vida bem-aventurada está contida nestes quatro degraus, e que o homem espiritual deve estar sempre a exercitar-se neles.
Mas, quem é que guarda esse modo de viver, quem é ele, e nós o louvaremos? (Eclo 31, 9). Querer, muitos querem, mas fazer é de poucos. Queira Deus que sejamos desses poucos.


QUATRO CAUSAS QUE NOS RETRAEM DOS REFERIDOS DEGRAUS

XV
São quatro as causas que, o mais das vezes, nos desviam desses degraus: uma necessidade inevitável, a utilidade duma boa ação, a fraqueza humana, a vaidade mundana.
A primeira é desculpável; a segunda é tolerável; a terceira é miserável; a quarta é culpável. E verdadeiramente culpável. A quem, por essa causa, é desviado do seu propósito, melhor seria não ter conhecido a graça de Deus, do que retroceder depois de conhecê-la. Que escusa terá do seu pecado?
Não lhe poderá, acaso, Deus dizer, com razão: Que mais te devia fazer e não fiz? (cf. Is 5, 4). Não existias e te criei. Tornaste-te servo do diabo e do pecado, e te redimi. Corrias com os ímpios ao redor do mundo, e te escolhi. Dei-te graça perante meus olhos e queria fazer em ti a minha habitação, e em verdade me desprezastes. Não jogaste para trás somente as minhas palavras, mas a mim mesmo, e andaste em busca das tuas concupiscências.
Mas, ó Deus bom, suave e manso, doce amigo, conselheiro prudente, ajuda forte, como é desumano e temerário aquele que te rejeita, e repele do seu coração um hóspede tão humilde e clemente!
Ó infeliz e nociva troca, rejeitar o seu Criador e acolher pensamentos maus e prejudiciais, e entregar tão depressa a pensamentos impuros e ao espezinhar dos porcos até mesmo aquela câmara secreta do Espírito Santo, que é o fundo do coração, que pouco antes se dirigia às alegrias celestes! Ainda estão quentes no coração os vestígios do Esposo, e já ali se intrometem desejos adulterinos.
É inconveniente e indecoroso para ouvidos que acabam de ouvir palavras que não é lícito ao homem falar (cf. 2Cor 12, 4), entregar-se tão depressa a fábulas e a ouvir maledicências. E para olhos que acabam de ser batizados pelas lágrimas sagradas, de repente se voltar para ver vaidades. Para a língua que acaba de cantar um doce epitalâmio, e que tinha reconciliado o Esposo com a esposa por suas palavras inflamadas e persuasivas, e a introduzira no celeiro (cf. Ct 2, 4), de novo se converter às conversas torpes, às leviandades, à urdidura de dolos, à maledicência.
Não nos aconteça, Senhor, mas se acaso, por fraqueza humana, recairmos nisso, não desesperemos, mas de novo recorramos ao Médico clemente que levanta do pó o indigente e ergue o pobre do monturo (Sl 113, 7). E ele, que não quer a morte do pecador, voltará a nos curar e salvar.
Já é tempo de pôr fim a esta carta. Oremos todos ao Senhor que no presente enfraqueça para nós os impedimentos que nos retraem da sua contemplação; no futuro, nos liberte inteiramente deles, levando-nos, mediante os referidos degraus, cada vez mais fortes, a vermos o Deus dos deuses em Sião. (Sl 84, 8). Ali, os eleitos não experimentarão mais gota a gota nem intermitentemente a doçura da contemplação. Pois terão, em incessante torrente de gozo, a alegria que ninguém tirará, e a paz imutável, a paz nele.
E tu, Gervásio, meu irmão, se do alto, te for dado um dia ascender ao cume desses degraus, lembra-te de mim e ora por mim, quando for bem para ti.
Assim, o véu puxe o véu (cf. Ex 26, 33), e aquele que escuta, diga: Vem! (Ap 22, 17).







domingo, 20 de fevereiro de 2011

A oração como encontro de amigos

A oração como encontro de amigos

Por Maximiliano Herraiz, ocd

Tanto na formulação teresiana como na sanjuanista, a oração aparece claramente desde o princípio como a expressão e o sinal de um encontro interpessoal, relação entre pessoas, Deus e o homem.

Teresa viveu e verteu este encontro na palavra humana mais entranhável: a amizade. "Que não é outra coisa a oração mental senão tratar de amizade, estando muitas vezes tratando a sós com quem sabemos que nos ama" (V 8,5). Quando a santa cunhou esta definição tinha atrás de si uma larga e qualificada história de amizade humana e divina. História de amizade, qualificada com estes adjetivos em atenção à nossa debilidade intelectual e à nossa tendência em romper a harmonia e a integração do divino e do humano, da relação com Deus e com o próximo, entre o amor e o serviço vividos no silêncio da oração e o empenho pela causa do Reino. Falando de amizade divina e humana marco lembramos igualmente os tempos da história de Teresa, ainda que não tanto, pois sabemos que era uma mulher nativamente dotada para a relação amistosa e com uma vocação original para a oração. Uma e outra ela viveu-as com força desde sua pequenez (CC 14,3). Porém esta unidade da relação de amizade, com Deus e com os irmãos, deve presidir desde o princípio a preocupação do orante e o serviço de acompanhamento. A separação será mortal por necessidade.

A eleição da palavra amizade é um acerto genial. Chega a todos, por trata-se do centro vital da pessoa humana. É genial o recurso teresiano ao termo amizade para significar a oração, por muitas razões, para todos os que se detenham um pouco à reflexão. Quero apontar algumas.

A. Deus nos chamou à sua amizade, para compartilhar de sua vida, oferecendo-nos em seu Filho, verdadeiro amigo e amigo verdadeiro, uma proximidade entranhável em sua humanidade que é a nossa, homem de fraquezas e trabalhos. Assim nos é companhia no caminho de nossa vida. Deus, Amigo, nos amou primeiro, elegeu-nos, abrindo-nos as portas de sua amizade. Deus é um amigo que tem desejos de dar-nos e que, como logo adverte Teresa, "de boa vontade está junto a nós" (CV 29,6). Amigo, também, necessitado de nós. Com sensibilidade feminina e agudo sentido de fé no Deus-Homem, Teresa confessa seu truque: "Prcurava representar Cristo dentro de mim, e achava-me melhor nos lugares onde ele se encontra mais só; parecia-me que, estando só e aflito, como pessoa necessitada, haveria de admitir a minha presença" (V 9,4). E quando Teresa ora fala sobre isto com ainda maior segurança: " tão necessitado estais que quereis admitir uma pobre companhia como a minha, e vejo em vosso sempblante que os alegrates" (CV 26,6).

B. A oração-amizade situa-se no centro da vida, não à margem, na periferia. É o valor da vida em todas as suas dimensões. A amizade é que nos define: somos o que é nossa relação com Deus e com os irmãos. A oração-amizade é um valor aberto sempre, necessariamente em caminho, em evolução contínua, num dinamismo crescente de realização. "As Moradas" são os diversos níveis, em profundidade e qualidade, nos quais vivemos nossa relação com Deus e os demais. Podemos dizer que são níveis de ser, pois marcam a vida da pessoa naquilo que lhe é substancial por vocação humana e divina: a relação com os outros e com o Outro, com o "tu" semelhante. Relação definida como acolhida e doação, em unidade que não se pode romper. Ademais esta relação nutre-se da verdade e do respeito sagrado à misteriosidade do outro, assim como de si mesmo. Relação na verdade que nasce, desenvolve-se e culmina no trato pessoal, cara a cara. Nenhuma pessoa pode delegar a ninguém a graça maior recebida com o dom da vida: somos naturalmente tão ricos que podemos conversar com Deus (cf. 1M 1,6).

C. A oração-amizade é vida e exercício de gratuidade, não entra no mercado do útil ou necessário, do para quê. Tem em si mesma sua justificação, seu valor: realizar a vocação de ser-em-relação, ser e viver com, em comunhão de horizontes e de caminhos. A santa fala de ser orantes, e praticar o ato concreto da oração, "para unicamente servir a seu Cristo crucificado" (4M 2,10). A esta gratuidade na relação com Deus se refere constantemente João da Cruz, manifestamente como algo que vai fazendo-se vida, quando fala de alguma etapa mais avançada no processo espiritual: "Todo seu cuidado em como poderá dar algum prazer a Deus, ainda que fosse para ela muito custoso" (2N 19,4). Ainda que não deixe de ver que existem "muitos que andam buscando em ti consolo e gosto e os que a ti pretendem dar gosto e dar-te gosto à sua custa... estes são muito poucos" (2S 7,12). Sua regra de experto em amor é esta: não buscando "sua comodidade e consolo, ou em Deus ou fora dEle" (Carta 18.7.89; 16).

D. Na oração-amizade o amor é a substância. Entre os amigos circula o amor, a acolhida e a doação mútuas. Por isso as pessoas se encontram em um "nós" mais ou menos formado. Isto disse expressamente Teresa: "a substância da perfeita oração não está em pensar muito, senão em amar muito". E reflete: "Nem todas as imaginações são hábeis por sua natureza para isto (a meditação), mas todas as almas o são para amar" (F 5,2; 4M 1,7). Deste modo afirma-se com contundência coisas muito importantes: todas as pessoas são capazes de orar. A oração está aberta a todos, a qualquer pessoa, seja qual for sua psicologia, sua formação, o tempo que dispõe, a situação concreta pela qual passa. A pessoa, por natureza e graça, é capaz para a relação pessoal com Deus. Por ser amizade, a oração abarca a existência da pessoa, não pode encerrar-se em uns tempos, nem identificar-se com o que comumente chamamos de oração, silenciosa ou litúrgica, pessoal ou comunitária: "O verdadeiro amante em toda parte ama e sempre se recorda do amado. Ruim seria se só nos rincões se pudesse orar" (F 5, 16).

E. Com isto surge outro elemento de não menor transcendência: a oração-amizade é, antes de tudo, uma forma de ser. A oração define assim a vida da pessoa antes que ser um ato concreto. O começo do "tratadinho" de oração que Teresa nos entrega no Livro da Vida é especialmente luminoso e decisivo. Basta recolher suas palavras: "Pois falando dos que começam a ser servos do amor (que não me parece outra coisa determinarmos a seguir pelo caminho da oração ao que tanto nos amou" (V 11,1). O caminho da oração é seguimento de Jesus. Aos mesmos que começam se refere mais adiante dizendo que "se determinam a servir a Deus tão deveras" (ib 9). Não podemos esquecer que se ela, tão honesta e veraz em suas colocações, chega um dia a deixar a prática da oração, é porque a vida se lhe escapava. Por isso era-lhe insustentável manter a fidelidade aos tempos de oração (V 7, 11; 8, 3; 19,10). Mais tarde ela julgurá com dureza este comportamento e irá procurar animar a todos a perseverar na prática da oração, ainda que não responda às exigências da amizade, "por males que haja" (V 8,5; 19,4; 8,4). Razão convincente: "Oh! Que bom amigo fazeis, Senhor meu, como lhe vais regalando e sofrendo e esperais a que se faça a vossa condição!" (V 8, 6).

F. Só partindo da oração-amizade podemos falar razoavelmente da necessidade da oração. Supostamente esta necessidade parte de dentro, da chamada de Deus pela qual nos capacita para tratar amistosamente com Ele.

A oração-amizade busca o encontro, a presença explícita, consciente, os momentos nos quais só e a sós se está com o Amigo. Necessidade particularmente sentida por Deus. Assim o percebeu Teresa (cf. 9,9 e V 8,10).

Mas esta necessidade é também sentida pela pessoa na medida da amizade que vive com Deus, ou com os demais. "Estando muitas vezes a sós com quem sabemos que nos ama". Esta consciência é que origina a marcha para o encontro: saber-se amado, ou seja, crescer na consciência do amor que recebe e dinamizar a resposta adequada e própria. Ninguém sabe-se amado por alguém por referências de terceiros. E ninguém ama a ninguém pelo que contam dele: é preciso o encontro pessoal. A notícia recebida provoca o desejo da constatação por si mesmo. O ato de oração é a consciência explícita da amizade que une Deus e a pessoa. A santa fala dos que fazem oração dizendo que estão vendo que Deus as vê (cf. V 8,2).

G. Por último, na oração-amizade, desde os seus primeiros passos, mesmo que não salte à consciência do orante, devemos entender que o protagonismo na oração corresponde a Deus, que Ele está muito mais empenhado que nós por levar adiante a história de amizade. Podemos dizer que toda oração cristã é essencialmente mística desde seus começos. Deus, porque nos ama mais e melhor que nós mesmos a Ele, leva o peso da oração-amizade. Captar esta dimensão mística da oração é vital para entendê-la convenientemente, adotando a atitude oportuna: "ir contente pelo caminho que lhe levar o Senhor" (CV 17 tít.). Pois "tem em tanto este Senhor nosso que lhe queiramos e procuremos sua companhia, que uma vez ou outra não nos deixa de chamar para que nos aproximemos dEle" (2M 1,2). "Deixai fazer o Senhor" (CV 17,7). Atitude, portanto, de amorosos ouvintes, de silêncio contemplativo para ver o que Deus fará em nós. Disposição de abertura e acolhida, pois a parte que nos toca será sempre de responder, secundar, seguir.


quinta-feira, 20 de maio de 2010

Os quatro degraus da “Lectio Divina”


Os passos da leitura espiritual, segundo Dom Orani João Tempesta, O. Cist.

RIO DE JANEIRO, quarta-feira, 19 de maio de 2010 (ZENIT.org).- Apresentamos, a seguir, o artigo de Dom Orani João Tempesta, O. Cist., arcebispo do Rio de Janeiro, sobre como orar segundo o método da Lectio Divina, tema abordado na 48ª Assembleia dos Bispos do Brasil, celebrada em Brasília de 3 a 13 de maio.

* * *

A "Lectio Divina" é uma expressão latina já presente e consagrada no vocabulário católico, que pode ser traduzida como "leitura divina", "leitura espiritual", ou ainda como ocorre hoje em nosso país e em vários escritos atuais, como "leitura orante da Bíblia". Ela é um alimento necessário para a nossa vida espiritual. A partir deste exercício, conscientes do plano de Deus e a Sua vontade, pode-se produzir os frutos espirituais necessários para a salvação. A Lectio Divina é deixar-se envolver pelo plano da Salvação de Deus. Os princípios da Lectio Divina foram expressos por volta do ano 220 e praticados por monges católicos, especialmente as regras monásticas dos santos: Pacômio, Agostinho, Basílio e Bento. O tempo diário dedicado à lectio divina sempre foi grande e no melhor momento do dia. A espiritualidade monástica sempre foi bíblica e litúrgica. A sistematização do método da lectio divina nós encontramos nos escritos de Guigo, o Cartucho, por volta do século XII.

A Lectio Divina tradicionalmente é uma oração individual, porém, pode-se fazê-la em grupo. O importante é rezar com a Palavra de Deus, lembrando o que dizem os bispos no Concílio Vaticano II, relembrando a mais antiga tradição católica - que conhecer a Sagrada Escritura é conhecer o próprio Cristo. Monges diziam que a Lectio Divina é a escada espiritual dos monges, mas é também de todo o cristão. O Papa Bento XVI fez a seguinte observação num discurso de 2005: "Eu gostaria, em especial, recordar e recomendar a antiga tradição da Lectio Divina, a leitura assídua da Sagrada Escritura, acompanhada da oração que traz um diálogo íntimo em que na leitura, se escuta Deus que fala e, rezando, responde-lhe com confiança a abertura do coração".

O Concílio Vaticano II, em seu decreto Dei Verbum 25, ratificou e promoveu, com todo o peso de sua autoridade, a restauração da Lectio Divina, retomando essa antiquíssima tradição da Igreja Católica. O Concílio exorta igualmente, com ardor e insistência, a todos os fiéis cristãos, especialmente aos religiosos, que, pela frequente leitura das divinas Escrituras, alcancem esse bem supremo: o conhecimento de Jesus Cristo (Fl 3,8). Porquanto, "ignorar as Escrituras é ignorar a Cristo" (São Jerônimo, Comm. In Is., prol).

O método mais antigo e que inspirou outros mais recentes, é que, seja pessoalmente, em comunidade ou no círculo bíblico nós comecemos a reflexão com a Palavra de Deus e que, depois da invocação do Espírito Santo, segue os passos tradicionais: 1- Lectio (Leitura); 2- Meditatio (Meditação); 3- Oratio (Oração) e 4- Contemplatio (Contemplação). Existem outros métodos que, inspirados aqui, procuram ajudar o cristão a acolher em sua vida a Palavra de Deus e a colocar em prática no seu dia a dia. Em nossa 48ª Assembleia dos Bispos do Brasil, celebrada em Brasília de 3 a 13 de maio último, além de tratar como tema central a "Palavra de Deus", proporcionou aos Bispos, na manhã do domingo, dia 9, um tempo para lerem, meditarem e rezarem com esse método. A mensagem que foi publicada sobre o tema central está baseada justamente nesse clima. Chegou o momento de passarmos a colocar em nossos grupos de reflexão, círculos bíblicos e outros grupos a Palavra de Deus como fonte de reflexão e inspiração para iluminar a nossa realidade concreta.

O método tradicional é simples: são quatro degraus - "a leitura procura a doçura da vida bem-aventurada; a meditação a encontra; a oração a pede, e a contemplação a experimenta. A leitura, de certo modo, leva à boca o alimento sólido, a meditação o mastiga e tritura, a oração consegue o sabor, a contemplação é a própria doçura que regala e refaz. A leitura está na casca, a meditação na substância, a oração na petição do desejo, a contemplação no gozo da doçura obtida." (Guigo, o Cartucho, Scala Claustralium).

Portanto, quanto à leitura,

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leia, com calma e atenção, um pequeno trecho da Sagrada Escritura (aconselha-se que nas primeiras vezes utilizem-se os textos dos Evangelhos). Leia o texto quantas vezes e versões forem necessárias. Procure identificar as coisas importantes desta perícope: o ambiente, os personagens, os diálogos, as imagens usadas, as ações. É importante identificar tudo com calma e atenção, como se estivesse vendo a cena. A leitura é o estudo assíduo das Escrituras, feito com aplicação de espírito.

Quanto à Meditatio,

Blog de lectiodivina :Leitura Orante da Biblia (Lectio Divina), 2. A meditação: ruminar, dialoga, atualizar

começa, então, diligente meditação. Ela não se detém no exterior, não pára na superfície, apóia o pé mais profundamente, penetra no interior, perscruta cada aspecto. Considera atenta sobre o que esta Palavra está iluminando minha vida e a realidade em que vivo hoje. Quais são as circunstâncias que ela me questiona e me incentiva? Depois de ter refletido sobre esses pontos e outros semelhantes no que toca à própria vida, a meditação começa a pensar no prêmio: Como seria glorioso e deleitável ver a face desejada do Senhor, mais bela do que a de todos os homens (Sl 45,3), não mais tendo a aparência como que o revestiu sua mão, mas envergando a estola da imortalidade, e coroado com o diadema que seu Pai lhe deu no dia da ressurreição e de glória, o dia que o Senhor fez (Sl 118,24).

Quanto à Oratio,

Blog de lectiodivina :Leitura Orante da Biblia (Lectio Divina), 3. A oração: suplicar, louvar, recitar.

toda boa meditação desemboca naturalmente na oração. É o momento de responder a Deus após havê-lo escutado. Esta oração é um momento muito pessoal que diz respeito apenas à pessoa e Deus. Não se preocupe em preparar palavras, fale o que vai ao coração depois da meditação: se for louvor, louve; se for pedido de perdão, peça perdão; se for necessidade de maior clareza, peça a luz divina; se for cansaço e aridez, peça os dons da fé e esperança. Enfim, os momentos anteriores, se feitos com atenção e vontade, determinarão esta oração da qual nasce o compromisso de estar com Deus e fazer a sua vontade. Vendo, pois, a pessoa que não pode por si mesma atingir a desejada doçura de conhecimento e da experiência, e que quanto mais se aproxima do fundo do coração (Sl 64,7), tanto mais distante é Deus (cf. Sl 64,8), ela se humilha e se refugia na oração. E diz: Senhor, que não és contemplado senão pelos corações puros, eu procuro, pela leitura e pela meditação, qual é, e como poder ser adquirida a verdadeira doçura do coração, a fim de por ela conhecer-te, ao menos um pouco.

Quanto ao último passo, a Contemplatio:


desta etapa a pessoa não é dona. É um momento que pertence a Deus e sua presença misteriosa, sim, mas sempre presença. É um momento no qual se permanece em silêncio diante de Deus. Se ele o conduzirá à contemplação, louvado seja Deus! Se ele lhe dará apenas a tranquilidade de uns momentos de paz e silêncio, louvado seja Deus! Se para você será um momento de esforço para ficar na presença de Deus, louvado seja Deus! Mas em todas as circunstâncias será uma maneira de ver Deus presente na história e em nossa vida! "Ele recria a alma fatigada, nutre a quem tem fome, sacia sua aridez, lhe faz esquecer tudo o que não é terrestre, vivifica-a, mortificando-a por um admirável esquecimento de si mesma, e embriagando-a sóbria a torna" (Guido, o Cartucho).

Há uma preocupação grande com a vida prática, com a conversão, de modo que muitas vezes se costuma acrescentar a "actio", ou seja, ação junto com a contemplação. Os temores de uma vida "alienada" podem ser sempre apresentados em todas as circunstâncias, mas quando se aprofunda realmente na Palavra de Deus e se crê que ela é como uma espada de dois gumes que penetra no mais profundo de nosso ser e que também ilumina nossa vida e nosso caminho, teremos certeza de que ela ilumina a nossa estrada e nos conduz com a graça de Deus por uma vida nova.

Portanto, diante deste patrimônio da nossa Igreja que é este método da Lectio Divina, desejo a todos que inspirados na mensagem que os Bispos enviaram acerca do tema central da 48º Assembleia, possamos todos nós aprofundar a Leitura Orante da Bíblia, que, aproximando-nos da Palavra de Deus, encontremos os caminhos da vida dos cristãos hoje, neste início de milênio, que, diante da atual mudança de época, respondamos com uma vida nova, haurida nas escrituras sagradas, que nos comunicam a Palavra eterna, o Verbo eterno, Jesus Cristo, nosso Senhor!

Dom Orani João Tempesta, O. Cist.

Arcebispo de São Sebastião do Rio de Janeiro


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