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quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

A pedagogia da oração

A pedagogia da oração

Por Tomaz Alvares, ocd

Como mestra de oração, Teresa teve ocasião muito diversas de exercer seu magistério. Ensinou e introduziu na oração a seu próprio pai, dom Alonso. Em seu mosteiro da Encarnação, iniciou na oração a elevado número de amigas que eram suas admiradoras: "É tão grande o aproveitamento de sua alma nestas coisas..., que mais de 40 monjas tratam em sua casa (mosteiro) de grande recolhimento", testemunha um de seus teólogos assessores (BMV 2,131). Em seu epistolário há cartas de iniciação na oração a seu irmão Lourenço, recém chegado da Américo. No Livro da Vida se entabula constantemente diálogo com !cinco que no momento nos amamos em Cristo" (16,7) e que eram um pequeno grupo de oração formado em torno da autora. Formam parte dele ao menos dois dominicanos, Garcia de Toledo e Pedro Ibáñez, que chegarão a elevados graus de oração, sobretudo o segundo.

Entretanto o grupo de oração em que mais plenamente ela exercitou seu magistério foram as jovens reunidas em seu primeiro Carmelo de São José. Não mais de meia dezena em um princípio. Ao todo doze, ao finalizar o primeiro quinquênio de aprendizagem (F1,1). Característica peculiar delas era o não constituir um grupo ocasional e heterogêneo como os cinco mencionados em Vida. Formavam uma comunidade orante. Mais ainda, comunidade contemplativa, cuja tarefa principal era a oração. Uma autêntica "escola de oração". Para ela escrete Teresa seu manual de pedagogia da oração: o Caminho de Perfeição. Dele recolheremos as idéias básicas da Santa:

a) Antes de tudo, se ora na Igreja e para toda a humanidade inteira. Postulado válido para aquele grupo de contemplativas e para todo aprendiz de oração. A oração criostã não é uma pequena prática confinada no restrito espaço do orante. Passa a ser alento e pulsão do mundo inteiro.

.b) A oração se educa a partir da vida. Requer empenho prévio ou simultâneo no cultivo das virtudes evangélicas. Teresa seleciona três fundamentais: o amor aos irmãos, desapego das coisas, humildade. Porque a amizade com Deus que é a oração, não é viável sem a amizade com os irmãos; não é possível sem liberdade de espírito, e sem disponibilidade à ação de Deus sobre alguém mesmo.

c) Acrescentará todavia dois postulados: "sede da água viva", ou seja, tensão dos desejos; e determinada determinação; não ceder às dificuldades que, certamente, sobrevirão.

d) A melhor partitura de oração é o Pai-Nosso. Nele se aprende e se sintoniza com a oração de Jesus. Aprende-se a interiorizar a própria oração à semelhança da sua.

e) Assim chega o livro ao núcleo central da pedagogia de Teresa, interiorizar a oração à base de uma singela técnica de recolhimento. Expô-la-á nos capítulos 26-29 à base de dois lemas: recolher-se é centrar a atenção em Cristo Senhor dentro de si mesmo. Para isso, o momento melhor é a oração eucarística no ato da comunhão (cc. 33-35).

f) O recolhimento será a melhor disposição para a oração contemplativa de quietude e de união (cc. 31,32).

Ao mesmo tempo em que Teresa expõe esse singelo itinerário pedagógico, introduz em seu ensinamento da oração um elemento novo, de grande importância. Ela se atém ao lema: não falar de oração sem fazê-la. Por isso mesmo, dentro do livro, faz realmente oração diante dos leitores. Desde o primeiro capítulo do Caminho, estes podem constatar por vista de olhos como Teresa ora. Assistem a seu diálogo com o Senhor. Sentem-se envolver nesta pausa de elevação vertical. Comprovam como no livo a vida e a oração se fundem: como vão alternando as palavras de diálogo com o leitor e as dirigidas ao Senhor. Sem solução de continuidade entre umas e outras. Teresa ora pelas necessidades da Igreja. Pelas profanações da eucaristia. Pelo mundo em guerra. Pelas responsáveis de tudo isso. Às vezes suplica, outras vezes invoca ou bendiz ou impreca. Em todo caso, esforça-se para envolver as leitorsas em sua ascensão orante.É o melhor registro da pedagogia de Teresa. Quem lê o livro não só recebe instruções e pautas para o caminho, e não somente sabe como ela ora, mas se sente solidário de sua oração e motivado por ela.

O último recurso magesterial de Teresa consiste em passar da pedagogia à mistagogia da oração.


Santa Teresa, fundadora

Santa Teresa, fundadora

Uma mulher atraente e atraída, forte e vulnerável


Teresa de Cepeda e Ahumada veio à luz em 28 de março de 1515, filha dos piedosos pais Alonso Sánchez de Cepeda e Beatriz Dávila y Ahumada. As primeiras provas de seu fervor religioso herdado dos pais foram a sua fuga de casa para morrer mártir nas terras dos mouros e sua meditação sobre a eternidade. A piedade da infância decairá na adolescência, dando lugar às preferências de toda jovem pelos encantos das relações humanas e dos atrativos mulheris, influenciada pelos devaneios dos romances de cavalaria. Desde cedo pôde constatar sua força atrativa e sua capacidade de liderança, comandando as brincadeiras e centralizando os círculos e as conversas.

Sabia, inteligentemente, ser atraente, utilizando-se de sua simpatia, que ela traduz como desejo de agradar a todos, e teve como mestra neste aprendizado uma parenta de sua idade. Aprendeu a arte da sedução.


À proteção da Santíssima Virgem colocou-se, quando perdeu a mãe, em 1529. Certo de que Maria a protegeria, continuou envolvida em seus passatempos. Preocupado, seu pai resolveu interná-la no mosteiro das monjas agostinianas de Ávila, em 1531. A solidão obrigou-a a encontrar-se consigo mesma. O monólogo é o primeiro passo para um diálogo frutífero. Além da solidão, oportuna companhia, o contato com religiosas sérias abriram-lhe o espírito às dimensões divinas até então encobertas. O desejo de fazer-se consagrada a Deus nasceu-lhe, pela primeira vez. Nem todos se tocam pela própria insatisfação existencial. Isistem em perseguir o mesmo caminho, rumo às mesmas paredes. Teresa descobre a porta ampla. O horizonte que vislumbra do lado de lá, porém, é tão longínquo e misterioso que os efeitos imediatos sentem-se no corpo. Ela somatisa a crise. Enferma volta para casa, quem sabe para tentar recuperar o fio perdido da sua vida, a liga que se rompera em seu espírito. Melhor, fisicamente, vai a Castelhanos de la Cañada, casa de sua irmã mais velha, onde permanece 7 meses. De volta à casa paterna assume, entre 1533 e 1536, a direção de tudo, como mãe e senhora, mulher amadurecida. Em 1536 não consegue segurar-se. Convencendo seu irmão Antônio, fogem de casa. Ela bate no Carmelo da Encarnação, ele na porta dos dominicanos. No Carmelo inicia uma nova vida. Aos poucos vai percebendo que de atraente deve ceder, até ser atraída por Ele, e sua aparente força deu lugar à sua real vulnerabilidade, porta por onde o Cristo entrou em sua vida.


Teresa recebeu o hábito carmelitano em 2 de novembro de 1536 e professou no dia 3 do mesmo mês de 1537, aos 22 anos. Pouco tempo depois de sua profissão, um pouco por causa da nova forma de vida e das graves penitências que se impôs sobre si mesma, e muito pelo drama interior iniciado, ficou gravemente enferma e teve que abandonar temporariamente o mosteiro. A princípios de 1538 mudou-se para um lugar chamado Becedas e depois de alguns meses voltou ao mosteiro, não só com a saúde fraca, mas meio morta e totalmente paralisada. Pouco a pouco ficou restabelecida graças à intercessão de S. José, cuja devoção era popular na Espanha e que se fortalecerá em Teresa desde então.


Sua saúde física restabelecia-se na mesma proporção em que seu espírito se debilitava. Sente-se tíbia até 1553, quando a leitura das confissões de Santo Agostinho e o fatal encontro com uma imagem do Cristo atado à coluna em um dos corredores do mosteiro, tocam-na profundamente e resolvem-lhe o impasse interior. Ela vê nesta experiência sua própria e definitiva conversão (V.9). Este foi o momento em que iniciou seu vôo para as alturas da união com Deus, que se traduziu numa entrega incondicional e valente ao serviço de Deus, que a cumulou de inumeráveis favores e graças. O incremento destes bens foi tão grande e rápido, diz o Pe. Silvério, que em menos de 5 anos havia passado por quase todos os graus do amor e da contemplação infusa, culminando, em 1559, na visita de um querubim que lhe transpassou o coração com um dardo ardente, ferindo-a de amor. Em 1560 comprometeu-se em procurar e fazer sempre o mais perfeito. Inundada da presença transformante de Deus, e diante de tantos fenômenos e graças espirituais, Teresa perturba-se, e busca o auxílio de doutos e santos, que a acalmam e a ajudam a entender o lado humanamente estranho da Graça.


O itinerário místico que Santa Teresa percorre no Carmelo da Encarnação chega à sua natural consequência no desejo de ver a Deus e gozar de sua glória. É este um passo comum nas biografias místicas de relevo. Aos Filipenses São Paulo dirá: "Para mim, de fato, o viver é Cristo e o morrer um ganho" (Fil.1,21). São João da Cruz exprime a ânsia pela glória em sua obra “Chama viva de amor” em que a amada expressa sua incontrolável vontade de que a tela do doce encontro com o amado se rompa. Santa Teresa experimenta a mesma coisa. "Ansiosa de ver-Te, desejo morrer", repete o refrão de um poema seu, entre outros que expressam a mesma realidade. Sua definitiva conversão e o encontro com o Cristo não poderia que suscitar nela o desejo de que tudo acabasse, fazendo com que o normal medo da morte transformasse no medo de não morrer (c. V.29,8 e 10). Todavia àquele que vive em Cristo e experimenta, até o sofrimento, que o tempo se faz breve, acontece-lhe de viver em uma estranha dilatação do próprio tempo.


Para o P. Antônio Sicari, Santa Teresa, em seu caminho espiritual, passou da tensão escatológica à tensão encarnatória. Querendo morrer para viver em Cristo, amadurece ao ponto de viver para Cristo, sendo-lhe um prolongamento de humanidade, servindo-Lhe e fazendo-lhe em tudo Sua Vontade. O amadurecimento espiritual verifica-se quando não lhe interessa mais nem o medo do inferno em que poderá cair, nem o desejo do céu que o Cristo lhe pode dar, mas amá-lo em tudo, viver por Ele e por Ele morrer. É neste sentido que se deve entender o dilema colocado por ela: padecer ou morrer por Cristo.


Como a ressurreição assinala o fim do mundo, a encarnação e a paixão de Cristo prolongam-se no seu corpo eclesial. O instinto escatológico de Teresa deve fazer as contas com a encarnação eclesial.


É este o itinerário narrado no na Vida e nas Relações. O desejo da morte só pode ser aplacado por aquele de sofrer por Ele (cf. V.40,20; R.1,3).


Eventos como a visão do inferno, as notícias da Igreja dilascerada pelo movimento protestante e as missões além-mar no novo mundo descoberto, e outros fatores interiores, levaram Santa Teresa, inspirada continuamente por Cristo, a idealizar um mosteiro onde poucas monjas vivessem ao máximo sua doação ao Senhor, pela Igreja. Ela empenha-se em construí-lo, não sem penas.


O mosteiro, dedicado ao glorioso São José, foi inaugurado no dia 24 de agosto de 1562. Pela manhã uma sineta surda, porém alegre, anunciou aos habitantes de Ávila o nascimento da Reforma Teresiana. Radiantes de felicidade tomaram o hábito de descalças as quatro noviças escolhidas por Santa Teresa: Antônia de Henao (do Espírito Santo), filha espiritual de S. Pedro de Alcântara; Maria de la Paz (da Cruz), criada de D. Guiomar de Ulloa; Ursula de Sevilla (dos Santos), filha espiritual de Gaspar Daza, e Maria de Ávila (de S. José), irmã de Julião de Ávila. O Padre Gaspar Daza celebrou a Santa Missa e depôs no sacrário o SS. Sacramento. Este foi o primeiro de uma enxurrada de mosteiros que ela fundou até o fim de sua vida (17 ao todo), num movimento ainda vivíssimo nos dias de hoje.

Teresa, uma reformadora diferente


Quase todas as reformas das Ordens religiosas nascem, naquele tempo, dos sofrimentos dos reformadores pelas cativas condições e pela vulgarização de experiências que se quer conduzir ao esplendor primitivo. Também Teresa reagiu a uma determinada situação de falha. Mas tal reação foi nela absolutamente secundária na ordem das motivações.


A santa documenta candidamente algumas de suas reações que são absolutamente atípicas para um reformador: “Eu não sabia resolver... porque era contente onde estava, o mosteiro me agradava e havia uma cela ao meu gosto” (V32.10; cf. 32,12). Alguém que se colocasse com mandato divino para colocar ordem nas desordens das Ordens, jamais falaria assim. Não há traços nela de um descontentamento insustentável no andamento das coisas, nem daquela típica insatisfação pelo ambiente ou daquele desejo de excepcional austeridade que estão à base dramática de muitas tentativas de reforma religiosa no século XVI.


Do seu velho mosteiro a Santa tece grandes elogios (cf. V.7,3). Nesta linha devemos entender também a resposta que ela dá em 1581 ao pedido de uma monja que quer fazer parte de seu mosteiro, alegando vida regalada no mosteiro onde estava. Ela não a aceita, por razões jurídicas, e diz que ela pode, e diríamos deveria, ser boa onde está: “Antes de se fundarem estes mosteiros, passei vinte e cinco anos num onde havia cento e oitenta monjas. E, por escrever às pressas, só direi: a quem ama a Deus tudo lhe servirá de cruz e de proveito para a alma. Nada lhe fará mal se andar de sobreaviso, considerando que só Deus e vossa mercê estão nessa casa; e, enquanto não tiver ofício que a obrigue a olhar as coisas, nada se lhe dê de nenhuma delas. Procure antes imitar a virtude que vir em cada Irmã, a fim de mais amá-la e tornar-se melhor, descuidando-se das faltas que nela vir. Isto me aproveitou tanto, que, sendo tão numerosas como disse, não me distraíam mais do que se nenhuma houvesse, antes me eram de proveito. Porque, enfim, senhora minha, em toda parte podemos amar a este grande Deus. Bendito seja Ele, que não há quem nisto nos possa estorvar.” (Carta abril de 1581). Teresa mesma dirá de si que, malgrado tudo, fazia um grande bem em torno (V.32,9). A quantos lamentavam que levava muitas monjas da Encarnação para suas fundações ela respondia que restavam ainda mais de quarenta que poderiam fundar uma nova vida religiosa.


Se de um lado é óbvio que no seu novo mosteiro Teresa buscará cortar os abusos que encontrou na vida carmelitana do seu tempo, e que causaram danos inclusive nela, do outro lado não é igualmente óbvio dizer que esta intenção reformista tenha motivado o nascimento do novo Carmelo.


A opinião geral é a de que Santa Teresa nunca pensou na fundação de uma nova Ordem religiosa, nem sequer pretendeu reformar toda a Ordem do Carmelo como tal. A origem da sua intenção reformadora não vai além do âmbito de seus íntimos desejos de conseguir a própria perfeição e de ajudar a Igreja e as almas, cumprindo fielmente sua vocação.


A Santa não desconhece o concreto, porém não se exaspera diante dele. No livro da Vida estigmatizará com palavras enérgicas o relaxamento dos mosteiros (V.7,5). Tornará sobre o tema com expressões duras no Caminho (cap.12-14). Anos mais tarde, por ocasião de sua peregrinação através da Castilha e das províncias andaluzes, conhecerá algo do desenfreio de certos eclesiásticos (cf. Carta ao Padre Geral J. B. Rubeo, em 18 de Junho de 1575) e sentirá muito, contudo isto nem a escandalizará nem a estimulará a fazer algo para concertar o que está errado. Santa Madre é prática. Os males da Igreja e os perigos que ela corre na sua missão levam-na a fazer “esse pouquinho que posso”, como diria. E o que está ao seu alcance e o que se converteria em seu ideal é seguir os conselhos evangélicos com toda perfeição, juntamente com outras que quisessem segui-la (cf. C. Val.1,1-3), vivendo em plenitude o espírito original do Carmelo tal como ela havia chegado a vislumbrar, com sua marca eminentemente contemplativa, cujo valor evangélico e eclesial supôs compreender com profundidade inigualável, como o compreenderia também frei João da Cruz.


A Santa se limitará a criar um novo estilo de vida em que a realização de seu ideal seja mais facilmente exeqüível, sem que lhe passe nunca pelas mentes a idéia de impô-lo de algum modo a suas irmãs e irmãos de hábito, como advertia o P. José de Jesus Crucificado, para quem "a reforma de Santa Teresa não surgiu como uma espécie de rebeldia, contra a Ordem antiga do Carmelo, nem como uma intenção prévia de reformá-la enquanto tal, já que nem a Santa Teresa – que foi sempre filha fiel e amantíssima de sua Ordem – passou-lhe pelo pensamento semelhante idéia, nem o velho tronco da Ordem, de cuja seiva nutriu em boa parte seu espírito, convertendo-o em vida própria, sofreu alteração alguma de caráter jurídico, disciplinar ou espiritual por causa da Reforma ou por sua influência. Esta surgiu impulsionada por motivos e circunstâncias em parte pessoais e em parte ambientais e sociais, em consonância com o momento histórico e com as peculiares necessidades do tempo, como um movimento novo e vigoroso, destinado, não já a reformar a Ordem do Carmo enquanto tal, senão a instaurar na Igreja uma corrente de vida espiritual profunda e fecunda, que trouxesse um remédio eficaz àquelas necessidades e fosse, ao mesmo tempo, um instrumento eficiente de apostolado ao serviço da Igreja.


É de se notar que este movimento se inicia e desenvolve, não a despeito nem contra a Ordem em cujo seio se produz, senão favorecido e protegido por ela, já que não outra coisa significava, na realidade, senão uma nova e mais eficaz tentativa de melhoramento espiritual, em harmonia tanto com as diretrizes dadas pelos Sumos Pontífices à raiz do concílio de Trento como com os desejos intimamente e de muito tempo sentidos na Ordem mesma".


A idéia reformista, propriamente dita, não pertencia ao núcleo essencial da intuição nem de Santa Teresa nem de São João da Cruz. Ela somente se introduz em sua obra por intromissão do rei Filipe II que quis impor aos carmelitas sua própria reforma, instrumentalizando, para isso, a descalcez. Mas, visto por um ângulo mais largo, Santa Teresa é reformadora no sentido de ter colaborado para apontar à Igreja um caminho de fidelidade à sua própria missão. É assim, como reformadora, que a Igreja a vê. No âmbito minúsculo do Carmelo, ainda que tenha iniciado um movimento inicialmente com caráter renovador, Teresa passa a ser, mais que tudo, fundadora.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Teresa d'Ávila: a santa que queria dar um xeque-mate no Senhor.




Artigo de Julia Kristeva, publicado no site IHU em 02 de novembro de 2011.

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Por que este estranho encontro entre uma santa e uma mulher ateia, psicanalista e escritora? Não vou dizer tudo. Somente lembrarei que é impossível viver hoje sem perceber que os confrontos entre as religiões não são estranhos aos confrontos econômicos que agravam a nossa cotidianidade e que ameaçam a paz no mundo. Devo admitir que estou entre aqueles (poucos) escritores e intelectuais europeus persuadidos de que existe uma cultura europeia da qual não estamos muito orgulhosos. E que justamente a partir de uma melhor apropriação crítica das suas culturas plurais, a nossa Europa poderá ter um papel decisivo nos diversos conflitos que se assomam no horizonte há muito tempo. Trata-se nada mais e nada menos do que de transvalorar (o termo de Nietzsche) os valores judeus, cristãos, mas também muçulmanos e da secularização. (...)
Teresa d’Ávila viveu e escreveu uma experiência extravagante, que chamamos de mística, em um momento em que o poder e a glória espanhóis – os dos Conquistadorese da Idade de Ouro – começavam a declinar. Ainda mais, Erasmo e Lutero perturbavam as crenças tradicionais, os novos católicos como os Alumbrados atraíam os judeus e as mulheres, a Inquisição colocava no Índex os livros em língua castelhana, e os processos para demonstrar a "limpieza de sangre" se multiplicavam.
Filha de uma christiana vieja e de um "convertido", Teresa foi testemunha, durante a sua infância, do processo contra a família paterna, obrigada a demonstrar que era verdadeiramente cristã e não judaica. O "caso" da própria Teresa, como freira oração praticante da oração – isto é, a oração mental em uma fusão amorosa com Deus que a levarão às suas êxtases – será submetido à Inquisição, antes que a Contrarreformadescubra a extraordinária complexidade da sua experiência, juntamente com a sua utilidade para uma Igreja que busca então conciliar ascetismo (reivindicado pelos protestantes) e intensidade do sobrenatural (propícia à fé popular).
Theresa de Ahumada y Cedpeda será beatificada em 1614 (32 anos após a sua morte), canonizada em 1622 ("santa" 40 anos depois da morte) e se tornará, em 1970, no prolongamento do Concílio Vaticano II, a primeira Doutora da Igreja, juntamente comCatarina de Sena. (...)
Fantasmas encarnados
Única mulher em uma família de sete homens (antes do nascimento dos dois "pequenos", uma menina e um menino), muito ligada à mãe e ao pai, ao irmão Rodrigo, ao tio paterno Pedro e ao primo, filho de um outro tio paterno Francisco, em uma família de harmonias incestuosas, abastada embora em fase de declínio, Teresa perdeu a mãe aos 13 anos. Quando decidiu entrar na ordem das carmelitas e assumiu o hábito no convento da Encarnação, no dia 2 de novembro de 1536, ela tinha 21 anos. O seu corpo é um campo de batalha entre os desejos culpabilizantes que ela sugere continuamente na Vida, especificando que os seus confessores a proíbem de desenvolvê-los, e a exaltação idealizante da qual testemunha o culto intenso dirigido a Maria (mãe virgem) e a José (pai simbólico).
Com incrível lucidez na sua biografia, ela confidencia o modo em que os seus tormentos a conduzem às convulsões e às perdas de consciência seguidas, em alguns casos, a estados de coma que duram até quatro dias (...) – crises acompanhadas por "visões "que a freira descreve segundo aquelas que os neurologistas chamam de "áureas": não "visões" através dos "olhos do corpo", mas sim aquilo que eu gostaria de definir como "fantasmas encarnados": percepções através de todos os sentidos da presença envolvente, tranquilizante, afetuosa do Esposo. O Pai ideal – que a perseguia por causa das "tentações", das "faltas" e das "dissimulações", fazendo-a sofrer até os ossos – se transforma em pai afetuoso.
As "visões" traduzem essa alquimia salvadora. Desde o princípio, a "visão" é só um "rosto severo", que desaprova os seus "hóspedes" muito desenvoltos. Mais tarde, se transforma até em um "sapo" que não para de crescer: alucinações do sexo do hóspede? Enfim, tratar-se-á do Homem de dor em pessoa, assim como a freira viu sob a forma de uma estátua de Cristo no pátio do convento: homem martirizado com os sofrimentos com os quais está feliz em se identificar, com a intensidade de um transporte.
Transporte é exatamente a palavra certa: Teresa está finalmente unida a "Cristo enquanto homem" (Cristo como hombre), se apropria dele – "certa de que o Senhor estava dentro de mim" (dentro de mí). "Eu não podia duvidar, então, de que ele estivesse em mim ou que eu estivesse completamente mergulhada nele" (yo toda engolfada en él) (Vita 10: 1). (...)
A humanidade de Cristo está no ar da época. Erasmo e todos os "Iluministas" o respiram, assim como os judeus convertidos e muitas mulheres que são chamadas de "alumbrados". As êxtases de Teresa são, desde o início e sem distinção, palavras, imagens e sensações físicas, espírito e carne, ou melhor, carne e espírito: "o corpo não fica sem participar do jogo, e até muito" (...).
Imagens da água
Aos olhos dos incrédulos do terceiro milênio, como nós, Teresa descreve uma travessia – ou melhor, uma decomposição – da sua identidade intelectual-físico-mental dentro e através da transferência amorosa com o Ser Completamente Outro: Deus, figura paterna dos nossos sonhos infantis, inalcançável Esposo do Cântico dos Cânticos. Através dessa metamorfose mortal e orgásmica, que remedia a melancolia da sua dor de mulher separada, abandonada e inconsolável, Teresa se apropria do Ser Outro em um contato infracognitivo, psicossomático, que a leva a uma regressão perigosa e deliciosa, acompanhada por um prazer masoquista. Não é a retórica que nos ajuda a lê-la, mas sim essa fulgurante revelação do Aristóteles de Sobre a alma e da Metafísica, que, entre todos os sentidos, considera o tato como o mais fundamental e mais universal.
Se, com efeito, todo corpo animado é um corpo tátil, o sentido do tato que caracteriza o ser vivo é tal que "aquilo com que eu entro em contato entra em contato comigo". Desde o primeiro instante, e através da imagem da água, Teresa, que se vê banhada pelo Outro, oculta a mediação e se imagina imersa no seu Esposo, assim como ele está nela.
Mas, ao mesmo tempo, na difração da água entre Deus, o jardineiro e os quatro modos de fazê-la vir, Teresa critica implicitamente esse imediatismo, se distancia dele e tenta explicar o seu autoerotismo, ao mesmo tempo doloroso e jubilatório, em um acúmulo de ações físicas, psicológicas e lógicas. Muitos contos e histórias de água. A água seria, portanto, a imagem do impacto sensorial do divino sobre Teresa, mas também uma crítica – inconsciente, implícita, irônica – desse impacto do divino? Até a dissolução do Pai Ideal, do Outro, na freira orante, na escritora?
Perguntas impertinentes
Se a água é o emblema da relação entre Teresa e o Ideal, entende-se que o seu Castelo interior (trata-se, na realidade, da "metapsicologia" de Teresa, que a percorre através dos níveis da psique até a sua verdade) não é uma fortaleza, mas sim um quebra-cabeças de "mansões": moradas de fronteiras permeáveis.
Isso significa que a transcendência, segundo Teresa, se revela como imanente: o Senhor não está além dela, mas nela! O suficiente para atrair sobre ela todos os problemas que se pode imaginar com a Inquisição, os confessores e os editores que atenuaram essa pretensão. A menos que seja, também, a apoteose da Encarnação?
Mas as consequências são muitas. A primeira delas é, talvez, uma certa ironia que beira o ateísmo? Em uma passagem do seu Caminho de perfeição, Teresa aconselha suas irmãs a jogar xadrez nos mosteiros, mesmo que isso não seja permitido pelo regulamento, para... "dar xeque-mate no Senhor". Uma impertinência que ressoa na famosa fórmula deMeister Eckhart: "Peço a Deus que me liberte de Deus".
A segunda consequência é formulada por Leibnitz que escreve em uma carta a Morell no dia 10 de dezembro de 1696: "E, no que se refere a Santa Teresa, vocês têm razão em estimar as suas obras. Nelas, encontrei este belo pensamento de que a alma deve conceber as coisas como se no mundo só houvesse Deus e ela. O que também produz uma importante reflexão filosófica que empreguei utilmente em uma das minhas hipóteses".
Teresa, inspiradora das mônadas leibnizianas contidas desde sempre no infinito? Teresa, precursora do cálculo infinitesimal?

Subjetividade, liberdade e autonomia em Teresa de Jesus

Entrevista dada pela Professora Lúcia Pedrosa, professora de teologia da Pontifícia universidade Católica do Rio de Janeiro, ao Site IHU .

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IHU On-Line – Que fatos pessoais ou sociais fizeram aflorar ou despertar a experiência mística de Teresa de Ávila?

Lúcia Pedrosa-Pádua – Teresa de Ávila é, sem dúvida, uma mulher questionada e estimulada por seu tempo. Viveu no “século de ouro” espanhol, um período de florescimento econômico, político, literário, filosófico e também espiritual. Um tempo complexo, marcado pela conquista das “Índias” e toda a sua ambiguidade. Para Teresa, como mulher, mística e escritora, é também um tempo "recio", duro – guerras, perseguições e ações inquisitoriais marcam especialmente a segunda metade do século.

De maneira especial, eu destacaria as influências do contexto espiritual do século XVI no caminho místico teresiano. Uma particular efervescência religiosa acontece naquele momento, envolvendo ordens religiosas, mas não apenas elas. Atinge também a nova geração de “cristãos novos”, o povo simples, os leigos e, de forma especial, as mulheres. Há uma busca de Deus, um cansaço com relação às formas exteriores da religião, uma valorização da interioridade e da oração pessoal, e um forte impulso às altas esferas da vida mística. Lembremos que é o século de movimentos como o de Santo Inácio de Loyola; fora da Espanha, lembremos igualmente a Lutero e Erasmo de Roterdã. No ambiente espanhol, representantes de ordens religiosas e também padres seculares apresentam caminhos concretos de oração e de autenticidade de vida cristã, recolhendo criativamente a tradição bíblica, patrística e medieval. Motivam à experiência espiritual como um chamado universal, não de poucos privilegiados. A incidência de seus testemunhos e pensamento é ampliada através do trabalho das gráficas. Para termos uma ideia, só na região de Castela (a de Santa Teresa), em 30 anos são editados mais de 198 títulos de livros de espiritualidade. Autores como Francisco de Osuna, Bernabé de Palma, São João de Ávila e Luiz de Granada atingem alta popularidade. Todos eles estão interessados em chegar a Deus por experiência. Na segunda metade do século, o Index(índice dos livros proibidos) de Valdés (1559), e o fortalecimento da ação da Inquisição puseram um freio às publicações e encheram de suspeita as buscas espirituais, mas, ainda assim, a mística seguiu o seu curso.

Teresa bebeu com sofreguidão das leituras sobre oração. Com alguns expoentes da espiritualidade ainda entrou em contato pessoalmente (São Pedro de Alcântara, São Francisco de Borja) ou através de cartas (Luiz de Granada, São João de Ávila). É impossível desvincular a mística de Teresa desta corrente de reformadores, escritores, buscadores de Deus e santos. Ela, junto com São João da Cruz, culminam este movimento, dando uma contribuição pessoal. Tudo isso mostra como a mística não deve ser separada de seu húmus histórico, cultural e socioeclesial, nem sempre valorizado.

Fatores de ordem pessoal também influirão na mística teresiana. Destaco o seu contexto familiar, suas vorazes leituras, seu segredo da descendência de judeu-conversos (por parte do avô paterno), sua formação na adolescência. Tudo isso se aliará a seu particular desejo de se relacionar e comunicar com os demais, inclusive com Deus, sua fina observação da vida, sua indignação contra situações de injustiça, sua habilidade como escritora. Buscas e crises pessoais aumentarão o seu desejo de Deus.

Além desses, podemos incluir outro fator transcendente: Deus mesmo age. O Concílio Vaticano II, especialmente na Constituição Dogmática Dei Verbum (n. 8), reconheceu o valor do testemunho místico no aprofundamento da compreensão da fé. Trata-se de um carisma. Devemos afirmar o núcleo teologal da experiência mística em geral, e da teresiana em particular. Teresa testemunha que o próprio Deus, transcendente, a convoca a partir de dentro dela e esta misteriosa presença será expressa em seus escritos. Portanto, através dos condicionamentos e anseios históricos, psíquicos e culturais de Teresa, é possível chegar ao núcleo de uma experiência teologal. Por esse motivo, nossa personagem sempre interpretou sua existência como uma história viva de amor e de salvação em que Deus mesmo é o protagonista. Podemos dizer que é uma história pessoal de salvação. Ser testemunha do mistério de Deus (nas palavras de Teresa no início do livro Moradas, “o que Deus faz a uma alma”) é uma das maiores contribuições de Teresa para os tempos de hoje. A teologia e a espiritualidade não devem a-historizar nem imanentizar a experiência mística.

IHU On-Line – Que novidades a mulher Teresa traz para a interface mística/feminino? Como se expressa a sua feminilidade em suas obras?

Lúcia Pedrosa-Pádua – O vocábulo “mística” implica três âmbitos: o sujeito da experiência (o místico), a experiência mesma (experiência mística) e os escritos místicos (a mística). Ao meu ver, a feminilidade de Teresa se expressa em todos esses aspectos.

Com relação ao primeiro aspecto, a experiência mística, penso que a feminilidade de Teresa se expressa no caráter fortemente relacional dessa experiência. Teresa percebe-se como aquela que é e está em relação. Quanto mais perto de Deus, mais ela se descobre perto da verdade de si mesma. Quanto mais em comunhão com os mistérios da natureza (“mesmo que seja uma formiguinha”), mais perto de Deus. E quanto mais perto de si e de Deus, mais perto dos demais. As relações tornam-se cada vez mais fortes em amor e desejo, ao mesmo tempo, mais livres e gratuitas, mais críticas e discernidas. Penso que esse é um traço marcante da experiência mística de Teresa como mulher.

Como sujeito da experiência, o segundo aspecto da mística, podemos dizer que Teresa foi refeita como mulher. Adquiriu apuradíssima autoconsciência de seu ser mulher. Rejeitou os estreitos papéis pré-estabelecidos e ultrapassou vários limites impostos culturalmente às mulheres. O fato de ser fundadora de uma ordem religiosa feminina e masculina bem o demonstra. Foi até chamada de “homem, e dos muito barbados”, por um catedrático de Salamanca, que observou sua capacidade de gestão. Foi escritora e exerceu conscientemente um papel magisterial através de seus livros. Seus escritos são críticos ao sofrimento das mulheres nos casamentos, na Igreja e na sociedade em geral.

Com relação a esse aspecto, lembro sua famosa oração, verdadeiramente feminista, encontrada na primeira redação do Caminho de Perfeição (cap. 4,1). Nela, denuncia um “encurralamento” das mulheres na Igreja: os varões são juízes de mulheres e suspeitam de toda “virtude de mulher”; estas, por sua vez, não podem “falar algumas verdades” que “choram em segredo”, são desprezadas e desqualificadas. Evidentemente, esta página foi censurada e não passou à segunda redação do mesmo livro. Sim, Teresa foi muito além do que se esperava de uma mulher do seu tempo. Ao mesmo tempo, suas histórias de amizade com alguns varões de seu tempo são bem conhecidas através de seu grandioso epistolário.

Finalmente, no terceiro aspecto, a linguagem, lemos com prazer suas obras cheias de sinceridade e verdade, beleza e concretude cotidiana, humor e criatividade. Como mulher, sua linguagem é pluridimensional. Isenta da impessoalidade e rigores escolásticos, a cujos conteúdos e métodos Teresa teve pouco acesso. Segundo o objetivo de cada obra, vemos como ela se adapta e se esforça por dar-se a entender, com habilidade e inteligência. Ora direta e grave; ora narrativa e simbólica, cheia de emoção e de assombro. Sua linguagem é plástica e adaptada a melhor expressar-se, assim como o são seu corpo e sua disponibilidade interior. Os símbolos teresianos sofrem metamorfoses em suas obras. Adelia Prado, a poeta mineira contemporânea, escreveu em uma poesia que a mulher é “desdobrável”. Talvez Teresa compartilhe dessa experiência de sua companheira, embora tão longe no tempo.

IHU On-Line – Que linguagem ou simbologia se destacam nas principais obras deixadas por Teresa de Ávila? Como ela “narra” o Mistério?

Lúcia Pedrosa-Pádua – A linguagem teresiana é repleta de símbolos e comparações. Isso a faz particularmente expressiva, saborosa e dotada de soluções inesperadas. Teresa é muito livre em suas comparações e os símbolos são metamorfoseados segundo o objetivo pedagógico ou o sentir da autora.

O símbolo maior é certamente o do “castelo interior”, presente de forma especial na sua obra de maturidade, o Castelo Interior ou Moradas. O símbolo é explorado de forma a servir os propósitos de expressão da autora: explicar quem é a pessoa diante de Deus, narrar a aventura da busca/encontro com Deus e, neste encontro, renovação da relação com tudo e com todos. A beleza do símbolo já demonstra o aspecto positivo e luminoso da pessoa diante de Deus: o castelo é de diamante ou de um cristal muito transparente, habitado em seu centro mais profundo pelo sol, Deus, que tudo ilumina e atrai, a partir de dentro de castelo. A aventura é chegar ao centro, a sétima morada. Ela adquire contornos dramáticos à medida que surgem os demais habitantes do castelo (as realidades da pessoa, em seus sentidos, afetos, sentimentos, inteligência...) ou do seu entorno (os animais que “rondam” o castelo), todos com suas forças de atração. É efetivamente um símbolo capaz de articular magistralmente uma teologia e uma espiritualidade. O caráter trinitário e cristológico da aventura do castelo é surpreendente.

Destaco mais dois símbolos que articulam partes menores (mas não menos importantes) da narrativa teresiana.

O primeiro, as quatro formas de regar o jardim, através das quais Teresa narra os quatro graus de oração, no Livro da Vida (cap. 11 a 22), seguindo sua própria experiência. A primeira forma de regar o jardim é buscando água no poço – trata-se de iniciar a oração de recolhimento, mesmo com as dificuldades e poucos resultados alcançados. A segunda forma é utilizando nora e alcatruzes movidos por um torno – aqui não é necessário tanto esforço na oração e há mais prazer na quietude. Entrando nas formas de oração mais misteriosas – místicas –, vem a terceira forma de regar o jardim, trazendo a água de algum rio ou arroio – aqui há maior união com Deus, alegria interna e experimenta-se um maior descentramento dos próprios egoísmos. Finalmente, a chuva, quarta forma de regar o jardim, união com Deus com todos os seus efeitos éticos e também psicossomáticos.

Por fim, destaco a parábola do bicho-da-seda, no Castelo Interior (Quinta Morada, cap. 2,2ss), utilizada pela explicar a transformação operada pela oração. Sugiro que o próprio leitor a leia e interprete. Verá a delicadeza da linguagem, a profundidade da doutrina e a surpreendente experiência.

IHU On-Line – Michel de Certeau aborda o traço novidadeiro da mística teresiana no campo da afirmação da subjetividade, um pioneirismo que, afirma o autor, antecipa Descartes. Como a senhora analisa a inovação da mística teresiana no campo da subjetividade e da consciência?

Lúcia Pedrosa-Pádua – Teresa é, de fato, uma escritora moderna e humanista. A começar pelo Livro da Vida, escrito em primeira pessoa e quase cem anos antes do Discurso do Método, de Descartes. Na conclusão do Castelo Interior aconselhará suas irmãs, nem mais nem menos, a entrar e passear em seus castelos interiores em qualquer hora, pois para isso não é necessária a licença das superioras! Teresa não teme a liberdade e a autonomia; pelo contrário, estão intrinsecamente relacionadas ao amor.

Diria que a subjetividade construída por Teresa é integral e relacional.

É uma subjetividade integral por integrar corpo, mente e espírito. Aparentemente, sua linguagem traz o dualismo entre corpo e alma, devedor da doutrina comum de seu tempo, neoplatônica, que considera o corpo como “cárcere da alma”. Esta imagem é reforçada pelas recorrentes experiências de amor e desejo de morte para estar com Deus, para além do corpo e da história. Ímpeto tão bem retratado na poesia cujo refrão diz: “morro porque não morro”. Porém, uma leitura mais aprofundada de sua experiência mística, com suas consequências pessoais e éticas, revela uma valorização progressiva do corpo e, com ele, da história e da criação. Em sua última etapa mística, o chamado “matrimônio espiritual”, ou união com Cristo, é superado o ímpeto de morrer e o “querer viver” é revalorizado. O cuidado de Teresa para com a saúde, tanto física como psíquica, revelado nas cartas, bem mostra a busca da harmonia integral.

Junto ao respeito ao corpo e seus ritmos, impressiona como Teresa adquire a consciência dos próprios sentimentos, intuições, percepções, movimentos da vontade e desejos. Distingue e valoriza a vontade, a memória, o entendimento, a fantasia, a imaginação, os sentimentos. Alguns a colocam como mãe da psicologia, tal a filigrana de suas narrativas interiores.

Ao mesmo tempo, esta humanidade é cheia de sentido, porque a dimensão espiritual, experienciada por Teresa como “centro” ou “abismo da alma”, é habitada, não é “oca”. Teresa, em sua simbologia geográfica, muito inspirada na tradição agostiniana, pretende esvaziar o castelo para que Deus possa reinar. Porém, esse esvaziamento é cheio de sentido e transformações interiores. Ele não é fruto de ser “oco”. O ser humano é saboroso e recheado, como o palmito, outro símbolo teresiano. E o sabor máximo é dado pelo próprio Deus, que busca o espírito humano, comunicando-se e se fazendo sentir.

Além de integral, essa subjetividade é relacional, aberta. Teresa não se compreende sozinha, mas em relação. A aventura do castelo interior é, ao mesmo tempo, um caminho de autoconhecimento e de conhecimento de Deus, que vai se fazendo concreto no Cristo. A pessoa se conhece na relação, que é amor e amizade. Nesse caminhar vão acontecendo os processos de purificação e crescimento na liberdade para conviver, arriscar-se nos trabalhos, superar apegos, sentimentos negativos e medos. Por isso a mística é um acontecimento tão radical e transformador.

A subjetividade foi, na modernidade, muito reduzida à dimensão racional. Depois, à dimensão afetiva. Hoje, tendendo quase a definir a subjetividade em termos neurológicos e biológicos, nos vemos em termos da ação da serotonina, dopamina, adrenalina etc. em nossos cérebros. Teresa nos lembra como é importante manter a integralidade e a relacionalidade da subjetividade. Trata-se de uma subjetividade amorosa, audaz e livre.

IHU On-Line – Qual a sua opinião sobre a relação entre mística e erotismo em Teresa, especialmente a partir de seus “êxtases”, famosamente retratados na Transverberação de Santa Teresa, de Gian Lorenzo Bernini?

Lúcia Pedrosa-Pádua – Considero a escultura de Bernini maravilhosa. Tive a oportunidade de visitar a Igreja de Santa Maria da Vitória, em Roma, onde ela está situada, e fiquei impressionada observando os seus detalhes, com o anjo, o dardo e Teresa “tombada de amor ferida” (nos dizeres dos versos litúrgicos que certamente influenciaram Bernini).

A mística teresiana, e não apenas ela, está estreitamente vinculada à paixão e ao desejo de Deus, e nesse sentido há uma estreita relação entre a mística e a erótica. O ser humano pode ser visto como ser desejante, em tensão constante em direção a Deus. Há envolvimento e sentimento que atinge todo o ser, corpo e alma. E isso porque Deus mesmo é também um Deus “desejoso” – Teresa utiliza o vocábulo "ganoso" (de "ganas") – em relação à pessoa humana, embora misteriosamente respeitoso da resposta humana. Deus espera o ser humano, mas em tensão, desejo de uma resposta positiva; ele se envolve com o ser humano, é o Deus Trindade. Na expressão de São João da Cruz, ele é o “cervo vulnerado”. Portanto, não se trata do Deus sem paixão da teologia abstrata. Neste sentido, o amor de Deus é também eros.

A imagem de Bernini retrata este envolvimento de amor na experiência da transverberação do coração, narrada no capítulo 29 do Livro da Vida. Ressalto que Teresa não utiliza o termo transverberação, que é de origem litúrgica. Ao narrar esta experiência, situa-a dentro das graças místicas extáticas, arrebatadoras, especificamente no contexto das “feridas” místicas, que acontecem à medida que cresce o sentimento de amor. O grande teresianista Tomás Alvarez estudou com detalhes o fenômeno nos relatos teresianos. Não é um fato isolado na vida de Teresa, mas uma experiência repetida várias vezes, em graus distintos, embora a presença do anjo esteja presente apenas nessa página teresiana. Trata-se de um acontecimento de amor. Teresa falará deste amor forte que “fere” e é, ao mesmo tempo, saboroso, em outros escritos. Em uma bela poesia/oração, dirige-se a Deus de maneira paradoxal, como beleza que “sem ferir, dor fazeis” e também “sem dor, desfazeis”. As sextas moradas, particularmente através do símbolo do fogo, também narram, de forma magnífica, as modalidades das feridas místicas, comparadas a joias presenteadas à noiva, que preparam as sétimas moradas. São estas, as sétimas moradas, o cume da mística teresiana, comparada ao matrimônio místico.

Sim, Teresa vive uma longa etapa em sua vida mística, narrada nas sextas moradas, em que é vulnerada pelo sentimento fortíssimo de amor, que atinge seu espírito e também, de forma misteriosa, o corpo, e que, como ferida prazerosa, não é saciado. A ferida só faz aumentar o desejo de amor; há alternância entre o sentimento da presença de Deus e a dor da ausência. A ação divina só faz aumentar o desejo até o limite do desejo de morte para estar com o amado. É a seguinte morada, sétima, que traz o dom da paz, o sentimento da presença de Deus-Trindade, o matrimônio espiritual e a reconciliação com a vida e com a humanidade. Assim sendo, os dons do grau místico mais elevado da experiência teresiana não são os sentimentos arrebatadores de presença e a dor pungente da ausência de Deus, mas sim a paz e as “obras” (nos dizeres de Teresa, aqui a esposa recebe o beijo desejado e a corça é saciada pela água). Isso Bernini não retratou.

O que deve ser evitado, diante das evidências e abundância dos testemunhos teresianos, são interpretações grosseiras que esfumaçam a misteriosidade e a inefabilidade da graça mística teresiana, reduzindo-a a experiências sensuais cotidianas. Como ela mesma escreve: “suplico à sua Bondade o dê a provar a quem pensar que eu minto”.

IHU On-Line – Teresa foi declarada Doutora da Igreja por Paulo VI, em 1970. Quais foram as principais contribuições de Teresa ao magistério da Igreja?

Lúcia Pedrosa-Pádua – Quando Teresa foi declarada Doutora de Igreja, Paulo VI, em sua homilia, destacou três razões fundamentais deste doutorado. A primeira, a atualidade da mensagem teresiana sobre a oração, realizada a partir de seu testemunho místico e de seus ensinamentos sobre a oração. A segunda razão foi o desejo de destacar a dignidade da mulher e seu lugar na Igreja, especialmente sua participação na transmissão e aprofundamento da mensagem do Evangelho e da doutrina teológica e espiritual da Igreja. A terceira razão foi o sentido de Igreja, a eclesialidade de Santa Teresa.

Hoje, passados mais de 40 anos dessa declaração, e tendo-se desenvolvido o estudo da vida e das obras de Santa Teresa, vemos que o alcance deste doutorado é bem maior e com projeção de futuro.

Num balanço do doutorado teresiano, em 1996, o saudoso teresianista Jesús Castellano Cervera elencou mais de uma dezena de temas contidos nas obras teresianas, que significam ricas contribuições teológicas que vem sendo estudadas. Não há tratado teológico ao qual Santa Teresa não possa dar uma contribuição. Seu magistério não se resume à oração, embora nesse aspecto Santa Teresa apresente uma contribuição insubstituível. Suas obras são verdadeiros tratados teológicos indutivos: antropologia, Trindade, pneumatologia, cristologia, escatologia, eclesiologia, sacramentos... A vida e doutrina de Santa Teresa podem trazer contribuições também para a pedagogia da fé e para a pastoral. A mística vem sendo timidamente incorporada aos estudos teológicos universitários, mas o caminho vai sendo aberto porque a realidade mística hoje vai se impondo. É um sinal dos tempos. Na espiritualidade, o doutorado impulsionou as edições e a leitura das obras teresianas.

Na atualidade, vejo que não é apenas o doutorado teresiano, mas o próprio contexto espiritual da pós-modernidade, de busca do sagrado e ao mesmo tempo crescimento do ateísmo, que vem estimulando a leitura de Santa Teresa como companheira e mestre de nosso próprio caminho espiritual. Como teresianista, vejo um interesse crescente pela vida e pelas obras dessa grande mulher.

IHU On-Line – Teresa é reconhecida por seu papel como reformadora e fundadora de conventos. Como esse “novo estilo de vida” dos mosteiros se relaciona com a mística e a espiritualidade de Teresa?

Lúcia Pedrosa-Pádua – A reforma da ordem carmelitana e fundação do ramo do Carmelo Descalço são uma consequência da vida mística teresiana, ao mesmo tempo em que conformam muitos dos conteúdos de suas experiências. Ou seja, mística e obra fundadora não se separam, ao contrário, se influenciam mutuamente. Ela mesma reconhece que é impossível realizar grandes coisas àquele que não se sabe favorecido por Deus. Na espiritualidade teresiana, mística e profecia não se separam. Oração e ação andam juntas. “Marta e Maria devem andar juntas”, afirma Teresa, da atalaia das Sétimas Moradas.

A mística leva, em seu interior, uma dimensão ética e comunitária. Essas dimensões fazem parte da formação de uma subjetividade integrada e relacional, que já mencionei em pergunta anterior. Muitos pensam que a mística teresiana se resume à grande ferida de amor, ao êxtase imortalizado por Bernini, mas tal é um grande engano, porque ignora a dimensão cotidiana, concreta e ativa da mesma experiência. O místico é sempre um profeta porque adquire uma sabedoria especial para viver o tempo que lhes compete viver. Mística não combina com alienação ou com introspecção fechada. Mística combina com lucidez, audácia, amor e liberdade.

Teresa soube abrir um caminho novo numa Igreja em crise. Instaurou comunidades de mulheres pobres, orantes e iguais, numa sociedade hierarquizada e preconceituosa. Deu voz criativa àquelas que foram encurraladas e desqualificadas. Construiu redes de amizade e colaboração. Era alegre e bem humorada. Com tudo isso testemunhou o mistério do Deus que experienciou ao longo de toda a sua vida. Um Deus amigo e solidário, que se abaixa para se comunicar a quem se entrega.

IHU On-Line – Olhando para a situação da sociedade contemporânea, qual é o papel da mística e da espiritualidade? O que é necessário para que as pessoas do nosso tempo deem atenção ao lado místico da existência?

Lúcia Pedrosa-Pádua – A crise das grandes narrativas faz calar para ouvir os anseios mais sutis, como o amor, a liberdade, a autenticidade, a justiça, a amizade, a natureza, a transcendência que dá sentido real a tudo, Deus. Como no século XVI, penso que o cansaço com relação às instituições provoca uma busca de interioridade, de oração e de experiências verdadeiras compartilhadas.

A atual oferta quase ilimitada de entretenimento e de tecnologia dá uma resposta excessivamente exteriorizante aos nossos reais anseios. O excesso de informação pode nos anestesiar diante dos problemas reais, da injustiça real, da pobreza real. Da mesma forma, são superficiais as soluções farmacológicas às nossas depressões, falta de energia e alegria, ou excesso de tensão e agressividade. A mística convida a mais, convida a entrar no “castelo interior”, convida a dar atenção à “terra” da nossa interioridade, que deve ser molhada para florescer. Isso exige disposição, abertura, atenção, tempo, conversão, nova forma de estar no mundo. Esse convite é feito pelo próprio Deus, “ganoso” de que o conheçamos como Deus, envolvido em nossos destinos a partir do tecido de nossas existências, de nossa história e do nosso maravilhoso universo.

A mística exige ao menos a intuição de que “algo não vai bem”, nas palavras de Santa Teresa, para iniciar uma entrada no castelo interior. Exige coragem e humildade para dispor-se a um autoconhecimento diante de Deus, do Cristo que os Evangelhos nos narram. Teresa mostra a necessidade de nos colocarmos em movimento para dar espaço à aventura do encontro transformante com Deus e com tudo o mais, sobre bases mais humildes e mais harmônicas. Bases mais integradas e mais relacionais.

Nesse sentido, a mística, como experiência do mistério de Deus, não é apenas um anseio atual, é uma necessidade que brota do coração de nossa cultura e nossas igrejas. E mais, uma necessidade que brota do coração de Deus. Ela deve estar na estrutura dos projetos de renovação das comunidades, pois dela brotará a verdadeira profecia e a verdadeira espiritualidade cristã, que é místico-profética. E atenção: todos são chamados a ser místicos, afinal, já lembrou o teólogo Schillebeeckx que a fé só se realiza como fé na experiência.

IHU On-Line – Às vésperas de se comemorar 500 anos do nascimento de Santa Teresa de Ávila (1515-2015), a senhora organizou, juntamente com Mônica Baptista Campos, o livroSanta Teresa: mística para o nosso tempo. A partir da proposta do título, qual a atualidade de Teresa hoje?

Lúcia Pedrosa-Pádua – O livro Santa Teresa: mística para o nosso tempo traz estudos do Grupo Moradas de Estudos Místicos, grupo ecumênico da PUC-Rio. Atualiza aspectos da mística teresiana para o homem e a mulher de hoje. O interesse pela mística e por Santa Teresa na academia, por um grupo ecumênico, já é um sinal eloquente da atualidade de Teresa.

Vejo o interesse por Santa Teresa em muitos aspectos, mas destacaria três.

O primeiro, humano-espiritual. A espiritualidade se nutre do contato com uma mulher forte e corajosa, amiga do amor e da amizade, da liberdade e da pobreza, da humildade e da verdade, da beleza e da poesia. Uma mulher que testemunhou que adentrar o mistério humano é vislumbrar algo do transcender que o habita, que a oração é a porta deste dinamismo tão fundamental e que a vida é transformada por essa misteriosa experiência.

A segunda atualidade é teológico-pastoral. Também a teologia é fortalecida na integração com a mística e a espiritualidade. A teologia sem a mística torna-se abstrata; a mística sem a teologia pode seguir o caminho de experiências ocultistas e desencarnadas.

A terceira atualidade é o interesse interdisciplinar e inter-religioso que a mística oferece. Esse talvez seja um dos grandes caminhos abertos pela mística teresiana atualmente.

Enfim, espero que o livro Santa Teresa: mística para o nosso tempo seja bem recebido como uma contribuição à teologia e à espiritualidade.

IHU On-Line – Em sua opinião, quais as características mais marcantes da experiência mística feminina? Além de Teresa de Ávila, que outras mulheres foram mestras na arte de “narrar o Mistério”?

Lúcia Pedrosa-Pádua – A relacionalidade que não teme o amor, a verdade existencial que não teme se expor, a linguagem que se faz compreender, a profundidade que sabe quando calar, a beleza que escorre por caminhos multidimensionais e multissensoriais, a profecia que confunde os poderosos.

São muitas. Foram mestras místicas medievais como Hadewijch de Antuérpia, Hildegard de Bingen, Marguerite Porete e Angela de Foligno. A elas acrescentaria Santa Clara de Assis e a Doutora da Igreja Santa Catarina de Sena. Já no tempo moderno, além de Santa Teresa, as carmelitas Santa Teresinha do Menino Jesus, Isabel da Trindade e Edith Stein. Considero a poesia da mineira contemporânea Adélia Prado um exemplo de poesia mística.

LIVRO DAS FUNDAÇÕES

Livro Fundações

A Editora Loyolla acaba de lançar livro “As Fundações – Leitura orante e missionária”. Autor: SCIADINI, Patrício



Um livro para ler com amor e entusiasmo, pois somos envolvidos nas aventuras teresianas, repletas de esperança, humor e espírito missionário. Hoje precisamos recriar uma evangelização que una a presença, a oração e a palavra. Neste livro de Teresa de Ávila, sentimos o sopro do Pentecostes, que continua a suscitar carismas novos a serviço de Deus e do povo.
(Vr.R$30,00,adquira-o através do Frei Antonio Perin: email. ajperim@gmail.com)