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quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

TERESA DE LISIEUX VIDA- DOUTRINA- AMBIENTE Direção: CONRAD DE MEESTER ocd

QUEM NOS ENSINARÁ A ESPERANÇA?

GODFRIED, cardeal DANNEELS

Todos os problemas do homem pós-moderno reduzem-se a um só: o da esperança. Podemos ainda esperar? Em cada rua, por trás da porta de pelo menos cada três casas, há alguém profundamente preocupado, se é que não está desesperado. Na nossa época, a esperança é a "criança" entre as suas duas irmãs mais velhas, das quais fala Péguy, e que tem problemas de crescimento. Por todo o lado, flutua no ar uma angústia existencial.

Há muito tempo que se está de acordo que só a crise econômica não pode explicar esta situação. O verdadeiro problema está noutro lado: não são os tempos que são maus, é a alma dos homens que está doente. Como um cosmonauta na sua cápsula espacial, o homem para manter o equilíbrio, apega-se a tudo o que lhe aparece.

Quem nos ensinará a esperança? Onde encontrar um modelo, algo que nos preceda através das trevas e das angústias da morte? Há nalgum lugar um Doutor da Esperança?

Não disse a própria Teresa: "Ah! apesar da minha pequenez, quereria esclarecer as almas como os Projetas, os Doutores. Tenho a vocação de ser Apóstolo" (Ms R 3r). "Sinto a vocação de Doutor" (Ms B 2v)? Ela identificou o caminho da esperança: é o caminho da santidade. A nossa sociedade depressiva só pode ser salva pelos santos.

Esta jovem normanda, que vive numa sociedade burguesa que aparentemente não estava marcada pela problemática moderna, viveu em poucos anos, e longe do mundo, todo o drama do século seguinte. O seu ambiente habitual pouco importa às grandes almas!

Teresa abriu progressivamente um caminho que vai dali! ingênua da infância aos tormentos daqueles a quem Deus ama de tal maneira que os prova como ao ouro no crisol. Descobriu como os caminhos do amor passam pelo sofrimento, que Belém está muito perto de Jerusalém, que a gruta de Natal dos ícones é estranhamente semelhante ao sepulcro escuro, que o Menino Jesus é igualmente, a Santa Face.

Com a eleição do nome "Teresa do Menino Jesus e da Santa Face", acentuou para sempre a misteriosa síntese entre esperança e sofrimento, entre o presépio e a cruz.

Teresa é a santa da esperança. Numa época em que ninguém falava disso, numa sociedade na qual este tema estava ausente, Teresa viveu o que muitos outros, depois dela, iam viver: a noite da incredulidade dos que buscam angustiadamente, de todos os descrentes e dos maus crentes. Durante muito tempo, Teresa esteve "sentada à mesa dos pecadores", mesmo antes que uma certa literatura católica —a de Bernanos, a de Mauriac, a de Graham Greene — não a tratasse de um modo que não foi depois igualado. Tal drama na alma da carmelita refletiu-se na de inúmeros homens e mulheres, cristãos e não crentes. Este drama de Teresa foi, nos começos deste século, uma profecia de coisas que viriam a acontecer.

O drama na sua alma viveu-o no silêncio do Carmelo. Nunca fez alarde de ser pessoa em quem fixar-se. Na sua vida não há nada de teatral, nem patético, nem espetacular. Nem sequer há matéria suficiente para escrever uma nota necrológica que possa suscitar interesse nas leitoras de outros Camelos, na opinião das irmãs. Teresa escalou o monte do seu Carmelo no anonimato. Contentava-se com ser, não queria aparentar. Deixou que fosse Deus a descobrir o segredo do seu pequeno caminho. Era, e continuava a ser, a mais pequena. Contudo, os seus sonhos eram imensos e o seu olhar sem limites. No pequeno Carmelo de Lisieux, abraçava toda a Igreja, todos os países de missão, todos os tempos e todos os homens, santos e pecadores. Porque quem anta, abraça tudo. A medida do amor é que é sem medida, segundo a bela expressão de São Bernardo.

Teresa é, ainda, uma santa da fé: por meio das espessas trevas das suas noites, aproxima-se da palavra desnuda de Deus. É igualmente uma santa do amor, pois, conforme as suas próprias palavras, escolheu o amor para ser assim o coração da Igreja.

Mas é, antes de tudo e sobretudo, a santa da esperança. Efetivamente, a fé, a esperança e a caridade são as três irmãs maiores que não podem prescindir umas das outras. A fé vê o que já passou, a esperança vê o que ainda está para vir; a caridade ama o que já passou, a esperança fia-se do que ainda não aconteceu. Mas para o nosso tempo, não seria a esperança a mais importante? E a mais necessária? E a mais rara?

A fé, diz Deus, segundo a expressão de Péguy em Le Porche du mystère de la secunde vertu (O Pórtico do mistério da segunda virtude), não me surpreende tanto: Eu brilho tanto em toda a minha criação. O amor, poder-se-ia acrescentar, não deveria surpreender absolutamente a Deus. Deve dizer-se: se se amam mutuamente, é tudo em benefício próprio. O que me surpreende, diz Deus, é a esperança. É a menos evidente das três. É a que tem maior necessidade de ser cultivada. Pois não é senão uma criança com vontade de crescer.

A esperança é essencial. Nunca é marginal à vida humana: é o seu músculo do coração, o miocárdio. Se ela parar, a morte é certa.

Este belo livro sobre Teresa é como uma árvore de Natal. No tempo de Inverno em que a nossa época vive, lembra-nos que a natureza continua verde e que está à espera das cores da Primavera e da abundância do Verão. Folheai este livro, olhai-o, lede-o: tem as cores da esperança.

APRESENTAÇÃO

Há um século, desde aquele 30 de Setembro de 1897 — dia da sua morte —, que Teresa Martin "entrou na vida". Por amor de Cristo e da salvação espiritual dos homens tinha abandonado uma situação confortável seio de uma família acomodada para se encerrar muito nova no austero convento das carmelitas da sua cidade de Lisieux.

Semente que caía em terra para desaparecer antes de frutificar. "Amar é tudo dar e dar-se a si mesmo", cantava Teresa alguns meses antes de morrer aos vinte e quatro anos. Aparentemente, o grão tinha acabado a sua obra, só Deus conheceria a sua oculta fecundidade.

Por um destino excepcional na história das carmelitas, a semente ressurgia em vida visível. Durante os últimos meses da sua doença, Teresa do Menino Jesus tivera disso o pressentimento profético. Trouxeram-lhe à enfermaria um molho de espigas; escolheu a mais bonita, a mais cheia, e disse à madre Inês: "Esta espiga é a imagem da minha vida. Deus carregou-me de graças para mim e para muitos outros..." (UCR 4. 8. 3).

Falava de uma missão a cumprir a partir do céu, de um pequeno caminho a ensinar, do seu desejo de ajudar os sacerdotes, os missionários, de fazer amar o Amor. Suplicou ardentemente ao Senhor que escolhesse uma legião de pequenas almas que se atrevessem a crer sem resistência na sua inefável Misericórdia. É um fato que o esplendor de Teresa foi extraordinário e está hoje longe de se apagar.

É esta a razão pela qual se deve dar a palavra a Teresa. Um dos numerosos meios, assim o esperamos, será este álbum que procura situar, por meio da imagem e da exposição escrita, a experiência e o pensamento da jovem santa na sua evolução e ambiente históricos.

Não quisemos refazer o trabalho do P. Francisco de Santa Maria, apresentando unicamente todas as fotografias de O Rosto de Teresa de Lisieux. Tampouco cedemos à tentação de imitar a admirável obra documental de Pierre Descouvemont e de Helmuth Nils Loose, Teresa e Lisieux, e depois Santa Teresa de Lisieux, A Vida em imagens. O que estes autores descartaram expressamente é o que nós quisemos fazer: ilustrar a vida de Teresa e iluminá-la com a ajuda de um estudo profundo no seguimento da sua biografia.

Concebemos, pois, o nosso trabalho como um complemento em diálogo profundo com estes amigos, recorrendo para tal aos melhores especialistas.

A idéia inicial nasceu no seio da Ordem do Carmo e com o apoio do seu P. Geral, Camilo Maccise. É uma homenagem, muito limitada e muito externa, à nossa santa irmãzinha, a qual, desde há um século, tem sido para toda a nossa família, bem como para toda a Igreja, um sacramento de inumeráveis graças e um abismo de inspiração contemplativa e apostólica. Somente a ela, assim se nos apresenta Teresa, não como espiga granulada, mas como um vasto campo de trigo que nos alimentou abundantemente. Obrigado, Teresa.

Particularmente, este projeto foi levado a cabo pela Província carmelitana de Gênova. Os irmãos do Santuário do Menino Jesus, em Arenzano, com a sua revista ilustrada Messagero del Bambino Gesú di Praga, sentiram-se impulsionados a oferecer esta homenagem a Teresa do Menino Jesus. O livro enquadra-se na linha de obras análogas que têm Teresa de Ávila por objeto (Inquieta y andariega. La aventura de Teresa de Jesús), João da Cruz (Dios habla en la Noche. Vida, palabra y mensaje de San Juan de la Cruz) e El Monte Carmelo (Desde los orígenes a nuestros dias), no qual, os respectivos autores, Tomás Álvarez, Federico Ruiz, Silvano Giordano e Jerónimo Salvatico colaboraram nesta nova iniciativa.

Agradecemos de todo o coração aos eminentes colaboradores deste álbum, à comunidade das Carmelitas de Lisieux, bem como às casas editoriais responsáveis das versões italiana, inglesa, alemã, espanhola, holandesa, polaca e catalã.

Estimados leitores, que Teresa, por meio das páginas que tendes nas vossas mãos, continue a comunicar-vos a sua palavra de graça, tomando mais viva a realidade e a beleza de Jesus, do qual quis honrar a humildade da sua infância e a beleza do seu rosto, resplandecentes de Misericórdia e de Fidelidade.

CONRAD DE MEESTER

GIROLAMO SALVATICO

SILVANO GIORDANO

Carmelitas.

As siglas remetem para as obras descritas na bibliografia que está no fim do volume.

Ms A; Ms B; Ms C: manuscritos autobiográficos de Teresa.

Ct: Lettres (Cartas).

PN: Poésies (Poesias).

Or : Prières (Orações).

RP: Récréations pieuses (Recreações piedosas).

UCR: Últimos Conselhos e Recordações.

DE: Demiers entretiens (Últimas conversas) ; os números indicam, por ordem, o dia, o mês, o número da frase. Por exemplo, DE 31. 8. 9: significa o dia 31 de Agosto, a frase número 9; às vezes, indica-se a página.

DE II: resumo de DE, conhecido como "Últimas palavras", ao qual se segue a data.

CG: Correspondance Generale (Correspondência geral), edição crítica.

CF: Correspondence familiare (Correspondência familiar).

CSG: Conseils et Souvenirs de soeur Geneviêve (Conselhos e Lembranças da irmã Genoveva).

PA: Processo Apostólico.

PO: Processo do Ordinário.

CAPÍTULO 1

A FILHA DE LUÍS E DE ZÉLIA

CONRAD DE MEESTER ocd

Alençon, rua de São Brás, número 36. Na quinta-feira, dia 25 de Junho de 1874, Zélia Martin acabava de receber a visita das suas trabalhadoras. É a chefe da sua "fábrica de renda de Alençon" e, todas as quintas-feiras, quando as bordadeiras vão ao mercado semanal e levam o trabalho feito, pequenos pedaços de 15 x 20 cm, Zélia tem que enlaçá-los às pressas, conforme o pedido que lhe é feito pelas lojas parisienses.

Para descansar, Zélia, tão hábil com a pena como com a agulha, escreve às suas filhas mais velhas, Maria e Paulina, colegiais no convento da Visitação de Le Mans, onde é freira a sua única irmã, Maria Luísa Guérin.

Cinco filhas, é demasiado. Mas, demasiado pouco! Como Zélia teria gostado de conservar os seus dois filhos e as suas duas filhas que a morte arrancou ao seu amor maternal. Das cinco que lhe restam, Maria e Paulina têm, respectivamente, catorze e treze anos e prometem muito. Leônia, a terceira, tem onze anos, de temperamento bastante arisco e obstinado, causa-lhe preocupações contínuas. A seguir, vem Celina, de cinco anos, e Teresa, a mais nova, de ano e meio, a jóia do seu coração.

O coração de Zélia está constantemente com as suas filhas. Neste momento, as duas mais novas brincam no jardim com o papai, o seu esposo, Luís. "O vosso pai acaba de instalar um balanço — escreve —, a Celina está fora de si de contente, mas a pequena a balançar-se, só vendo [Teresa]; dá vontade de rir, porta-se como uma menina grande, não há perigo que se solte da corda e, quando não está bem atada, ela grita. Prendemo-la com outra corda pela frente e, apesar disso, não estou sossegada quando a vejo empoleirada lá em cima..."

Como poderá compartir Teresa esta inquietação? Não está ali o seu papai, o seu "rei", do qual, a cada volta do balanço, sente a sua mão forte que, com demasiada doçura, a empurra para a frente? E, opa! Mais alto!

Assim é ela, a pequena. Sempre mais alto! Um dia comparará a santidade com o cume de uma montanha. Mais alto! Até ao céu, se é possível! Porque nesta casa da rua de São Brás fala-se frequentemente do céu. É o objetivo formal das suas vidas. Os Martin têm, em definitivo, os costumes dos espirituais realistas.

Luís sorri ao ver a alegria e a confiança da criança, a nona filha... Como partilha o que sua esposa escreve sobre a pequena nas suas longas cartas a Maria e a Paulina, ou à freira de Le Mans e ao seu irmão Isidoro Guérin, farmacêutico em Lisieux. "Parece muito inteligente... Será bonita e já é engraçada" (CF 117) "Cada dia é mais engraçada, está a balbuciar desde a manhã até à tarde" (CF 118). "É muito inteligente e tem conversas muito agradáveis. Já sabe rezar a Deus" (CF 130).

Mais alto! Por fim, a pequena Teresa cansa-se. Pois nunca se chega tão alto como ela queria... E, de repente, diante dos olhos do seu coração "amável e sensível" (Ms A 4v) abre-se outro mundo: a sua mamãe.

Luís, o peregrino

Ela tem razão, pensa Luís, ao procurar a sua mãe! Que esposa... Como poderia tê-la imaginado há dezesseis anos! Tinha então trinta e cinco anos e não pensava casar-se, pois encontrava-se bem como celibatário.

Nascera no dia 22 de Agosto de 1823 em Bordéus, onde estava acampado o batalhão do seu pai, Pierre Martin, capitão do exército francês, retido em Espanha por causa de uma campanha no momento do nascimento de Luís. Deste modo, os militares e as suas famílias mudam de lugares. Aos quatro anos e meio voltamos a encontrar o pequeno Luís no outro lado de França, em Estrasburgo. Depois, aos sete anos e meio, vai para Alençon, na Normandia do seu pai. Sem dúvida estudou então com os Irmãos das Escolas Cristãs, mas os seus estudos parecem ter sido menos os de um aluno clássico do que de um autodidata que ama a literatura e aprende o alemão.

Luís Martin é conhecido, sobretudo, pela descrição que dele fez a sua filha Teresa, na sua autobiografia: um velho venerável e muito piedoso, que adora as suas filhas, um pouco sonhador e que vive das suas rendas. Este é "Luís Martin II". Luís Martin I, pelo contrário, é o jovem que com perseverança e suave constância descobre o seu caminho, elabora pacientemente um projeto e ganha um lugar na sociedade. Aos dezenove anos, abandona Alençon e passa longos períodos como aprendiz de relojoeiro com a família ou em casa dos seus amigos: um ano em Rennes, quatro em Estrasburgo, três em Paris, onde vive a turbulenta revolução de1848, com a abdicação do rei Luís Filipe e a eleição do presidente da república Luís Napoleão Bonaparte.

Filho de militares, Luís é homem da ordem e do dever cumprido, um animoso sempre disposto a intervir e a tomar decisões.

"Da idéia à sua realização, para mim não há muita diferença", escreverá mais tarde ao seu amigo Nogrix. Meditativo, profundamente religioso, leva consigo o sonho de abraçar a vida monástica — inclusive priva-se durante toda a sua vida do gosto de viajar —.Aos vinte anos, visita o mosteiro do Grande São Bernardo; aos vinte e dois, volta ali para solicitar a admissão entre os cônegos de Santo Agostinho. "Pensei sempre — dirá mais tarde à sua filha Celina — que, nos seus desejos de vida religiosa, com a sua eleição do Grande São Bernardo para viver nas alturas, longe do tumulto das cidades, não lhe era estranho a atração do perigo para acudir em ajuda dos viajantes em dificuldades nas neves".

Luís não foi recusado pelos monges; foi lhe pedido apenas que completasse os seus estudos. Começa, efetivamente, a receber aulas de latim com um professor particular. Depois de um ano e meio abandona estes estudos difíceis. Concentra-se totalmente na sua futura instalação como relojoeiro. Aos vinte e sete anos, em Novembro de 1857, compra em Alençon, no número 15 da rua da Ponte Nova, uma casa onde instala uma oficina e venda, à qual em breve acrescenta uma montra de joalharia. Leva os seus pais, já idosos, para junto de si, pois já haviam perdido três filhos, de nove, de vinte e cinco e vinte e seis anos.

Os seus negócios prosperam. Em sete anos, paga as dívidas contraídas e compra, nos arredores da cidade, um jardim com uma pequena torre hexagonal de dois andares: o "Pavilhão", que se converterá no seu lugar de oração e de leitura. Com o seu trabalho, as suas idas à pesca, os amigos do Círculo Vital Romet, as obras da paróquia e a missa diária, esta solidão parece tudo o que a sua alma pode desejar.

Mas faz sem consultar a sua mãe, inquieta ao ver que o seu filho continua solteiro. É ela quem lhe propõe casar-se com Paulina Romet, proposta seguida de um não categórico devido às idéias demasiado "liberais" da família Romet, como explicará Celina? Seja o que for, na vez seguinte Fanny Martin teve mais êxito. Na escola de renda de Alençon que ela freqüentava, vê Zélia Guérin, o diamante de quem fala insistentemente ao seu filho joalheiro.

Este estranho matrimônio feliz!

Emocionado, na quinta-feira, dia 24 de Junho de 1874, no jardim da rua de São Brás, Luís sorri recordando... Efetivamente, Zélia era outra coisa. Comprovara-o desde o primeiro encontro organizado: com Zélia não se enganaria. Mulher enérgica, de coração transparente, de espírito prático e ativa, é profundamente cristã.

Característico da sua alma religiosa e do seu desejo de abnegação ativa para com os pobres: um dia (com dezoito ou dezenove anos) tinha pedido para entrar nas Filhas da Caridade, as irmãs de São Vicente de Paulo que, no Hospital de Alençon, consagram a sua vida ao Senhor servindo os doentes hospitalizados. A superiora não lhe reconhece o dom da vocação. Zélia não insiste mais e compreende que a sua vocação será a de ser mãe de filhos que, se Deus quiser, se consagrarão a Ele. Mais tarde, poder-se-á ler, mais do que uma vez, na sua correspondência o desejo de ter um "santo" entre os seus filhos, e certamente um sacerdote missionário.

No dia 13 de Julho de 1858, na igreja de Nossa Senhora, à meia-noite (como costumava fazer com muita freqüência), Luís Martin, de trinta e cinco anos, e Zélia Guérin, que tem vinte e cinco, dão diante de Deus o seu sim recíproco. Trocam a sua promessa de fidelidade, cujo símbolo é o anel, e os seus corações com o primeiro olhar de casados.

Hoje, isto pareceria inverossímil... Era, no entanto, o caso de muitas mulheres naquela época, em que a sexualidade estava quase sempre rodeada de um mutismo total: Zélia, de coração escrupulosamente puro, embora desejasse ser mãe, não conhecia as realidades do matrimônio...

Grave choque emocional quando se dá conta. Luís comporta-se com tato delicado. De comum acordo e com candura, os casados decidem viver como irmão e irmã, em união de corações e de oração, a comunhão de bens. Não tinham sonhado os dois, noutro tempo, com a vida consagrada? Contudo, não procuram a facilidade de uma vida tranqüila, pois muito em breve acolhem na sua casa da rua da Ponte Nova uma criança de uma família muito pobre. Depois de dez meses — tempo suficiente para pensar —, e tendo falado novamente sobre este assunto com um sacerdote, decidem ter muitos filhos: serão nove.

Dificilmente o compreendemos. É tão ingênuo e belo ao mesmo tempo... Por um lado, onde está a lógica do matrimônio contraído por Zélia quase sem preparação? Por outro, que respeito pelo coração e pelo corpo de Luís, que força de espírito na espera e na renúncia! Fixos os olhos em Deus, querem consagrar-se a Ele; voltando a escutar o Senhor, tomarão a decisão de ter muitos filhos. Teresa, a nona, dar-se-á conta da dimensão da providência que dirigiu o seu nascimento: "Foi Ele que a fez nascer numa terra santa e como que toda impregnada de um perfume virginal" (Ms A 3v).

Zélia, a generosa

Quase vinte anos mais tarde, uns dias depois da morte da sua irmã visitandina, a seu quem visitaram no mesmo dia do seu matrimônio e à qual quinze dias depois aludira ao seu "segredo", Zélia recorda ao escrever à sua filha Paulina: "Teu pai tinha gostos semelhantes aos meus, julgo mesmo que o nosso afeto recíproco tinha aumentado por isso. Os nossos sentimentos eram sempre em uníssono e serviu-me sempre de consolação e apoio. Mas quando tivemos os filhos, as nossas idéias mudaram um pouco; não vivamos senão para eles, eram a nossa felicidade, nunca a encontramos em nós mas neles.

Enfim, nada nos causava pena; o mundo não era gravoso para nós; por isso desejava ter muitos, para encaminhá-los para o céu" (CF 192).

Voltemos à pequena Teresa. Nesta quinta-feira, dia 25 de Junho de 1874, cansada do balanço, procura a sua mamãe, o seu mundo de calor e de segurança: "eis que o bebê vem passar a sua mãozinha pela minha cara e abraçar-me" — escreve Zélia: "A pobre não me quer deixar, está sempre comigo; gosta muito de ir para o jardim, mas se eu não estiver ali, não quer ficar e chora até que ma trazem... Encanta-me ver que tem tanto carinho, mas às vezes é molesto! Sobretudo na quinta-feira, quando as operárias vêm entregar o seu trabalho de rendas!”

Na véspera, Zélia escrevia ainda à sua cunhada de Lisieux, a muito querida Celina Fournet, que desde o seu matrimônio com Isidoro será a senhora Guérin: "Teresa começa a falar quase perfeitamente. Torna--se cada vez mais meiga, e não é pequena carga, asseguro-lhe, porque está continuamente junto de mim e é-me difícil trabalhar. Por isso, para recuperar o tempo perdido, continuo o trabalho das rendas até às dez da noite e levanto-me às cinco. Tenho que me levantar uma ou duas vezes durante a noite por causa da menina. Enfim, quanto mais trabalho tenho, melhor me sinto".

Zélia gosta dos seus filhos. Teresa, a nona, tinha sido a grande bem-vinda. Quinze dias antes do nascimento da menina, a feliz mamãe confidenciava a sua cunhada: "Agora, todos os dias, estou à espera do meu anjinho... Se Deus me der a graça de a poder amamentar, será um prazer criá-la. Amo as crianças com paixão, nasci para ter filhos" (CF 83).

Esperar a pequena Teresa é como ser portadora de uma música profunda. Mãe e filha vibram em consonância, com dificuldade, se atreve a confidenciar à sua cunhada: "Enquanto a trazia comigo, dei-me conta de uma coisa que nunca me tinha sucedido com os meus outros filhos: quando eu cantava, ela cantava comigo... Conto-to, ninguém poderia acreditar em mim" (CF 85). Três anos depois escreverá: "Que feliz sou de a ter! Julgo que lhe quero mais que a todos os outros, sem dúvida porque é a mais pequena" (CF 158).

Ter filhos para os amar consolou em grande parte a Zélia da sua própria infância infeliz. Não se comportará com os seus filhos como sua mãe se comportou com ela... Três anos depois de se casar, Isidoro Guérin, militar, depois, polícia, e sua esposa Luísa Joana Mace, filha de um torneiro..., tiveram uma primeira filha Maria Luísa a futura visitandina. Dois anos e meio mais tarde nasceu Zélia, no dia 23 de Dezembro de 1831, quase bebê natalício. Nove anos e meio depois, nascerá o filho menor, Isidoro. Todos os filhos nasceram em Saint-Denys-sur-Sarthon, a doze quilômetros a noroeste de Alençon. Mas em 1844, a família muda-se para Alençon, rua de São Brás 36, onde nascerá a pequena Teresa.

O Summariam (II,91) da causa de beatificação de Zélia descreve os pais Guérin como sendo "cada um a seu modo, pessoas de caráter muito acentuado. Eram rudes, autoritários, exigentes. Contrariamente ao que se poderia imaginar, o marido era mais doce que a esposa, e os filhos que iam nascer da sua união seriam os primeiros a experimentar os efeitos deste contraste. A vontade exigente dos esposos Guérin apoiava-se, por outro lado, afortunadamente, no seu desvelo de integridade moral e de fidelidade religiosa. A sua influência na educação dos filhos seria grande".

Não há dúvida: Zélia sofreu muito com esta "vontade exigente" dos esposos Guérin. "Embora o desejasse ardentemente — refere a sua filha Celina — nunca, na sua infância teve bonecas, nem uma sequer. As freqüentes enxaquecas que sofria aumentavam este penoso ambiente". É evidente que a mamãe Guérin tinha mais preferências pela sua filha mais velha e pelo seu filho Isidoro do que por Zélia.

Zélia, que tanto gostaria de ter alguma boneca, gostava muito do seu irmãozinho Isidoro, o seu anjinho, o seu irmão mais novo do que ela dez anos. Mais tarde, quando Isidoro, já farmacêutico, tinha decidido instalar-se na longínqua Lisieux em vez da próxima Le Mans onde se poderiam visitar facilmente e onde estava já a sua irmã visitandina, Zélia, por sua vez, deixar-se-á levar por uma queixa amarga (queixa que não deve ser separada, nesta época, da grande felicidade de ser mamãe). Escreve, no dia 7 de novembro de 1865, a seu irmão independente: "Estou completamente desencantada. Via-te em Le Mans e teria gosto de te ir visitar de vez em quando; teria sido para mim um encanto na minha existência trabalhosa e monótona. Mas, que queres? É necessário renunciar a tudo; nunca na minha vida tive um prazer, o que se diz prazer nunca o tive. A minha infância, a minha juventude, foram tristes como uma mortalha, porque, se a minha mãe te mimava a ti, para mim, tu o sabes, era demasiado severa; embora sendo tão boa, não sabia tratar comigo; por isso o meu coração sofreu muito".

Se os pormenores se conhecem parcialmente, a Circular necrológica da sua irmã religiosa esboça, no entanto, um ambiente familiar no qual domina a figura da austera senhora Guérin, "simples e um pouco rústica, mas de uma fé robusta". O que na circular é dito para Maria Luísa pode ser aplicado, sem dúvida, a Zélia. Na família reinava uma "certa atmosfera de rigorismo, de tensão e de escrúpulo". A expressão é pecado, detinha a pobre filha [Maria Luísa] nas suas inclinações mais fortes (...) A senhora Guérin, que notava na sua filha este excessivo temor de ofender a Deus, servia-se um pouco exageradamente do ascendente da frase desmedida é pecado para reprimir as suas mais pequenas imperfeições. Maria trabalhava muito e divertia-se muito pouco".

Refere-se, em particular, como a pequena Maria Luisa, quando brincava ou dançava com outras crianças, "julgou cometer um grande pecado se se encontrava ao lado de um menino; evitava-o temerosa e o mais habilmente que podia, granjeando por vezes maliciosos gracejos sobre o que se chamava o seu caráter insociável".

Em tal ambiente, entende-se melhor a perplexidade e a moderação da sua irmã Zélia, ignorante na noite de bodas. Tato do seu marido, a sua presença tranqüilizadora, e depois uma melhor compreensão da obra do Criador prepararam-na para aceitar o matrimônio com toda a sua lógica. Mais tarde, a beleza do amor fecundo e a alegria dos filhos continuaram alargando o coração de Zélia.

As intuições

Voltemos agora ao passado de Zélia. Durante alguns anos, a situação financeira da economia do polícia aposentado encontrava-se seriamente comprometida; o trabalho das filhas tê-la-ia aliviado. Em 1848 (Zélia ia fazer dezessete anos) a casa da rua de São Brás sofre remodelações para abrir no andar inferior um pequeno café e, no primeiro andar, um salão de bilhar. Enquanto o aposentado se dedicaria por afeição ao trabalho de carpintaria, a sua mulher ocupar-se-á do café. Os esposos esperam conseguir assim, com a exploração de uma loja de bebidas, um indispensável complemento de recursos. Mas isto nunca se realizará. Levada pelo seu caráter intransigente, a senhora Guérin repreende os consumidores. Aos clientes não lhes são agradáveis as reflexões moralizantes, e procuram outros lados em busca de lugares de divertimento menos austeros (cf. Summarium II,91).

É assim como Zélia tem o dom da intuição, sem o poder explicar. Na véspera dos seus vinte anos faz uma novena à Virgem Imaculada para se orientar na eleição de um trabalho profissional: dá-se conta subitamente com clareza, neste dia 8 de Dezembro de 1850, como se lhe fosse ditado à Mãe da família de Nazaré. "Manda fazer ponto de Alençon"... O dia 8 de Dezembro será sempre para ela "um dia memorável: obtive duas vezes grandes graças neste dia", escreve (CF 16), "é para mim uma grande festa" (CF 147).

A idéia de Zélia não era, pois, a de fazer "ponto de Alençon", que entre os trabalhos de renda era considerado o mais belo e refinado, mas (aos seus vinte anos!) a de mandar fazer, isto é, pôr outras operárias ao seu serviço e reservar para si a união das distintas peças, emendando-as se fosse preciso. E "era preciso ser muito perita nas uniões para que a costura ficasse invisível, obstáculo e triunfo dos habilidosos", escreve o P. Piat (História de urna família, Oficina central de Lisieux, 1947, p. 42).

A mãe Guérin aprova o projeto de Zélia. Na condição, contudo, de que... a filha mais velha, Maria Luisa, leve a responsabilidade da empresa. As jovens não se relacionam com as famílias ricas de Alençon, terra, além disso, bastante pequena; será, pois, necessário encontrar saídas em Paris. Depois de constantes diligências, ganha a confiança da casa Pigache, da qual Zélia se converterá em fabricante fixa. Durante a Exposição industrial de Alençon, Zélia conseguirá pessoalmente os elogios do júri pela "beleza" das rendas, "a riqueza dos seus desenhos", e a sua "inteligente direção". Encontramo-nos agora no dia 20 de junho de 1858. Um mês mais tarde, Zélia casar-se-á.

A decisão concreta de se casar toma-a, também, depois de uma intuição fora do comum. As suas filhas recolherão a confidência. Um dia, ao atravessar em Alençon a ponte de São Leonardo que atravessa o Sarthe, quando passa um jovem distinto — que é Luis Martin —, o coração de Zélia sabe que "ele" será o eleito. Durante três meses, uma primavera Zélia e Luís voltam a encontrar-se, falam-se, estimam-se, querem-se com amor puro e profundo como dois lagos que se ladeiam. Decidem unir os seus corações e os seus pensamentos num destino comum ainda desconhecido, que julgam ser querido e guiado por Deus.

Uma vez casados, Zélia transfere a sua "oficina" para a casa do seu marido, rua da Ponte Nova 15, onde os pais Martin habitam o andar de cima. Pelo seu trabalho laborioso, coroado de êxito, encontram-se já bastante desafogados. Luís possui a casa com o jardim, bem como a pequena propriedade do "Pavilhão"; além disso, dos fundos do comércio da relojoaria contribui com 11.000 francos (que correspondem a uns 75.000 dólares americanos nos princípios de 1995). Zélia leva como dote e como fruto das suas poupanças pessoais cerca de 5.000 francos.

Felicidade e sofrimento de uns pais

Os filhos de Zélia não sofrerão o que ela sofreu: disso se encarregará ela. Porém, a vida ordena outra coisa... À feliz espera do primeiro bebê mistura-se a tristeza da breve doença, depois da morte da senhora Guérin, no dia 9 de setembro de 1859.

Contudo, é o momento para a vida que Zélia, pela primeira vez, com emoção, sente que se abre nela. No dia 22 de fevereiro de 1860 nasce a pequena Maria Luisa (chamada como a irmã de Zélia que, três meses depois, professou na Visitação). Na vida quotidiana a pequena chamar-se-á "Maria", por abreviação. Os nove filhos de Zélia levarão como primeiro nome, o nome de Maria. No dia 7 de setembro de 1861, nasce Paulina. Depois, no dia 3 de junho de 1863, Leônia. Estas três primeiras filhas, as quais pôde criar pessoalmente, chegarão aos 80, 90 e 78 anos, respectivamente.

Profunda dor, quando não consegue criar suficientemente a sua quarta filha, Helena, que nasce no dia 13 de outubro de 1864, e que é necessário entregar a uma ama. Zélia começa já a "sofrer de um gânglio no peito" (CF 13), que acabará por se converter num câncer do qual morrerá três anos depois.

Insistimos um pouco mais sobre o amor de Zélia pela menina ausente. Zélia conta no dia 12 de janeiro de 1865: "A menina Helena cresce muito, é bela como um anjo. Fui vê-la no primeiro dia do ano, digo-te que muito em segredo; penso continuamente nela. A ama é boa e cheia de saúde" (CF II).

No dia 5 de março: "Fui ver na terça-feira passada a minha filha Helena. Saí sozinha às 7 da manhã, por causa do vento e da chuva que me acompanharam à ida e à volta. Imagina o meu cansaço durante o caminho, mas sustinha-me o pensamento de que em breve ia ter nos meus braços o objeto do meu amor. A menina Helena é uma bela jóia, é bonita como um primor!" (CF 12).

"Fui ver, há quinze dias, a que está a ser criada fora; não me lembro de nunca ter experimentado um sentimento de felicidade semelhante ao momento em que a tomei nos meus braços, e ela me sorriu tão graciosamente, que julgava ver um anjo; enfim, não o posso exprimir; julgo que até agora não vi e nunca verei uma filhinha tão encantadora. A minha Helenazinha, quando terei a alegria de a ter totalmente? Não posso imaginar ter a felicidade de ser a mãe de uma criatura tão deliciosa!... Oh, bom! Não me arrependo de estar casada" (CF 13).

No dia 26 de junho de 1865 morre o avô Pierre Martin. "Morreu como um santo — escreve Zélia —, tal vida, tal fim". Como com um pressentimento de tudo o que vai vir a seguir, fica muito impressionada: "Nunca teria acreditado que isto poderia causar-me tanto efeito: estou aterrada, a minha pobre sogra passou noites inteiras cuidando dele durante dois meses e meio sem aceitar que alguém a ajudasse (...) Confesso-te que a minha morte me espanta. Acabo de ver o meu sogro, tem os braços tão rígidos e o rosto tão frio! E dizer que verei os meus assim ou que eles me verão!" (CF 14).

Sucedem-se as maternidades. Grande alegria, no dia 20 de setembro de 1866, com o nascimento do menino Maria José; por fim, o rapaz que poderá ser sacerdote e missionário. Por desgraça, tem que o entregar também a uma ama, uma jovem camponesa de Semallé — povoação a 13 quilômetros de Alençon —, Rosa Taillé, que na família se chama "Rosinha" e a quem um dia se lhe confiará a menina Teresa.

"Acabo de ver o meu menino José", escreve a orgulhosa mãe no dia 18 de novembro de 1866: "Oh, que grande e forte está o pequenino! É impossível desejar algo melhor. Nunca tive um filho que crescesse tão bem, exceto Maria. Ah, se soubesses como amo o meu pequeno José! Julgo que sou totalmente feliz!" (CF 19).

Mas, em breve a angústia! "Tive a felicidade de ver o meu pequeno José no primeiro dia do ano. Como presente vesti-o como um príncipe (...) No dia seguinte, pelas três da manhã, ouvimos chamar fortemente à porta; levantamo-nos, vamos abrir e dizem-nos: "Vinde depressa, o vosso filhinho está muito mal, tememos que venha a morrer". Sabes que nunca demorei muito em vestir-me e eis-me a caminho do campo, a noite mais fria, apesar da neve e do gelo do caminho. Não pedi ao meu marido que me acompanhasse, não tinha medo, teria atravessado sozinha um bosque, mas não quis deixar-me ir sem ele. O pequenino tinha uma forte erisipela, e o aspecto era lamentável. O médico disse-me que estava em grave perigo; enfim, eu via-o já morto... Mas Deus não me tinha feito esperar tanto um filho para mo tirar tão cedo e quis deixar-mo; agora está muito bem de saúde" (CF 21). Desgraçadamente, um mês depois, no dia 14 de fevereiro, o primeiro filho de Zélia e Luís morre... Adivinha-se a ferida do coração dos seus pais.

Não será o único luto na família. Depois de um nascimento difícil e de contínuas doenças, um segundo filho, outro "José, (José João Baptista), entregue também a"Rosinha" para que o crie, morre no dia 24 de agosto de 1868, aos oito meses. "O meu queridinho José morreu esta manhã, às sete", escreve Zélia ao seu irmão. "Estava sozinha com ele. Passou uma noite de terríveis sofrimentos e pedia com lágrimas que se visse livre deles" (CF 36). Nove meses depois, morre o senhor Guérin, o policial aposentado, pai de Zélia... "tenho o coração ferido de dor e, ao mesmo tempo, cheio de celestial consolação. Se soubesses com que santa disposição se preparou para a morte (...) O seu túmulo estará muito perto do dos meus dois filhos José" (CF 38).

No dia 28 de abril de 1869, nasce o sétimo filho, Celina (a futura irmã Genoveva). Porém, dor dilacerante a de Zélia e a de Luís, no dia 22 de fevereiro de 1870 morre inesperadamente a pequena Helena, com cinco anos de idade e quatro meses. "Enquanto a sustinha, a sua cabecinha caiu sobre o meu ombro, os seus olhos fecharam-se, em cinco minutos já não vivia... Isto causou-me uma impressão que nunca esquecerei. Não estava à espera deste desenlace brusco, nem tampouco o meu marido. Quando entrou e viu a sua pobre filhinha morta, pôs-se a chorar gritando: "minha Helenazinha, minha Helenazinha!". Depois, juntos, oferecemo-la a Deus (...). Vesti-a e coloquei-a no caixão, julguei que ia morrer, mas não queria que os outros lhe tocassem" (CF 52). "Não há um minuto que não pense nela (...). Enfim, está no céu, mais feliz do que aqui embaixo, mas quanto a mim, parece-me que desapareceu toda a minha felicidade" (CF 54).

Enquanto tudo isto acontece, Zélia está novamente grávida. Ao ser a mortalidade um açoite sem piedade numa época na qual a medicina tinha que avançar muito, esta primeira "Teresinha" (Maria Melânia Teresa), que nasce no dia 16 de agosto de 1870, morreu cinqüenta e três dias depois...

"Ficaria tão contente de ter outra”, escreve Zélia nove meses depois desta morte da qual "jamais se consolará" (CF 66), e esta outra filha chamar-se-á "Teresa, como a minha anterior menina" (CF 85).

E as provações não acabam... Até nos últimos meses da sua vida, Zélia terá que preocupar-se do caso da sua Leoniazinha, a filha diferente das outras, menos capacitada, o patinho silvestre que foge de todo o bom conselho, Leônia a original, a inesperada que mais tarde, depois de três fracassos de vida religiosa, chegará a ser religiosa na Visitação, onde será o modelo acabado do "pequeno caminho" que Teresa lhe ensinou.

Na confiança de cada dia

O ano de 1870 é muito agitado para a família Martin. Morre a pequena Helena. Nascimento e morte da pequena Teresa Melânia. Venda da relojoaria do pai ao seu sobrinho Adolfo Leriche, enriquecido por uma avultada herança. As preocupações que se seguiram à mudança (que terá lugar em julho de 1871) da rua da Ponte Nova, número 15, para o número 36 da rua de São Brás. Guerra franco-alemã com a ocupação da França. Luís está disposto a defender a sua pátria: "Ainda será possível que façam marchar os homens de quarenta e cinco anos, quase o espero. O meu marido não se comove nada, não pediria nenhuma graça para não ir e diz frequentemente que se fosse livre, se alistaria imediatamente nos franco-atiradores" (CF 62). Ameaça constante de uma invasão a Alençon pelos prussianos, que, efetivamente — "em número de vinte e cinco mil, não poderia descrever-vos a nossa intranqüilidade (...), o meu marido está triste, não pode nem comer nem dormir" —, ocupam a cidade em Janeiro de 1871. Os Martin acolhem a nove prussianos, "nem maus nem ladrões"; mas, um horror!, "comilões como nunca vi, comem tudo sem pão. Comem um guisado de cordeiro como se fosse uma sopa" (CF 110).

Sorrimos, à distância. Para os Martin, trata-se de contínua inquietação, sublimada pela "firme confiança de estarem apoiados pelo alto" (CF 65). Os acontecimentos políticos no país chocam profundamente com estas pessoas católicas convencidas. "Tudo o que se passa em Paris—escreve Zélia no dia 29 de maio de 1871 — entristece a minha alma: acabo de saber da morte do arcebispo e de sessenta e quatro sacerdotes fuzilados ontem pelos partidários da Comuna. Estou completamente transtornada por estas coisas" (CF 66). Se a família não conhece a pobreza ("temos mais do que necessitamos para viver e educar os nosso filhos; de outro modo, continuaria com a renda de Alençon" (CF 54), nunca faltam as preocupações materiais. São inerentes ao comércio que tem de "mudar", caso contrário, perde-se o lugar; são inerentes às doenças dos filhos, aos problemas da educação, ao futuro destas cinco meninas que Luís e Zélia ainda não animam para o convento e para as quais há que preparar o dote do amanhã.

Mas as preocupações e os esforços são integrados pelos Martin numa visão profundamente cristã. O abandono em Deus e a confiança, a oração diária e o jejum eclesiástico, a santificação do domingo e a vida litúrgica, a honradez comercial e a estima dos operários, a ajuda aos necessitados e o compromisso concreto pelos desfavorecidos: tudo isto é sagrado para eles.

E eis que em 1872 esperam um nono bebê, o primeiro que nasce na casa da rua de São Brás, diante da prestigiosa Prefeitura, onde Teresa irá mais tarde brincar com Genny Bechard, "a filha do governador" (Ms A 9v), do mesmo modo que os seus primeiros passeios em família a conduzirão à igreja paroquial de Nossa Senhora, às clarissas da rua da Meia Lua e à estação da qual partirão e voltarão Maria e Paulina, colegiais na Visitação de Le Mans. Um pouco mais tarde as excursões familiares orientá-la-ão para as povoações dos arredores e ao "Pavilhão", onde o papai se distrai com a pesca no Sarthe enquanto Teresa se interessa pelos morangos... Mas não nos antecipemos muito.

A florzinha ameaçada

Que felicidade quando no dia 2 de janeiro de 1873, às 23:30h., dois anos e meio depois da morte de "Melânia Teresa", nasce esta outra "Teresa", que chega como um dom, fruto tardio do seu amor conjugal. Zélia, que está no princípio dos seus quarenta e dois anos ("a idade em que se é avó", CF 83) quando Luís tem já cinqüenta, já não esperava "ter mais filhos" (CF 66). Dom e, ao mesmo tempo, "surpresa, porque esperava um menino. Tinha-o imaginado a partir dos dois meses, porque sentia muito mais forte que os meus outros filhos" (CF 84). Como Zélia teria rezado para que o seu filhinho chegasse a ser um bom sacerdote, um bom missionário...

A camponesa de Semallé

Durante mais de um ano, Teresa, que se recupera lentamente enquanto continua a ser sensível aos catarros, viverá no campo, na humilde casinha de Moisés e de Rosália Taillé juntamente com os quatro filhos do casal (Eugênio é o "irmão de leite" de Teresa), a vaca "Rosa" e as galinhas. Uma Primavera, um Verão, um Outono, um começo de Primavera... Alegria familiar, gritos de crianças, canto dos pássaros e do vento, vista e cheiro a frutos, flores, ervas e animais, pequenos passeios à igreja paroquial nos braços de Rosa. No Verão, a menina"Martin-Taillé", queimada pelo sol, é levada num carrinho pelos campos. Inclusive é montada na "Rosa".

A maior parte destes pormenores nos são sugeridos pela correspondência de Zélia, a mamãe à distância, que visita a sua menina aproximadamente de quinze em quinze dias, o coração cheio de mil idéias e sentimentos ("sofri muito na minha vida"), diz Zélia depois da partida de Teresa, (CF 90). Outras vezes é a Rosa que leva a menina a Alençon por ocasião do mercado semanal no qual ela vende os seus produtos.

Do mesmo modo que Teresa terá sentido profundamente a separação da casa natal, da sua mamãe, do seu papai, das suas irmãzinhas, está fortemente ligada a "Rosinha", à qual certamente chama de "mamãe", como as outras crianças. Testemunha disto são as passagens da correspondência frequentemente encantadora de Zélia. "Ontem, domingo, vimos a Teresinha. Não a esperávamos; a ama chegou com os seus quatro filhos. Pôs-nos a menina nos braços e a seguir foi à missa. Sim, mas a criança não queria isto, gritou até se cansar. Toda a casa estava desarrumada; tive que mandar a Luisa [a criada de casa] ir dizer à ama que voltasse rapidamente depois da missa (...) A ama deixou a missa no meio e acudiu, eu estava zangada, a criança não parava de gritar. Por fim, consolou-se num instante; está muito forte, todos estão admirados" (CF 99 — Teresa tem quatro meses).

"Iremos de segunda-feira a oito dias, de coche, ver a Teresinha; agora está muito forte. Vi-a na quinta-feira passada, trouxe-a a ama, mas não quer ficar conosco e grita fortemente quando não vê a sua ama. Deste modo, Luísa teve que a levar ao mercado onde a Rosinha estava a vender a sua manteiga, não há modo de a manter aqui. Quando viu a sua ama, olhou para ela rindo, e a seguir calou-se; ficou com ela, vendendo manteiga com todas as outras mulheres, até o meio-dia" (CF 102 — Teresa tem quase seis meses).

Teresa converte-se numa camponesa e tem os seus mesmos gostos. É esta a reação quando, aos seus onze meses, passa algumas horas na sua casa, na cidade. "A criança nem queria ver a Luísa nem ir com ela, eu estava muito ocupada; chegavam operárias a cada momento, ia-a dando a uma e a outra. Gostava de as ver, inclusive mais do que a mim, e beijava-as repetidas vezes. Mulheres do campo, vestidas como a sua ama, é a gente que ela precisa. A senhora T. chegou quando uma operária a tinha nos seus braços. Quando a vi, disse-lhe: "Vamos ver se o bebê quer ir contigo". Ela, surpreendida, responde-me: "Porque não?" — Bom, faça a tentativa"... Estendeu os braços à criança, mas escondeu-se dando gritos mais altos, como se a tivessem queimado. Não queria que a senhora T. a olhasse mais. Rimos muito disto; enfim, tem medo da gente que veste à moda" (CF 112).

"Reflito - escreve a mamãe - e procuro tirar partido; tenho-te todo o dia no pensamento; digo-me: 'Neste momento ele está a fazer tal coisa'. Estou impaciente por estar a teu lado; amo-te com todo o meu coração, e vejo que o meu afeto aumenta pela privação que experimento da tua presença; ser-me-á impossível viver separada de ti" (CF 108).

Não é a Teresa, mas ao "seu querido Luís", a quem se dirige aqui, a partir de Lisieux, onde visita o seu irmão Isidoro e a sua cunhada, quando Teresa está em Semallé. Luís é o "homem santo" com quem ela é "sempre muito feliz": "torna-lhe a vida muito doce", é um marido como o "desejaria igual a todas as mulheres". Desta confissão, aos quatro anos e meio de vida de casados (Ct 1), não mudou nada onze anos depois, a não ser a sua vontade de "chegar a ser santa: não será fácil, há muito que desbastar e a madeira é dura como uma pedra" (CF 110).

Luís "esta impaciente por ter a Teresinha em casa" (CF 114). Pela segunda vez, a filha esperada intensamente. Zélia vê tudo azul e branco, como para um novo nascimento e um novo batismo. "Já lhe tenho preparado um vestido azul celeste, com uns sapatinhos azuis, um cinto azul e uma linda capa branca; será encantador. "Alegro-me antecipadamente de vestir esta "boneca" (CF 115). Teresa volta definitivamente para casa no dia 2 de abril de1874: "criança encantadora". "muito meiga e muito avançada para a sua idade" (CF 116), "admira-me a sua boquinha" (CF 117).

"Uma criança não sem defeitos"

"Muito meiga"? Há que vê-lo... A criança passa certamente por um novo período de desapego, esta vez de Semallé e da sua "Rosinha, mas em breve reencontra as suas raízes Martin, unindo-se fortemente à sua mãe: lembrar-se-ão as páginas em que Zélia, também ela fortemente unida ao "pequeno bebê", a descreve sentada no balanço ou "passando a sua mãozinha no rosto" da mamãe (CF 119). Porém, outras vezes, Teresa mostra-se capaz de "raivas espantosas" (CF 147), "rasgaria tudo" o que é um pouco delicado (CF 125). Aos três anos "o furãozinho "tão atordoado" mostra "uma teimosia quase invencível" (CF 159). E a sua linda "boquinha" pode gritar até "afogar-se" (CF 147).

Se a enternecida mamãe chega até premiar o "diabinho que é a alegria de toda a família" (CF 157) "uma natureza escolhida" (CF 195) - "pequena natureza angelical" (CF 201) -, mais tarde, a Santa distinguirá numa "natureza como a minha" um "grande amor-próprio": "quão longe eu estava de ser uma menina sem defeitos" (Ms A 8 r-v). Por outro lado, ao realçar o seu "amor ao bem" ("bastava que me dissessem que uma coisa não estava bem, para não ter vontade que me repetissem duas vezes", Ms A 8v), subscreve implicitamente os louvores da mãe em matéria do "coração de ouro" (CF 159) da sua filha mais nova, que "não mentiria por todo o ouro do mundo" (CF 195).

Teresa é igualmente uma fina observadora, que capta as mensagens da vida. Escuta "com muita atenção" (Ms A 4v, 17v). "Sem o mostrar, dava muita atenção a tudo quanto se passava e dizia à minha volta, parece-me que julgava as coisas como agora- (Ms A 4v).

Com o passar dos anos, comprova que o seu "orgulho" natural e o seu "amor ao bem" inato, que a fizeram reagir positivamente aos conselhos pedagógicos recebidos, transmitiam uma ação secreta de Jesus, que "soube tirar proveito de todos os seus defeitos que, dominados a tempo, lhe serviram para crescer na perfeição" (Ms A 8v).

Admiráveis os testemunhos de Teresa em relação aos "anos cheios de sol" da sua infância: "A virtude tinha encantos para mim e estava, parece-me, nas mesmas disposições em que estou agora, tendo já um grande domínio sobre as minhas ações". A santa acrescenta que "tinha adquirido o bom hábito de nunca se queixar, mesmo quando lhe tiravam o que era dela; ou então, quando era acusada injustamente, preferia calar-se e não se desculpar, o que não era mérito seu, mas virtude natural" (Ms A 11v). As exceções confirmam a regra.

Reconheçamos que a menina Martin encontrou na sua mamãe uma educadora espiritual de primeira classe, elevando o coração da sua filha "para Deus desde o seu despertar" (Ms A 40r). Zélia orientou a liberdade de Teresa, pondo e voltando a pôr esta criaturinha no bom caminho. A boa semente florescerá abundantemente: "Amava muito a Deus e oferecia-lhe muitas vezes o meu coração servindo-me da formulazinha que a mamãe me tinha ensinado" (Ms A 15v).

Teresa é consciente de tudo quanto deve a estes "pais incomparáveis" (Ms A 4r), aos quais, cheia de veneração, julgará "mais dignos do Céu do que da terra" (Ct 261). "Aprouve a Deus rodear-me de amor toda a minha vida. As minhas primeiras recordações estão marcadas pelos mais ternos sorrisos e carícias! Mas, se colocou junto de mim muito amor, também pôs muito dentro do meu coraçãozinho, criando-o amante e sensível, e assim eu amava muito o Papai e a Mamãe e testemunhava-lhes a minha ternura de mil maneiras" (Ms A 4v). De que mudanças foi testemunha a casa da rua de São Brás!

O sol se põe

Levar-nos-ia muito tempo o relato da doença que levou Zélia à morte. Desde há mais de doze anos que sofre de um caroço no seio, que degenerou lentamente num câncer extremamente doloroso. Consulta o médico e toma consciência bruscamente da cruel verdade da sua morte iminente e da inutilidade de uma intervenção cirúrgica. A família fica consternada. Zélia quer viver ainda alguns anos a mais para acabar o seu trabalho de educadora, sobretudo por causa de Leônia, a filha das suas preocupações intermináveis, na qual, contudo, nota grandes progressos. Vai em peregrinação a Lourdes com Maria e Paulina, mas o milagre não se realiza. Com realismo e abandono, a mamãe, compreende que está convidada para outra parte por outra Mamãe: "Que quereis? Se a Santíssima Virgem não me cura, é porque se cumpriu o meu tempo e Deus quer que eu descanse noutro lugar diferente da terra" (CF 217). Teresa anota em silêncio "todos os pormenores da doença" (Ms A 12r). No dia 28 de agosto de 1877, Zélia torna-se a "nossa mãezinha no céu" (Ms A 12v). A sua filha da terra sofrerá terrivelmente a sua falta.

A mesma Teresa indicará mais tarde a profunda ruptura que o desaparecimento desta "incomparável mãe" (Ms A 4v) deixou nela, na idade tão vulnerável de quatro anos e oito meses. A ternura conjunta do seu papai e das suas irmãs nunca a poderão remediar totalmente.

Naquele momento, Teresa "não dizia a ninguém os sentimentos profundos que experimentava" na última despedida e "não me lembro de ter chorado muito" (Ms A 12v).

Mas o que não se exprime com palavras nem com lágrimas dos olhos, exprimir-se-á na sua psicologia com as lágrimas interiores. "Desde a morte da Mamãe, o meu caráter alegre mudou completamente; eu, tão viva, tão expansiva, tornei-me tímida e calma, excessivamente sensível" (Ms A 13r).

A terra na qual Zélia e Luís semearam terá que ser ainda durante muito tempo regada pelas lágrimas da dor e pelo orvalho da graça, antes que a menina Martin chegue a ser Santa Teresa do Menino Jesus e da Santa Face.

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A FRANÇA CATÓLICA DURANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX

STEPHANE MARIE MORGAIN ocd

Quando João Maria Marta Feretti recebe o nome de Pio IX em 1846 para suceder a Gregório XVI na Sé de Pedro, a França católica continua a sofrer a onda de anticlericalismo provocado em 1830 e particularmente virulento nas províncias. O ano de 1846, é igualmente marcado pelo êxito eleitoral da parte dos partidos católicos, apesar do fracasso dos projetos sobre a liberdade de ensino. A monarquia de Julho, contemporânea da revolução industrial e da aceleração do progresso técnico, testemunha a ascensão da grande burguesia da empresa e da constituição de um proletariado lamentável. O desenvolvimento de um catolicismo liberal e do movimento socialista vai favorecer um programa social e democrático dos primeiros "católicos sociais". L'Ere nouvelle, jornal dos republicanos católicos, será o lugar de colaboração de um Frédéric Ozanam (1813-1853), que desde 1833 se dedica, juntamente com outros, a praticar a abnegação de si mesmo e o amor ao próximo por meio das"Sociedades de caridade", conhecidas pelo nome de"Sociedade de São Vicente de Paulo", e de um Henri Lacordaire (1802-1861), famoso pregador dominicano e chefe de fila do catolicismo liberal com Charles de Montalembert (1810-1870). Esta corrente, separada de Felicité de Lamennais (1782-1854) e de L'Avenir desde 1832, move-se paralelamente à de Philippe Buchez (1796-1865), inspirador do socialismo cristão e diretor do jornal católico L'Européen.

Depois da revolução de Fevereiro de 1848, os católicos dão a sua confiança ao príncipe Luís Napoleão (1808-1873), eleito na Assembléia constituinte em Abril, porque podia defender os interesses da religião (a questão romana e a liberdade de ensino). No dia 10 de Dezembro foi eleito para a presidência da II Republica, apoiado pelo partido da Ordem (monárquicos e republicanos conservadores). Deixa que os conservadores da Assembléia legislativa (eleita no dia 13 de maio de 1849) pratiquem uma política reacionária: a expedição a Roma, no dia 14 de julho de 1849, para restabelecer o poder temporal do papa, sem regular, no entanto, a questão romana; a lei Falloux (de 15 de março de 1850) que favorece o ensino confessional e que será muitas vezes modificada (1882, 1896); a limitação do sufrágio universal e a liberdade de imprensa em maio de1850. Nos fins de 1851, uma grande parte dos católicos, por desejo de preservação social e religiosa, pronuncia-se pelo regime nascido do golpe de estado.

A crise de 1848 deu lugar a divisões entre as diferentes correntes do catolicismo francês. Das dissensões entre Montalembert e Lacordaire, entre l'Ere nouvelle e o Ami de la Religion de Félix Dupanloup (1802-1878), das críticas do episcopado e dos amigos de Luís Veuillot (1813-1883) contra a lei de março de 1850, nasceram três tendências: reivindicação dos direitos da Igreja; equilíbrio entre estes direitos e as liberdades; harmonia entre a tradição e as aspirações modernas. Porém, os numerosos concílios provinciais mostram a vitalidade de uma Igreja na qual os clérigos tomaram consciência da necessidade de outros métodos pastorais para fazer frente à indiferença religiosa do povo.

A constituição de janeiro de 1852 permite a restauração do Império, proclamado no dia 12 de dezembro de 1852, depois de um novo plebiscito. Napoleão III começa por uma verdadeira ditadura, praticando uma política belicosa em relação à Crimeia e Itália em 1859, que lhe atrai a hostilidade dos católicos. Depois de uma tentativa de liberalização do regime (1859-1860), Napoleão III quis estabelecer um império parlamentar (princípios de 1870), o que produziu um recrudescimento de oposições. Durante este tempo, as relações diplomáticas entre a Prússia e a França não cessam de se deteriorar. Napoleão III decide, em julho de 1870, declarar a guerra à Prússia. A capitulação de Sedan (no dia 2 de setembro de 1870) marca uma importante etapa na história do país. Perante estes acontecimentos, o concílio Vaticano I, reunido em Roma por Pio IX no dia 8 de dezembro de 1869 teve que ser interrompido no dia 20 de setembro de 1870.

As diferentes crises reagruparam as formações políticas católicas mais sensíveis na defesa dos interesses da Igreja e mais próximas de um catolicismo social. O desastre de 1870 — a anexação da Alsácia-Lorena pela Alemanha — suscita uma paixão de zelo pela pátria e exalta a glória e a grandeza nacional. Um só objetivo, uma única ambição anima o coração dos franceses: a vingança. Tal atmosfera estimula a unidade nacional nos primeiros anos da III Republica, sobre a preferência por Alsácia-Lorena.

Depois de 1871 desenha-se uma relativa baixa de natalidade em relação aos outros países da Europa. As classes mais pobres do povo, particularmente os camponeses, ocupam demasiados homens para as quantidades produzidas. Situação que produz uma quebra no nível de vida. Por outro lado, o ensino técnico é ainda incapaz de fazer frente às necessidades, e as leis sociais não seguem o ritmo da deslocação da condição operária, devido ao desenvolvimento da indústria. Enfim, depois da capitulação de Sedan, empreende-se um esforço militar sem precedentes. O exército francês chega a ser tão numeroso como o da Alemanha (serviço obrigatório de cinco anos).

No final de 1871, depois de Paris ter aceitado o armistício, acossado pela fome e esgotamento, as eleições dão uma grande maioria aos conservadores agrupados em torno de Luís Afonso Thiers (1797-1877). Eleito na Assembléia nacional, que a partir de12 de fevereiro de 1871 se reúne em Bordéus, Thiers é nomeado chefe do poder executivo da Republica no dia 17 de fevereiro, e forma um governo que reside em Versalles. A política praticada por Thiers, ao não solucionar a reorganização administrativa do país, provoca a ira dos parisienses cuja situação econômica e social é catastrófica. As desonestidades do poder no cargo provocam a insurreição parisiense e a formação do contra-poder revolucionário da Comuna de Paris. Foi duramente reprimida durante a "Semana sangrenta" (22-28 de maio). Os católicos ficam desconcertados pelo violento movimento anticlerical que levou os partidários da Comuna a fuzilar o arcebispo de Paris, monsenhor Georges Darboy, juntamente com outros cinqüenta e três membros do clero. Mais ainda, quando a manifestação de dez mil franco-maçõns, que tinham chegado no dia 29 de abril de1871 para manter a Comuna e para animá-la a "aniquilar o infame". Nomeado presidente da Republica, Thiers é derrubado no dia 24 de fevereiro de 1873 pela maioria conservadora da Assembléia e substituído por Mac-Mahon (1808-1898) depois da tentativa abortada da restauração da monarquia.

Mac-Mahon chegou à presidência da República pela coligação monárquica da Assembléia. Durante o seu mandato, mantém a reação política e religiosa da Ordem moral e elege os seus ministros das fileiras monárquicos. Mas em duas ocasiões os republicanos ganham as eleições (1876-1877). Em janeiro de 1879 Mac-Mahon demite-se. As Câmaras elegem como sucessor a Jules Grévy (1807-1891) que procura praticar uma política hostil ao nacionalismo e à expansão colonial. Jules Ferry (1832-1893), então presidente do Conselho, dedica-se à reforma do ensino público: laicidade, gratuidade, caráter obrigatório do ensino primário, extensão do ensino secundário do Estado às jovens (1880-1881). OS católicos vêem, precisamente nesta política de laicização, um atentado contra a liberdade de consciência, embora a lei de 12 de julho de 1875 sobre o ensino superior livre, revogada por outro lado em 1880, tinha-os deixado satisfeitos. A onda de decretos anticlericais de 1880, que prevê a dissolução da Companhia de Jesus e o fechamento de duzentos e sessenta e um conventos, causa uma nova indignação entre os católicos.

Jules Ferry dá uma expansão importante à política colonial da França (Tunes, Madagáscar, Tonkim), que provoca a sua queda em 1885. Jules Grévy é reeleito, a seguir substituído, depois da sua demissão em 1887, por Sadi Carnot (1837-1894), que será assassinado em 1894. Crescem as tensões sociais e políticas. Alguns pensam em reatar as relações com os progressistas como em 1887. Leão XIII (1878-1903), papa desde 1878, procura por todos os meios incorporar os católicos na República a fim de reforçar o apoio diplomático da França, pois tem necessidade dele. Mas sobretudo porque compreendeu que, ao ser um fato a secularização, a Igreja não pode garantir mais uma política meramente anti-republicana sem prejudicar a evangelização. A alocução do cardeal Lavigerie em Argel (12 de dezembro de 1890), depois as intervenções diretas de Leão XIII, mostram o seu desejo de "adesão". As eleições de 1893 têm lugar sob o signo da adesão e do pensamento socialista. Casimir Perier (1847-1907), fortemente anti-socialista, contribui para a repressão dos movimentos operários e para a agitação anárquica. Atacado violentamente por Jaurès, demite-se em 1895. Continuam as mudanças de tendências políticas. Félix Faure (1841-1899) tenta governar com uma coligação monárquica e moderada. A Republica conservadora está no cargo quando rebenta o caso Dreyfus.

O crescimento do império colonial da França, característico desta época, mas já presente sob Napoleão III, explica o entusiasmo missionário que o País conhece. As congregações missionárias são então dignas de consideração, com Francisco Maria dos Libermann (1802-1852), fundador dos Missionários do Coração de Maria (1841), e Paulina Jericot (1799-1862), que interveio na origem da Obra da Propagação da Fé.

Neste ambiente político e social frágil e em plena mudança, a vida cristã encontra o seu terreno para propagar as suas devoções, o seu culto, as suas expressões de fé, as suas leituras e os seus representantes. O desenvolvimento das Ordens dedicadas ao ensino continuam a substituir no contexto da demo cratização do ensino as componentes da lei Falloux. A encíclica Rerum Novarum de 1893 mostra o compromisso da Igreja na questão social aplicada na obra de Léon Hamel ou nas Conferências de São Vicente de Paulo. O exemplo de Joana Jugan (1792-1879), fundadora das Irmãzinhas dos Pobres, encarna o amor de tantos cristãos no serviço dos mais necessitados.

Do mesmo modo, certas devoções como a do Sagrado Coração, pela sua autenticidade, não escapam a uma inevitável recuperação por parte de anti-republicanos e anti-franco-maçons, considerados como inimigos da Igreja. O pedido da consagração da França ao Sagrado Coração atrai a atenção da vontade dos católicos para restaurar a monarquia- embora esse desejo não tenha sido geral —, para pôr o papa à frente dos seus Estados — vontade expressa pelas numerosas peregrinações a Roma organizadas neste tempo —, para voltar à fé. A construção da basílica do Sagrado Coração de Montmartre é um modo de oferecimento da França católica para se reconciliar com Deus. "Salvai a França em nome do Sagrado Coração". A vida intelectual, política e econômica e o seu enfrentamento com as ciências e as novas filo sofias são condenadas em 1864 pelos oitenta erros mencionados pelo Syllabus.

A devoção mariana dos franceses fica patente nas aparições que salpicam todo o século: a medalha milagrosa, rua de Bac (1830), Nossa Senhora das Vitórias (1836), la Salette (1846), Lourdes (1858), 1854 — Pio IX define o dogma da Imaculada Conceição — e Pointmain (1871). As novas congregações colocam-se naturalmente sob a proteção da Virgem. O Tratado da verdadeira devoção à Santíssima Virgem de Luís Maria Grignion de Montfort está por todo o lado.

A fé popular é fortalecida por meio das procissões eucarísticas, das peregrinações, das missões paroquiais. Os retiros espirituais para homens desenvolvem-se especialmente a partir de 1871. Os patronatos, as obras da juventude, afetam todas as camadas do povo. Os católicos franceses alimentam a sua vida espiritual com a leitura da Bíblia, que conhece vinte edições entre 1781 e 1850, da Imitação de Cristo e dos livros litúrgicos (paroquianos, o Ano litúrgico de Dom Guéranger). Toda esta vida cristã, viva e fecunda, aberta a novos horizontes ainda inexplorados, é sustentada pela oração silenciosa de contemplativos que gera santos.

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A "RENDA DE ALENÇON"

Monsenhor GUY GAUCHER

Foi por volta de 1664 — sob a administração de Colbert — quando começou em Alençon a fabricação das célebres rendas que receberam o nome de "renda de Alençon". O ministro mandou vir de Veneza uma trintena de hábeis operárias para lançar a empresa.

O "ponto de Alençon" é confeccionado com fios de linho de extrema finura servindo-se de agulhas, quase imperceptíveis, combinadas com o fio. É feito totalmente à mão.

A renda é trabalhada às peças de 15 a 20 centímetros, num pergaminho verde perfurado, seguindo o desenho que se tem que reproduzir, e dobrado, de tela.

Começa-se por marcar o trabalho no pergaminho por meio de fios.

A seguir, fazem-se nesta marca os distintos pontos que o desenho tem. Há nove pontos distintos: cada peça – que - tem os nove pontos, mas os desenhos não os têm—deve passar novamente pelas mãos de nove rendeiras, especialistas cada uma num destes pontos. Trabalham em sua casa e uma delas é a enlaçadora, encarregada de enlaçar todas as peças acabadas de modo que o enlace não se veja. É a parte mais difícil. Mas, antes de se proceder ao enlace, é necessário desatar a peça; uma vez terminado, cortar, por detrás, os numerosos fios estendidos pela marca, depois levanta-se o enlace com cuidado. Com esse mesmo cuidado, há que tirar do enlace os fios inúteis e arrancam-se também, com a ajuda de umas pinças, as pontas dos fios que ficam enlaçadas no pergaminho, para que possam ser usadas novamente com o mesmo desenho.

Havia em Alençon escolas profissionais para iniciar as jovens no trabalho dos diferentes pontos. Nos colégios e instituições davam-se cursos com a mesma finalidade, a fim de desenvolver esta indústria que tornava famosa a cidade. Desgraçadamente, por causa do custo da mão-de-obra, que ocasionava preços muito elevados, esta famosa renda teve de ser muito simplificada.

Na direção da sua fábrica, a senhora Martin recebia as operárias, repartia-lhes o trabalho e controlava-as; trabalhava pessoalmente o tule, reparando com grande habilidade os rasgões que inevitavelmente se produziam, durante todas as manobras já indicadas, e refazia, se era preciso, o enlace.

O papel do Sr Martin era escolher os desenhos, que mandava compor com gosto pois era muito artista. Para este trabalho precisava viajar frequentemente a Paris, onde se ocupava igualmente dos abastecimentos e das encomendas que as lojas faziam. Além disso, era ele quem perfurava os desenhos no pergaminho, trabalho bastante duro, que se realiza numa almofada, com agulhas especiais.

No dia 3 de janeiro, Maria Francisca Teresa foi batizada na igreja de Nossa Senhora. A sua irmã mais velha, Maria, é a madrinha, o padrinho é um jovem de uma família amiga, Paulo Alberto Boul; os dois têm treze anos (o padrinho de Teresa morrerá dez anos mais tarde). Criança aparentemente "muito robusta" (CF 84-85), "bela" e que "já ri" aos doze dias (CF 85), Teresa está "sempre alegre" e "ri de boa vontade" (CF 88).

A alegria sempre nova do deslumbramento é minada muito em breve por "uma angústia continua..., não sei se o purgatório é pior do que isto" (CF 89). Quando Teresa Melânia morrera por culpa da "sua indigna ama", que a tinha deixado "morrer de fome", Zélia estava a dizer que "nunca mais", os filhos que ainda haviam de vir "não sairiam de casa" (CF 61). Assim pois, tentou amamentar de peito a sua nova filha, mas temendo que não fosse suficiente, quis "a ajuda de um biberão", depois de "não poder conseguir que voltasse a tomar o peito".

Entretanto, Teresa "bebe perfeitamente" (CF 85). Mas nos fins de fevereiro sofre "enterite", está "muito pálida" (CF 88). No dia 11 de Março, o doutor Belloc é radical: "Esta criança necessita urgentemente de ser amamentada, só isto a poderá salvar". Ao despontar o dia (Luis está de viagem), Zélia vai a Semallé buscar a "Rosinha", ama de leite que "lhe é conveniente em todos os aspectos". Desejaria vivamente que Rosa fosse viver com eles na sua casa temporariamente, mas não consegue senão "oito dias" — no caso da criança sobreviver —. Voltam para Alençon. Quando Rosa vê Teresa, abana a cabeça: não há nada a fazer... Zélia sobe ao seu quarto para rezar diante da imagem de São José. Quando desce, não acredita no que os seus olhos vêem: "a criança a mamar com toda a alma", mas que rapidamente cai "corno morta sobre a sua ama de leite". "Sentia que o sangue me gelava — escreve Zélia —, a menina aparentemente não respirava". Depois de um quarto de hora, "a minha Teresinha abre os olhos e começa a sorrir para mim" (CF 89): salva! Mas é necessário que a criança parta com a sua ama de leite...

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GENEALOGIA DE TERESA

A. Ramo paterno

Avô: Capitão Pedro Francisco Martin, nascido em Athis-de-l’Orne (Orne) a 16 de abril de 1777, falecido em Alençon no dia 26 de junho de 1865. Casado em Lyon no dia 4 de abril de 1818.

Avó: Maria Ana Fanie Boureau, nascida em Blois no dia 12 de janeiro de 1800, falecida em Valframbert (Orne) no dia 8 de abril de 1883.

Seus filhos: 1. Pedro Martin, nascido em Nantes no dia 29 de julho de 1819, desaparecido num naufrágio, em data desconhecida.

2. Maria Ana Martin, nascida em Nantes no dia 18 de setembro de 1820 (casada com Francisco Maria Burin no dia 8 de outubro de 1838), falecida em Argentan no dia 19 de fevereiro de 1846.

3. Luís José Alosio Estanislau Martin (pai de Teresa), nascido em Bordéus no dia 22 de agosto de 1828 (casado com Zélia Guérin no dia 13 de julho de 1858 em Alençon), falecido em Saint-Sébastien-de-Morsent (onde se encontra a quinta de le Musse), no dia 29 de julho de 1894.

4. Ana Francisca Fanny Martin, nascida em Alençon no dia 10 de março de 1826 (casada no dia 11 de abril de 1842 com Francisco Adolfo Leriche, que faleceu no dia 25 de maio de 1843; casada pela segunda vez no dia 28 de fevereiro de 1849 com Francisco Maria Burin, seu cunhado viúvo), falecida em Fécamp no dia 9 de outubro de 1853.

5. Ana Sofia Martin, nascida em Alençon no dia 7 de novembro de 1833, falecida no dia 23 de setembro de 1842.

PS: Teresa não conheceu, pois, a nenhum dos seus tios e tias do ramo paterno, e a sua avó só até aos seis anos.

B. Ramo materno

Avô: Isidoro Guérin, nascido em Saint-Martin-l'Aiguillon (Orne) no dia 6 de julho de 1789, falecido em Alençon no dia 3 de setembro de 1868. Casamento em Pré-en-Pail no dia 5 de setembro de 1828.

Avó: Luisa Joana Mace; nascida em Pré-en-Pail no dia 11 de junho de 1804, falecida em Alençon no dia 9 de setembro de 1859.

Seus filhos: 1. Maria Luisa Petronila Guérin, nascida em Gandelain no dia 31 de maio de 1829, falecida sendo freira visitandina (irmã Maria Dositeia) em Le Mans no dia 24 de fevereiro de 1877.

2)Azélia Maria (Zélia) Guérin (mãe de Teresa), nascida em Gandelain no dia 23 de dezembro de 1831 (casada com Luis Martin no dia 13 de julho de 1858 em Alençon), falecida em Alençon no dia 28 de agosto de 1877.

3. Maria Victor Isidoro Guérin, nascido em Gandelain no dia 2 de janeiro de 1841, falecido no dia 28 de setembro de 1909.

Isidoro casou-se em Lisieux no dia 11 de setembro de 1866 com Elisa (Celina) Fournet, nascida no dia 15 de março de 1847 em Lisieux, falecida no dia 13 de fevereiro de 1900 em Lisieux.

Seus filhos: 1. Joana, nascida em Lisieux no dia 24 de Fevereiro de 1868 (casada no dia 1º. de outubro de 1890 com o doutor Francis La Néele [1858-1916]. Não tiveram filhos. Falecida no dia 25 de abril de 1938 em Nogent-le-Rotrou.

2. Maria, nascida em Lisieux no dia 22 de agosto de 1870 (no Carmelo de Lisieux: irmã Maria da Eucaristia), falecida no dia 14 de abril de 1905.

3. Um filho (Paulo), nato-morto em Lisieux no 18 de outubro de 1871.

C. Irmãos e irmãs de Teresa

1. Maria Luisa, nascida no dia 22 de fevereiro de 1860, falecida no dia 19 de janeiro de 1940 (no Carmelo de Lisieux: Irmã Maria do Sagrado Coração).

2. Paulina, nascida no dia 7 de setembro de 1861, falecida no dia 28 de julho de 1951 (no Carmelo de Lisieux: irmã, depois Madre Inês de Jesus).

3. Leônia, nascida no dia 3 de Junho de 1863, falecida no dia 16 de Junho de 1941 (na Visitação de Caen: Irmã Francisca Teresa).

4. Helena, nascida no dia 13 de outubro de 1864, falecida no dia 22 de fevereiro de 1870.

5. José Luís, nascido no dia 20 de setembro de 1866, falecido no dia 14 de fevereiro de 1867.

6. José João Baptista, nascido no dia 19 de dezembro de 1867, falecido no dia 24 de agosto de 1868.

7. Celina, nascida no dia 28 de abril de 1869, falecida no dia 25 de fevereiro de 1959 (no Carmelo de Lisieux, Irmã Genoveva da Santa Face).

8. Melânia Teresa, nascida no dia 16 de agosto de 1870, falecida no dia 8 de outubro de 1870.

9. Maria Francisca Teresa, nascida no dia 2 de janeiro de 1873, falecida no dia 30 de setembro de 1897 (no Carmelo de Lisieux, onde entrou no dia 9 de abril de 1888: Irmã Teresa do Menino Jesus e da Santa Face).

PS: Todos os filhos Martin nasceram em Alençon (rua Ponte Nova, n. 15, exceto Teresa, na rua de São Brás, n. 36); têm todos como primeiro nome Maria.

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TERESA NOS FALA:

"Os anos cheios de sol da infância"

"Como era feliz nessa idade! Já começava a gozar a vida; a virtude tinha encantos para mim e estava, parece-me, nas mesmas disposições em que estou agora, tendo já um grande domínio sobre as minhas ações. Ah! como passaram rapidamente os anos cheios de sol da minha primeira infância, mas, que doce rasto deixaram na minha alma! Recordo-me com satisfação dos dias em que o papai nos levava ao Pavilhão; no meu coração ficaram gravados os mais pequenos pormenores... Recordo sobretudo os passeios de domingo, em que a mamãee nos acompanhava sempre... Sinto ainda as impressões profundas e poéticas que me brotavam na alma à vista dos campos de trigo, esmaltados de escovinhas e flores campestres. Gostava já dos largos horizontes... O espaço e os abetos gigantescos, cujos ramos tocavam a terra, deixavam no meu coração uma impressão semelhante à que ainda hoje sinto à vista da natureza... Muitas vezes, durante esses longos passeios, encontrávamos pobres, e era sempre a Teresinha a encarregada de lhes dar a esmola, com o que ela ficava muito contente" (Ms A 11 r- 11v).

"História primaveril de uma florzinha branca"

É a vós, minha querida Madre, a vós que sois duas vezes minha mãe, que venho confiar a história da minha alma. (...) Antes de pegar na pena, ajoelhei-me diante da imagem de Maria (aquela que nos deu tantas provas das maternais preferências da Rainha do Céu para com a nossa família), supliquei-lhe que guie a minha mão a fim de eu não traçar uma única linha que não lhe agrade. A seguir, abrindo o Santo Evangelho, os meus olhos depararam com estas palavras: «Jesus, tendo subido a um monte, chamou a Si os que Ele quis; e foram ter com Ele.» (Mc, 3, 13). Eis todo o mistério da minha vocação, da minha vida inteira e, sobretudo, o mistério dos privilégios de Jesus para com a minha alma... Ele não chama aqueles que são dignos, mas aqueles que Ele quer" (Ms A 2r).

"Durante muito tempo perguntei a mim própria porque tinha Deus preferências (...) Jesus dignou-se instruir-me acerca deste mistério. Pôs-me diante dos olhos o livro da natureza, e compreendi que todas as flores que Ele criou são belas, que o esplendor da rosa e a alvura do lírio não tiram o perfume à pequena violeta nem a simplicidade encantadora à margarida... Compreendi que, se todas as pequeninas flores quisessem ser rosas, a natureza perderia o seu adorno primaveril, os campos não ficariam esmaltados de florzinhas... Assim acontece no mundo das almas, que é o jardim de Jesus" (Ms A 2 r-v).

CAPÍTULO 2

A INFÂNCIA DE TERESA EM LISIEUX

Monsenhor GUY GAUCHER

A morte da sua mãe supôs um choque tal para a Teresinha de quatro anos e meio que necessitou de dez para se recompor. De momento, tudo o que pôde fazer foi lançar-se nos braços da sua irmã preferida, Paulina, e dizer-lhe: "Tu serás a mamã" (Ms A 13r). Acaba de terminar um período decisivo da sua vida. "Como passaram rapidamente os anos cheios de sol da minha primeira infância" (Ms A 11v).

Aos cinqüenta e três anos, Luís Martin encontra-se novamente sozinho, com cinco filhas menores para educar. O seu passado está enraizado em Alençon. Mas os laços familiares orientam-no para Lisieux, a noventa quilômetros da rua de São Brás. Os Guérin estão ali solidamente implantados, a sua farmácia prospera na praça de São Pedro. Isidoro é aqui um distinto católico muito conhecido. A sua mulher Celina, muito meiga e maternal, educa as duas filhas, Joana e Maria, e pensa que tem de ajudar o seu cunhado.

Depois de uma busca diligente, Isidoro Guérin escreve a Luís que encontrou uma casa ideal para as suas filhas, um pouco afastada da cidade, perto de um grande parque, numa colina. Bela residência com um grande jardim cercado de muros, os Buissonnets", como lhe chamarão as filhas Martin. O pai resigna-se, pelo bem delas, a abandonar os seus amigos. Vende os fundos do comércio da "renda de Alençon" e, em Novembro de 1877, a família instala-se na nova residência cujo arrendamento tinha sido assinado.

Teresa viverá aqui onze anos. "Não senti nenhuma pena ao deixar Alençon; as crianças gostam da mudança, e foi com gosto que vim para Lisieux" (Ms A I3v). Contudo, isto supôs uma profunda mudança na sua vida.

Chega no Inverno, e a uma cidade desconhecida de 18.600 habitantes. Cidade industrial (manufaturas de linho, telas de fio, curtidouros, cidade medieval pelas suas velhas casas com engastados, à sombra de bela catedral de São Pedro dos séculos XII-XIII. A música do 119 Regimento de infantaria (1.200 homens) toca em certas ocasiões no jardim público.

A situação econômica não é boa: miséria e desemprego afetam a povoação operária.

Mas, neste momento, Teresinha desconhece estas realidades. Está num mundo novo. Que contraste com a casa de Alençon, diante da Prefeitura, que dá para a rua onde passam cavalos e carruagens! Os Buissonnets são um jardim cercado. Além dos Guérin, não conhece ninguém. A família privada do seu elemento dinâmico, a mamã, estreitar-se-á à volta do pai que vai viver das suas rendas, ocupar-se do jardim. continuar a leitura, a meditação e a oração no belvedere, grande espaço do último andar com vistas para a cidade, sair com a filha menor, pescar nos arredores de Lisieux: em Ouilly-le-Vicomte, Rocques, Hermival... As filhas maiores, ajudadas pelas criadas que se irão sucedendo, ocupar-se-ão da casa e da educação das menores. Celina e Teresa.

Um longo caminho de libertação

Teresa escreverá pouco depois de entrar no "segundo período da minha existência, o mais doloroso dos três" (Ms A 13r), que dura até os seus catorze anos. Com efeito, Teresa dirá: "Desde a morte da mamã, o meu caráter alegre mudou completamente; eu, tão viva, tão expansiva, tomei-me tímida e calma, excessivamente sensível. Bastava um olhar para me fazer derreter em lágrimas; era preciso que ninguém se ocupasse de mim. Para estar contente; não podia suportar a companhia de pessoas estranhas e não reencontrava a minha alegria senão na intimidade da família" (Ms A 13r).

Tudo decorrerá mais ou menos bem enquanto fica amparada pelo calor desta intimidade familiar: não vai à escola. Maria e, sobretudo, Paulina ensinam-lhe os rudimentos do conhecimento com seriedade e rigor. A filha menor não é mimada. Cuida-se da sua vida espiritual: a oração em família tem muita importância, pela manhã e pela tarde, visita às igrejas lexovienses quando sai de passeio com o seu pai. A liturgia sustém o ritmo da vida: as festas são a alegria da "rainhazinha".

Poucos acontecimentos notáveis nesta vida totalmente simples, a não ser as maravilhas da infância para uma criatura tão sensível: a descoberta do mar um dia em Trouville (8 de agosto de 1878), tardes nos jardins normandos cheios de flores, ao lado do papai pescador. Jogos com a inseparável Celina, que tem três anos e meio mais do que ela.

A comunhão de Celina, no dia 13 de maio de 1880, será também um acontecimento para a sua irmãzinha: "Parecia-me que era eu que ia fazer a minha primeira comunhão. Creio que recebi grandes graças nesse dia, e considero-o como um dos mais belos da minha vida" (Ms A 25v). Efetivamente, Teresa sente já uma grande fome eucarística e, desde este momento, começa a preparar-se para a sua primeira comunhão, que será quatro anos mais tarde. A sua primeira confissão, com o abade Ducellier, neste mesmo ano, produzir-lhe-á uma imensa alegria. Identifica de tal modo o sacerdote com Jesus que queria dizer ao confessor que o ama com todo o seu coração. Dissuadem-na (cf. Ms A 16v). Em casa continua muito viva, com o seu temperamento: aborrecia-se com Vitória Pasquer, a criada que gosta de a provocar, mas ela chama-lhe "fedelho", mostrando assim o seu caráter (Ms A 16r).

Apenas um episódio surpreendente durante este período de criança: a "visão profética", um dia de Verão (1879 ou 1880), de "um homem vestido tal e qual como o papá, a cabeça estava coberta com uma espécie de avental" (Ms A 20r), que atravessava o jardim e desaparecia por detrás de uma sebe. Teresa viu de uma janela que dá para o jardim por detrás da casa. Mas Luís Martin estava então de viagem, em Alençon. Para tranqüilizar a criança, as suas irmãs e a criada revistam o bosquezinho, em vão. Muito mais tarde, recordando este misterioso acontecimento, verá nele um anúncio da doença do seu querido pai, a grande provação da sua vida.

Apega-se a quem, depois da morte da mamãe, lhe assegura uma ternura não só paternal, mas maternal. Tem medo de o perder também. Uma cumplicidade espiritual une a criança com o "patriarca" dos Buissonnets que tão bem anima os serões familiares. Só tem que olhar para ele para saber como rezam os santos. Terá sempre por ele uma grande veneração.

Na escola

Chega a hora da escola. No dia 3 de outubro de 1881, aos oito anos e nove meses, Teresa Martin toma o caminho da Abadia das beneditinas, no bairro de Saint-Désir, onde volta a encontrar a Celina, apelidada "a intrépida". "Ouvi dizer muitas vezes que o tempo passado no colégio é o melhor e o mais agradável da vida, mas, para mim, não foi assim: os cinco anos que lá passei foram os mais tristes da minha vida..." (Ms A 22r).

Muito pouco acostumada a relacionar-se — exceto os encontros com a família Guérin — a aluna descobre com certa angústia a vida social com meninas maiores do que ela, que têm inveja dela — frequentemente é a primeira da turma — e às vezes perseguem-na. Teresa chora em segredo. Os jogos ruidosos e violentos dos recreios desconcertam-na: prefere contar histórias, entreter-se com as alunas mais pequenas, enterrar pássaros mortos (Ms A 37r). As suas professoras acham-na tranqüila, simpática, um pouco escrupulosa, às vezes um pouco triste. O catecismo é o seu triunfo.

No regresso aos Buissonnets, explode de alegria: necessita desta atmosfera quente para se expandir. Às quintas-feiras não há aulas, joga com Celina e a sua prima Maria, mas só gosta de dançar contradanças na casa dos Guérin, com as primas Maudelonde. Prefere a leitura e ver estampas. Entusiasma-se com as façanhas das heroínas francesas, sobretudo com as de Joana d'Arc. Sonha que também ela nasceu para a glória: a de "se tornar uma grande santa" (Ms A 32r).

A perda de Paulina

Vai ser ferida por uma nova separação dramática. Paulina Martin acaba de tomar a decisão de entrar na vida religiosa. Tendo em vista o seu passado de colegial na Visitação de Le Maus, com a sua tia, irmã Maria Dositéia, pensa espontaneamente nesta Ordem fundada por São Francisco de Sales e Santa Joana de Chantal. Mas, no terceiro centenário da morte de Santa Teresa de Ávila (1882), quando assiste à missa na igreja de São Tiago, Paulina recebe uma inspiração: é chamada ao Carmelo. O de Lisieux está muito perto. A "pérola fina" — como lhe chama o seu pai — informa a sua família, mas particularmente a Teresa que, no Verão, ocasionalmente dá-se conta da notícia. Uma "espada" trespassa o seu coração: vai perder a sua segunda mamãe! "Ah! Como poderia exprimir a angústia do meu coração?... Num instante, compreendi o que era a vida. Até então não a vira tão triste, mas ela apresentou-se-me com todo o seu realismo; vi que não era senão sofrimento e separação contínua. Derramei lágrimas bem amargas..." (Ms A 25v).

Paulina explica-lhe como é a vida no Carmelo. A criança de nove anos escuta-a avidamente: esta vida só com Jesus, só para Jesus, atrai-a: "Senti que o Carmelo era o deserto onde Deus queria que eu me fosse também esconder... Senti-o tão intensamente que não restou a menor dúvida no meu coração". Tem a certeza de que Deus a chama. Objetar-se-á que se queria juntar com a sua mãe perdida. Mais tarde, relendo todos estes acontecimentos, Teresa afirmará com lucidez: "Queria ir para o Carmelo, não pela Paulina, mas só por Jesus" (Ms A 26r).

Na segunda-feira, dia 2 de outubro de 1882, as famílias Martin e Guérin acompanham Paulina à missa. A seguir, fecha-se a pesada porta do Carmelo: todas as filhas choram, sobretudo Teresa. Além disso, começa um novo ano! Os locutórios das quintas-feiras, nas quais toda a família vai visitar a Paulina, são para Teresa mais uma fonte de angústia do que de alegria. No fim da meia hora regulamentar, fica um minuto para falar com a sua "mãezinha": angústia e lágrimas.

Em dezembro, a aluna sente-se perturbada na sua vida escolar com fortes dores de cabeça, dores em distintas partes do corpo, o seu caráter é alterado; pede a Maria que tome o lugar de Paulina em relação a Teresa: a sua terceira mãe. Frequentemente discute com Celina, que tem então catorze anos e acha que ela "chora em excesso".

Estranha doença

Todos estes sintomas não são senão o prelúdio de um afundamento. Na Páscoa de1883, Luis Martin leva Maria e Leônia a passar a Semana Santa em Paris. Os Guérin acolhem as duas mais novas durante as férias.

Infelizmente, a conversa orienta-se para a senhora Martin e as recordações da vida de Alençon. Teresa não suporta tal evocação. Deitam-na na cama. Mas, quando o seu tio volta com as suas filhas de unia reunião no círculo católico, a sua sobrinha está a tremer de frio, agita-se muito. O farmacêutico inquieta-se a ponto de chamar, no dia seguinte, o seu amigo, o doutor Notta. O diagnóstico dele não é nada tranqüilizador: Doença muito grave, da qual nunca uma criança tinha sofrido". Não diz que tipo de doença é... Chamam à pressa os Martin que voltavam de Paris. Ficam consternados. Teresa não pode ser movida, ficará na farmácia. Multiplicam-se os sintomas alarmantes: alucinações, movimentos incontrolados de todo o corpo, debilidade, anorexia. A doente só pensa na sua irmã carmelita que tem que tomar o hábito no dia 6 de abril. É evidente que não pode ir à cerimônia. Contudo, levanta-se nesse dia e diz que está curada. É-lhe permitido sentar-se, antes da cerimônia, sobre os joelhos de Paulina, que agora é irmã Inês de Jesus.

Pode voltar para os Buissonnets. Mas, no dia seguinte, a recaída é mais grave: delírios, palavras incoerentes. Pede socorro. Morrerá ou ficará "doida"?

O doutor Notta prescreve-lhe banhos, que se tornam ineficazes. A família e o Carmelo rezam ardentemente por esta criança que parece perdida. Morrerá também, como os outros filhos? Mandam rezar uma novena de missas no santuário parisiense de Nossa Senhora das Vitórias, muito querido dos Guérin e dos Martin. A doente não está no quarto que habitualmente ocupa, mas no primeiro andar, no da sua irmã Maria. Muito perto dela, sobre a cômoda, colocaram a imagem da Virgem, aquela que uma senhora piedosa tinha oferecido a Luis Martin quando ainda era solteiro. A Virgem é a protetora da família e já tinha concedido graças a Zélia Martin.

Cura inexplicável

Chega o dia de Pentecostes, o 13 de maio de 1883. Leônia vigia a sua irmã no quarto. Como quase sempre, Teresa geme e chama indefinidamente: "Mamãe..., mamãe...", querendo que Maria fique a seu lado. A filha mais velha atravessa, por fim, o jardim. Mas a doente não a reconhece. Todas as suas irmãs se ajoelham à volta da cama. Acontece então o inesperado: "De repente, a Santíssima Virgem pareceu-me bela, tão bela como nunca vira nada tão belo: o seu rosto irradiava uma bondade e uma ternura inefáveis, mas o que me penetrou até ao fundo da alma foi o 'encantador sorriso da Ssma.Virgem'. Então todos os meus males se desvaneceram. Duas grossas lágrimas brotaram das minhas pálpebras e deslizaram silenciosamente pelas minhas faces; mas eram lágrimas de uma alegria pura..." (Ms A 30r).

Teresa está curada. O sorriso da Virgem tranqüilizou instantaneamente a doente. Levanta-se e, à exceção de dois pequenos incidentes somáticos, nada mais voltará a perturbá-la. É acolhida no locutório do Carmelo como curada milagrosamente. As perguntas das irmãs sucedem-se umas atrás das outras e confundem a criança: como era a Santíssima Virgem? Teresa tinha prometido guardar o segredo para ela, mas a sua irmã Maria, testemunha da cura, manda-lhe que fale. Como não lhe fazer caso? Infelizmente, a filha mais velha falará no Carmelo. Teresa sente um mal-estar interior que lhe durará muito tempo—quatro anos —, pois o que deveria ser sua alegria se converte num tormento: não traiu o segredo da Santíssima Virgem? Um nova dúvida começa a insinuar-se, acrescentando-se a esta: não se tinha tornado doente de propósito? Oportuna pergunta, pois tinha consciência de ter vivido uma espécie de desdobramento da sua personalidade. Esta "dor de alma" durará cinco anos. "Ah, o que eu sofri, só no Céu o poderei dizer!" (Ms A 31r).

Evidentemente, com a perspectiva do tempo, os psiquiatras perguntaram-se sobre a natureza de tal doença. Os diagnósticos nem sempre coincidem. Há acordo sobre a causa: o choque pela partida repentina da sua segunda mãe, Paulina, que reavivou a ferida não cicatrizada da morte da sua mamãe.

Profundo golpe para a sua personalidade afetiva que não se tinha refeito daquela dor, com uma mudança de caráter que transformou esta criança jovial, forte e expansiva numa pré-adolescente hipersensível, ensimesmada e tímida.

O doutor Guayral deu, em 1959, este diagnóstico: "Teresa apresentava um atraso afetivo devido à regressão causada pela perda da sua mamãe, e não compensada por uma educação suficientemente compreensiva" (Carmel, 1959, p. 93).

A discussão permanece aberta. Mas as explicações não devem ocultar a própria apreciação da mesma Teresa que, relatando a sua vida em 1895 — com vinte e dois anos — verá nesta doença uma ação que vinha certamente do demônio, furioso pela entrada de Paulina no Carmelo, "ele quis vingar-se em mim do mal que a nossa família lhe devia causar no futuro" (Ms A 27r).

Com a perspectiva do tempo, podemos pensar também que neste "futuro" a própria Teresa será um temível adversário do príncipe das trevas. Quem estará em condições de exprimir com perspicácia o sentido que contém no plano espiritual uma doença deste tipo, que precisa da ajuda da psiquiatria? Mais tarde, Teresa deu-se conta de que numa doença tão estranha" (Ms A 27v) se jogava um convite espiritual de grande importância no qual ela era, ao mesmo tempo, a protagonista e o campo de batalha. Por outro lado, nas duas "dores de alma" que a torturarão durante dois anos (podemos ver aqui as purificações, segundo São João da Cruz), o simples assombro diante de tais fatos procedem da sua juventude. Mas o Senhor tem os seus desígnios que escapam às investigações humanas. Teresa manterá sobretudo a convicção de ter sido salva por Deus numa situação sem saída.

A convalescente não se reintegrará na escola depois de tantas emoções. Consideram-na frágil, e durante muito tempo preocupar-se-ão da sua saúde e procurarão evitar-lhe qualquer contrariedade.

Não há nada melhor do que uma viagem para a fazer esquecer estes dias sombrios. Do dia 20 de Agosto ao 3 de Setembro, Teresa com dez anos e meio — faz a sua “entrada no mundo" ao voltar a Alençon, entre os amigos da sua família. Desde os seis anos não tinha voltado ali. É festejada e mimada. Agora é "realmente uma jovenzinha", escreve Luís Martin a um amigo. Os seus cabelos louros e compridos que cobrem os seus ombros, os seus belos olhos verdes, os seus vestidos (Zélia Martin tinha cuidado sempre da elegância das suas filhas), faz com que seja admirada pelas famílias burguesas de Alençon e dos arredores. A linda convalescente vai "de palácio em palácio", monta a cavalo. "Confesso que essa vida tinha encantos para mim... Aos dez anos o coração deixa-se facilmente fascinar" (Ms A 32v).

Depois de ter roçado a loucura ou a morte, esta feliz convalescença desperta o seu desejo de viver. O austero Carmelo, onde vive a sua irmã, continuará a estar presente no seu coração, quando pressente que diante de si se pode abrir um caminho diferente, um matrimônio feliz, com filhos, uma grande casa, uma vida fácil...? Não, não esquece onde a leva o peso do seu coração. Tal experiência do mundo ser-lhe-á muito útil: "Talvez Jesus me tenha querido mostrar o mundo antes da primeira visita que me ia fazer, a fim de que eu escolhesse mais livremente o caminho que havia de lhe prometer seguir" (Ms A 32v).

Primeira comunhão

Depois desta vida fácil e sedutora, foi duro o regresso a Lisieux. Teve que voltar para o colégio em Outubro de 1883; a aluna Teresa Martin passa para a segunda turma do mesmo ano. Uma alegria neste ambiente cinzento: a perspectiva, por fim, de fazer a primeira comunhão este ano, pois este desejo continua ancorado no seu coração. O amor verdadeiro a Jesus encarnado a faz considerar a Eucaristia como o sacramento da presença real.

O abade Domin, de quarenta e um anos, capelão das beneditinas, encarrega-se do catecismo. Está contente com a sua aluna, a quem chama o "seu doutorzinho", mas Teresa tem muita dificuldade em compreendê-lo quando afirma que as crianças que morrem sem batismo não vão para o céu. Ela pensa que a onipotência do Amor de Deus não deve permitir que aconteça tal desgraça, pois não há pior mal que não ver a Deus. Se é todo-poderoso, pode levá-las consigo!

Por seu lado, a Irmã Inês de Jesus, no Carmelo, está a preparar também a sua irmã para o grande dia: durante quatro meses, escreve todas as semanas a Teresa e compõe-lhe um livrinho para a ajudar a rezar e a fazer sacrifícios todos os dias. Teresa responderá com uma generosidade excepcional: desde o dia 1 de Março até o dia 7 de maio de 1883, faz no total 1949 sacrifícios e repete 2773 vezes as orações propostas por Paulina. Mantém com ardor esta contabilidade pedagógica, muito utilizada naquele tempo; mas virão dias, muito mais tarde, em que escreverá: "quando se ama, não se conta" (PN 17, 5).

O 8 de Maio será o grande dia. Data feliz, que coincide com a profissão de Paulina no Carmelo: as duas irmãs estão mais unidas pela entrega que de si mesmas querem fazer a Jesus.

Pela primeira vez na sua vida, Teresa não dorme em casa: tem que passar três dias de preparação no colégio da Abadia. A família dá mil conselhos às Irmãs que a acompanham: a menina Martin está muito fraca. Terá direito a algumas condescendências: o seu pai e as suas irmãs visitam-na todos os dias.

O abade Domin prega o retiro às sete meninas que têm dez e onze anos. As conferências estão fortemente marcadas pelo ambiente jansenista da época.

Teresa toma algumas notas estranhas num pequeno caderno: a segunda conferência foi sobre a morte, a terceira sobre o inferno e sobre os tormentos que ali se padecem, a do dia 7 de maio sobre a comunhão sacrílega. "O sacerdote disse-nos coisas que me meteram muito medo". A morte, porém, da abadessa das beneditinas impede o senhor capelão de dar todas as conferências e, sem dúvida, assustar mais a todas as meninas que estão de retiro.

No dia 7 faz uma confissão geral, que a deixa "numa grande paz". No dia seguinte, experimenta uma alegria autêntica; o vocabulário que usará para evocá-la em 1895 em nada se assemelha com o das conferências do abade Domin: "Ah! como foi doce o primeiro beijo de Jesus à minha alma!... Foi um beijo de amor, sentia-me amada, e dizia por minha vez: "Eu amo-Vos! Dou-me a vós para sempre!". Não houve pedidos, nem lutas, nem sacrifícios. Desde há muito, Jesus e a pobre Teresinha tinham-se olhado e tinham-se compreendido... Nesse dia já não era um olhar, mas uma fusão, já não eram dois: Teresa desaparecerá como a gota de água que se perde no oceano. Só ficava Jesus, como dono, como Rei" (Ms A 35r).

É a linguagem de uma jovem enamorada que faz dom total de si mesma. Procurará saciar a fome da Eucaristia, desencadeada nela há muitos anos. Anotará vinte e duas comunhões no pequeno caderno durante o, ano seguinte, pois então não era permitido comungar todos os dias.

Pela tarde pronuncia a consagração à Santíssima Virgem, sua Mãe, em nome das suas companheiras. Nem é totalmente insensível à festa familiar nem aos presentes recebidos. Mas o que a atrai é comungar novamente. Não poderá fazê-lo senão quinze dias depois, no dia 22 de maio, dia da Ascensão.

Esta segunda comunhão marcará profundamente Teresa, embora de um modo completamente diferente: "Que doce recordação conservei desta segunda visita de Jesus!". Repetia para si mesma as palavras de Gálatas 2,20: "Já não sou eu que vivo, é Jesus que vive em mim". Mas receberá uma luz especial sobre o sentido do sofrimento: "Senti nascer no meu coração um grande desejo de sofrer, com a íntima certeza de que Jesus me reservava um grande número de cruzes. Senti-me inundada de consolações tão grandes que as considero uma das maiores graças da minha vida" (Ms A 36r). Sentimentos desconcertantes numa menina tão nova, mas que são premonitórios da sua pequenez e da sua vida futura.

Como admirar-nos de que se sinta atraída para aprofundar na oração? Mas a sua irmã Maria não a deixa fazer meia hora de oração por dia — nem sequer um quarto de hora —, pois julga-a já suficientemente piedosa.

Confirmação

No dia 14 de junho de 1884 outra grande graça: depois de dois dias de retiro, recebe a confirmação das mãos de Monsenhor Hugonin. Teresa admira-se de que não se dê mais importância ao "sacramento do Amor". A visita do Espírito Santo acontece numa “brisa ligeira". Neste dia, escreve, recebeu a fortaleza para sofrer. Celina testemunhará mais tarde: Teresa, ordinariamente tão tranqüila, não era a mesma: percebia-se no seu exterior uma espécie de entusiasmo e de arrebatamento. Num dia do seu retiro de preparação em que lhe manifestei o meu assombro ao vê-la com essas disposições, explicou-me o que entendia do poder deste sacramento, da tomada de posse de todo o seu ser pelo Espírito de Amor. Havia nas suas palavras tal veemência, tal fogo no seu olhar, que eu mesma, penetrada por uma impressão sobrenatural, me separei dela profundamente emocionada. De tal modo me impressionou este fato, que ainda me parece estar a ver os seus gestos, a sua atitude, o lugar que ocupou; esta recordação não se apagará do meu espírito" (PO 266-267).

Em Agosto, encontra-se de férias em Saint-Ouen-le-Pin, a uns dez quilômetros de Lisieux, no caminho de Caen, na quinta da senhora Fournet (a avó Guérin), em plena região de Auge. Teresa gosta muito desta planície, das suas ondulações, das suas macieiras, dos regatos e dos tanques, do pequeno bosque. Desenha com pormenor a quinta cercada com tabiques. A família passeia pela planície nos arredores do castelo de Guizot, na propriedade da antiga abadia Cisterciense de Val-Richer. Embora tenha acabado de se curar de uma tosse convulsa, está muito contente aqui. Ter-se-á feito acompanhar de Tom, podengo branco, presente do seu pai no mês de junho?

Seja como for, voltará a encontrá-lo nos Buissonnets, no momento do novo ano, período sempre tão doloroso para ela. Encontra-se com as outras alunas que têm treze ou catorze anos, distraídas e alvoroçadas. Continua a gostar de história, das redações e o seu interesse não decai, antes aumenta. Mas é grande a sua sensibilidade ao fracasso e proporciona-lhe muitas lágrimas.

A sua professora, a Madre São Leão, acha-a muito frágil, sujeita a escrúpulos. O seu coração, "sensível e terno", está ávido de afeto. Mas fracassam algumas tentativas para fazer amigas; o seu amor não é compreendido.

De 3 a 10 de maio, encontra-se novamente de férias em casa dos Guérin, desta vez na “Vila das Rosas", no número 17 do cais do Touques, em Deauville. Sob as ordens da tia Guérin, quatro jovens respiram o ar do mar: Joana (dezessete anos), Maria (quase quinze), Teresa (doze e meio) e a criada Marcelina (dezenove). Passeios ao longo do mar até Ronhas Negras, missas e orações em Nossa Senhora das Vitórias e Nossa Senhora do Bom Socorro, trabalhos de agulha, desenhos para os Guérin... Teresa procura ainda fazer-se estimar, mas fracassa novamente: nota sempre a falta da sua mãe, e tem dificuldades para encontrar um equilíbrio real nas relações humanas. Apesar de todas estas diversões, nota igualmente a falta da sua irmã Maria que ficou nos Buissonnets.

Segunda comunhão

Por outro lado, há de regressar, pois Teresa tem que participar no retiro para a sua "segunda" comunhão, ou seja, a renovação solene da primeira, do dia 17 a 21 de maio de 1885, pregado também pelo abade Domin, na Abadia.

No mesmo pequeno caderno do ano anterior, a retirante tomará algumas notas. O tom de susto não se alterou desde então: "O que o Senhor Padre nos disse era tão aterrador. Falou-nos do pecado mortal...", da "morte"; Teresa não escreve mais nada. No entanto, contará nas suas recordações: "Foi durante o retiro para a segunda comunhão que me vi assaltada pela terrível doença dos escrúpulos... É preciso ter passado por esse martírio, para o compreender bem. Ser-me-ia impossível dizer o que sofri durante ano e meio..." (Ms A 39r).

De fato, esta longa crise durará dezessete meses. Voltam em massa as "duas dores de alma" que seguiram à sua doença de1883, que acentuam ainda mais os escrúpulos que, nesta idade, lhe causaram preocupação também em relação à castidade. O seu único recurso é a sua irmã Maria, com quem partilha os seus sofrimentos interiores e que a ajuda a ver com mais clareza quando se vai confessar. Está bastante perturbada, pois, depois desta segunda comunhão, não voltará para a escola.

Indicamos que voltou a tomar as três resoluções da sua primeira comunhão: "1. Não desanimarei. 2. Rezarei todos os dias um 'lembrai-vos' à Santíssima Virgem. 3. Procurarei humilhar o meu orgulho" (retificamos a ortografia insegura).

Em Julho de 1885, novamente em Saint-Ouen-le-Pin. Ninguém, ao vê-la "francamente contente, encantadora pela sua alegria", suspeitará do peso das suas penas interiores. Nos fins de Setembro, novamente uma temporada junto ao mar, desta vez em Trouville, "Vila Rosa" na rua Carlos Magno, com Celina. Teresa diverte-se muito, mas acusa-se na sua confissão de ser demasiado vaidosa, porque usa fitas azuis na sua bela cabeleira.

O novo ano escolar que começa em outubro de 1885 será o último para Teresa. Celina, de dezesseis anos, terminou a escolaridade. A prima Maria, frequentemente doente, abandona também a Abadia. É demasiado para Teresa, que volta a estar só. Grande solidão para a adolescente, acentuada ainda mais pela ausência do seu pai que, durante quase dois meses, viaja ao Oriente, até Constantinopla. O retiro do início do ano, pregado por um substituto do abade Domin, não levanta a moral da aluna: tratando sempre de realidades espantosas, tão pouco de acordo com a idéia que ela faz do amor de Jesus.

Em 1886, Teresa tem treze anos. No dia 2 de fevereiro é recebida como aspirante das Filhas de Maria na Abadia, da qual Celina, "a intrépida", é presidente. A professora surpreende-se pela tristeza de Teresa que sofre contínuas dores de cabeça. O Sr. Martin decide retirá-la da escola. Como a sua prima Maria Guérin terá aulas particulares em casa de uma instrutora, a Sra. Valentina Papinau, que vive na rua Maior, perto da catedral de São Pedro, com a sua mãe e a sua gata.

É uma grande mudança de vida para Teresa: acabou a vida escolar. Assiste às aulas três ou quatro vezes por semana sempre acompanhada. O trabalho não é cansativo, porque a instrutora tem muitas visitas. Dizem que a aluna é muito linda. Cora de confusão e de prazer.

A aluna dispõe de muito tempo livre. Instalou-se num quarto no sótão do segundo andar dos Buissonnets, que descreve como "um autêntico bazar; um agregado de piedade e de curiosidades; um jardim e uma gaiola... o retrato de Paulina..." (Ms A 42v).

Nos fins de junho, nova estadia em Trouville, na vila dos Lilazeiros, mas muito breve, porque Teresa não se acha bem. Sente saudades dos Buissonnets; este pequeno incidente confirma que não se encontra muito bem.

A partida de Maria

Toma conhecimento da decisão da sua irmã Maria de entrar no Carmelo. Novo drama para Teresa que não tem ninguém senão ela a quem apegar-se. Celina, de dezessete anos, terá que assumir o papel de dona de casa. Leônia, de vinte e três anos, pensa também na vida religiosa. O mundo cambaleia para a menor: toda a vida não é senão uma separação. Deixa de sentir gosto pelo seu quarto de adolescente e começa novamente com Maria o que tinha vivido com Paulina: cobre-a de beijos e presentes antes da sua partida.

Uma viagem a Alençon, nos princípios de Outubro, proporcionando-lhe mudança de ares e diversão, ajudará a superar a situação? Não. Chora sobre a sepultura da sua mãe porque se esquecera de levar um ramo de flores. Leônia, caprichosamente, entra nas Clarissas, na rua da Meia Lua. A família desfaz-se.

No dia 15 de outubro é a partida de Maria "o único apoio" de Teresa, que doravante ficará só, debatendo-se com os seus escrúpulos. Tinha perdido a Paulina e os escassos contatos no locutório, por detrás da dupla grade, não são suficientes para uma autêntica comunicação.

Eis uma jovenzinha loura de 1,62 m de altura, com longos cabelos sobre os ombros, que vai fazer catorze anos. Mas, que contraste com o interior! É hipersensível, chorona, "insuportável pela sua excessiva sensibilidade... que às vezes chora por ter chorado" (Ms A 44v), torturada pelos escrúpulos... nunca, em toda a sua vida, tinha chegado tão baixo. Profunda solidão de adolescente que continua a sonhar entrar no Carmelo. Mas, em tal estado interior, como o poderá conseguir? Tem pouca disposição para as coisas práticas, incapaz de fazer corretamente a cama e sofria por tudo (Ms A 44v).

Neste profundo abismo reagirá com um grito dirigido ao céu. Curiosamente não se dirige a Deus, nem à Santíssima Virgem que já a tinha curado. Pobre criança abandonada, volta-se para os seus quatro irmãozinhos mortos em tenra idade. Sendo a última da família, falou-lhes com a "simplicidade de criança" (Ms A 44r). A resposta não se fez esperar: em breve uma grande paz veio inundar a sua alma e sente-se reconfortada, na sua solidão interior, por se saber amada pelos que estão no céu.

Segunda cura repentina, que a liberta dos escrúpulos, mas que, no entanto, não soluciona tudo. O seu caráter hipersensível não se modifica muito com isso. Teresa continua com a tendência para "chorar como uma Madalena". A situação parece desesperada.

Como poderá a adolescente sair definitivamente dela?

O "milagre" de Natal de 1886

Vai produzir-se agora um acontecimento de importância capital na vida de Teresa Martin. Em nada espetacular, pois, à exceção da sua irmã Celina, ninguém saberá.

Os fatos são muito simples. No regresso da missa da meia-noite na catedral de São Pedro, o Sr. Martin, cansado, lamenta que o ritual dos sapatos na chaminé ainda exista para uma jovenzinha de quase catorze anos: "Enfim, ainda bem que é o último ano!". O seu ouvido apurado entendeu-o. Brilham-lhe as lágrimas nos olhos ao subir as escadas para ir tirar o chapéu. Celina diz-lhe para não descer já.

Mas Teresa faz um grande esforço, retém as lágrimas, desce rapidamente as escadas para abrir os presentes... O pai, tendo recuperado o bom humor, fica contente. Celina não acredita no que vê.

A graça tocou o coração de Teresa. "Num instante" recebe uma grande força interior. A fonte das suas lágrimas ficou estancada. Não é a mesma: a sua hipersensibilidade desapareceu. Eis que está transformada, forte, liberta das "faixas da infância", já não adolescente, mas mulher. Está "revestida com as armas", preparada para todos os combates e, em primeiro lugar, para o que a vai empurrar a entrar no Carmelo o mais rapidamente possível.

Nove anos mais tarde, ao escrever o seu primeiro manuscrito autobiográfico, Teresa sintetizará o acontecimento do Natal de 1886. Para ela, trata-se de um "pequeno milagre", de uma "conversão", de uma "mudança admirável" entre a força de Deus que se faz pequeno no presépio e a debilidade da "pequena" Teresa que se faz forte. A graça litúrgica — e a eucarística, porque Teresa comungou na missa da meia-noite — transformou-a completamente (Ms A 45-46).

Teresa "cresceu". Teresa desejava-o vagamente, mantida, contudo, pela sua família numa espécie de atmosfera infantil: "A Celina queria continuar a tratar-me como um bebê, já que eu era a mais nova da família..."

Porém, as palavras do pai, repentinas, acabando com o ritual infantil, fazem-na sair de si mesma. Conversão duradoura que vai inaugurar "o terceiro período da sua vida, o mais belo de todos, o mais repleto das graças do Céu”. Agora, como ela diz, pode começar "uma corrida de gigante" (Sl 18,6).

Com notável lucidez, comprova que reencontrou a força da alma dos seus quatro anos e meio, perdida há dez anos, no momento da morte da sua mãe. Por fim, faz o duelo, assumido na paz. É uma graça de cura interior profunda, definitiva. Mas esta graça atua numa natureza que tem a sua história. A ferida psicológica não foi indelével. "Deus é a saúde da alma" (João da Cruz).

Um ano depois do texto do seu manuscrito, Teresa volta sobre esta "conversão" numa carta (Ct 201) ao P. Roulland, no dia 1º de novembro de 1896. A síntese é perfeita: "A noite de Natal de 1886 foi, é verdade, decisiva para a minha vocação, mas para a designar mais claramente devo chamar-lhe: a noite da minha conversão. Nesta noite bendita da qual está escrito que ela ilumina as delícias do próprio Deus. Jesus que Se fazia criança por meu amor dignou-Se fazer-me sair das roupinhas e das imperfeições da infância, transformou-me de tal maneira que já não me reconhecia a mim mesma. Sem esta mudança teria ficado ainda muitos anos no mundo. Santa Teresa que dizia às suas filhas: "Quero que não sejais mulheres em nada, mas que em tudo iguais a homens fortes", Santa Teresa não teria querido reconhecer-me como sua filha se o Senhor não me tivesse revestido da sua força divina, se Ele mesmo não me tivesse armado para a guerra".

Deste modo, foi salva "num instante" de uma incapacidade que durou dez anos. Agora sabe por experiência o que é a Misericórdia que a tirou de um abismo. Nunca mais o esquecerá e em todas as noites de Natal futuras, celebrará a sua "conversão".

Por fim, nos seus Últimos Colóquios, voltará ainda sobre este Natal de 1886, tão decisivo), para precisar que a graça divina não atua sem a liberdade humana: "Pensei hoje na minha vida passada, no ato de coragem que fiz naquela noite de Natal, e o louvor dirigido a Judite veio-me à memória: “Agistes com uma coragem viril e o vosso coração fortaleceu-se”. Muitas almas dizem: Não tenho força para realizar esse sacrifício. Então que façam o que eu fiz: um grande esforço. Deus nunca recusa esta primeira graça que dá a coragem para agir; depois disso, o coração fortalece-se e vai de vitória em vitória" (UCR 8.8.3).

Assim termina a segunda parte da vida de Teresa Martin, segundo a divisão que ela própria faz: estes dez anos de sofrimentos, de lutas, mas também de graças de eleição. A criança, a adolescente viveu um caminho de purificações que a amadureceram e a tornaram mais profunda. Tal incapacidade prolongada — dez anos! — cedeu a três curas sobrenaturais sucessivas para acabar numa libertação definitiva. Porque Teresa passou por esta experiência pessoal, sabe que foi salva, que deu um passo em frente, que a sua vida teria sido muito mal orientada se não tivessem existido estas distintas graças, das quais a mais eficaz foi a do Natal de 1886.

Compreende-se a razão pela qual o ano de 1887 será belíssimo para ela: ano de crescimento humano, intelectual, artístico e, sobretudo, espiritual. O ano da luta para entrar no Carmelo o mais rapidamente possível. Por outro lado, foi fixada a data de entrada: o Natal de 1887, aniversário da sua conversão.

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A CASA DOS BUISSONNETS

Monsenhor GUY GAUCHER

As filhas Martin instalam-se nos Buissonnets no dia 16 de novembro de 1877, casa encontrada pelo tio Isidoro Guérin, farmacêutico na cidade. Teresa estará nela até ao dia 9 de abril de 1888, data da sua entrada no Carmelo.

A casa ficava então na periferia de Lisieux, num bairro tranqüilo chamado "Vila do Novo Mundo". A casa tinha cem anos, mas estava em perfeito estado. Rodeada de muros, com um pequeno relvado na parte dianteira, um jardim nas traseiras com árvores. A porta do jardim dá para uma pequena rua a subir, que o Sr. Martin chamará "o caminho do Paraíso".

No andar de baixo, quatro aposentos, entre eles uma linda sala de jantar com revestimento de carvalho. Um sótão dividido em adega e frutaria. Um primeiro andar com três quartos e um mais pequeno, no mesmo nível que o jardim da pane de trás. Um segundo andar, com um belvedere que dá para a cidade e três pequenos sótãos.

Ao lado, um poço com uma máquina para tirar a água. Uma cisterna, um cobertura, uma lavanderia, um lugar para as aves e um curral.

Muito perto, encontra-se o esplêndido jardim da Estrela onde é preciso estar inscrito para entrar. Os Martin vão frequentemente ali.

Não esqueçamos que eram apenas inquilinos nos Buissonnets. Com a doença do pai, internado, desfez-se o arrendamento no dia 31 de dezembro de 1889. Os móveis dispersaram-se, alguns foram parar o Carmelo.

Em dezembro de 1909, o doutor La Néele — primo por afinidade, pois estava casado com Joana Guérin — comprou os Buissonnets: já havia afluência de peregrinos. Em 1913, a casa foi adaptada tendo em conta os peregrinos. Em 1922, Joana La Néele, viúva, vendeu a casa à sociedade imobiliária das peregrinações.

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A "POBRE LEÔNIA" (1863-1941)

Monsenhor GUY GAUCHER

Maria Leônia Martin nasceu no dia 3 de junho de1863 em Alençon, a terceira das filhas Martin, depois de Maria e Paulina, mas antes dos cinco filhos que seguiram, dos quais quatro morreram.

Encontrava-se, pois, bastante só entre as duas mais velhas e as duas mais novas, Celina e Teresa. De saúde delicada, de temperamento mais ingrato do que as outras, preocupou sempre a sua mãe. Apesar dos seus esforços, a sua tia Dositéia em Le Mans não a pôde manter no colégio. Em Alençon, a criada assustava-a um pouco, quando a fechava.

Mesmo assim, tinha bom coração, tinha necessidade de carinho, mas tinha menos capacidades que as suas irmãs. De modo irrefletido, entrou nas clarissas de Alençon, mas só esteve algumas semanas (volta para casa em 1º. de dezembro de 1886). O apelo para a vida religiosa manteve-se nela. No dia 16 de julho de 1887, aos vinte e quatro anos, entra na Visitação de Caen. Infelizmente, só por seis meses, pois a vida é demasiado dura. Volta para os Buissonnets quando Teresa estava a preparar-se para entrar no Carmelo de Lisieux.

Passa cinco anos com a doença do Sr Martin. Que será daquela que todos chamam "a pobre Leônia"?... No dia 24 de junho de 1893, volta ainda para a Visitação de Caen. Toma o hábito, mas volta a sair dois anos depois, no dia 20 de julho de 1895. Teresa procura animá-la e, antes de morrer, tranqüiliza a Leônia: será visitandina.

De fato, no dia 28 de junho de 1899, Leônia volta para sempre ao convento de Caen. Ali morrerá humilde e desconhecida, no dia 17 de junho de 1941, aos 78 anos.

Participou, de longe, na ascensão "do furacão de glória" que aureolou a sua irmãzinha. Chegou a ser discípula do pequeno caminho de infância, perfeitamente adaptado à sua própria debilidade. É essa a razão pela qual tantos amigos de Teresa gostam dela.

Desde 1970, o convento da Visitação de Caen recebe cartas e peregrinos do mundo inteiro. Abriu-se para eles a cripta na qual repousa a irmã Francisca Teresa, que dizia da sua irmã: "Com quanta mais glória a vejo, mais sinto a necessidade de me abaixar".

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TERESA NOS FALA:

Vida em família

"Não senti nenhuma pena ao deixar Alençon; as crianças gostam da mudança, e foi com gosto que vim para Lisieux (...) Nos Buissonnets a minha vida era verdadeiramente feliz... Logo de manhã, vós vínheis ter comigo e perguntáveis-me se tinha oferecido o meu coração a Deus; depois vestíeis-me, falando-me d'Ele e, em seguida. ao vosso lado, fazia a minha oração. Depois vinha a lição de leitura (...) A minha querida madrinha encarregava-se das lições de escrita, e vós, minha Madre, de todas as outras. Não tinha lá muita facilidade para aprender. mas tinha muita memória. As minhas preferências iam para o catecismo e, sobretudo, para a História Sagrada; estudava-os com alegria; mas a gramática fez-me muitas vezes correr as lágrimas" (Ms A 13v).

"Todas as tardes ia dar um pequeno passeio com o papai; fazíamos juntos a visita ao Santíssimo Sacramento, visitando cada dia uma nova igreja. Foi assim que entrei, pela primeira vez, na capela do Carmelo. O papai mostrou-me a grade do coro, dizendo-me que, por detrás, estavam religiosas. Estava bem longe de imaginar que, nove anos mais tarde, eu estaria entre elas!..." (Ms A 14r).

"Que poderei dizer dos serões de inverno, sobretudo dos de domingo? Ah! como era agradável, depois do jogo de damas, ir sentar-me com a Celina nos joelhos do papai!... Com a sua bela voz cantava melodias que enchiam a alma de pensamentos profundos... Ou então, embalando-nos suavemente, recitava poesias impregnadas das verdades eternas... Em seguida subíamos para fazer a oração em comum, e a rainhazinha ficava sozinha ao pé do seu rei, não tendo senão que olhar para ele para saber como rezam os santos... Por fim, íamos todas por ordem de idade, dar as boas noites ao papai e receber um beijo; a rainha, naturalmente, era a última. O rei, para a beijar, pegava-lhe pelos cotovelos, e ela exclamava muito alto: 'Boa noite, papai! Boa noite, dorme bem" (Ms A 18 r-v).

"Eu escolho tudo"

"Mais tarde quando encarei a perfeição, compreendi que para se vir a ser uma santa era preciso sofrer muito, procurar sempre o mais perfeito e esquecer-se de si mesma; compreendi que havia muitos graus na perfeição e que cada alma era livre de responder aos apelos de Nosso Senhor, de fazer pouco ou muito por Ele, numa palavra, de escolher entre os sacrifícios que Ele pede. Então, como nos dias da minha primeira infância, exclamei: 'Meu Deus, eu escolho tudo. Não quero ser uma santa pela metade; não tenho medo de sofrer por Vós; só tenho medo de uma coisa, de conservar a minha vontade, tomai-a, porque 'Eu escolho tudo’o que Vós quereis (Ms A 10 r-v).

CAPÍTULO 3

TERESA, JOVEM LEIGA

Monsenhor GUY GAUCHER

No dia 2 de janeiro de 1887, Teresa completa catorze anos. Mudou até no seu aspecto físico. Celina dá-lhe lições de desenho. Sente incontroláveis desejos pela leitura, interessava-se por tudo. Alguns livros impressionam-na profundamente: assim, o do cônego Arminjon Fim do mundo atual e mistério da vida futura. Aprecia, sobretudo, a sétima conferência sobre "a bem-aventurança celeste". Ávida de conhecimento espiritual, o livro proporciona-lhe um complemento importante à insuficiência do seu catecismo de perseverança, demasiado simples para ela. Arminjon cita frequentemente a Escritura, os Padres e abre-a ao infinito do mistério cristão.

Mas Teresa encaminha-se particularmente para o seu objetivo: o Carmelo. Desde o Pentecostes (29 de maio), dá o difícil passo estando com o seu pai no jardim dos Buissonnets. Encontra-o totalmente disposto a todos os sacrifícios: oferecer as suas filhas a Deus, inclusive a mais querida, a "rainhazinha". Enquanto colhia uma florzinha branca da parede do jardim — uma planta (saxífraga) —, o pai oferece-a como símbolo da sua vida, iluminada pelo sol de Deus. Teresa conservá-la-á até è sua morte.

A graça do Natal vai dar frutos abundantes: uma frase de Teresa resume perfeitamente a abertura do seu coração ao abandono do mundo: "A caridade entrou no meu coração; senti a necessidade de me esquecer de mim para dar alegria. E desde então sou feliz!" (Ms A 45v). Liberta de si mesma pela irrupção do amor divino no seu ser, Teresa entra em relação com o mundo, sai do seu eu e começa a amar de verdade: quer "dar alegria". A conseqüência é a alegria, porque o segredo da felicidade é o dom de si. No fim da sua vida, na sua última poesia sobre a Virgem Maria, escreverá: "Amar é tudo dar e dar-se a si mesmo" (PN 54, 22).

Entre as numerosas graças deste ano de1887, há uma que vai ser decisiva para a sua vocação. Uma vez mais, a ocasião é quase irrisória, aparentemente casual. Assiste, sem dúvida em Julho, à missa na catedral de São Pedro. Do seu missal sobressai uma estampa de Jesus na cruz. Teresa vê que o sangue cai das mãos do crucificado. Ninguém o recolhe. Sofre por isso e decide ficar ao pé da cruz para recolher este divino sangue e oferecê-lo às almas. Ouve Jesus a dizer-lhe: "Tenho sede" (Jo 19,26), sede física, mas mais ainda, sede de almas. Também ela tem sede de almas, porque desde a abertura do seu coração no Natal, Teresa sente-se "pescador de almas", quer trabalhar pela conversão dos pecadores, quer "arrancá-las às chamas eternas". "Resolvi manter-me em espírito ao pé da cruz para receber o divino orvalho que dela escorria, compreendendo que seria necessário espalhá-lo sobre as almas... O grito de Jesus na cruz: "Tenho sede!" ressoava também continuamente no meu coração. Estas palavras acendiam em mim um ardor desconhecido e muito vivo... Queria dar de beber ao meu Bem-Amado, e sentia-me eu mesma devorada pela sede de almas" (Ms A 45v).

Atitude "sacerdotal" de uma jovem de catorze anos e meio que fica "ao pé da cruz" de Jesus para participar na salvação do mundo. A sua vocação resume-se a isto. É já o desejo intenso que exprimirá depois, também com muita freqüência: "Amar a Jesus e fazê-lo amar" (Or 6).

As circunstâncias vão-lhe proporcionar a ocasião de pôr em prática a sua resolução (Ms A 46-47). Na noite do dia 16 para o 17 de março, assassinaram três mulheres em Paris, na rua Montaigne, número 17: Maria Regnault, conhecida mulher do mundo parisiense, a sua criada e a sua filha de treze anos. O roubo foi o motivo dos assassinatos. A angústia é considerável em França. O horror do crime desencadeia a imprensa contra Henri Pranzini, originário de Alexandria, que é preso no dia 20 de março em Marselha. Tinha desempenhado diversos ofícios, gastava o dinheiro e tinha que roubar para sobreviver. As suas conquistas femininas eram numerosas. As acusações contra ele são esmagadores (encontram-se as jóias roubadas em Marselha), o seu processo é aberto no dia 9 de Julho, seguido com paixão pelo público. Mas Pranzini nega-o sempre. No dia 13 é condenado à morte.

Teria o Sr. Martin falado nos Buissonnets deste caso diante das suas filhas? Celina confirma-o. É talvez mais provável que Teresa tenha ouvido falar do assunto na casa dos Guérin, na farmácia da praça Thiers que era um lugar muito concorrido e aberto? Ou na casa da Sra. Papinau?

Seja como for, contrariamente aos sentimentos dos seus contemporâneos, o seu primeiro movimento reflexo é o de salvar Pranzini. Multiplicará, pois, orações e sacrifícios e mandará celebrar missas por ele. A sua confiança é tão grande que está certa de que, pela sua oração, Deus terá misericórdia dele, mesmo que o infeliz não mostre nenhum sinal de arrependimento. No entanto, pede ao Senhor um sinal para si mesma. Sob o impulso da necessidade, para a qual não há lei, julga não desobedecer ao ler o jornal La Croix do dia 1º. de setembro que relata a execução pública de Pranzini, na prisão da Roquette. Depois de ter recusado ao princípio o capelão, o abade Faure, Pranzini mandou-o chamar para beijar o crucifixo antes de ser guilhotinado.

Depois de ler estes pormenores no jornal, Teresa esconde-se para chorar de alegria. Obteve o sinal esperado: Pranzini salvou-se! Não duvida um instante que tenha recebido "a sentença misericordiosa" de quem perdoa aos pecadores arrependidos, como o bom ladrão.

Este sinal anima-a poderosamente na sua carreira ao Carmelo. Se o senhor lhe concedeu este grande pecador, quantos outros se seguirão! Não duvida em lhe chamar o seu"primeiro filho", quando a imprensa da época — também católica — o qualificava com toda a espécie de apelativos. De fato, a sua vocação será ser "carmelita, esposa e mãe" (Ms B 2v), pois a virgindade consagrada não é esterilidade, mas fertilidade espiritual.

O Verão de 1887 está, pois, iluminado com grandes graças. Com a sua irmã Celina — de dezoito anos — Teresa diz viver "o ideal da felicidade". No mirante, pela tarde, falam extensamente e recebem grandes graças: "Parece-me que recebíamos graças de ordem tão elevada como as concedidas aos grandes santos (...) Como era transparente e tênue o véu que escondia Jesus aos nossos olhares!... A dúvida não era possível; a fé e a esperança já não eram necessárias: o amor fazia-nos encontrar na terra Aquele que procurávamos" (Ms A 48r). São "irmãs de alma", como as jovens evocadas por São João da Cruz (Cântico espiritual. 25): "Apressam-se as donzelas, sobre as tuas pegadas no caminho", seguindo os passos de Jesus. Teresa não duvida escrever que recebiam graças tão elevadas como Mônica e seu filho Agostinho em Óstia (cf. Ms A 48r).

Por outro lado, obtém do seu confessor poder comungar quatro vezes por semana, coisa bastante rara no seu tempo. Desejará sempre a comunhão diária durante toda a sua vida, mas não o conseguirá.

Antes de pedir a autorização ao seu pai para entrar no Carmelo, tinha que transpor outros obstáculos muito mais difíceis.

Lutar pelo Carmelo

Em princípio tem que conseguir licença do seu tio Isidoro Guérin, tutor das suas sobrinhas mais novas. Quatro meses depois de ter falado com o seu pai, faz diligências junto do farmacêutico, que a acha demasiado nova para levar esta vida de "filósofo". Nunca antes dos dezessete anos! Cidadão importante de Lisieux, teme as críticas e os rumores da cidade. Mostra-se intratável.

Deixa Teresa mergulhada em lágrimas e passa três dias de angústia. Pela primeira vez não será a última - entra na noite, comprova o sono de Jesus que cala, que parece tê-la abandonado (cf. Ms A 51r). É a primeira experiência forte de purificação. Estes três dias de agonia - Teresa lembra-se de Getsêmani - acabam-se graças a um pequeno "milagre". Efetivamente, Paulina foi o instrumento. Escreveu ao seu tio uma carta convincente: crê, como a madre Maria de Gonzaga, a priora, na vocação da sua jovem irmã.

No sábado, dia 22 de Outubro, o tio Isidoro recebe Teresa com afeto e dá-lhe o seu consentimento. Teresa julga ter chegado à meta. Por desgraça, no Carmelo sabe-se que o superior, o Pe. Delatroëtte, se opõe totalmente à sua entrada. Nunca permitirá antes dos vinte e um anos! -Oposição invencível" que transtorna a postulante. Acabava de estar envolvido num assunto difícil com a família Fleuriot, cuja filha Joana tivera que abandonar o Carmelo depois de alguns meses... O padre superior não se queria expor novamente a críticas; tanto mais, porque a pequena Martin tinha estado doente. Era considerada delicada e o doutor de Cornière, médico do Carmelo, era desse parecer: não aprovava a sua entrada. Apesar das diligências de Luís Martin acompanhado de Teresa e de Celina, o Sr. Delatroëtte mostrava-se irredutível.

Novas lágrimas de Teresa, que decide ir ver o bispo Dom Hugonin, em Bayeux. No seu coração, contudo, já sabe que vai em peregrinação a Roma e espera falar ao papa. No dia 31 de Outubro. o Sr. Martin leva-a ao bispo de Bayeux para se entrevistar com ele. Chove abundantemente (mau presságio para Teresa), e na catedral abarrotada celebra-se o funeral da senhora Otávia Felicidade Quesnault de Grondière. O Sr. Martin, na sua simplicidade, a fez avançar vestida de branco até detrás do altar-mor.

Depois de uma triste refeição num bom restaurante da cidade, o Pe. Révérony, vigário geral, recebe os Martin e apresenta-os diante do bispo Hugonin. Teresa leva um guarda-chuva branco e prendeu o cabelo para parecer ter mais idade. Explica o seu projeto, mas o Bispo julga que ainda tem tempo. Tanto mais quanto duas das suas irmãs já estão no Carmelo. Julgava que fazia um favor ao Sr. Martin, mas estranha vê-lo disposto a este novo sacrifício.

Como falam da peregrinação a Roma para visitar o papa Leão XIII, o Bispo diz que lhes dará a resposta quando estiverem na Itália. À saída do encontro com o bispo, vem a decepção: nova diligência inútil. Chora abundantemente. Mas é tempo de pensar nesta grande viagem a Roma: a partida está fixada para o dia 4 de novembro.

Uma peregrinação animada

A peregrinação foi organizada pela diocese de Coutances, sob a direção do bispo Germain. A diocese de Bayeux e Lisieux associa-se, mas o bispo Hugonin é representado pelo Pe. Révérony. Era para celebrar o jubileu de Leão XIII (bodas sacerdotais); tanto mais que o papa sofria as expoliações anti-clericais do governo Crispi. Era, pois, a ocasião para oferecer ao Santo Padre uma consolação de fé ultramontana.

A viagem estava prevista de 7 de novembro a 2 de dezembro de 1887; visitariam numerosas cidades italianas e estariam dez dias em Roma, com audiência papal. Era a ocasião ideal para a jovem Teresa, que queria falar ao papa do seu desejo de entrar no Carmelo no Natal.

A peregrinação constava de 197 peregrinos, dos quais a quarta parte pertencia à nobreza. O preço da viagem, 600 francos na primeira classe, podia ser desestimulante. Uns setenta e cinco sacerdotes participavam na peregrinação. Como a viagem era bastante excepcional, estava coberta pela imprensa francesa e italiana, sem esquecer as referências da mesma que vieram a ser publicadas nos "Semanários religiosos" das respectivas dioceses.

Este mês fora de Calvados será de uma importância decisiva para a formação e a vocação da jovem Teresa. Até o seu leito de morte, evocará recordações desta grande viagem, excepcional na época para uma adolescente da sua idade.

Em princípio, será a descoberta de outras regiões, de outros países, de paisagens tão novas para a jovem normanda: Suíça, Itália com as suas famosas cidades: Milão, Pádua, Veneza, Bolonha, Pompéia, Nápoles, Florença, Pisa, Gênova... Tesouros da arte, da história. Enriquecimento da vida religiosa: o papado, em Roma, os diferentes santos encontrados: Inês, Cecília, Francisco de Assis, Carlos Borromeu. Todas estas impressões ficarão indeléveis na jovem carmelita.

Tudo tinha começado com três dias de visitas em Paris. Muitos consideravam então a capital como uma "Babilônia moderna", cheia de terríveis perigos. As duas irmãs Martin visitaram diversos monumentos célebres, subiram nos elevadores dos armazéns Printemps, desceram aos Campos Elíseos.

O encontro com outros setores da sociedade também não resultará sem conseqüências para Teresa. Nos fins do século XIX, as divergências sociais da sociedade francesa são ainda muito assinaladas. Os Martin procedem de uma categoria artesanal que triunfou à força do trabalho e de poupanças na administração dos seus bens. Mas não freqüentavam a nobreza. Pois bem, eis que Teresa, habitualmente tão tímida, incluída num grupo social muito diferente do seu.

Dito noutros termos simples, Teresa descobre que "a verdadeira grandeza se encontra na alma e não no nome" (Ms A 56r). Sente-se muito bem nos serões dos hotéis de Veneza ou de Roma. A cura do Natal de 1886 deu frutos que permanecem.

Outra descoberta, mais surpreendente, refere-se aos homens. Rodeada de irmãs, de primas (as Guérin, as Maudelonde), Teresa quase que não conheceu rapazes. Agora, encontra muitos na viagem. As duas filhas Martin, no esplendor da sua juventude (têm quinze e dezoito anos), muito elegantemente vestidas, não podiam passar desapercebidas.

Celina recorda: "combinavam-se casamentos...". Teresa dá-se conta de que poderia facilmente ter um bom casamento. Compreende-se que pressentisse que a viagem não seria indiferente para a sua vocação. A atenção dos homens para com ela adquire inclusive uma forma mais insistente. Quando escreve que Bolonha não lhe deixou uma boa recordação é porque o comboio da peregrinação francesa era esperado por uma nuvem de estudantes italianos. Na estação, um deles tomou Teresa nos braços, e levava-a consigo... mas Teresa lançou-lhe um tal olhar que a soltou imediatamente (VT n. 81, p. 38).

Outra experiência que afetará profundamente a futura carmelita é a convivência com os sacerdotes. Até esse momento não os tinha visto senão no exercício das suas funções sacerdotais, no altar, no confessionário, na catequese. Considerava-os "anjos" e não compreendia porque razão Santa Teresa de Ávila convidava, na sua Reforma da vida carmelitana, a rezar pelos sacerdotes. A jovem Teresa Martin compreendia que se rezasse pelos pecadores... mas, pelos sacerdotes? Dirá que descobriu a sua vocação na Itália: "Durante um mês convivi com muitos sacerdotes santos, e vi que, se a sua sublime dignidade os eleva acima dos anjos, nem por isso deixavam de ser homens fracos e frágeis" (Ms A 56r).

Que pôde ver que a tenha escandalizado? Sem dúvida, nada grave. Mas esta vida comum demonstra-lhe com realismo que os sacerdotes são homens com o seu gênio, os seus defeitos, o seu gosto pela esquisita carne italiana regada com vinhos suaves.

Pode também sofrer — o resultado o demonstrará — a falta de fervor na celebração dos sacramentos, especialmente da Eucaristia.

Todas estas experiências tão novas, vividas apenas num mês, ensinaram muitíssimo a jovem Teresa. Escreverá sobre a viagem: "instruiu-me mais por si só do que longos anos de estudos".

Mais ainda, foi para ela uma experiência interior de primeira importância. Quando começa a viagem sabe que, em certo sentido, está em jogo a sua vocação por causa das distintas tentações já mencionadas, e também porque se sente observada pelo Pe. Révérony, encarregado pelo bispo Dom Hugonin de o informar sobre a jovem postulante e das suas atitudes em relação à vida de clausura.

Desde o princípio da peregrinação, tinha-a afetado um acontecimento interior. Em Paris, Luís Martin tinha reservado os quartos de um hotel perto de Nossa Senhora das Vitórias, o famoso santuário venerado pelas famílias Guérin e Martin. Nele, a jovem recebe uma grande graça: a Virgem a faz compreender que fazia mal em guardar a "dor de alma" desde os quatro anos. Não, a Virgem não queria falar-lhe da graça de 13 de maio de 1883, Teresa não tinha traído o segredo de Maria. Não, Teresa não o imaginou: "A Santíssima Virgem fez-me sentir que tinha sido verdadeiramente ela que me tinha sorrido e me tinha curado" (Ms A 57r).

Teresa fica aliviada, liberta. Apresentando-lhe os perigos da viagem, confia a sua pureza a Maria e a São José (Ms A 57r).

No domingo, dia 6 de Novembro, os peregrinos visitam a cripta de Montmartre (a basílica não estava acabada). Consagração dos peregrinos ao Sagrado Coração. Pode continuar...

Falar com o papa

O sonho espiritual da peregrinação era evidentemente a esperada audiência com o papa Leão XIII. Não se sabia a sua data exata. A intensa correspondência com Lisieux (o correio entre a França e a Itália era muito rápido neste tempo) demonstra a impaciência e a dúvida: deve falar ou não ao papa? Paulina que comanda as operações, vacila. Definitivamente, a resposta é "Sim".

Chega o grande dia, domingo, dia 20 de novembro. Cerimonial longo e complicado: depois de duas missas, Leão XIII recebe um longo desfile de peregrinos. Primeiro as senhoras, os sacerdotes, depois os cavalheiros.

O papa emagrecido está cansado. O Pe. Révérony, vigário geral, que está a seu lado, proíbe-a de falar com o santo Padre. Teresa, que vai passar diante dele, duvida. Mas a intrépida Celina anima-a: "Fala!".

A pobre Teresa lança-se aos joelhos de Leão XIII: "Santíssimo Padre, tenho uma grande graça a pedir-vos!... permita-me que entre no Carmelo aos quinze anos!...". O ancião não entende bem, intervém o Pe. Révérony e explica-lhe. Teresa insiste: "Oh! Santíssimo Padre! Se vós dissésseis que sim, toda a gente concordaria!" O Papa olhou-a fixamente com os seus olhos negros e profundos: "Se Deus quiser, entrará!". Teresa mantém-se ajoelhada. Dois guardas nobres levantam-na e levam-na, com lágrimas, até à porta (Ms A 62-63). Celina, de joelhos, implora a bênção do papa para o Camelo de Lisieux. O Pe. Révérony impacienta-se: estas jovens Martin são muito obstinadas. No entanto, quando alguns instantes depois Luís Martin se apresenta por sua vez — ele não viu o incidente — o vigário geral é muito amável e indica a Leão XIII que aquele cristão é pai de duas carmelitas. O papa dá-lhe a bênção impondo a mão na cabeça. Mas o R Révérony não informou que era o pai das duas jovens que há um momento tinham insistido.

Celina, ressentida, declarou que a audiência fora um "fiasco". Nessa mesma tarde Teresa escreve a Paulina e conta-lhe o seu pesar e as suas lágrimas. Mesmo assim, abandona-se ao Menino Jesus, como a sua bolinha. "O papa está tão velho que parecia morto, nunca o teria imaginado assim, ele não pode dizer quase nada, é o Pe. Révérony quem fala" (Ct 36).

Este não guardará rancor à futura postulante pelo incidente da audiência. Efetivamente, todos os peregrinos aceitaram e consideraram com simpatia a "pequena carmelita". O jornal I'Univers do dia 24 de novembro publicará a notícia. Assim tomará conhecimento o abade Lepellier, confessor de Teresa em Lisieux. Nunca lhe tinha falado disto. Jesus era o seu único Diretor: "Eu demorava muito pouco a confessar-me, e nunca dizia uma só palavra dos meus sentimentos interiores. O caminho por onde seguia era tão direito, tão luminoso, que não precisava de outro guia a não ser Jesus..." (Ms A 48v).

Perante o olhar escrutinador do vigário geral que avaliava as atitudes da futura carmelita, Teresa teria podido adotar uma atitude estudada, aspecto piedoso e olhos baixos. No entanto, mostrou-se natural, cheia de vida, curiosa por todas as maravilhas da viagem, inclusive depois do fracasso do dia 20 de novembro. O Pe. Révérony tinha discernido. Por fim, acreditou na sua votação e no caminho de regresso, em Nice, prometeu-lhe defender a sua causa diante do bispo Dom Hugonin.

O regresso foi menos alegre, mas não menos interessante: entre os diversos santuários, os de Nossa Senhora da Guarda, em Marselha, e o Fourvière, em Lión, acolheram os peregrinos.

No dia 2 de dezembro, Lisieux volta a ver os Martin. Podemos imaginar tudo o que se contou no locutório do Carmelo. Quanto ao essencial, no entanto, tudo continuava obscuro: o bispo Dom Hugonin não tinha dito nada na Itália. Dentro de vinte e dois dias seria o Natal. Cumprir-se-ia à letra o desejo de Teresa de entrar nesse dia no Carmelo?

A luta continua, ao assalto do Pe. Delatroëtte, sempre intratável. Teresa escreve ao Pe. Révérony, depois ao bispo. Resta esperar. Todos os dias Luís Martin acompanha a sua filha aos correios até ao dia 24 de dezembro: que decepção dia após dia!

Chega por fim o Natal de 1887 há tanto tempo esperado. Que contraste com o do ano anterior cheio de luz e de alegria. Na missa da meia-noite, Teresa medita na prova da fé, sem perder a esperança, apesar das lágrimas. Compreende também certamente que não é necessário impor datas ao Senhor: Ele continua a ser o mestre. Ela não é senão uma "bolinha" nas suas mãos. Neste mesmo dia, Celina oferece-lhe um barquinho cuja vela leva a palavra: "Abandono". É a atitude teresiana durante este prolongado período.

Com o ano de 1888 Teresa entra nos seus quinze anos. Uma carta de Paulina informa-a que no dia 28 de dezembro, festa dos Santos Inocentes, o bispo Dom Hugonin tinha autorizado a sua entrada no Carmelo de Lisieux. Mas há um "mas"... As carmelitas, julgando a candidata muito nova para enfrentar a quaresma logo de entrada, decidiram atrasá-la três meses. À alegria, pois, mistura-se uma amarga decepção. Teresa, não obstante, aceita esta nova provação que a faz "crescer muito no abandono e nas outras virtudes" (Ms A 68r).

A jovem receberá algumas aulas em casa da senhora Papinau para aperfeiçoar a sua formação. Mas, sobretudo, preparar-se-á para a vida que a espera. Não com grandes penitências, mas com a fidelidade às pequenas coisas, com mortificações da sua vontade "sempre pronta a impor-se", "prestando pequenos serviços, sem querer nada em troca". "Com a prática destes nadas, me preparei para ser a noiva de Jesus..." (Ms A 68v). Ao fim e ao cabo, estes três meses passaram depressa e deixaram-lhe uma grata recordação.

O seu pai, sempre disposto a viajar, propõe-lhe uma peregrinação à Terra Santa. O seu primeiro impulso leva-a ao desejo de conhecer os lugares onde Jesus viveu. Ela tem um sentido tão realista da Encarnação! Mas isso, obrigava-a a atrasar dois ou três meses a entrada. Coisa que não pode aceitar depois de ter lutado tanto para entrar o mais rapidamente possível. Tem dúvidas sobre a sua decisão? Não lhe parece. O regresso de Leônia, que sai da Visitação de Caen no dia 6 de janeiro — segundo fracasso depois do das clarissas —, recorda-lhe que não será fácil. A sua irmã diz-lhe que reflita bem antes de entrar na vida religiosa, não pode comprometer-se de ânimo leve. Mas Teresa está determinada; ela diz mesmo que "não tem nenhuma ilusão" (Ms A 69v).

Apesar das aparências, tinha já uma forte experiência da vida com Jesus, das graças e dos sofrimentos que isto implicava. Tinha conhecido e passado por múltiplas purificações, experimentado o que é ser salva pela graça. Interessava-lhe apenas uma coisa: viver escondida com o seu futuro Esposo, "ama-lo e fazê-lo amar". Embora tivesse pressentimentos sobre a brevidade da sua vida, não podia saber que a sua presença no Carmelo não passaria de nove anos. O tempo de uma "corrida de gigante" (Ms A 44v).

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TERESA NOS FALA:

Para a Cidade eterna

"Depois de nos termos consagrado ao Sagrado Coração na basílica de Montmartre, partimos de Paris na segunda-feira, dia 7, logo de manhã. Depressa travamos conhecimento com as pessoas da peregrinação. Eu, tão tímida, que ordinariamente mal ousava falar, achei-me completamente livre desse incômodo defeito. Com grande surpresa minha, falava livremente com todas as nobres senhoras, com os sacerdotes, e até com o Senhor Bispo de Coutances" (Ms A 57r).

"Antes de chegarmos a esta «Cidade Eterna», termo da nossa peregrinação, foi-nos dado contemplar muitas maravilhas. Em primeiro lugar foi a Suíça, com as suas montanhas, cujo cimo se perde nas nuvens; com as suas graciosas cascatas jorrando de mil maneiras diferentes; com os seus profundos vales cheios de folhagens gigantescas e de urzes cor-de-rosa. Ah! minha querida Madre, como essas belezas da natureza, espalhadas em profusão, fizeram bem à minha alma! Como a elevaram para Aquele a quem agradou espalhar semelhantes obras-primas numa terra de exílio que não durará mais que um dia... Não tinha olhos que chegassem para contemplar. De pé, junto da portinhola, quase não respirava. Quereria estar de ambos os lados do vagão, pois ao virar-me, avistava paisagens de aspecto encantador e muito diferentes das que se estendiam à minha frente" (Ms A 57v).

"A primeira cidade da Itália que visitamos foi Milão. Admiramos nos seus mais pequenos pormenores a catedral, toda em mármore branco, com tantas, tantas estátuas que dariam para formar um povo quase incontável" (Ms A 58r-v).

"Deixando as senhoras tímidas esconder o rosto com as mãos, depois de terem subido as primeiras torres que coroam a catedral, seguíamos os peregrinos mais ousados, e chegávamos ao cimo do último campanário de mármore, de onde tivemos o prazer de ver a nossos pés a cidade de Milão, cujos numerosos habitantes se assemelhavam a um pequeno formigueiro... Tendo descido do nosso pedestal, começamos os nossos passeios de carruagem, que durariam um mês e saciariam para sempre o meu desejo de caminhar sem me cansar! O cemitério extasiou-nos ainda mais que a catedral. Todas as estátuas de mármore branco, que um cinzel de gênio parece ter animado, estão espalhadas pelo vasto Campo dos mortos com uma espécie de negligência, o que, quanto a mim, lhes aumenta o encanto..:” (Ms A 58v)

"Em Veneza o cenário mudou completamente. Em vez do barulho das grandes cidades, não se ouvem, no meio do silêncio, senão os gritos dos gondoleiros e o murmúrio da onda agitada pelos remos. Veneza não deixa de ter encanto, mas acho esta cidade triste. O Palácio dos Doges é esplêndido; no entanto, também ele é triste, com os seus grandes salões decorados a ouro, a madeira, os mármores mais preciosos e pinturas dos maiores mestres" (Ms A 59r).

"Fiquei contente ao tomarmos o caminho de Loreto. Não me admira que a Ssma. Virgem tenha escolhido este sítio para mudar para lá a sua Casa bendita. A paz, a alegria, a pobreza reinam ali como soberanas. Tudo é simples e primitivo. As mulheres conservaram o gracioso traje italiano, e não adotaram, como as de outras cidades, a moda de Paris. Enfim, Loreto encantou-me. Que direi da Santa Casa?... Ah! a minha emoção foi profunda ao encontrar-me debaixo do mesmo teto que a Sagrada Família, ao contemplar as paredes nas quais Jesus fixara os olhos divinos, ao pisar a terra que São José regara com o seu suor, onde Maria trouxera Jesus nos braços, depois de O ter trazido no seu seio virginal... Vi o quartinho onde o Anjo desceu até junto da Ssma. Virgem; coloquei o meu terço na pequena escudela do Menino Jesus... Que encantadoras são estas recordações!..." (Ms A 59v).

"Falta-me agora falar de Roma, termo da nossa viagem, onde pensava encontrar a consolação, mas onde achei a cruz! Quando chegamos era de noite. Tendo adormecido, fomos acordados pelos empregados da estação, que gritavam: «Roma! Roma!» Não era sonho. Eu estava em Roma !

O primeiro dia passou-se extramuros. Foi talvez o mais delicioso, porque todos os monumentos conservam o cunho da antiguidade, ao passo que, no centro de Roma, nos poderíamos julgar em Paris, ao ver a magnificência dos hotéis e das lojas. Esse passeio pelas campinas romanas deixou-me uma gratíssima recordação. Não falarei nada dos lugares que visitamos; há muitos livros que os descrevem amplamente. Falarei apenas das principais impressões que senti. Uma das mais agradáveis foi a que me fez estremecer à vista do Coliseu. Estava finalmente a vê-la, essa arena onde tantos mártires derramaram o sangue por Jesus! Já me preparava para beijar a terra que eles tinham santificado..., mas, que decepção! O centro não é mais que um amontoado de escombros, que os peregrinos têm de se contentar em ver de longe, porque uma barreira impede a entrada. Aliás, ninguém é tentado a procurar penetrar no meio daquelas ruínas... Haveria eu de ir a Roma sem descer ao Coliseu?" (Ms A 60r-v).

"O Papai olhava para nós muito admirado com a nossa audácia, e logo nos mandou voltar. Mas as duas fugitivas já não ouviam nada. Assim como os guerreiros sentem aumentar a coragem no meio do perigo, assim aumentava a nossa alegria, em proporção com o esforço que fazíamos para atingir o objeto dos nossos desejos. A Celina, mais previdente do que eu, tinha escutado o guia, e, lembrando-se de que ele acabava de indicar um certo pequeno pavimento em forma de cruz, como sendo onde os mártires combatiam, pôs-se a procurá-lo. Daí a pouco, tendo-o encontrado, e tendo-nos ajoelhado nessa terra sagrada, as nossas almas uniram-se numa mesma oração..." (Ms A 61 r).

"As Catacumbas deixaram-me também uma impressão muito doce. São exatamente como as tinha imaginado ao ler a descrição delas nas vidas dos mártires. A atmosfera que aí se respirava parecia-me imbuída de urna tão suave fragrância, que, depois de lá ter passado uma boa parte da tarde, tinha a impressão de estar ali apenas há alguns instantes" (Ms A 61r-v).

"No dia seguinte ao daquela data memorável, tivemos de partir de manhãzinha para Nápoles e Pompéia. Em nossa honra, o Vesúvio bramiu todo o dia, deixando escapar, com os seus tiros de canhão, uma espessa coluna de fumaça. Os vestígios que deixou nas ruínas de Pompéia são aterradores. Mostram o poder de Deus que olha para a terra e a faz tremer, que toca as montanhas e as reduz a fumo» (Sal 103,32). Teria gostado de passear sozinha no meio das ruínas, a sonhar com a fragilidade das coisas humanas, mas o número dos viajantes roubava grande parte do encanto melancólico da cidade destruída... Em Nápoles, sucedeu-se exatamente o contrário. O grande número de carruagens de dois cavalos tornou magnífico o nosso passeio ao mosteiro de São Martinho, situado numa elevada colina que domina a cidade inteira. Infelizmente, os cavalos que nos levavam, muitas vezes não obedeciam ao freio, e mais do que uma vez julguei ter chegado a minha última hora " (Ms A 64v-65r).

"Em Florença, fiquei contente por contemplar Santa Madalena de Pazzi, no meio do coro das Carmelitas, que nos abriram a grade grande. Como não sabíamos que (íamos gozar deste privilégio, e desejando muitas pessoas tocar os seus terços no túmulo da Santa, eu era a única a conseguir passar a mão através da grade que dele nos separava; e assim toda a gente me trazia terços, e eu senti-me muito orgulhosa com o meu ofício... Tinha de arranjar maneira de tocar em tudo. Assim, na igreja de Santa Cruz de Jerusalém (em Roma), pudemos venerar vários fragmentos da verdadeira Cruz dois espinhos e um dos sagrados cravos, encenado num magnífico relicário de ouro trabalhado, mas sem vidro. Por isso, encontrei o modo de, ao venerar a preciosa relíquia, introduzir o meu dedo mínimo num dos orifícios do relicário, e pude tocar no cravo que foi banhado pelo sangue de Jesus..." (Ms A 66r-v).

"Um dia, em que visitamos um convento de Religiosos Carmelitas, não me contentando em seguir os peregrinos pelas galerias exteriores, avancei pelos claustros interiores... De repente, vi um bom velho Carmelita que, de longe me fazia sinal para me afastar. Mas em vez de ir embora, aproximei-me dele e, apontando para os quadros do claustro, fiz-lhe sinal de que eram bonitos. Reconheceu, sem dúvida, pelo meu cabelo caído sobre as costas e pelo meu aspecto jovem que eu era uma criança. Sorriu-me com bondade, e afastou-se, ao ver que não tinha diante dele uma inimiga. Se soubesse falar italiano, ter-lhe-ia dito que era uma futura Carmelita, mas, por culpa dos construtores de Babel, foi-me impossível.

Depois de termos ainda visitado Pisa e Gênova, regressávamos a França. Nesse trajeto, o panorama era magnífico. Umas vezes seguíamos à beira do mar, e o caminho de ferro passava tão perto dele, que me parecia que as ondas nos iam atingir. (Esse espetáculo foi causado por uma tempestade. Era à tardinha, o que tornava a cena ainda mais imponente). Outras vezes íamos através de planícies cobertas de laranjeiras com frutos maduros, de verdes oliveiras de folhagem escassa, de graciosas palmeiras... Ao anoitecer, vimos numerosos pequenos portos de mar iluminarem-se com uma multidão de luzes, enquanto no céu cintilavam as primeiras estrelas...” (Ms A 66v-67r)