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sábado, 20 de fevereiro de 2010

OS SÍMBOLOS TERESIANOS

Rose Lemos Piotto, ocds*


Os símbolos Teresianos: a água, o poço, o castelo e a lagarta, eis aqui alguns para que possamos adentrar mais intimamente na literatura Teresiana

Santa Teresa de Jesus recorre a símbolos expressivos para dar a conhecer melhor a sua mensagem. Era normal que ela utilizasse símbolos quando nos transmitia as suas experiências mais íntimas. Ao usar o símbolo a autora não se sente na obrigação de entrar em detalhes explícitos no momento de nos abrir o interior da sua alma. Sabemos que o símbolo “fala sem falar”, ou melhor ainda, é uma espécie de mensagem aberta, ampla, capaz de despertar no leitor diversas interpretações, dependendo da sua capacidade de receptibilidade ou da sua empatia com a experiência da autora.
É óbvio que Teresa, como filha do seu tempo, utilize imagens e símbolos da sua época. Ela escreve noutro contexto e cabe-nos a nós, leitores de hoje, atualizar a mensagem, ajustar os conceitos sem perder a profundidade dos conteúdos presentes através dos símbolos.
A Santa Doutora confessa, como já referimos, que tenha lido ou ouvido, e certamente assim deve ser. A Originalidade não está na descoberta de metáforas, mas na amplitude e no desenvolvimento que lhes dá, na ternura e graça com que ela expõe na ironia delicada e fina que emerge a partir delas, algo que se torna efeito da influência magnética da Santa Mãe ", o ímã do mundo", como ela chama, animada, Fray Luis de Leon
Por último é preciso dizer que nem todos os símbolos teresianos têm a mesma importância. Alguns são essenciais, outros acidentais e finalmente aparecem os funcionais.
“Se a natureza inanimada despertou em Teresa metáforas tão belas como temos visto, na alma de Teresa de Jesus, maior fertilidade lhe ofereceria e mais beleza de criações surpreendentes, a natureza viva com o encanto de suas maravilhosas transformações, desde a flor que deleita e perfuma ate o coração que sofre e ama.
Nos quadros de natureza inerte, buscava sempre a mística Doutora a variedade do movimento, como para dar-lhes animação e vida. O caminho e a sensação para andar por eles; a água salta entre a arena de seu manancial, o ou correr pela grama e pedras, ou ondulando ao vento ou reverbera a luz, o Sol em si [da Trindade] cascata é como brilha, não brilha na alma como remansos de luz e calma, mas como a luz fervente, inflamada que transferiu os poderes, sentidos e as coisas.
Nos quadros da natureza inerte, buscando sempre a mística da natureza viva não tem necessidade de ser concedido o que ela tomou emprestado de si mesma, o que é a animação e o movimento é essencialmente dinâmico. E por isso as metáforas que inspira são mais ágeis, coloridas e vigorosas do que inertes.
Devemos começar pelas belezas do reino vegetal, examinando-se as analogias favoritas de Santa Teresa, nascida no interior das fronteiras do reino. Alguns são grandes, vou mencionar de passagem, porque vimos, em parte, quando nós contemplamos os córregos de águas claras.
Na verdade, a alma é um jardim. "Pareceu-me", diz Santa-me ter lido ou ouvido essa comparação que eu tenho memória ruim como eu não sei onde, ou o fim, mas por agora contenta-me essa imagem.
Deve fazer conta, ele começa, ele começa a fazer um jardim na terra que é muito infrutuosa e que tem muito mato para que encante o Senhor. Sua Majestade, arranca as ervas ruins ruins, e há de plantar o que é bom...Agora voltamos ao nosso jardim ou pomar e ver como começam essas árvores a florescer e dar frutos mais tarde, flores e cravo e o mesmo, para conferir o odor. Regala-me esta comparação ... que minha alma é um jardim e Deus passeasse nele ...». O trabalho ativo "quando saem desta raiz e das flores perfumadas são impressionantes, pois estas árvores vêm de amor de Deus e o perfume dura muito" e não passa rápido, mas faz grande um grande bem " também as faltas lembram pequenas plantas quando são propostas, mas se regamos as mudas todos os dias "operam-se tão grande mudança que não vê necessidade de ver necessária depois a pá e enxada. Assim parece fazer cada dia a a mesma falta (ainda que pequena que seja) se não nos emendarmos delas, mas se um dia ou dez o evitamos, em seguida, começa a ser facil fácil ».
Além disso, é inútil procurar a origem dessas analogias são muito comuns em livros que abordam a vida espiritual de seu ponto de vista, os Versos belo dos Cânticos, que muito usa em suas comparações entre a alma e Deus.
Deixando, então, pomares e jardins, na primavera, as flores são lindíssimas e alguns frutos são de esperança, nós vemos as cores que nos deixou Santa Teresa, aplicando-se à vida sobrenatural das qualidades reais ou simulados de alguns animaizinhos de Deus” (Fray Luis Urbano, O. P.)

O BICHO DA SEDA

Em pleno coração do livro do castelo interior e dentro das quintas moradas, Santa Teresa descreve a transformação que experimenta a pessoa na oração, com um símbolo muito belo: o bicho da seda, o qual se fecha no seu casulo interior, e aí “com as suas boquitas vão fiando a seda, e fazendo uns casulos muito apertados onde se fecham… E morre este bicho, que é grande e feio, e sai do mesmo casulo uma borboleta branca muito bonita”.

Esta imagem do bicho da seda serve para que Teresa expresse melhor a mudança e a transformação da pessoa, como mistério pascal de morte e ressurreição. No desenvolvimento desta transformação, como no processo em que o bicho da seda se metamorfoseia em borboleta, é muito importante a acção do Espírito Santo que vai ajudando nessa disposição e no nosso trabalho para não ficarmos pelo meio do caminho.

O CASTELO INTERIOR


Talvez seja este o símbolo que melhor representa Santa Teresa e pelo qual ficou ligada para sempre à cultura. Ela utiliza este símbolo para representar a alma (a pessoa e a sua interioridade) “ofereceu-se-me considerar a nossa alma como um castelo…”.

A este castelo, da Santa, não lhe falta nada e assim nos mostra que tem uma cerca que é o corpo, uma porta que é a oração; os habitantes principais são Deus e o homem. Mas há mais gente: vassalos e guardiões, que a Santa compara aos sentidos e às potências da alma (memória, inteligência e vontade). E, como todo o Castelo, conta com os seus inimigos que se reflectem nos vermes e animais, nas coisas peçonhentas e nos demonios.
Finalmente este castelo conta com os aposentos da alma que são como as diversas moradas do Céu, onde habita Deus, “um paraíso onde Ele tem as suas delícias”. As moradas deste castelo encontram-se “umas no alto, outras em baixo, outras aos lados; e, no centro e meio de todas estas, tem a principal, que é o compartimento do palácio onde está o rei”.
Diante do panorama deste castelo apresentam-se-nos três alternativas:

 Destruí-lo, que equivale à perdição total da pessoa.
 Admirá-lo e viver fora dele, o que corresponde a viver na mediocridade e no pecado.
 Ou nos decidirmos a conquistá-lo, para viver unidos a Deus.

Para aprofundar este símbolo recomendamos a leitura do livro:
"As Moradas - Castelo Interior"

Mais imagens nas palavras de Teresa:

...”Já tereis ouvido das maravilhas de Deus no modo como se cria a seda, invenção que só Ele poderia conceber. É como se fosse uma semente, grãos pequeninos como o da pimenta. Devo dizer que nunca o vi, mas ouvi-o dizer; assim, se algo não corresponder, não é minha a culpa. Pois bem, com o calor, quando começa a haver folhas nas amoreiras, essa semente — que até então estivera como morta — começa a viver. E esses grãos pequeninos se criam com folhas de amoreira; quando crescem, cada verme, com a boquinha, vai fiando a seda, que tira de si mesmo. Tece um pequeno casulo muito apertado, onde se encerra; então desaparece o verme, que é muito feio, e sai do mesmo casulo uma borboletinha branca, muito graciosa. Mas se isso não fosse visto, e só contado como ocorrido em outros tempos, quem o poderia crer? Que razões teríamos para concluir que uma criatura irracional como a lagarta ou a abelha seja tão diligente e engenhosa para trabalhar em nosso proveito, chegando a pobre lagartinha a perder a vida na tarefa de o fazer? Para um pouco de meditação basta isso, … mesmo que eu nada mais acrescentasse, porque aí podeis considerar as maravilhas e a sabedoria do nosso Deus. E o que seria se conhecêssemos as propriedades de todas as coisas? É de grande proveito que nos ocupemos em meditar nessas grandezas e nos alegremos de ser esposas de Rei tão sábio e poderoso. A alma — representada por essa lagarta — começa a ter vida quando, com o calor do Espírito Santo, começa a beneficiar-se do auxílio geral3 que Deus dá a todos, fazendo uso dos meios confiados pelo Senhor à Sua Igreja: confissões freqüentes, boas leituras e sermões. São esses os remédios para uma alma que está morta em seu descuido, pecados e ocasiões de cometê-los. Então ela começa a viver e encontra sustento nisso, bem como em boas meditações, até estar crescida. É aqui que se concentra o meu propósito, pois o resto pouco importa. … a lagarta começa a fabricar a seda e a edificar a casa onde há de morrer. Eu gostaria de explicar que essa casa é, para nós, Cristo. Creio ter lido ou ouvido em algum lugar que a nossa vida está escondida em Cristo ou em Deus — o que é a mesma coisa — ou que nossa vida é Cristo....Morra, morra esse verme, tal como o da seda quando acaba de realizar a obra para a qual foi criado! E comprovareis como vemos a Deus e nos vemos tão introduzidas em Sua grandeza como a lagartinha em seu casulo.

...agora o que acontece a essa lagarta; é para isso que tenho dito tudo o mais. Quando está nesta oração — e bem morta está para o mundo —, dela sai uma borboleta branca. Ó grandeza de Deus! Quão transformada sai a alma daqui, depois de ter estado imersa na grandeza de Deus e tão unida a Ele, embora esse estado seja tão breve que, em minha opinião, nunca chega a meia hora!
Eu vos digo, na verdade, que a própria alma não se conhece a si mesma. Porque há aqui a mesma diferença que existe entre uma lagarta feia e uma borboletinha branca. A alma não sabe como pode merecer tanto bem — de onde ele pode advir, quero dizer, pois ela bem sabe que não o merece. ...Oh! Ver o desassossego dessa borboletinha, apesar de nunca ter estado mais quieta e tranqüila em sua vida, é coisa para louvar a Deus! Ela não sabe onde pousar e descansar. Depois de ter experimentado tal estado, tudo da terra a descontenta, em especial quando são muitas as vezes que Deus lhe dá desse vinho. Já não dá valor ao que fazia quando lagarta, que era tecer pouco a pouco o casulo. Nasceram-lhe asas. Se pode voar, como pode ela contentar-se em andar passo a passo? Tudo quanto pode fazer por Deus lhe parece pouco, comparado com os seus desejos. Não acha muito o que os santos fizeram, uma vez que já entende por experiência como o Senhor ajuda e transforma uma alma a ponto de transfigurá-la.”
. Afirmou-se que na simbologia Teresiana prevalece, como motivo, a água. Talvez haja que caracterizar aquela, antes como simbologia feminina. Nela prevalece, é certo, a água em suas mais variadas manifestações, mas abundam os símbolos maternais, como “o menino que ainda mama, aos peitos de sua mãe”, os aromas e as flores, os símbolos caseiros e os do amor, as “panelas”, a pousada ou a morada, a música... Todavia abundam nas páginas de Teresa as imagens bélicas, como a luta ou a peleja (“encerradas pelejamos”), as baterias, artilharia, o capitão e os soldados, o alferes, a seta, o dardo e o arcabuz, o xadrez. Inclusive a “corrida de touros” e o “cadafalso” ou tablado a partir de onde pode ser contemplada sem risco. também Teresa tenha recorre ao simbolismo da chuva, das nuvens, o sol, o céu empírico, o anoitecer e o amanhecer, o mar e suas ondas...


No Livro da Vida, o mais elaborado é o símbolo da água de regado sobre o horto da alma. Imagem que provém a partir de sua experiência pessoal e de suas leituras .Ela o elaborou cuidadosamente, à base dos quatro modos de regar (poço, nora, arroio, chuva, para simbolizar quatro modos de relação entre Deus e a alma, e várias situações do espírito humano: horto árido, flores, frutos, partilha de frutos aos demais. E com isso, uma síntese elementar do desenvolvimento da vida espiritual, seja a nível autobiográfico ,seja a nível doutrinal.


O simbolismo da água terá novas elaborações nos restantes livros doutrinais: fonte de água viva com todos os seus derivados (C 19,2... com expressa inspiração evangélica); água de aquedutos e água de reservatório manancial, no Castelo Interior para simbolizar o contraste entre o esforço humano (ascese: água de aquedutos) e o dom divino (o místico: “reservatório que se enche de água”). Com a explícita confissão de que “não encontro nada mais a propósito para declarar algumas coisas de espírito que essa da água” .“Sou tão amiga deste elemento, que o observei com mais advertência que outras coisas”. Agua em sua plenitude oceânica, mas com marulhada e risco de submersão, como no caso da “nau” que chega ao porto, já nas sétimas moradas Água e esponja, como alma imersa no divino

Sem dúvida, o símbolo mais elaborado por Teresa é o do “castelo da alma”, base de todo o livro das Moradas, e imagem de todo o processo espiritual. Serve-lhe, antes de tudo, para delinear a estrutura do ser humano (corpo, alma, espírito, centro da alma, relação do homem com Deus transcendente e imanente). Serve-lhe, por sua vez, para interpretar o texto evangélico da “inabitação” ou da morada de Deus na alma e para expressar sua própria experiência trinitária
Também O símbolo do “bicho-da-seda” que se metamorfoseia em borboleta. Ao longo das três moradas finais servir-lhe-á para desenvolver o processo místico da vida espiritual, desde o trabalho ascético precedente, através da união com Cristo, até a plena transfiguração mística: fogo em que se abrasa a borboleta .


Teresa recorre ao símbolo esponsal, antes de tudo, para expressar sua própria experiência, e depois para diagramar as fases finais do processo místico. Sem se desligar da motivação bíblica do símbolo, Teresa incorpora a ele a liturgia do sacramento e o realismo da vida social de seu tempo. Desta toma os três momentos do processo: o encontro, o desposório e o matrimônio. O encontro, para ilustrar a fase do conhecimento místico: quintas moradas; o desposório, para expor a mútua entrega das vontades entre a alma e o Senhor; e o matrimônio espiritual, para simbolizar a união plena entre Deus e a alma, ponto culminante da experiência religiosa. Já notamos que a este símbolo lhe concede Teresa a suma aptidão para expressar a vida mística. É bem possível que essa convicção derive de sua leitura do Cântico dos Cânticos

“Tem me dado o Senhor, de alguns anos para cá, um gosto muito grande cada vez que ouço ou leio algumas palavras dos Cânticos de Salomão, e isto de modo tão extremado que eu, sem entender com clareza o latim em língua vulgar, me recolhia mais e tinha minha alma mais movida do que pelos livros muito devotos que compreendo; e isso é uma coisa quase comum...”
Ao lado desses símbolos maiores, existe nos escritos de Teresa uma constelação de imagens ou símbolos menores. Também estes são reveladores do pensamento teresiano. Impossível catalogá-los aqui. Há, antes de tudo, uma larga série de símbolos bíblicos, que denotam a sensibilidade receptiva de Teresa e sua capacidade de entalhamento das imagens clássicas na imaginaria original sua.


Podemos agora visualizar os diferentes elementos contidos no processo desta imagem:
 Semente: São uns bagos, como grãos de pimenta, que se convertem em larvas.
 A folha da amoreira: É o primeiro espaço onde se desenvolvem, é o alimento.
 Ambiente: Calor, elemento que necessita a semente para viver, é a graça do Espírito Santo.
 Bicho da seda: É cada um de nós a partir da perspectiva da transformação profunda.
 Tecer o casulo ou a “casa”: é um convite para construir a própria habitação, a viver a interioridade.
 Fabricar a seda, lavrar a seda: Cristo é a morada. Vive dentro de cada um. A seda é o resultado das maravilhas que Deus faz através de nós.
 Trabalhos: São todos os esforços e acções que temos que fazer para corresponder à graça, para não vivermos superficialmente.
 A borboleta: equivale ao “homem novo”, é o fruto da acção transformadora de Deus. É graça, libertação.Este símbolo é a síntese da história de todo o homem nascido para ter asas e elevar-se.
 A abelha e a aranha, a formiga e o leão, a pomba e a águia, as peçonhas
 A “ave de asas fracas”
 A “panela que ferve em demasia”
 O coração, a ferida interior, as entranhas, “as medulas...,
 A câmara de jóias
 O imperador e o mendigo
 O braseiro
 e os perfumes


Igual floração de linguagem simbólica para perfilar a imagem de Cristo: mestre, esposo, modelo, caminho e vida, amigo verdadeiro, capitão do amor...

É também notável a constância com que Teresa recorre aos símbolos para expressar sua idéia profunda do ser humano: na realidade todos os símbolos maiores refletem seu empenho secreto por dizer o que em sua estima é o homem: castelo de diamante, horto de flores, larva com vocação de vôo e de borboleta; ele é um possível esposo de Cristo ou de Deus; é um paraíso de Deus, “paraíso onde Ele disse ter Suas delícias” , árvore plantada junto às correntes de água.

Tudo isso, em contraste com a imagem que Teresa tem de si mesma: “uma como eu”, “verme que assim vos atreve”, “vermezinho de mau odor”, formiga que tenta falar, “água tão turva” Imagem negativa, compensada de certo modo com a qual ela mesma projeta de seus carmelos e suas monjas: pombaizinhos da Virgem, “pensai que esta congregação é a casa de santa Marta” ,filhas da Vigem, soldados embandeirados de alferes, borboletas, pombas...: “muito mais quero que se prezem de parecer simples, o que é muito próprio de santas, do que de tão retóricas...”

Bibliografia:
 Tomaz Alvarez,
 Fray Luis Urbano, O. P,
 Dicionário Teresiano ,
 Obras Completas De Santa Madre.
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* Rose Lemos Piotto é conselheira e membro da Comissão de Formação da Província São José da Ordem dos Carmelitas Descalços Seculares  -OCDS
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sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Edith Stein: hebraicidade e santidade cristã


Armando Gargiulo.

1 – Os vários âmbitos de sua procura

"Judia, filósofa, carmelita, mártir, Edith Stein (1891-1942), que traz em sua intensa vida uma síntese dramática de nosso século (João Paulo II, 1º de maio de 1985), e que a Igreja enumera entre seus santos (desde 11 de outubro de 1998: n.d.r) abre caminhos de relação e de comunhão em âmbitos e níveis diferentes, mas em pontos nodais da experiência humana, cristã, eclesial, inter-religiosa" (1).

Desta figura feminina tão rica e poliédrica outros expertos escreveram e escreverão para alumiar a contribuição de pensamento e de ação em diferentes âmbitos.

Edith Stein,

Por exemplo, em âmbito cultural social: Edith engenhou-se, com escritos, aulas e palestra, para promover o papel da mulher na sociedade e na Igreja. Com pesquisas sobre a noção do Estado esclareceu a relação dele com a nação, com o povo e a sociedade, e até mesmo seu equilíbrio precário com a esfera religiosa. Ela que no começo era fortemente nacionalista e "prussiana", após a grande guerra foi partidária da república de Weimar, e empenhou-se fortemente em contrastar os primeiros sucessos do partido nacional-socialista.

Especialmente no âmbito filosófico, Edith deixou marcos indeléveis de originalidade: ela que era aluna e assistente de Husserl, em Friburgo, e teria merecido ser sua sucessora na cátedra, (esta foi tomada porém por Heidegger que se manifestou aquiescente com o nazismo!) superando o mestre, procurou lançar uma ponte entre a filosofia contemporânea, sintetizada na fenomenologia husserliana e a tradição medieval, manifestada pela filosofia de S. Tomás, suplantando a neo-escolástica.

Sua obra prima é Ser finito e Ser eterno, quase uma nova ontologia, síntese de filosofia e mística. Se tivesse conseguido continuar suas pesquisas e criar um movimento de pensamento, como estava em sua índole, talvez a teríamos saudada como a maior filosofa do século.

Em fim, no âmbito religioso místico, passando pela espiritualidade dominicana, beneditina e chegando à mística de S. Teresa d’Ávila e de São João da Cruz, completou seu projeto de vida: pensamento e experiência da Cruz com Cristo crucificado, como sacrifício-doação para a salvação de seu povo.

Sua última obra, "A ciência da cruz" (Scientia Crucis), ficou inacabado, porque o teria mesmo concluído numa câmara de gás no campo de Auschwitz!

Em todos esses âmbitos, seja com o pensamento seja com a ação, o fio vermelho da continuidade foi a "intersubjetividade", (Einfühlung, "empatia", intuição empática), a "comunhão". O que quero mostrar agora é o caminho de relação e de comunhão realizado na vida de Edith, entre o seu ser judia e o ser santa, mártir católica.

2 – Família hebraica e educação em família

Temos sorte, porque a mesma Edith nos deixou a história de sua família, com lineamentos autobiográficos da infância e dos anos da juventude (2). Edith nasceu em Breslavia (agora território polonês), aos 12 de outubro de 1891 numa família hebraica muito praticante. Última de sete filhos, nasce mesmo numa festa religiosa hebraica, no dia do Kippur, isto é da Expiação. Para a mãe Augusta era um pressentimento do destino da filha.

Eis como lembra a tradição religiosa na família materna:

"Os meninos estudaram religião com um professor hebreu; aprenderam também um pouco de hebraico... Aprenderam os mandamentos, leram trechos tirados das escrituras e decoraram alguns salmos (em alemão). Sempre foi ensinado para eles o respeito para com todas as religiões e de nunca falar mal delas. O avô ensinou a seus filhos as rezas prescritas. No sábado à tarde, os pais chamavam os filhos que estavam em casa para rezar junto com eles as preces vespertinas e explica-las. O estudo diário das Escrituras e do Talmud – considerado uma obrigação do homem hebreu nos séculos precedentes e ainda hoje para os hebreus orientais – não era mais praticado na casa dos avós, mas todos os preceitos da Lei eram observados com o máximo rigor".

Em seguida Edith conta a prática religiosa vivida em família na ocasião das festas principais. Algumas anotações nos abrem à compreensão do tipo de educação assimilada. Por exemplo, na ocasião da liturgia do Seder (a Páscoa), ela anota:

"A solenidade da festa sofria pelo fato que só minha mãe e as crianças menores participavam com devoção. Os irmãos que deviam fazer as orações em lugar de nosso pai, que tinha falecido, o faziam em modo pouco digno. Quando o maior faltava e o menor assumia a função de dono da casa, claramente fazia notar quanto se burlava de tudo isso".

Na ocasião da festa da Expiação (Kippur): "Naquela tarde mia mãe ia para o templo, acompanhada pelas irmãs mais velhas e também os irmãos achavam um dever moral não faltar. Ninguém de nós deixava o jejum, também quando não tínhamos mais a fé de nossa mãe e não fazíamos as prescrições rituais fora de nossa casa".

Edith neste ambiente plantou raízes profundas; mas não foi a fé no Deus de Israel, e sim um forte rigor moral, derivante da Lei. " A mãe nos ensinava o horror do mal. Quando dizia: "é pecado", aquela palavra expressava o máximo da feiúra e da maldade, e nos deixava transtornados".

Assim, em outra parte ( 3), Edith lembra os anos infantis. Ela mesma, já próxima da transferência de Breslavia para a Universidade de Göttingen (1911), se confessa "não crente, dotada de forte Idealismo ético". Ela guardará grande estima e admiração pela piedade religiosa da mãe, e a acompanhará sempre, quando está em família, na sinagoga, também depois do batismo e na vigília de sua entrada para o Carmelo.

Alguns traços de sua limpidez moral: quando pela leitura de um texto romanceado lhe se apresentava a vida estudantil com traços repugnantes, devassidão, alcoolismo, etc., ela ficava tão enjoada que precisava semanas para se restabelecer em sua alegria. Porém, Edith, mesmo exteriormente reservada e dedicada com abnegação ao trabalho, levava no coração "a esperança de um grande amor e de um matrimônio feliz", e anota: "Sem ter algum conhecimento da dogmática e da moral católica, estava porém impregnada pelo ideal matrimonial católico". É o caminho subterrâneo da Lei de Moisés para o Evangelho do Amor!

3.1 - Husserl e a universidade de Göttingen

A universidade de Göttingen,
numa foto da época.

Em sua viva e profunda inteligência, Edith tem a procura e a sede da verdade, em correspondência ao rigor moral. Ela não conseguiu se sentir satisfeita com a corrente psicologista do tipo positivista, prevalente na universidade de Breslavia, e assim orientou-se, logo que soube, para a Fenomenologia de Edmund Husserl, catedrático em Göttingen.

Eis como, depois de anos de experiência, descreve o método de Husserl: "Seu modo de guiar o olhar sobre as coisas mesmas e de educar a captá-las intelectualmente com absoluto rigor, a descrevê-las com sóbria maneira, libertou seus alunos de todo arbítrio e de toda fatuidade no conhecimento, levando-os a uma atitude cognitiva simples, submetida ao objeto e por isso humilde. No mesmo tempo ensinou a se libertar dos preconceitos e a tirar todo obstáculo que poderia destruir a sensibilidade para com as novas intuições. Esta atitude, à qual nos educou responsavelmente, libertou muitos de nós, nos tornando disponíveis em relação à verdade católica" ( 4).

Mas desde os primeiros anos de Göttingen (1911-1914) anota: "Tinha um profundo respeito para as questões de fé e tinha conhecido pessoas crentes; até ia numa igreja – protestante – com minhas amigas... mas ainda não tinha reencontrado o caminho para Deus".

3.2 - O ambiente do grupo husserliano

É um fato histórico notável: no grupo de alunos e colaboradores de Husserl aconteceram muitas conversões religiosas. O mesmo Husserl e sua esposa passaram do judaísmo ao protestantismo, à Igreja reformada luterana de Viena, onde receberam o batismo (Husserl tinha 27 anos). Os filhos foram criados na religião protestante.

Mesmo que em seu trabalho filosófico não se punha explicitamente o problema religioso e que afirme de não ser um filósofo cristão, Husserl, também numa conversa com a aluna e amiga de Edith, Aldegonda, exclama: "Já vos falei muitas vezes: minha filosofia, a fenomenologia, quer ser uma via, um método que permita a quantos se distanciaram do cristianismo e da Igreja voltar para Deus" (5).

No grupo husserliano distingue-se o prof. Adolf Reinach que, junto à mulher Ana se converte do judaísmo para a fé evangélica. E esta, após a morte do marido na guerra, passa para a Igreja Católica. O mesmo acontecerá com a mulher de Husserl e do prof. Alexandre Koyré, também ele convertido.

A prof.ra Hedwig Conrad-Martius, converteu-se à fé evangélica junto com o marido, e os dois serão grandes amigos de Edith; é na casa deles que Edith terá a grande fulguração, após a leitura de um fôlego, da Autobiografia de Santa Teresa d’Ávila: "Esta é a verdade!" E será a amiga Hedwig, protestante, a madrinha no batismo católico de Edith.

Mas foi sobretudo Max Scheler, se juntando mais tarde ao grupo e freqüentemente em polemica com Husserl, a exercer influência sobre Edith: "a maneira que tinha... de difundir solicitações geniais, sem aprofundar sistematicamente, tinha algo de brilhante e encantador". Seus escritos sobre os valores e a empatia tinham para Edith uma importância particular.

Adolf Reinach,
com a mulher Ana.

Desde então começou a se ocupar do problema da Einfühlung (empatia, intuição empática) que foi o assunto de sua tese de láurea.

Mas a influência de Scheler adquiriu importância também além do âmbito filosófico. Ele, de fato, passou do judaísmo para a Igreja católica, mas depois, por motivos de vida privada se distanciou e no fim voltou de novo.

Scheler "tinha muitas idéias católicas e sabia divulgá-las fazendo uso de sua brilhante inteligência e habilidade lingüística. Foi assim que entrei em contato pela primeira vez com um mundo que desde então era para mim desconhecido. Isso ainda não me levou à fé, porém de desabrochou um campo de "fenômenos" diante dos quais não podia ficar cega. Os limites dos preconceitos racionalistas em que cresci sem sabe-lo, caíram, e o mundo da fé apareceu improvisamente diante de mim. Pessoas com quem tinha relações quotidianas e a quem olhava admirada, viviam naquele mundo. Devia então valer a pena de começar uma séria reflexão.. Por enquanto não me ocupei de questões religiosas: estava muito ocupada em outras coisas. Contentei-me acolher em mim, sem opor resistência, os estímulos que me vinham do ambiente que freqüentava, e quase sem perceber, devagarzinho fui transformada.".

Na verdade, estes anos de Göttingen, a "sede da verdade" que Edith dizia ser sua única oração, incônsciamente se transformava em "sede de Deus". Quando, por exemplo, em 1916, na véspera da discussão de sua tese, em Friburgo, tem uma longa conversa com Hans Lipps, um do grupo que ironiza sobre o fervor de dois amigos, Dietrich von Hildebrand e Siegfried Hamburger, convertidos ao catolicismo, Edith anota: "Não, eu não estava entre aqueles. Teria quase dito: "Infelizmente não"". O amigo afirma entender nada, e ela: " Eu entendia u m pouco. Mas não podia dizer muito a respeito disso".


Notas
1.
Emanuela Ghini o.c.d., Edith Stein: ebrea, filosofa, carmelitana, martire, Osservatore Romano, 13 settembre 1998.
2.
Edith Stein, Storia di una famiglia ebrea, Città Nuova, Roma 1998.
3.
Teresa Renata dello Spirito Santo, Edith Stein, Morcelliana, Brescia, 1952, p.18.
4.
J.Blouflet, Edith Stein, filosofa crocifissa, Paoline, Milano 1998, pp.157-158.
5.
Dal Diario di Sr Aldegonda, in E.De Miribel, Edith Stein, Paoline, Milano, 1987, p. 214.

3.3 – Experiências que aceleram o caminho

Em 1915 estoura a Primeira Guerra Mundial. Edith tinha sequer superado a prova de Estado em Filosofia, fez pedido a Cruz Vermelha, para entrar no serviço de saúde. Assim se tornou "auxiliar", durante vários meses, em um grande hospital militar para doenças infecciosas, em Weisskirchen, em território austríaco. Para a mãe que se opunha a esta decisão, ela retruca: "Se as pessoas sofrem nas trincheiras, porque eu tenho que ficar melhor do que elas?" (6). Por sua vez, ela gostaria continuar este serviço, pensando em tantos seus colegas no fronte (e alguns não voltarão vivos). Mas não consegue a renovação.

Edith Stein auxiliar da Cruz Vermelha, em 1915

Sem dúvida esta experiência foi para Edith ocasião de crescimento espiritual, como renúncia a si mesma e a seus projetos científicos, maior abertura aos outros e encontro real com o sofrimento e a morte. Por sua seriedade e dedicação no trabalho de enfermagem, no fim da guerra recebe a "medalha da coragem" da Cruz Vermelha.

Não faltam provas na vida da jovem Edith nestes anos (1915-1919), como as delusões afetivas, problemas familiares, crises intelectuais, em relação aos desenvolvimentos do caminho "fenomenológico" do mestre Husserl,de quem se tornara assistente. Edith não partilha com estes desenvolvimentos, e sente o peso muito forte desta colaboração. Ela que tanto desejou um lugar de ensino na Universidade – e o mesmo Husserl apoiou seu pedido – viu fracassar toda tentativa para isso (outubro 1919).

Mas em novembro de 1918 recebe a notícia da morte de Adolf Reinach, morto no fronte das Ardenas. Para Edith foi um trauma: Adolf Reinach, além de mestre, era para ela amigo e confidente. Ora, ficando ao lado da viúva Ana Reinach,colaborando com ela para classificar os papeis do marido em vista da publicação, Edith faz uma experiência de vida em termos de fé, toda positiva.

O casal Reinach tinha se convertido ao protestantismo recentemente. Mas já o marido se sentia perto do catolicismo, como aparecia em suas Notas sobre uma filosofia da religião. Foi a mulher a querer cedo o batismo: "não prejudicamos o futuro; quando seremos em comunhão com Cristo, ele nos levará onde quiser. Entramos em sua Igreja, não agüento esperar mais ainda!".

É nesta prova suprema, a morte do marido, que Ana alcança na "comunhão com Cristo", muita força e paz: em lugar de receber, é ela que doa consolação a quantos em seu redor. Para Edith é uma experiência da Cruz de Cristo, determinante, como confiará mais tarde ao jesuíta, Pe. Hirschmann (7).

4 – Batismo: conversão a Cristo

Edith foi batizada no 1º de janeiro de 1922. Deixou seu trabalho como assistente de Husserl (1919) e se retirou a Breslávia, concentrando-se na busca pessoal filosófica e religiosa, e também elaborando novas formas de ensino. Passou longos períodos hospede dos amigos Conrad-Martius, em Bergzabem no Palatinado, também trabalhando na roça com dedicação inesgotável... muito silenciosa e secreta... parecia sempre concentrada, como absorvida numa meditação interrupta...

No domingo acompanhava Hedwig na igreja protestante, para o culto. Um dia observou: "Para os protestantes o céu é fechado; para os católicos, aberto". Mesmo antes da conversão Edith tinha muito respeito para a Eucaristia, prevendo nela um mistério inefável.

Em Bergzaben Edith Stein recebeu o batismo,
aos 1º de janeiro de 1922.

Abria-se para ela um drama interior. Podemos ver isso numa passagem que Edith escreveu sobre a "Causalidade psíquica", publicado em 1922 nos Anais de Husserl:

"Faço projetos para o advir e organizo conseqüentemente minha vida presente. Mas no fundo estou convencida que acontecerá algo e jogará fora todos meus projetos. É a fé viva, a fé autêntica que ainda não aceito,é a esta fé que eu impeço se tornar ativa dentro de mim".

O texto, muito bonito, continua descrevendo a transformação que acontece neste estado de "descanso em Deus", partindo do silêncio da morte e desabrochando num afluxo de vida nova, pela presença de uma "força que não é minha e que sem fazer violência para minha atividade, se torna ativa em mim".

Podemos então compreender o sentido do grito: "Esta é a verdade!" que Edith escuta ecoar em seu espírito, terminando a leitura da Autobiografia de Santa Teresa d’Ávila, com estas palavras: " Realizo plenamente a verdade no amanhã, no abandono total ao Amor" (cfr. Jo 3,21; Ef. 4,15). A fé em Cristo não foi só a conclusã o de sua busca intelectual, mas a síntese de uma nova vida operada pela graça.

É este um ponto muito importante para entender quanto seja "profética" a mudança de Edith. Mais ou menos nos mesmo anos, aconteceu algo parecido num grupo de amigos hebreus que migraram para o cristianismo evangélico: Eugen Rosenstock, Hans e Viktor Eherenberg, da universidade de Lípsia.

Um deles, Franz Rosenzweig (1886-1929), inicialmente estava decidido para o batismo, mas depois tem um sobressalto de orgulho de sua raiz hebraica, e polemicamente, num confronto demorado com o amigo Rosenstock, nega que possa haver uma base comum entro o hebreu como tal e o cristão de ascendência hebraica. "Não há mais algum substrato hebraico vivente dentro do cristão militante e ainda menos, segundo Rosenzweig, há alguma licitude para o híbrido judeu-cristão. Tornando-se cristãos não somos mais hebreus, acabou completamente sê-los. Aliás... na verdade nunca fomos, diversamente a viva pertença à comunidade da sinagoga não teria permitido a passagem para o cristianismo" ( 8).

Esta era a mentalidade dominante. A mãe de Edith, por exemplo, nunca conseguiu entender e aceitar a filha que, mesmo continuando freqüentando a sinagoga com ela, se voltou para Cristo: era uma traição, uma separação radical dos bens mais caros: o próprio povo, a própria religião! O mesmo grande filosofo Henry Bergson, que chegou, em suo cumprido itinerário, ao Cristo dos Evangelhos, nos últimos anos de sua vida (1859-1941) hesitava em si fazer batizar na igreja católica, por medo que este gesto fosse interpretado como um desligar-se de seu próprio povo na hora mais difícil da perseguição nazista.

Ora, é indubitável que a conversão a Cristo, acontecida com o batismo no dia 1º de janeiro de 1922, para Edith não marcou o desligamento e ainda menos a traição do seu ser Hebréia, mas, paradoxalmente, marcou uma nova redescoberta de sua própria hebraicidade.

Disse um dia Husserl, falando da conversão a Cristo de Edith: "Nela tudo é autêntico... Mas, no fim das contas, há, no fundo de cada hebreu, um absolutismo e um amor ao martírio".

Isso mesmo, como "verdadeira hebréia" cativada por Deus, Edith vive só para ele,com o olhar fixo em seu Senhor crucificado, Jesus nazareno, Rei dos judeus, e o desejo de se imolar para Cristo é uma coisa só com o desejo de se imolar para seu povo.

Susanne Biberstein, sobrinha de Edith.

5.1 – Edith e seu sentir-se hebréia

Sobre este assunto, além de outras fontes, encontrei na Internet um ótimo estudo do Pe. Jean Sleiman, Definidor Geral da Ordem dos Carmelitas Descalços, lido no Simpósio Internacional sobre Edith Stein, acontecido no Teresianum em Roma em outubro de 1998, na ocasião da canonização.

A mentalidade dominante no ambiente familiar vem expressada – a distância de tempo – por uma sobrinha de Edith, Susanne Batzdorff-Biberstein: "Tornando-se católica, nossa tia deixou seu povo¸sua entrada no convento manifestou ao mundo externo sua vontade de se separar do povo hebreu" (9).

Bem diferentemente e com conhecimento de causa, afirmava João Paulo II na homilia de beatificação (1987): "Receber o batismo não significou para Edith de jetum algum romper com o mundo hebraico. Ao contrário, ela afirma: Quando eu era moça de quatorze anos parei de praticar a religião hebraica e por primeiro, após meu retorno a Deus, eu me senti hebréia".

Edith se considera "filha de Israel" e este "orgulho" ficará pela vida toda, porque sente que é o mesmo povo de Cristo:

"Nem dá para imaginar quanto seja importante para mim, cada manhã na capela, repetir, levantando o olhar ao Crucifixo e à imagem de Nossa Senhora: eram do meu mesmo sangue!"

Ao jesuíta pe. Hirschmann escreveu: "Não pode imaginar o que significa para mim ser filha do povo eleito, significa pertencer a Cristo não só com o espírito, mas com o sangue". Come "hebréia", Edith não faz questão de "raça". Imergida no mistério de Israel, contempla no Cristo Crucificado, "rei dos judeus" a plena realização das promessas, das esperas da aliança divina com seu povo. Assim todos os hebreus são de Cristo!

Lembremos a data de nascimento de Edith: 12 de outubro 1891, dia da festa do Kippur, dia do perdão e da reconciliação. Agora Edith, católica e prestes a entrar no Carmelo, contempla a ligação profética entre o dia do Kippur e a Sexta Feira Santa:

"O dia da Reconciliação do Antigo testamento é figura da Sexta Feira Santa: o cordeiro imolado pelos pecados do mundo representa o Cordeiro Imaculado". O Cristo, "aceitando morrer vítima, é o eterno Sacerdote".

Cristo, então, pertence ao povo hebreu, mas também a Igreja – diz exultando Edith no "Diálogo noturno": "Vi nascer a Igreja do seio do meu povo. Do seu Coração vi brotar, como tenro ramo florescido, a Imaculada, a toda Pura, de David descendente". E "no coração da Virgem", filha de Israel, "do Coração de Jesus vi fluir toda plenitude da graça".


Notas
6.
J. Bouflet, Edith Stein, filosofa crocifissa, Paoline, Milano 1998, pp.113-114.
7.
E. De Miribel, Edith Stein, Paoline, Milano 1987, p.50.
8.
F. Rosenzweig – E. Rosenstock, La radice che porta, Lettere su Ebraismo e Cristianesimo, Marietti, Genova 1992, Introduzione di Gianfranco Bonola, p. 23.
9.
J. Sleiman ocd, Edith Stein, Martire di Cristo per il suo popolo, in Simposio Internazionale: Edith Stein, Testimone per oggi, Profeta per domani, Teresianum, Roma 1998.

5.2 - Edith e a mãe Augusta

A intensa relação com a mãe Augusta, fiel observante da fé hebraica, nos ajuda a compreender a convicção de Edith a respeito da não incompatibilidade entre fé cristã e a fé hebraica. Edith acompanha a mãe na sinagoga pela ultima vez, na festa dos Tabernáculos (ela está entrando no Carmelo), e na volta para casa, a mãe pergunta: "Não foi bonito o sermão?" – "Sim". "Também na fé hebraica podemos ser religiosos, não acha?" – "Claro, quando não se conheceu outra coisa". Então a mãe, desconsolada, pergunta novamente: "E você, porque o conheceu? Não quero dizer nada contra ele, sem dúvida será um homem muito bom, mas por que se fez Deus?"

Livro de oração
usado pela mãe de Edith

Mãe e filha sofrem terrivelmente, tanto que Edith escreve: "Tive que dar o passo sozinha e totalmente imergida na noite da fé. Muitas vezes, no decorrer daquelas semanas, me perguntava quem entre nós duas, mamãe ou eu, teria tido problemas de saúde. Mas ficamos firmes em nossas posições até o último dia".

Porém Edith, tinha muita admiração pela fé da mãe, não somente por puro instinto de afeto filial, mas pela enraizada convicção que Deus opera além dos confins da Igreja; ele opera também nas outras religiões.

Algumas cartas escritas em 1936, 1938 e 1939 lembram a morte da mãe: "Deus a levou com ele rapidamente"; "Hoje [a mãe] celebra seu 87º aniversário com nossa querida Santa Teresa". Teresa de Lisieux: de fato era o dia 3 de outubro de 1936, dia de sua festa – naquela época. Como podemos ver, ela coloca sua mãe em companhia de uma santa canonizada; preconceito algum a respeito de seus parentes judeus!

Edith conjuga este seu sentir afirmando claramente: "Minha mãe ficou fiel à sua fé até o fim. Esta fé e a total confiança em seu Deus a acompanharam desde a infância até seu 87º ano de vida, ficaram vivem nela até o fim, mesmo quando lutava contra a morte; por isso estou convencida que ela encontrou um juiz compassivo e ora vai ajudar também a mim para alcançar a meta".

Edith chega até a pensar que a mãe tinha poderes de intercessão: comentando a visita do irmão, de saída para a América, escreve à amiga Hedwig Dulberg: "No dia dos finados lembraremos nossas mães. Este pensamento me dá grande consolo. Acredito que minha mãe tenha o poder de ajudar seus filhos em perigo"(4 de outubro 1938).

Também para seu "querido Mestre", o prof. Edmund Husserl, que estava em fim de vida (1938), Edith se expressa com grande abertura de espírito: " Não estou preocupada com o meu querido Mestre. Nunca pensei que a misericórdia de Deus ficasse restrita aos limites visíveis da Igreja. Deus é a verdade. Quem procura a verdade, procura a Deus, mesmo que disso não seja consciente". Como não admirar estas antecipações proféticas das posições assumidas pela Igreja, partindo do Concílio Vaticano II, em relação ao ecumenismo, e particularmente com os hebreus?

Edith Stein em 1931

6 – Edith e a perseguição nazista

No começo dos anos 30 a Alemanha vivia uma grande crise econômica e instabilidade política, enquanto lentamente, mas inexoravelmente subia o partido nacional-socialista de Hitler. Naqueles anos Edith lecionava para as Dominicanas de Spira (1922-1931) e em seguida, no Instituto de Pedagogia de Münster (1932-1933). Contemporaneamente, porém, ela dava palestras públicas, bem apreciadas, sobre problemas da educação e o papel da mulher.

Sempre atenta à história do mundo, e como cristã educada a interpretar os eventos à luz do evangelho, intuiu logo o caráter totalitário e anticristão do movimento nazista:

"Hoje não ha nda que nos falte tanto quanto o batismo no espírito e no fogo... Na grande luta que, mais do que nunca, está sendo travada entre Cristo e Lúcifer, há aquelas que são chamadas por vocação a formar os homens que devem ir para o fronte. Armar-nos para a luta e ficar armadas em permanência: eis o nosso dever mais urgente".

Assim Edith se dirigia a suas ouvidoras. No entanto ela refletia qual fosse seu lugar no fronte.

Edith capta logo o futuro: o nazismo, encarnação do Maligno, inimigo da Cruz, combate Deus mesmo e seu plano salvífico, então não pode não começar pela vontade de destruir o judaísmo, como fundamento da mesma religião cristã, eliminar a "peste judaica-cristã", para instaurar o reino da raça ariana.

Em 1931, se despedindo das alunas de Spira, uma pergunta: "Mas senhorita, você está transtornada!". "Não posso não ficar triste e agitada, quando sei que Hitler logo logo vai arrestar meus parentes e a gente também. O que fazer?"

Na primeira sexta feira de abril 1933: Edith, não era ainda carmelita, na capela do Carmelo de Colônia teve uma profunda experiência espiritual:

"Me dirigia interiormente ao Senhor, dizendo para ele que eu sabia que se tratava mesmo da sua Cruz que estava sendo imposta ao meu povo. A maioria dos hebreus não reconhecia o Senhor, mas aqueles que entendiam, não poderiam escapar da Cruz. É o que desejava fazer. Só perguntei-lhe me mostrar como".

Ela se sentia totalmente comprometida com a sorte do seu povo, assim se questionava como puder fazer algo para o problema dos hebreus . "No fim pensei ir para Roma e pedir ao Santo Padre [Pio XI] uma Encíclica, numa audiência privada". Este projeto não foi possível (segundo seu diretor espiritual, o abade de Beuron, pe. Walzer); então Edith escreve uma carta ao Santo Padre, na qual não se limita em falar dos hebreus, mas também do futuro da Igreja na Alemanha.

"Sei que minha carta lhe foi entregue diretamente e ainda fechada... sempre me perguntei se o teor da minha mensagem tinha, de algum modo, despertado a atenção do Sumo Pontífice. As previsões que eu fazia, a respeito do destino dos católicos na Alemanha, se realizaram pontualmente".

Pe. Jan Nota s.j.

Segundo o pe, Jan H. Nota, jesuíta holandês, que foi amigo de Edith e depois aprofundou seu pensamento, este passo feito por Edith poderia ter influenciado as posições assumidas por Pio XI contra o nazismo e o anti-semitismo. Em favor de seu povo Edith fez quanto lhe era possível. Mas o Senhor lhe abre novos caminhos de amor heróico para os irmãos hebreus.

Na mesma quaresma de 1933, casualmente hospede de um colega do Instituto de Münster, Edith, que não era conhecida por ele como judia, recebe muitas informações pelos jornais americanos sobre as atrocidades cometidas contra os hebreus alemães. "Já sabia das perseguições... mas naquele momento... vi com clareza... que o destino daquele povo se tornava um com o meu" (10).

Estas experiências de participar do destino do seu povo, de carregar a Cruz de Cristo, preparam Edith ao passo definitivo. Assim ela dizia logo depois: "Não é a atividade humana que pode nos salvar, mas somente a paixão de Cristo. Participar a isso: eis a minha aspiração".

7 – A oferenda: a Esposa do Cordeiro

Uma característica da personalidade de Edith é a plena integração entre o pensamento e o vivido, as analises, as elaborações filosófico-teológicas e a experiência mística; assim compreendemos coma a vida de carmelita represente, para ela, a plena realização de sua vocação como mulher: "A união nupcial da alma com Deus é a finalidade pela qual foi criada: redimida pela Cruz e encontrando seu cumprimento na Cruz, a alma é marcada pela eternidade por meio do sigilo da Cruz".

Em 1931 escrevia sobre a Vocação da mulher; Edith coloca assim seu modo de entender a "esposa de Cristo":

"Ela está de pé ao seu lado, como a Igreja e como a Mãe de Deus... Aí ela está, para ajudar a obra da redenção. O dom total de seu ser e de sua vida a faz entrar na vida e nas fadigas de Cristo, permitindo-lhe compadecer e morrer com ele, daquela terrível morte que foi a fonte da vida para a humanidade inteira, seja tomando parte ativa na conversão das almas, seja alcançando com sua imolação os frutos da graça para aqueles que nunca mais encontrará a nível humano".

Este foi o projeto divino plenamente realizado na vida de Edith: aos 14 de outubro de 1933 ingressa no Carmelo de Colônia: aos 15 de abril de 1934 veste o habito do Carmelo e assume o nome de Teresa Benedita da Cruz, como ela pediu; domingo de Páscoa 1935 é chamada à profissão simples; aos 10 de maio de 1938 emite a profissão solene que a une definitivamente a Cristo.

Com a experiência da Cruz começara o caminho da conversão. No dia do batismo sentiu-se fortemente cativada pela vida carmelita, cujo traço marcante – como ela mesma descreve – "consiste no sofrer com Cristo... unidas ao Senhor... Cristo continua sofrendo neles... intercedendo para os pecadores através um sofrimento livremente aceito e alegre, participando assim da redenção da humanidade."

Crucifixo no choro do Carmelo de Colônia

No Carmelo, vivendo intensamente esta vocação, poderá dizer: "Agora sei muito mais o que significa ser a esposa do Senhor sob o sinal da Cruz. Está claro que não se pode facilmente compreender porque é um mistério... É aos pés da Cruz que entendi o destino do Povo de Deus que já estava se delineando. Pensei que quem o entende deve tomar sobre de si a Cruz de Cristo para todos".

Quando na famosa Noite dos cristais (8-9 novembro de 1938) desencadeou-se o fanatismo nazista contra as lojas, casas, os mesmos hebreus, as irmãs ficaram estarrecidas, e Ir. Benedita (Edith) exclama: "É a sombra da Cruz que precipita em cima do meu Povo! Ah, se pudesse agora entender!"

"Está aqui o fundamento da teologia steiniana do judaísmo... Edith Stein ama sempre seu Povo, mas o percebe com os olhos e o coração de Cristo. Se dirige a Ele e vê que sua própria Cruz foi colocada nos ombros do Povo judeu. Em outras palavras... a sorte de Cristo com o nacional-socialismo é também aquela dos hebreus. Ambos têm a mesma idêntica missão."

Edith nunca separa o Messias do seu Povo messiânico... O Anticristo (o nazismo) odeia neste Povo sua messianicidade, e assim sua ligação profunda, vital, conatural com Cristo... É à luz do aprofundamento do mistério de Israel sob a Cruz, além do contexto histórico, que precisamos entender seu amor, sua compaixão e também suas críticas: "O grande pecado dos Hebreus, para Edith, se pudermos falar de pecado, é ter negligenciado sua missão e assim trair a própria identidade: povo messiânico, povo do Messias, mas também Povo Messias."

Aos 30 de janeiro de 1939 Hitler decreta e anuncia o aniquilamento da "raça hebraica". Os sinais da iminência do conflito são evidentes. Aos 31 de dezembro Edith se refugia no Carmelo de Echt na Holanda, onde no agosto de ’40 chegará sua irmã Rosa. Nesta situação dramática, Ir. Benedita se aperta cada vez mais ao coração de Jesus " para me tornar tua verdadeira esposa. Prometo-te solenemente: cada vez que precisar fazer uma opção, escolherei o que mais te agrada". Isto é, faz assim o voto dos "mais perfeito".

Algumas semanas depois, pede à superiora de Colônia a autorização " a me oferecer ao Coração de Jesus como vitima expiatória para a verdadeira paz, esperando que o reino do Anticristo desmorone, se possível, sem uma nova guerra mundial, e que seja renovada a ordem no mundo".

No fim escreve um Testamento Espiritual: "Desde já aceito a morte que Deus me destinou e com uma total submissão a sua santíssima vontade. Rezo ao Senhor querer aceitar minha vida e minha morte pela sua glória, para as intenções dos SS. Corações de Jesus e Maria, para aquelas da Igreja. Em particular... em expiação para a recusa da fé por parte do povo hebreu, para que o Senhor seja acolhido pelos seus e venha seu reino na glória; para a salvação da Alemanha e, para a paz no mundo" ( 11).

8 – O holocausto: Edith mártir porque católica e hebréia.

Ir. Benedita não enfrenta temerariamente o martírio. Lembrada das palavras de Jesus (Mt 10,23): "Quando vos perseguirem numa cidade, fugi numa outra", de acordo e por sugestão dos mesmos superiores, procurou acolhida num Carmelo da Suíça, e as práticas estavam indo bem. Mas por causa da convocação em Amsterdã pela Gestapo, deu-se conta que não teriam hesito positivo. Pediu também para a Espanha.

Por enquanto Ir, Benedita está ocupada com o estudo e a contemplação dos escritos de são João da Cruz (por encargo da superiora, em vista de uma publicação para o 4º centenário do nascimento do santo, 1942). "Na conclusão de sua analise do Cântico espiritual... podemos ler todo seu destino, discernir a luz da Cruz pela qual será iluminada a misteriosa noite de seu fim:..."O casamento espiritual da alma com Deus, fim pelo qual a alma foi criada, é comprado pela Cruz, consumado na Cruz e por toda a eternidade marcado com o sigilo da Cruz".

Edith Stein em Auschwitz
[pintura de Rudolf Brückner]

Eis, em síntese, a parte final do drama: o ano 1942 marca o começo das deportações em massa dos hebreus para Leste: campos de trabalho,minas de sal, salas de gás. Diante destes ferozes eventos, os Bispos da Igreja da Holanda, de acordo com a Igreja Reformada, enviam ao Comissário do Reich um longo telegrama de protesta (11 de julho 1942).

Com base neste passo, o Chefe nazista se diz disposto a não mexer com aqueles cristãos de origem hebraica que podem demonstrar sua pertença a uma comunidade cristã antes do 1º de janeiro de 1941.

Os bispos acham totalmente insuficiente esta resposta, porque não tange a questão de fundo, as deportações em massa, e – de acordo com a maioria dos ministros protestantes – mandam ler em todas as igrejas do país (domingo 26 de julho) uma carta pastoral, na qual registrava-se o protesto e o urgente apelo do telegrama. Mais ainda mencionava-se o troca de idéias com o Comissário do Reich, e se concluía com um ardente apelo para a oração em prol de uma justa paz e para o povo hebreu tão duramente provado.

Conclusão? Na manhã do 2 de agosto, o Comissário do reich ordena que todos os religiosos e religiosas não arianos presentes nos conventos holandeses sejam deportados. E na tarde do mesmo 2 de agosto de 1942 a Gestapo vem prender as irmãs Stein. Em poucos minutos as duas irmãs devem deixar o convento. Inúteis todos os protestos da superiora.

A última palavra de Ir. Benedita, deixando o Carmelo é direcionada para a irmã: "Vem, diz-lhe, tomando sua mão – vamos para nosso povo".

Na mesma tarde, o comissário Schmidt deixa uma declaração oficial, segundo a qual, tendo os bispos católicos recusado de respeitar o segredo das negociações, as autoridades alemãs se vêem constrangidas a "perseguir os católicos hebreus, como seus piores inimigos, garantindo o mais cedo possível a deportação para Leste".

Edith foi levada por alguns dias no campo holandês de Westerbork, e depois, aos 7 de agosto, num trem chumbado, com outros hebreus,para Auschwitz. Esses elementos nos dão a certeza que Edith Stein foi presa e deportada porque católica hebréia, e não simplesmente como hebréia, por represália contra a Igreja Católica da Holanda.

Para os hebreus católicos deportados tinha um tratamento – se possível – mais duro ainda, mais do que os outros. Em Auschwitz-Birkenau, chegado o combóio, aos 9 de agosto de 1942, as irmãs Stein entram, com outras deportadas, nos quartos de gás.

Na última carta que, mesmo deportada, conseguiu fazer chegar ao Carmelo de Echt, escrevera: "Pode-se adquirir uma Ciência da Cruz [era o título de seu último libro, inacabado], só se começa a sofrer verdadeiramente o peso da Cruz. Disso tenho a íntima convicção desde o primeiro instante, e do profundo do coração disse: "Salve, ó Cruz, única esperança".

No túnel da morte, o coração de Edith palpita: "A Cruz é toda luz: a madeira da Cruz tornou-se luz do Cristo".


DO SITE.:http://www.gesuiti.it/moscati/Brazil/Pr_Stein_Gar2.html


Notas
10. E.De Miribel, Edith Stein, Ed. Paoline, Milano 1987, p.120.
11.
J.Bouflet, o.c., pp. 287-288.

AS BODAS DO CORDEIRO (14 -9- 1940)-Santa Teresa Benedita da Cruz


“Venerunt nuptiae Agni et uxor eius praeparavit se". (Ap. 19, 7). "Chegaram as Bodas do Cordeiro, e a sua esposa está pronta". Assim Soou em nosso coração as vésperas da profissão, e assim deve ressoar novamente quando solenemente nós renovarmos nossos santos votos. Palavras cheias de mistério que escondem o sentido profundo e misterioso, de nossa santa vocação. Quem é o Cordeiro? ´Quem é a esposa? De qual Banquete de Bodas se trata aqui?

"Vi, no meio do trono e dos quatro animais, no meio dos anciãos, um Cordeiro, que estava de pé, imolado..." (Ap. 5, 6). Quando o vidente de Patmos contemplou este rosto, ainda estava viva nele a memória inesquecível daquele dia junto ao Jordão, quando João, o Batista, mostrou o"Cordeiro de Deus" que tira o pecado do mundo" (Jo 1,29). Então, ele tinha compreendido a Palavra, e agora compreende a imagem. O que caminhou próximo ao Jordão e que tinha se manifestado em vestes brancas, com olhos ardentes e com a espada de Juiz, é Ele o" Primeiro e o Último" (Ap. 1,18). O que levou a plenitude o que os ritos da Antiga Aliança representavam simbolicamente. Quando no maior e mais sagrado dia do ano, o Sumo Sacerdote entrava no Santo dos Santos, no lugar sacratíssimo da presença de Deus, selecionava dois cabritos machos: um, para lançar sobre ele os pecados do povo, e depois soltá-lo no deserto; e outro, para marcar com o seu sangue a Tenda do Tabernáculo e a Arca da Aliança (Lv. 16). Esse era o sacrifício expiatório feito pelo povo. Para si mesmo e pela sua casa o sacerdote deveria oferecer um bezerro em sacrifício e um carneiro em holocausto. Também tinha que aspergir o Trono de Graça com o sangue do bezerro. E ele, escondido aos olhos dos homens, após rezar por si, por sua casa e por todo o povo de Israel, saia fora diante do povo e aspergia o altar, para expiar seus pecados e os do povo. Depois enviava o cabrito ao deserto e oferecia seu próprio holocausto e o do povo, e queimava os restos do sacrifício expiatório antes do acampamento (mais tarde, diante das portas da cidade). Um dia sagrado e grande, era o dia da Reconciliação. O povo esperava em oração e jejum no Santuário. E quando ao anoitecer tudo estava cumprido, havia paz e alegria no coração, porque Deus tinha removido o peso do pecado e tinha dado sua graça.

Porém, o que é que tornou possível a reconciliação? Certamente não foi nem o sangue dos animais decapitados, nem o Sumo Sacerdote da descendência de Aarão – assim o deixou bem claro São Paulo na carta aos Hebreus -, mas a verdadeira vítima de reconciliação, prefigurada em todas as vítimas anteriores prescritas pela lei, e o Sumo Sacerdote, de acordo com a ordem de Melquisedec em cujo lugar estavam os sacerdotes da casa de Aarão. Ele era também o autêntico Cordeiro Pascal, em cujo nome o anjo exterminador passou ao largo em frente às casas dos hebreus, quando castigou os egípcios. O mesmo Senhor deu a entender isso aos seus discípulos, quando comia com eles o Cordeiro Pascal pela última vez, e os ofereceu como alimento.

Mas, por que tinha escolhido o cordeiro como símbolo privilegiado? Por que se mostrou deste modo no trono da eterna glória? Porque ele era livre de pecado e era humilde como um cordeiro; e porque ele veio para se deixar levar como cordeiro para o matadouro (Is 53, 7). Tudo isso João também testemunhou quando o Senhor se deixou prender no Monte das oliveiras e quando se deixou pregar no Gólgota. Lá, no Gólgota, se cumpriu o autêntico sacrifício de reconciliação. A partir de então os antigos sacrifícios perderam a sua eficácia; e logo eles desapareceriam completamente, assim como o antigo sacerdócio, quando o templo foi destruído. Tudo isso João viveu de perto. Por isso não o surpreendia ver o Cordeiro no Trono. Por ele ter sido uma testemunha fiel, também lhe foi mostrada a Esposa do Cordeiro.

Ele viu "a cidade santa, a nova Jerusalém, que desceu do céu do lado de Deus, adornada como uma esposa que é enfeitada para o seu marido" (Ap. 21, 2 e 9 ss.). Assim como o mesmo Cristo desceu do céu à terra, igualmente a sua esposa, a Santa Igreja, tem sua origem no céu: nasceu da graça de Deus e com o Filho de Deus desceu do céu, de modo que está unida a Ele indissoluvelmente. Foi construída com pedras vivas; sua pedra angular foi colocada quando a Palavra de Deus assumiu a natureza humana no seio da Virgem. Naquele momento, entre a alma do Menino Divino e da Virgem Mãe se realizou o vínculo da união mais íntima, conhecida com o nome de matrimônio.

Escondida para o mundo tinha aparecido a Jerusalém celeste na terra. Dessa primeira união esponsal teria que nascer toda pedra viva que quiser fazer parte da poderosa construção, ou seja, toda alma chamada à vida pela graça. A Mãe-esposa chegaria a ser a Mãe de todos os redimidos, como a célula germinal da qual sempre surgem novas células; ela construiria a cidade vivente de Deus. Este mistério escondido foi revelado a São João quando estava com a Virgem Mãe aos pés da Cruz e foi entregue a ela como filho. Alí, a existência visível da igreja começou: tinha chegado sua hora, mas não ainda a sua perfeição. Ela vive, está desposada com o Cordeiro, porém a hora do banquete nupcial festivo só chegará quando o dragão for definitivamente vencido e o último dos remidos tenha levado o seu combate até o final.

Assim como o Cordeiro teve que morrer para ser elevado ao trono da glória, assim o caminho para a glória conduz todos os eleitos para o banquete das bodas através do sofrimento e da Cruz. O que quiser desposar o Cordeiro tem que se deixar pregar com ele na Cruz. Para isto estão chamados todos os que estão marcados com o sangue do Cordeiro, ou seja, todos os batizados. Mas nem todos entendem este chamado e o seguem. Existe um chamado para um seguimento mais estreito, que ressoa mais penetrante no interior da alma e que exige uma resposta clara. É o chamado à vida religiosa, e a resposta, são os santos votos.

Naquele a quem o Senhor chama para deixar os vínculos naturais (família, povo, ambiente), para entregar-se somente a Ele, se destaca o vínculo nupcial com o Senhor com maior força que na multidão dos redimidos. Por toda a eternidade ele tem que pertencer de maneira especial ao Cordeiro, seguindo-o aonde quer que ele vá e devem cantar o hino das virgens que nenhum outro pode cantar (Ap. 14,1-5).

Ao despertar na alma o desejo da vida religiosa é como se o Senhor a desposasse. E se ela se consagra a Ele através dos santos votos e acolhe o"Veni, sponsa Christi" (“Vem esposa de Cristo”), é como se fosse antecipada a festa das bodas celestiais. Mas aqui se trata somente da expectativa pelo alegre banquete eterno. A alegria nupcial da alma consagrada a Deus, e sua fidelidade, tem que ser provada em meio aos combates abertos e escondidos, no cotidiano da vida religiosa. O esposo escolhido por ela é o Cordeiro que foi levado a morte. Se ela quiser entrar com Ele na glória celestial, tem que deixar-se pregar ela mesma na sua Cruz . Os três votos são os cravos. Quanto maior disposição tiver, de estender-se sobre a cruz e pacientemente suportar os golpes do martelo, tanto mais profundamente experimentará a realidade de estar unida com o Crucificado. E o estar crucificada significará para ela a festa das bodas.

O voto de pobreza abre as mãos para deixar cair tudo o que as mantém amarradas. E as sujeita de tal modo que já não podem tender para as coisas deste mundo. Aprisiona as mãos do espírito e da alma: os apetites que sempre se inclinam aos prazeres e aos bens materiais; as preocupações que buscam assegurar a vida terrena em todas suas dimensões; o ativismo que se ocupa com muitas coisas, colocando em perigo a única coisa necessária. Uma vida na abundância e a comodidade burguesa contradizem o espírito da santa pobreza e afastam do pobre crucificado. Nossas irmãs dos primeiros anos da Reforma [1] se sentiam felizes quando lhes faltava o necessário; quando as dificuldades tinham sido superadas e elas possuíam de tudo em abundância, temiam que o Senhor tivesse se afastado delas. Algo não vai bem em uma comunidade conventual quando as preocupações externas tomam tanto tempo e forças para si que deixam em segundo plano a vida interior. E algo não está completamente em ordem na alma de cada religiosa em particular, quando elas começam a tomar conta de si mesmas e a preocupar-se em satisfazer seus desejos e inclinações, em vez de abandonar-se à Divina Providência e aceitar agradecidas o que ela as envia através das irmãs responsáveis. Naturalmente, com isso não se exclui que se faça notar aos superiores sobre aquilo que exige a obrigatória consideração da saúde. Mas uma vez que isto foi feito, é necessário libertar-se de toda e qualquer preocupação. O voto de pobreza visa dar-nos a despreocupação dos pardais e dos lírios, de forma que o espírito e o coração estejam livres para Deus.

A santa obediência sujeita nossos pés para que não andem mais por seus próprios caminhos, mas pelos caminhos de Deus. Os filhos do mundo chamam liberdade o não estar sujeito à vontade de ninguém e não ser impedido de satisfazer os seus próprios desejos e inclinações. Por esse espaço de liberdade eles se lançam em sangrentos combates e sacrificam todos os bens e a vida. Os filhos de Deus entendem por liberdade algo diferente: querem seguir sem dificuldades o Espírito de Deus; e eles sabem que os obstáculos maiores não vêm de fora, mas estão dentro de nós mesmos. A razão e a vontade do homem que gostosamente querem ser seu próprio senhor, não percebem que facilmente se deixam seduzir pelos apetites naturais e se tornam escravos deles. Não há melhor caminho para libertar-nos dessa escravidão e sermos dóceis à moção do Espírito Santo que o caminho da santa obediência. «Na obediência é onde minha alma se sente realmente livre», assim Goethe fazia dizer a heroína de um de seus poemas, que em sua grande maioria são perpassados por um espírito cristão. A autêntica obediência não consiste somente em não transgredir externamente as prescrições da Santa Regra e Constituições, ou dos superiores. Onde realmente tem que haver empenho é na renúncia da própria vontade. Por isso, o que obedece não estuda a Regra e as Constituições para descobrir sutilmente deste modo quanto das chamadas "liberdades" lhes são permitidas, mas para descobrir, cada vez melhor, quantos pequenos sacrifícios lhe são oferecidos a cada dia e a cada hora para progredir na renúncia de si mesmo. Ele assume tudo isso como um jugo suave e uma carga leve, porque sente, por este meio, está mais próximo e profundamente unido com o Senhor, que foi obediente até a morte de Cruz. Os filhos deste mundo consideram este modo de agir inútil, irracional e mesquinho. O Salvador que construiu durante trinta anos seu trabalho diário baseado em tais pequenos sacrifícios, julgará de outra maneira.

O voto de castidade visa libertar o homem de todos os vínculos naturais, para sujeitá-lo à cruz que está acima de toda agitação e libertar seu coração para a união com o Crucificado. Um tal sacrifício não se leva a cabo de uma única vez. Podemos está exteriormente afastados das ocasiões que levam à tentação, porém, na memória e na fantasia podem permanecer ainda muitas coisas que perturbam o espírito e tiram a liberdade do coração. Também, existe o perigo de que no interior dos protegidos muros do convento surjam novos vínculos que impeçam a união total com o coração divino. Com o ingresso na Ordem nos tornamos novamente membros de uma família. Nós deveríamos ver e honrar as nossas superioras e irmãs como cabeça e membros do corpo místico de Cristo. Porém, somos seres humanos e é possível que se misture com um amor sagrado, infantil e fraterno, algo muito humano. Cremos ver nos homens a Cristo, e nós não nos damos conta que nos apegamos humanamente a eles e que corremos o perigo de perder de vista a Cristo. Porém, não é somente a inclinação humana que obscurece a pureza do coração. Muito pior ainda que um amor demasiadamente humano, é o ter um amor muito pequeno ao coração divino. Cada aversão, cada raiva ou cada incômodo que toleramos no nosso coração fecha as portas ao Salvador. As emoções involuntárias se apresentam, naturalmente, sem culpa nossa; porém, uma vez que as admitimos, temos que travar uma luta contra elas; caso contrário nos voltamos contra Deus que é Amor, e trabalhamos em prol do adversário. O hino que cantam as virgens no séqüito do Cordeiro é, com certeza, um canto do mais puro amor.

A Cruz sobe novamente diante de nós. Ela é o sinal de contradição. O Crucificado nos contempla a partir dela: “Também vós quereis abandonar-me?” O dia de renovação dos votos tem que ser sempre o dia de um profundo exame pessoal. Temos sido coerentes com o que uma vez professamos com fervor? Temos vivido como convém a esposas do Crucificado, do Cordeiro imolado? Nos últimos meses nós temos ouvido freqüentemente queixas de que as muitas orações feitas pela paz ainda não surtiram efeito. Que direito temos nós de ser escutadas? Nosso desejo de paz é, sem dúvida, autêntico e sincero. Porém, nasce de um coração completamente purificado? Temos rezado verdadeiramente "em nome de Jesus", isto é, não só com o nome de Jesus na boca, mas no espírito e no sentir de Jesus, buscando a glória do Pai e não a sua própria? O dia em que Deus tiver poder ilimitado sobre nosso coração, nós teremos também teremos poder ilimitado sobre o dele. Se nós tivermos isto presente, nunca iremos condenar homem algum. Porém, nós não devemos ficar desanimadas, se depois de muito tempo de vida religiosa, nós tivermos que dizer para nós mesmas que ainda somos aprendizes e inexperientes. O manancial do coração do Cordeiro não se esgotou. Hoje nós ainda podemos lavar nossas vestes como o fez um dia um dos ladrões no Gólgota. Confiando na força reparadora deste manancial sagrado nos prostremos diante do Trono do Cordeiro e respondamos à sua pergunta: "Senhor, a onde nós iremos? Só tu tens palavras de vida eterna" (Jo 6, 68). Deixai-nos apanhar água das fontes da salvação para nós e para este mundo sedento. Concede-nos a graça de poder pronunciar com um coração puro as palavras da esposa: “Vem! Vem! Vem, Senhor Jesus! Vem logo!”


[1] N.d.t.: aqui he/she está se referindo à Reforma da Ordem do Carmelo levada a cabo por Santa Teresa de Jesus: o Carmelo Teresiano.