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sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Ditos de Luz e Amor

Ditos de Luz e Amor


São João da Cruz — Ditos de Luz e Amor

(retirado do livro "Obras Completas S. João da Cruz")

PRÓLOGO

Ó Meu Deus e meu enlevo, também foi por amor a Vós que a minha alma se quis aplicar nestes vossos ditos de luz e amor. Embora tenha o seu dizer, falta-me a sua obra e virtude, que é, meu Senhor, o que neles Vos agrada mais do que palavras e sabedoria. Talvez outras pessoas, animadas por eles, possam aproveitar no vosso serviço e amor, em que eu falto, e a minha alma se console por ter sido ocasião para encontrardes noutros o que falta nela.

Vós, Senhor, amais a discrição, a luz e o amor mais do que outras operações da alma. Por isso, estes ditos servirão de discrição para o caminhar, de luz para o caminho e de amor no caminhar.

Arrede-se, pois a retórica do mundo! Ponhamos de lado o palavreado e a eloquência oca da sabedoria humana, débil e engenhosa, que nunca Vos agrada. Ao contrário, dirijamos ao coração palavras banhadas de doçura e amor, que muito Vos agradam. Talvez, assim, retiremos pequenas ofensas e dificuldades em que muitas almas tropeçam por ignorância; e, não sabendo, continuarão a errar, pensando que acertam no seguimento do vosso dulcíssimo Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, por se verem semelhantes a Ele na vida, circunstâncias e virtudes, ou na forma de desnudez e pureza de espírito. Sede Vós, porém, Pai das misericórdias, a dá-la, porque sem Vós, Senhor, nada se fará.



1

1. O Senhor sempre revelou aos mortais os tesouros da Sua sabedoria e do Seu espírito; mas agora, que a malícia vai mostrando cada vez mais o seu rosto, revela-os ainda mais.

2. Ó Senhor, meu Deus, quem Vos procurará com amor puro e singelo sem que Vos encontre ao seu gosto e vontade, sabendo que Vós sois o primeiro a mostrar-vos e a vir ao encontro daqueles que Vos desejam?

3. Ainda que o caminho seja plano e suave para os homens de boa vontade, contudo o caminhante andará pouco e a muito custo se nisso mesmo não se empenhar com boas pernas, coragem e audaz porfia.

4. Mais vale estar carregado junto do forte do que aliviado junto do fraco. Quando estás carregado estás junto de Deus, que é a tua fortaleza, pois Ele está perto dos atribulados. Quando estás aliviado estás junto de ti, que és a tua própria fraqueza. A virtude e a fortaleza da alma crescem e confirmam-se com trabalhos e paciência.

5. Quem quiser estar sozinho, sem ajuda de mestre ou guia, assemelha-se à árvore do campo, sozinha e sem dono: por muito fruto que dê, os caminhantes sempre a colherão antes do tempo.

6. A árvore cultivada e resguardada pelo seu dono dá o fruto no tempo que dela se espera.

7. A alma virtuosa, sozinha e sem mestre, é como o carvão aceso que fica só: mais se vai esfriando que acendendo.

8. Quem cai sozinho, sozinho fica no chão, e pouco apreço tem pela sua alma, pois só a escora em si.

9. Se não temes cair sozinho, como presumes em levantar-te sozinho? Olha que podem mais dois juntos do que um sozinho.

10. Quem cai carregado, dificilmente se levantará.

11. Quem cai cego, não se levantará sozinho. E, se se levantar, encaminhar-se-á por onde não convém.

12. Deus antes quer de ti o mais pequeno grau de pureza de consciência do que todas as obras que possas fazer.

13. Deus antes quer de ti o mais pequeno grau de obediência e humildade do que todos esses serviços que Lhe pensas oferecer.

14. Deus estima mais em ti a disposição para a aridez e o sofrimento por Seu amor do que todas as consolações, visões espirituais e meditações que possas ter.

15. Nega os teus desejos e encontrarás o que o teu coração deseja. Sabes, por acaso, se o teu apetite é do agrado de Deus?

16. Ó dulcíssimo amor de Deus, tão mal conhecido! Descansado fica quem encontrou a sua fonte.

17. Se hás-de receber redobrada amargura por fazeres a tua vontade, então não a faças, apesar de te amargurares.

18. A alma que se encaminha para Deus, se tiver em si o mais pequeno apetite por qualquer coisa do mundo, vai mais desonesta e impura do que se carregasse todas as indecorosas e molestas tentações e trevas que se possam imaginar, desde que a vontade racional não as aceite. Nessa ocasião até se pode aproximar com mais confiança de Deus, porque está a fazer a vontade de Sua Majestade que diz: Vinde a Mim todos os que estais cansados e oprimidos, que Eu vos aliviarei (Mt 11,28).

19. Agrada mais a Deus a alma que, na aridez e provações, se sujeita à razão do que aquela que, sem dela fazer caso, tudo faz a seu bel-prazer.

20. Uma obra feita às escondidas e sem querer que se saiba, por pequena que seja, agrada mais a Deus do que mil feitas com vontade de que os homens as vejam. Quem faz as coisas por Deus no amor mais puro, pouco se importa que os homens as vejam, pois nem as faz para que o próprio Deus as conheça. E ainda que Ele nunca as viesse a conhecer, não deixaria de Lhe prestar os mesmos serviços com a mesma alegria e pureza de amor.

21. A obra feita por Deus em total pureza, transforma o coração puro em reino inteiro para o seu senhor.

22. Duplo trabalho tem o pássaro que poisou no visco: soltar-se e limpar-se. Também de duas maneiras pena quem satisfaz o seu apetite: em primeiro lugar libertar-se dele e, depois, limpar-se do se lhe apegou.

23. Quem não se deixa levar pelos apetites, voará ligeiro no espírito, como acontece à ave que tem penas.

24. A mosca que poisa no mel interrompe o seu voo. A alma que queira manter-se atida ao sabor do espírito interrompe a sua liberdade e contemplação.

25. Se quiseres guardar a imagem pura e simples do rosto de Deus na tua alma, não te mistures com as criaturas; ao contrário, esvazia e afasta muito delas o teu espírito e andarás na luz divina, porque Deus não se parece com elas.

26. Oração da ala enamorada

Senhor Deus, Amado da minha alma!

* Se ainda Vos recordais dos meus pecados para não me fazeres o que Vos tenho andado a pedir, fazei meles, meu Deus, a Vossa vontade, pois é o que eu mais quero; fazei sentir a Vossa bondade e misericórdia e neles sereis conhecido.

* E se estais à espera das minhas obras para atenderdes o meu pedido, dai-mas Vós e realizai-as por mim, bem como as penas que quiserdes aceitar, e faça-se.

* Mas se pelas minhas obras não esperais, então porque esperais, meu clementíssimo Senhor? Porque tardais?

* E já que, enfim, há-de ser graça e misericórdia o que em vosso Filho Vos peço, recebei o meu nada, já que o quereis, e concedei-me este bem, que também é o que quereis.

* Quem se poderá livrar destes modos e baixos termos se não sois Vós, meu Deus, a erguê-lo para Vós, em pureza de amor? Como se elevará até Vós o homem gerado e criado em baixezas, se não sois Vós, Senhor, a deitar-lhe a mão com que o fizestes?

* Meu Deus, não me ireis roubar o que me destes um dia no vosso único Filho, Jesus Cristo, no qual me destes tudo quanto quero; por isso, espero e confio em que não tardarás.

* E porquê tanta demora, se já podes a Deus no teu coração?

* Os céus são meus e a terra é minha. Os povos são meus; meus são os justos e os pecadores. Os anjos são meus, a Mãe de Deus é minha, e minhas são todas as coisas. O próprio Deus é meu e para mim, porque Cristo é meu e todo para mim. Então, que pedes e procuras alma minha? Tudo isto é teu e para ti. Não te rebaixes nem olhes às migalhas que caem da mesa do teu Pai.

* Sai para fora e gloria-te na tua glória; esconde-te nela e goza, pois alcançarás o que o teu coração deseja.

27. O espírito bem purificado não se mistura com estranhas advertências nem respeitos humanos, mas apenas se comunica interiormente com Deus, na solidão de todas as formas, em ameno sossego, porque o seu conhecimento é em silêncio divino.

28. A alma enamorada é suave, mansa, humilde e paciente.

29. A alma rude endurece-se no seu amor-próprio.

30. Se Vós, ó bom Jesus, não suavizais a alma no Vosso amor, ela continuará sempre na sua rudeza natural.

31. Quem perde a ocasião é como quem deixou fugir o pássaro da mão: não o voltará a apanhar.

32. Eu não Vos conhecia, meu Senhor, porque desejava ainda conhecer e saborear coisas.

33. Senhor Deus, que tudo mude em boa hora para repousarmos em Vós.

34. Um só pensamento do homem vale mais que o mundo inteiro. Portanto, só Deus é digno dele.

35. O que não sentes é insensível; o que sentes é sensível; o pensamento é espírito de Deus.

36. Olha que o teu anjo da guarda nem sempre move o apetite a agir, se bem que ilumine sempre a razão. Portanto, não estejas à espera do gosto para praticar a virtude, pois basta a razão e o entendimento.

37. Quando o apetite está posto noutra coisa, não dá lugar a que o anjo o mova.

38. O meu espírito secou, porque se esqueceu de apascentar-se em Vós.

39. O que pretendes e o que mais desejas não o encontrarás no caminho que levas, nem na alta contemplação, mas só com muita humildade e docilidade de coração.

40. Não te canses, pois não gozarás da suavidade do espírito se não te entregares à mortificação de tudo quanto desejas.

41. Lembra-te que a flor mais delicada é a que murcha mais depressa e perde o seu perfume; livra-te, portanto, de caminhar pelo espírito do sabor, pois serás inconstante; procura antes um espírito robusto, desapegado de tudo, e encontrarás suavidade e paz em abundância, porque a fruta mais saborosa e duradoira apanha-se nas terras frias e secas.

42. Pensa que a tua carne é fraca e que nenhuma coisa deste mundo pode trazer fortaleza e consolação ao teu espírito, porque o que nasce do mundo é do mundo, e o bom espírito só nasce do espírito de Deus, que não se comunica nem pelo mundo nem pela carne (cf. Jo 3,6).

43. Presta atenção à razão para fazeres o que ela te indicar no caminho para Deus. Valer-te-á mais isso diante de Deus do que todas as obras feitas sem essa atenção e todos os gostos espirituais que desejas.

44. Feliz aquele que, tendo posto de lado o seu gosto e afeição, vê as coisas na razão e na justiça para as fazer.

45. Quem se guia pela razão é como quem se nutre de substancia; quem se guia pelo gosto da sua vontade é como quem come fruta mole.

46. Senhor, com alegria e amor, levantais de novo quem Vos ofende, enquanto que eu não volto a levantar nem honrar a quem me aborrece.

47. Ó Senhor todo-poderoso, se uma centelha do império da Vossa justiça tem tanta influência no príncipe mortal que governa e guia as nações, o que não fará a Vossa omnipotente justiça no justo e no pecador?

48. Se purificares a tua alma dos estranhos gozos e apetites, entenderás as coisas em espírito; e, se nelas negares o apetite, gozarás da sua verdade, entendendo nelas o que é certo.

49. Senhor, meu Deus, Vós não sois estranho a quem não se esquiva de Vós. Porque dizem, então, que Vós vos ausentais?

50. Verdadeiramente venceu todas as coisas aquele a quem nem o gosto delas o move ao prazer nem a sua insipidez lhe causa tristeza.

51. Se quiseres chegar ao santo recolhimento, mais do que consentindo hás-de ir negando.

52. Meu Deus, indo convosco, seja para onde for, em toda a parte me há-de acontecer aquilo que para Vós desejo.

53. Não poderá chegar à perfeição quem não procura satisfazer-se com tão pouco, de modo que a concupiscência natural e espiritual estejam satisfeitas mesmo sem nada; aliás, é o que se pede para gozar da suma tranquilidade e paz de espírito. É assim que o amor de Deus, na alma pura e simples, está quase permanente em acto.

54. Lembra-te que Deus é inacessível e, por isso, não te deves concentrar no que as tuas potências podem compreender e os teus sentidos sentir, a fim de não te satisfazeres com o mais inferior nem a tua alma perder a necessária ligeireza no caminho para Ele.

55. Como quem puxa um carro encosta acima, assim caminha para Deus a alma que não se liberta de cuidados nem apaga o apetite.

56. Não é da vontade de Deus que a alma se perturbe com coisa alguma nem que sofra amarguras; e se as sofre com as contrariedades do mundo, isso deve-se à sua pouca virtude, porque a alma perfeita alegra-se naquilo em que a imperfeita se atormenta.

57. O caminho da vida é de muito pouco barulho e pretensão, e requer mais mortificação da vontade do que muito saber. Quem menos se agarrar às coisas e aos gostos, mais avançará por ele.

58. Não penses que trabalhar muito agrada mais a Deus do que fazê-lo com boa vontade, sem apegos e respeitos humanos.

59. No entardecer examinar-te-ão no amor. Aprende a amar como Deus quer ser amado e não olhes à tua condição.

60. Procura não te misturares em coisas alheias, nem sequer te lembres delas, porque quiçá não poderás cumprir o que tens a fazer.

61. Não julgues que, por não luzirem no outro as virtudes que tu pensas, não será ele precioso aos olhos de Deus pelo que tu não pensas.

62. O homem não sabe alegrar-se nem condoer-se muito bem, porque desconhece a distância entre o bem e o mal.

63. Procura não te entristeceres tão depressa com as contrariedades do mundo, pois não sabes o bem que acarretam consigo, nem como está ordenado nos juízos de Deus para a alegria sempiterna dos eleitos.

64. Não te delicies com as riquezas temporais, pois não sabes ao certo se elas te asseguram a vida eterna.

65. Na tribulação recorre imediatamente a Deus com toda a confiança e serás fortalecido, iluminado e ensinado.

66. Na consolação e na alegria recorre imediatamente a Deus com temor e verdade, e não serás enganado nem envolvido pela vaidade.

67. Considera a Deus como o esposo e o amigo que te acompanha sempre, e, assim, não pecarás, saberás amar, e conhecerás a prosperidade das coisas que necessitas.

68. Conquistarás as pessoas sem grande esforço e as coisas ser-te-ão servidas, se delas e de ti mesmo te esqueceres.

69. Tranquiliza-te, evitando freimas e não te preocupando com o que acontece; assim servirás a Deus a seu gosto e n’Ele gozarás.

70. Lembra-te que Deus só reina numa alma pacífica e livre.

71. Podes fazer muitas coisas, mas se não aprendes a negar a tua vontade e a dominar-te, não te preocupando contigo e com as tuas coisas, não avançarás na perfeição.

72. Que adianta dares a Deus uma coisa se Ele te pede outra? Pensa no que Deus poderá querer e fá-lo, porque assim satisfarás melhor o teu coração do que com aquilo que gostas.

73. Como te atreves a folgar sem nenhum temor, se tens de comparecer diante de Deus para prestar contas da mais pequena palavra e pensamento?

74. Lembra-te que são muitos os chamados e poucos os escolhidos (Mt 22,14). Se não cuidares de ti, é mais certa a tua condenação do que a tua salvação, sobretudo sendo tão estreita a via que conduz à vida eterna (Mt 7,14).

75. Não te alegres inutilmente, pois tu sabes quantos pecados cometestes, mas não sabes como Deus se comporta contigo. É melhor temeres com confiança.

76. Se na hora de prestar contas a Deus te hás-de lamentar por não teres utilizado este tempo ao seu serviço, porque não o ordenas e empregas já como gostarias de o ter feito quando estiveres para morrer?

77. Se queres que no teu espírito nasça a devoção, e que o amor de Deus e o gosto pelas coisas divinas aumente, purifica a alma de todos os apetites, apegos e pretensões de modo a não te inquietares com nada de nada. Tal como o doente, que passada a má disposição, se sente logo bem de saúde e com vontade de comer, assim também te convalescerás em Deus, se disto te curares; caso contrário, por muito que faças, de nada te aproveitará.

78. Se desejas encontrar a paz e a consolação da tua alma e servir deveras a Deus, não te contentes com o que deixaste, porque, com isso em que de novo andas metido, talvez estejas tão atado ou mais do que antes. Abandona tudo o que ainda te falta e volta-te para a única coisa que tudo traz consigo; a santa solidão, acompanhada da oração e da santa e divina leitura, e aí persevera no esquecimento de todas as coisas, porque, se a obediência não te mandar, agradarás mais a Deus em saber-te guardar e aperfeiçoar a ti mesmo do que em conquistá-las todas juntas. Afinal, que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro se deixa perder a sua alma (Mt 16,26).

2

Pontos de amor

79. Modere muito a língua e o pensamento, e traga continuamente o afecto em Deus; assim, o espírito abrasar-se-á divinamente.

80. Não apascente o espírito senão em Deus. Despreze o cuidado das coisas e viva na paz e no recolhimento do coração.

81. Viva na tranquilidade de espírito com amorosa atenção a Deus; e, quando for preciso falar, faça-o com a mesma paz e sossego.

82. Lembre-se frequentemente da vida eterna, e que os mais humilhados, pobres e abatidos são os que hão-de gozar em Deus do mais alto senhorio e glória.

83. Alegre-se sempre em Deus, seu Salvador (Lc 1,47), e saiba que qualquer sofrimento por quem é bom traz benefícios.

84. Vejam quão necessário é serem inimigas de vós mesmas e como hão-de caminhar para a perfeição pelo santo rigor; considerem que Deus leva em conta cada palavra que tiverem dito sem ser por obediência.

85. Tenha um profundo desejo de que Deus lhe dê o que Sua Majestade sabe que lhe falta para Sua honra.

86. Interior e exteriormente crucificada com Cristo, a sua alma, pela sua constância, viverá nesta vida em abundância e consolação (Lc 21,19).

87. Traga uma amorosa atenção a Deus, e não queira sentir ou entender nada a Seu respeito.

88. Traga sempre uma permanente confiança em Deus, apreciando em si e nas Irmãs o que Deus mais estima: os bens espirituais.

89. Entre dentro de si e trabalhe na presença do Esposo, que sempre está presente e lhe quer bem.

90. Seja inimiga de admitir em sua alma coisas sem substancia espiritual, para que não lhe façam perder o gosto à devoção e ao recolhimento.

91. Cristo crucificado basta-lhe; pene e descanse n’Ele, aniquilando-se em todas as coisas exteriores e interiores.

92. Procure sempre que as coisas sejam para si como nada, e nada seja para elas. Olvidada de tudo, viva no seu recolhimento com o Esposo.

93. Ame muito o sofrimento, mas não lhe dê grande importância a fim de cair em graça ao Esposo, que não hesitou em morrer por si.

94. Tenha um coração firme contra tudo o que a mover para o que não é Deus. Seja afeiçoada à paixão de Cristo.

95. Viva interiormente desapegada de todas as criaturas e não ponha o gosto nas coisas temporais; assim acomodará a sua alma para bens que não conhece.

96. A alma que caminha no amor, não cansa nem se cansa.

97. Ao pobre que está nu hão-de vestir; e à alma que se despe dos seus apetites, quereres e não-quereres, vesti-la-á Deus com a Sua pureza, gosto e vontade.

98. Há almas que rebolam na lama como os animais que nela se enchafurdam; mas, há outras, as que voam como as aves, que se purificam e limpam no ar.

99. Uma palavra falou o Pai, que foi o seu Filho, e di-la sempre em eterno silêncio, e em silêncio a há-de ouvir a alma.

100. Havemos de nos medir pelos trabalhos, e não medir os trabalhos por nós.

101. Quem não procura a cruz de Cristo não procura a glória de Cristo.

102. Deus, para se enamorar da alma, não olha à sua grandeza, mas à grandeza da sua humildade.

103. Aquele que me negar diante dos homens, também o hei-de negar diante do meu Pai que está no Céu, diz o Senhor (Mt 10,33).

104. O cabelo frequentemente penteado torna-se liso e não é difícil penteá-lo quantas vezes quisermos. A alma que examinar frequentemente os seus pensamentos, palavras e obras – que são os seus cabelos – fazendo todas as coisas por amor de Deus, ficará com o cabelo muito liso; o Esposo, ao contemplar-lhe o rosto, ficará preso e ferido num dos olhos, que é a pureza de intenção com que faz todas as coisas. Se quisermos alisar o cabelo, começamos a penteá-lo no cimo da cabeça; se quisermos que todas as nossas obras sejam puras e límpidas, hão-de começar a ser feitas no mais alto amor de Deus.

105. O céu é firme e não está sujeito a geração. As almas que são de natureza celestial são firmes, não estão sujeitas a gerar apetites ou qualquer outra coisa, porque na sua maneira parecem-se a Deus, que nunca muda.

106. Não comer em pastos vedados, como são os desta vida, porque bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados (Mt 5,6). O que Deus pretende é fazer-nos deuses por participação, sendo-o Ele por natureza, como o fogo que tudo converte em fogo.

107. A bondade que temos é emprestada, enquanto que Deus a tem por obra própria. Deus é Ele e a sua obra.

108. A sabedoria entra pelo amor, pelo silêncio e pela mortificação. Grande sabedoria é saber calar e não fazer caso de ditos, casos e vidas alheias.

109. Tudo para mim e nada para ti.

110. Tudo para ti e nada para mim.

111. Deixa-te ensinar, deixa-te mandar, deixa-te humilhar e desprezar, e serás perfeita.

112. Qualquer apetite causa na alma cinco danos: primeiro, inquieta-a; segundo, perturba-a; terceiro, suja-a; quarto, enfraquece-a; quinto, obscurece-a.

113. A perfeição não está nas virtudes que a alma descobre em si, mas naquelas que nosso Senhor nela vê, pois é uma carta fechada. Assim, a alma não tem porque se orgulhar de si mesma, mas antes prostrar-se por terra.

114. O amor não consiste em sentir grandes coisas, mas viver com grande simplicidade e sofrer pelo Amado.

115. O mundo inteiro não é digno de um único pensamento do homem, porque só a Deus é devido; deste modo, qualquer pensamento que não se tiver em Deus é-Lhe roubado.

116. As potências e os sentidos não se devem ocupar totalmente das coisas, mas só o que não pode ser escusado, ficando o resto livre para Deus.

117. Não reparar nos defeitos alheios, manter o silêncio e uma relação contínua com Deus arrancará da alma muitas imperfeições, tornando-a senhora de grandes virtudes.

118. Os sinais do recolhimento interior são três: primeiro, se a alma não gostar das coisas transitórias; segundo, se gostar da solidão e do silêncio e se sentir impelida para o mais perfeito; terceiro, se as coisas que antes a costumavam ajudar, por exemplo reflexões, meditações e actos, agora a estorvam, não encontrando outro apoio na oração senão a fé, a esperança e a caridade.

119. Se uma alma for mais paciente no sofrer e mais tolerante com a carência de gostos é sinal de que tem crescido na virtude.

120. As propriedades do pássaro solitário são cinco. Primeira, voa para a parte mais alta; segunda, não tolera nenhuma companhia, nem mesmo da sua natureza; terceira, vira o bico para o ar; quarta, não tem cor determinada; quinta, canta suavemente. Estas mesmas qualidades há-de ter a alma contemplativa; colocar-se acima das coisas passageiras, fazendo tanto caso delas como se não existissem; ser muito amiga da solidão e do silêncio de modo a não tolerar companhia de outra criatura; voltar o bico para a brisa do Espírito Santo, correspondendo às suas inspirações, a fim de se tornar mais digna da Sua companhia; não ter cor determinada, ou seja, não ter tomado outra determinação, a não ser naquilo que é vontade de Deus; cantar suavemente na contemplação e no amor do seu Esposo.

121. Os hábitos das imperfeições voluntárias que nunca se acabam por vencer, - por exemplo, o costume de falar muito, uma pequena afeição não vencida em relação a qualquer pessoa, roupa, cela ou livro, tal género de comida, certas conversas e prazer em querer saborear coisas, em saber, em ouvir, e outras semelhantes -, não só impedem a divina união como não deixam chegar a perfeição.

122. Se te queres gloriar e não pareceres néscio e louco, retira de ti o que não te pertence, e receberás glória do que sobrar. Mas, se retirares todas as coisas que não te pertencem, certamente ficarás reduzido a nada; portanto, não te deves gloriar de nada a fim de não te envaideceres. Mas desçamos agora de um modo especial aos dons daquelas graças que tornam os homens atraentes e agradáveis aos olhos de Deus; de certeza que desses dons não te deves gloriar, pois ainda não sabes se os tens.

123. Oh! Quão doce será para mim a Vossa presença, Vós que sois o sumo Bem! Aproximar-me-ei de Vós em silêncio e descobrir-vos-ei os pés a fim de que permitais unir-me convosco em matrimónio, pois não descansarei enquanto não me vir nos vossos braços (Rt 3,4-9). E agora, Senhor, peço-vos que nunca me abandoneis no meu recolhimento, para que a minha alma não se dissipe.

124. Desatada do exterior, desapossada do interior, desapropriada das coisas de Deus, nem a propriedade a detêm nem a adversidade a estorva.

125. Como ao próprio Deus, assim teme o demónio a alma que está unida a Deus.

126. O mais puro padecer traz e acarreta consigo um mais puro entender.

127. A alma desejosa de que Deus se lhe entregue totalmente, também totalmente se lhe há-de entregar, sem nada reservar para si.

128. A alma que vive na união de amor, nem sequer os primeiros movimentos lhe pertencem.

129. Os velhos amigos de Deus dificilmente pecam contra Deus, porque estão acima de tudo quanto os possa levar a pecar.

130. Ó meu Amado, tudo o que for áspero e trabalhoso eu quero para mim, e para Vós tudo quanto for suave e saboroso!

131. A maior necessidade que temos para progredir diante deste grande Deus é calar o apetite e a língua, pois a linguagem que Ele mais ouve é só a do amor.

132. É às escuras que se procura a Deus. A luz acende-se no exterior para não cair, mas nas coisas de Deus é ao contrário. Portanto, é melhor a alma não ver, e assim vai mais segura.

133. Com os bens de Deus ganha-se mais durante uma hora do que com os nossos a vida inteira.

134. Alegra-te por nem tu nem os outros te conhecerem. Nunca reparar nos bens e males alheios.

135. Viver a sós com Deus; entretanto, ir trabalhando por esconder os bens de Deus.

136. Perder e querer que todos nos ganhem é próprio de espíritos arrojados, de almas generosas. Dar em vez de receber, é próprio de corações generosos que se entregam, e pertencer-se a si mesmos é para eles um grande fardo, por isso, preferem dar-se aos outros e esquecerem-se de si mesmos. De facto, pertencemos mais a esse Bem infinito do que a nós próprios.

137. Ter mais olhos para os bens de Deus do que para o próprio Deus é um grande erro. Oração e desprendimento.

138. Repare naquele infinito saber e aquele segredo escondido! Que paz, que amor, que silêncio o daquele divino peito! E que ciência tão elevada é a que Deus ali ensina! A isto chamamos actos anagógicos, que tanto incendeiam o coração.

139. Muito perde e apouca o segredo da consciência todas as vezes que alguém fala aos homens dos seus frutos, porque já recebeu como galardão o fruto da fama transitória.

140. Fale pouco e não se meta em coisas que não lhe perguntem.

141. Procure andar sempre na presença de Deus e conservar em si a pureza que Ele lhe ensina.

142. Não se desculpe nem se recuse a ser corrigido por todos. Oiça com calma todas as correcções. Pense que é Deus quem lhas está a dizer.

143. Viva neste mundo como se apenas vivesse com Deus, para que o seu coração não se prenda a nada humano.

144. Se alguma vez lhe disseram alguma palavra boa, tenha-a como misericórdia de Deus, pois não merece nenhuma.

145. Nunca deixe extravasar o seu coração, nem que seja pelo espaço de um Credo.

146. Nunca oiça as fraquezas dos outros. E, se alguma lhe vier fazer queixa de outra, com humildade poderá dizer-lhe que não quer ouvir nada.

147. Não se queixe de ninguém. Não pergunte nada; se tiver de o fazer, faça-o com poucas palavras.

148. Não rejeite o trabalho, mesmo que julgue não o poder fazer. Que todos encontrem compaixão em si.

149. Não contradiga; e de forma alguma diga palavras indecorosas.

150. Fale de modo a não ofender ninguém; fale de coisas que todos possam vir a saber, sem disso se arrepender.

151. Não recuse nada do que é seu, ainda que lhe faça falta.

152. Não fale daquilo que Deus lhe dá, e lembre-se daquelas palavras da Esposa: O meu segredo é para mim (Is 24,16).

153. Procure manter o seu coração em paz. Que nenhum acontecimento deste mundo o perturbe. Lembre-se que tudo acabará.

154. Não faça caso algum de quem é por si ou contra si. Procure agradar sempre a Deus. Peça-lhe que se faça em si a Sua vontade. Ame-O muito, como é seu dever.

155. Doze estrelas para chegar à máxima perfeição: amar a Deus, amar o próximo, obediência, castidade, pobreza, ir ao coro, penitência, humildade, mortificação, oração, silencio, paz.

156. Por muito santo que seja, nunca tomes o homem por modelo no que tiveres a fazer, porque o demónio acabará por te mostrar as suas imperfeições. Imita antes a Cristo, sumamente perfeito e santo, e nunca te enganarás.

157. Procurai lendo e encontrareis meditando. Chamai orando e abrir-se-vos-á contemplando.

3
(Recolhidos pela Irmã Madalena do Espírito Santo, 
carmelita descalça de Beas)

158. Aquele que trabalha por Deus com puro amor, não se importa que os homens o saibam, nem o faz para que o próprio Deus o saiba. E mesmo que Deus nunca o viesse a saber, n ao deixaria de realizar esses trabalhos com a mesma alegria e amor.

159. Outro aviso para vencer os apetites: Trazer um constante desejo de imitar a Jesus Cristo em todas as suas obras, conformando-se à Sua vida, a qual deve meditar para saber imitar, e fazer tudo como Ele faria (1S 13,3).

160. Para isto, é necessário renunciar a qualquer apetite ou gosto que não seja só para honra e glória de Deus, e ficar sem nada por amor d’Aquele que, durante esta vida, não teve nem quis fazer senão a vontade de seu Pai, à qual chamava sua comida e alimento.

161. Para mortificar as quatro paixões naturais — gozo, tristeza, temor e esperança — muito lhe pode ajudar o seguinte:

Procurar inclinar-se sempre não ao mais fácil, mas ao mais difícil.
Não ao mais saboroso, mas ao mais desabrido.
Não ao mais gostoso, mas ao que não dá gosto.
Não se inclinar ao que é descanso, mas ao mais trabalhoso.
Não ao consolo, mas ao desconsolo.
Não ao mais, mas ao menos.
Não ao mais alto e precioso, mais ao mais baixo e desprezível.
Não ao desejar algo, mas ao não querer nada.
Não procurar o melhor das coisas, mas o pior.
E, por amor a Jesus Cristo, viver na desnudez, no nada e na pobreza de tudo
quanto há no mundo.

162. Para a concupiscência:

Procurar agir com simplicidade e desejar que os outros o façam.
Procurar falar em desprezo próprio e desejar que todos o façam.
Procurar pensar mal de si mesmo e desejar que os outros o façam.

163. Tenha o coração firme contra tudo o que não a mover para Deus, e seja amiga de padecer por Cristo.

164. Prontidão na obediência, alegria no sofrimento, mortificação na vista, não querer saber nada, silêncio e esperança.

165. Modere muito a língua e o pensamento, ande frequentemente com o afecto em Deus, e o espírito divino muito o abrasará. Leia isto muitas vezes.

4

(Recordados por Maria de Jesus)

166. Vencer-se a si mesma, e não se apoiar em criatura alguma.

167. Estar voltada contra si mesma, arreliada, mas nunca parada.

168. Tirar o pensamento das criaturas, fechando-lhes a porta.

169. Purificado de todas as afeições, pensamentos e imagens, sussurra o doce canto com compunção e lágrimas.

5

Outros avisos

170. Quanto mais te apartas das coisas terrenas, tanto mais te aproximas das celestes e mais te unes a Deus.

171. Quem souber morrer a tudo, encontrará vida em tudo.

172. Foge do mal. Faz o bem. Procura a paz.

173. Quem se queixa ou murmura não é perfeito nem sequer bom cristão.

174. Humilde é quem se esconde no seu próprio nada e sabe abandonar-se a Deus.

175. Manso é quem sabe suportar o próximo e a si mesmo.

176. Se quiseres ser perfeito, vende a tua vontade, dá-a aos pobres de espírito, aproxima-te de Cristo, com mansidão e humildade, segue-O até ao Calvário e ao sepulcro.

177. Quem se fia de si próprio é pior que o demónio.

178. Quem não ama o seu próximo, aborrece a Deus.

179. Quem age com tibieza está perto da queda.

180. Quem foge da oração, de todo o bem foge.

181. É melhor vencer-se na língua do que jejuar a pão e água.

182. É melhor sofrer por Deus que fazer milagres.

183. Oh, que bens não gozaremos quem a visão da Santíssima Trindade!

184. Não penses mal do teu irmão, pois perderás a pureza do coração.

185. Trabalhos, quantos mais melhor.

186. O que é que sabe quem não sabe sofrer por Cristo?

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

POESIAS


I

Aspirações à Vida Eterna1


Vivo sem em mim viver,

E tão alta vida espero,

Que morro de não morrer.

Já fora de mim vivi

Desde que morro de amor;

Porque vivo no Senhor,

Que me escolheu para Si.

O coração lhe rendi,

E nele quis escrever

Que morro de não morrer.

Esta divina prisão

De amor, em que sempre vivo,

Faz a Deus ser meu cativo,

E livre meu coração;

E causa em mim tal paixão

Deus prisioneiro em mim ver,

Que morro de não morrer.

Ai! como é larga esta vida

E duros estes desterros!

Este cárcere, estes ferros

Em que a alma vive metida!…

Só de esperar a saída

Me faz tanto padecer,

Que morro de não morrer.

Ai! como a existência é amarga

Sem o gozo do Senhor!

Se é doce o divino amor,

Não o é a espera tão larga:

Tire-me Deus esta carga

Tão pesada de sofrer,

Que morro de não morrer.

Só vivo pela confiança

De que um dia hei de morrer;

Morrendo, o eterno viver

Tem, por seguro, a esperança.

Ó morte que a vida alcança,

Não tardes em me atender,

Que morro de não morrer.

Olha que o amor é bem forte!

Vida, não sejas molesta;

Vê: para ganhar-te resta

Só perder-te: — feliz sorte!

Venha já tão doce morte;

Venha sem mais se deter,

Que morro de não morrer.

Lá no Céu, definitiva,

É que a vida é verdadeira;

Durante esta, passageira,

Não a goza a alma cativa.

Morte, não sejas esquiva;

Mata-me, para eu viver,

Que morro de não morrer.

Ó vida, que posso eu dar

A meu Deus, que vive em mim,

A não ser perder-te, a fim

De o poder melhor gozar?

Morrendo o quero alcançar,

E não tenho outro querer;

Que morro de não morrer.

Se ausente de meu Deus ando*,

Que vida há de ser a minha

Senão morte, a mais mesquinha,

Que mais me vai torturando?

Tenho pena de mim, quando

Me vejo em tanto sofrer,

Que morro de não morrer.

Já de alívio não carece

O peixe em saindo da água,

Pois tem fim toda outra mágoa

Quando a morte se padece.

Pior que morrer parece

Meu lastimoso viver,

Que morro de não morrer.

Se me começo a aliviar

Ao ver-te no Sacramento,

Vem-me logo o sentimento

De não te poder gozar.

Tudo aumenta o meu penar,

Por tão pouco assim te ver,

Que morro de não morrer.

Quando me alegro, Senhor,

Pela esperança de ver-te,

Penso que posso perder-te,

E se dobra a minha dor:

E vivo em tanto pavor,

Sem na espera esmorecer,

Que morro de não morrer.

Oh! tira-me desta morte,

E dá-me, Deus meu, a vida;

Não me tenhas impedida

Por este laço tão forte.

Morro por ver-te, de sorte

Que sem ti não sei viver,

E morro de não morrer.

Choro a minha morte já;

E lamento a minha vida,

Enquanto presa e detida

Por meus pecados está.

Ó meu Deus, quando será

Que eu possa mesmo dizer

Que morro de não morrer?


*******************************************************************************

II

Nas Mãos de Deus

Sou vossa, sois o meu Fim:

Que mandais fazer de mim?

Soberana Majestade

E Sabedoria Eterna,

Caridade a mim tão terna,

Deus uno, suma Bondade,

Olhai que a minha ruindade,

Toda amor, vos canta assim:

Que mandais fazer de mim?

Vossa sou, pois me criastes,

Vossa, porque me remistes,

Vossa, porque me atraístes

E porque me suportastes;

Vossa, porque me esperastes

E me salvastes, por fim:

Que mandais fazer de mim?

Que mandais, pois, bom Senhor,

Que faça tão vil criado?

Qual o ofício que haveis dado

A este escravo pecador?

Amor doce, doce Amor,

Vede-me aqui, fraca e ruim:

Que mandais fazer de mim?

Eis aqui meu coração:

Deponho-o na vossa palma;

Minhas entranhas, minha alma,

Meu corpo, vida e afeição.

Doce Esposo e Redenção,

A vós entregar-me vim:

Que mandais fazer de mim?

Morte dai-me, dai-me vida;

Saúde ou moléstia dai-me;

Honra ou desonra mandai-me;

Dai-me paz ou guerra e lida.

Seja eu fraca ou destemida,

A tudo direi que sim:

Que mandais fazer de mim?

Dai-me riqueza ou pobreza,

Exaltação ou labéu;

Dai-me alegria ou tristeza,

Dai-me inferno ou dai-me céu;

Doce vida, sol sem véu,

Pois me rendi toda, enfim:

Que mandais fazer de mim?

Se quereis, dai-me oração;

Se não, dai-me soledade;

Abundância e devoção,

Ou míngua e esterilidade.

Soberana Majestade,

A paz só encontro assim:

Que mandais fazer de mim?

Dai-me, pois, sabedoria,

Ou, por amor, ignorância;

Anos dai-me de abundância,

Ou de fome e carestia;

Dai-me treva ou claro dia,

Vicissitudes sem fim:

Que mandais fazer de mim?

Se me quereis descansando,

Por amor o quero estar;

Se me mandais trabalhar,

Morrer quero trabalhando.

Dizei: onde? como? e quando?

Dizei, doce Amor, por fim:

Que mandais fazer de mim?

Dai-me Calvário ou Tabor;

Deserto ou terra abundante;

Seja eu como Jó na dor,

Ou João sobre o peito amante;

Seja vinha luxuriante

Ou, se quereis, vinha ruim:

Que mandais fazer de mim?

Ou José encarcerado,

Ou José Senhor do Egito;

Ou David sofrendo, aflito,

Ou David já sublimado;

Ou Jonas ao mar lançado,

Ou Jonas salvo, por fim.

Que mandais fazer de mim?

Já calada, já falando,

Traga frutos ou não traga,

Veja eu na Lei minha chaga,

Ou goze Evangelho brando;

Quer fruindo, quer penando,

Sede a minha vida, enfim!

Que mandais fazer de mim?

Pois sou vossa, e Vós meu Fim:

Que mandais fazer de mim?

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III

Sobre aquelas Palavras: “Dilectus meus mihi”1

Entreguei-me toda, e assim

Os corações se hão trocado:

Meu Amado é para mim,

E eu sou para meu Amado.

Quando o doce Caçador

Me atingiu com sua seta,

Nos meigos braços do Amor

Minh’alma aninhou-se, quieta.

E a vida em outra, seleta,

Totalmente se há trocado:

Meu Amado é para mim,

E eu sou para meu Amado.

Era aquela seta eleita

Ervada em sucos de amor,

E minha alma ficou feita

Uma com o seu Criador.

Já não quero eu outro amor,

Que a Deus me tenho entregado:

Meu Amado é para mim,

E eu sou para meu Amado.

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IV

Colóquio Amoroso

Deus meu, se o amor que me tendes

É como o amor que vos tenho,

Dizei: por que me detenho?

Ou Vós, por que vos detendes?

— Alma, que queres de mim?

— Deus meu, não mais do que ver-vos.

— E tu temes? Como assim?

— O que mais temo é perder-vos.

Uma alma em Deus escondida,

Que mais tem que desejar?

Senão sempre amar e amar,

E, no amor toda incendida,

Tornar-vos de novo a amar?

Oh! dai-me, Deus meu, carinho!

Oh! dai-me amor abrasado,

E eu farei um doce ninho

Onde for de vosso agrado.

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V

Feliz o que Ama a Deus

Ditoso o coração enamorado

Que só em Deus coloca o pensamento;

Por Ele renuncia a todo o criado,

Nele acha glória, paz, contentamento.

Vive até de si mesmo descuidado,

Pois no seu Deus traz todo o seu intento.

E assim transpõe sereno e jubiloso

As ondas deste mar tempestuoso.

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VI

Ante a Formosura de Deus

Formosura que excedeis

A todas as formosuras,

Sem ferir, que dor fazeis!

E sem magoar desfazeis

O amor pelas criaturas!

Ó Laço que assim juntais

Dois seres tão diferentes,

Por que é que vos desatais

Se, atado, em gozos trocais

As dores as mais pungentes?

Ao que não tem ser, juntais

Com quem é Ser por essência;

Sem acabar, acabais;

Sem ter o que amar, amais;

E nos ergueis da indigência.

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VII

Ais do Desterro

Sem Ti como é triste,

Meu Deus, o viver!

Com ânsias de ver-te,

Desejo morrer!

Ai! como na terra

Longa é a nossa estrada!

É duro desterro,

Penosa morada;

Leva-me daqui,

Senhor de meu ser!

Com ânsias de ver-te,

Desejo morrer!

Ai! mundo tão triste

Em que me perdi!

Pois a alma não vive

Se longe de ti.

Meu doce Tesouro,

Que amargo sofrer!

Com ânsias de ver-te,

Desejo morrer!

Ó morte benigna

Põe termo a meus males!

Só tu, com teus golpes

Tão doces, nos vales.

Que ventura, ó Amado,

Contigo viver!

Com ânsias de ver-te,

Desejo morrer!

O amor que é mundano

Se apega a esta vida;

Mas o amor divino

À outra nos convida.

Sem Ti, Deus eterno,

Quem pode viver?

Com ânsias de ver-te,

Desejo morrer!

A vida terrena

É engano bem triste;

Vida verdadeira

Só no Céu existe.

Deus meu, lá, contigo,

Oh! dá-me viver!

Com ânsias de ver-te,

Desejo morrer!

Quem é que ante a morte,

Deus meu, teme, aflito,

Se alcança por ela

Um gozo infinito?

Oh! sim o de amar-te

Sem mais te perder!

Com ânsias de ver-te,

Desejo morrer!

Ai! minha alma geme

Tristissimamente…

Quem de seu Amado

Pode estar ausente?

Acabe depressa

Tão duro sofrer!

Com ânsias de ver-te,

Desejo morrer!

O peixe colhido

No anzol fraudulento

Encontra na morte

O fim do tormento.

Ai! gemo e definho,

Bem meu, sem te ver,

Com ânsias de ver-te,

Desejo morrer!

Em vão te procuro,

Pois nunca te vejo;

Jamais alivias,

Senhor, meu desejo.

Ah! isto me inflama

E obriga a gemer:

Com ânsias de ver-te,

Desejo morrer!

Ai! quando a meu peito

Vens na Eucaristia,

Deus meu, logo temo

Perder-te algum dia;

Tal pena me aflige

E impele a dizer:

Com ânsias de ver-te,

Desejo morrer!

Põe termo a estas penas,

Senhor, e retira

Do exílio esta serva

Que por Ti suspira.

Quebrados meus ferros,

Feliz irei ser.

Com ânsias de ver-te,

Desejo morrer!

Mas justo é que eu sofra

Por tantas ofensas,

E expie meus erros

E culpas imensas.

Ai! logre meu pranto

Fazer-te entender

Que em ânsias te ver-te,

Desejo morrer!

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VIII

Buscando a Deus

Alma, buscar-te-ás em Mim,

E a Mim buscar-me-ás em ti.

De tal sorte pôde o amor,

Alma, em mim te retratar,

Que nenhum sábio pintor

Soubera com tal primor

Tua imagem estampar.

Foste por amor criada,

Bonita e formosa, e assim

Em meu coração pintada,

Se te perderes, amada,

Alma, buscar-te-ás em Mim.

Porque sei que te acharás

Em meu peito retratada,

Tão ao vivo debuxada,

Que, em te olhando, folgarás

Vendo-te tão bem pintada.

E se acaso não souberes

Em que lugar me escondi,

Não busques aqui e ali,

Mas, se me encontrar quiseres,

A Mim, buscar-me-ás em ti.

Sim, porque és meu aposento,

És minha casa e morada;

E assim chamo, no momento

Em que de teu pensamento

Encontro a porta cerrada.

Busca-me em ti, não por fora…

Para me achares ali,

Chama-me, que, a qualquer hora,

A ti virei sem demora,

E a Mim buscar-me-ás em ti.

*******************************************************************************

IX

Eficácia da Paciência

Nada te turbe,

Nada te espante,

Pois tudo passa

Só Deus não muda.

Tudo a paciência

Por fim alcança.

Quem a Deus tenha,

Nada lhe falta,

Pois só Deus basta.

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X

Para a Pátria

Vamos para o Céu tão belo,

Monjas do Carmelo!

Vamos mui mortificadas,

Humildes e desprezadas,

Sem no gozo pôr o anelo,

Monjas do Carmelo!

Eia! ao voto de obediência,

Jamais haja resistência,

Que é nosso fim, nosso anelo,

Monjas do Carmelo!

A pobreza é a estrada real

Que o Imperador celestial

Trilhou com todo o desvelo,

Monjas do Carmelo!

Nunca nos deixa de amar

Nosso Deus, nem de chamar.

Sigamos o seu apelo,

Monjas do Carmelo!

De amor está se abrasando

O que nasceu tiritando,

— Homem e Deus, num só elo —,

Monjas do Carmelo!

Vamo-nos enriquecer

Onde jamais há de haver

Pobreza ou qualquer flagelo,

Monjas do Carmelo!

Do Pai Elias no bando,

Vamo-nos contrariando,

Com sua força e seu zelo,

Monjas do Carmelo!

Duplo espírito busquemos

Como Eliseu, e neguemos

Nosso querer, com desvelo,

Monjas do Carmelo!

XI

Ao Nascimento de Jesus1

Ó pastores que velais,

A guardar vosso rebanho,

Eis que vos nasce um Cordeiro,

Filho de Deus soberano.

Vem pobre, vem desprezado,

Tratai logo de o guardar,

Porque o lobo o há de levar

Sem que o tenhamos gozado.

— Gil, dá-me aquele cajado,

Vou tê-lo nas mãos todo o ano,

Não se nos leve o Cordeiro:

Não vês que é Deus Soberano?

Sinto-me todo aturdido

De gozo e pena. E pergunto:

— Se é Deus o que hoje é nascido,

Como pode ser defunto?

É que é homem e Deus, junto;

Governa o destino humano;

Olha que o nosso Cordeiro

Filho é de Deus Soberano.

Não sei para que é que o pedem,

Pois lhe dão depois tal guerra.

— Olha, Gil, melhor será

Que se torne à sua terra…

Mas se todo o bem encerra,

E apaga o pecado humano,

Já que é nascido, padeça

Este Deus tão soberano.

Pouco te dói sua pena!

Tanto é certo que esquecemos

O que os outros por nós sofrem,

Se proveito recebemos!

Não vês que um dia o teremos

Pastor do gênero humano?

Contudo é coisa tremenda

Que morra Deus Soberano.

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XII

Ao Nascimento de Jesus

Hoje nos vem redimir

Um Zagal, nosso parente,

Gil, que é Deus Onipotente.

— Por isso nos há tirado

Da prisão de Satanás;

Mas é parente de Brás

E de Menga e de Vicente:

Porque é Deus Onipotente!

— Pois se é Deus, como é vendido

E morre crucificado?

— Não vês que mata o pecado,

Padecendo, Ele, inocente?

Gil, é Deus Onipotente!

Palavra! que o vi nascido;

E a Mãe é linda Zagala.

— Pois se é Deus, como há querido

Estar com tão pobre gente?

— Não vês que Ele é Onipotente?

Deixa-te dessas perguntas,

Tratemos já de o servir.

E pois à morte quer ir,

Morramos também, Vicente,

Pois é Deus Onipotente.

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XIII

Para a Natividade

Já Deus nos há dado

O amor: assim, pois,

Não há que temer,

Morramos os dois.

Seu Único Filho

O Pai nos envia:

Nasce hoje na lapa,

Da Virgem Maria.

O homem — que alegria!

É Deus: assim pois,

Não há que temer,

Morramos os dois.

— Olha bem, Vicente:

Que amor! e que brio!

Vem Deus, inocente,

A padecer frio;

Deixa o senhorio

Que tem; assim, pois,

Não há que temer,

Morramos os dois.

— Mas como, Pascoal,

Tem tanta franqueza,

Que veste saial,

Deixando riqueza?

Mais quer à pobreza!

Sigamo-lo pois:

Se já vem feito homem,

Morramos os dois.

Mas qual sua paga

Por tanta grandeza?

— Só grandes açoites

Com muita crueza.

— Que imensa tristeza

Teremos depois!

Ah! se isto é verdade,

Morramos os dois.

— Mas como se atrevem,

Sendo Onipotente?

— Será morto um dia

Por perversa gente.

— Se assim é, Vicente,

Furtemo-lo pois:

— Não vês que o deseja?

Morramos os dois!

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XIV

Ao Nascimento do Menino Jesus

Galego, quem chama aí fora?

— São Anjos, à luz da aurora.

— Grande rumor ouço ao longe

Que parece cantilena,

— Vamos ver, Brás, — que amanhece —

A Zagala tão serena.

— Galego, quem chama aí fora?

— São Anjos, à luz da aurora.

Será do alcaide parenta?

Ou quem é esta donzela?

— É filha do Eterno Padre

E reluz como uma estrela.

Galego, quem chama aí fora?

— São Anjos, à luz da aurora.

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XV

À Cincuncisão

Ele está sangrando,

Dominguinhos, eh!

E eu não sei por quê…

— Por que — te pergunto —

Deram tal castigo

A Deus inocente,

Se é tão nosso amigo?

— Quis ter-me consigo,

Eu não sei por quê…

Quis amar-me muito,

Dominguinhos, eh!

Mas logo em nascendo

Tem suplício tal?

— Sim, que está morrendo

Por dar fim ao mal.

Que grande Zagal

Será ele! crê!

Dominguinhos, eh!

Não vês que o coitado

É Infante inocente?

— Assim mo hão contado

Brasinho e Vicente.

Não amá-lo a gente

É vileza até!

Dominguinhos, eh!

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XVI

Outra à Circuncisão

Este Infante vem chorando;

Olha-o, Gil, que está chamando.

Veio do Céu a esta terra

Para acabar nossa guerra;

Já deu começo à peleja,

Seu sangue está derramando;

Olha-o, Gil, que está chamando.

Pois tem amor tão ardente,

Não é muito estar chorando.

Já tem brio, que é valente,

Pois um dia há de ter mando;

Olha-o, Gil, que está chamando.

Caro nos há de custar.

Pois cedo está começando

A seu sangue derramar;

Justo é ficarmos chorando!

Olha-o, Gil, que está chamando.

Antes não tivesse vindo!

Ficasse do Pai no seio!

Mas não vês, Gil, que, se veio,

É como leão bramando?

Olha-o, Gil, que está chamando.

— Pascoal, que queres comigo,

Que tanto grito estás dando?

— Que ames a esse teu amigo

Que por ti vês tiritando.

Olha-o, Gil, que está chamando.

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XVII

Na Festividade dos Santos Reis

Pois a nova estrela

É já chegada,

Aos Santos Reis siga

Minha manada.

Vamos, todos justos,

Ver nosso Messias,

Que cumpridas vemos,

Hoje, as profecias.

Pois, em nossos dias,

A estrela é chegada,

Aos Santos Reis siga

Minha manada.

Levemos presentes

De grande valor,

Pois chegam os Magos

Com tanto fervor.

Exulte de amor

Nossa grande Amada!

Aos Santos Reis siga

Minha manada.

Para ver que é Deus

Este infante, não

Procures, Vicente,

Nenhuma razão.

Dá-lhe o coração,

E a alma enamorada.

E aos Santos Reis siga

Minha manada.

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XVIII

À Cruz

Gostosa quietação da minha vida,

Sê bem-vinda, cruz querida.

Ó bandeira que amparaste

O fraco e o fizeste forte!

Ó vida da nossa morte,

Quão bem a ressuscitaste!

O Leão de Judá domaste,

Pois por ti perdeu a vida.

Sê bem-vinda, cruz querida.

Quem não te ama vive atado

E da liberdade alheio;

Quem te abraça sem receio

Não toma caminho errado.

Oh! ditoso o teu reinado,

Onde o mal não tem cabida!

Sê bem-vinda, cruz querida.

Do cativeiro do inferno,

Ó cruz, foste a liberdade;

Aos males da humanidade

Deste o remédio mais terno.

Deu-nos, por ti, Deus Eterno

Alegria sem medida.

Sê bem-vinda, cruz querida.

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XIX

O Caminho da Cruz

O consolo está, e a vida,

Só na cruz;

E ao Céu é a única senda

Que conduz.

Está na cruz o Senhor

De céus e terra,

E o gozar de muita paz

Em plena guerra.

Todos os males desterra

Do mundo, a cruz.

E ao Céu é a única senda

Que conduz.

Da cruz é que diz a Esposa

A seu Querido,

Que é a palmeira preciosa

Aonde há subido;

Cujo fruto lhe há sabido

Ao seu Jesus.

E ao Céu é a única senda

Que conduz.

A santa Cruz é oliveira

Mui preciosa,

Seu óleo nos unge e inunda

De luz radiosa;

Ó minh’alma, pressurosa,

Abraça a cruz:

Pois ao Céu é a única senda

Que conduz.

É o madeiro verdejante

E desejado

Da Esposa, que à sua sombra

Se há sentado,

A gozar de seu Amado,

O Rei Jesus.

Pois ao Céu é a única senda

Que conduz.

A alma que a Deus totalmente

Está rendida,

Bem deveras deste mundo

Já desprendida,

Árvore de gozo e vida

É a santa Cruz,

E ao Céu é o doce caminho

Que conduz.

Desde que na Cruz foi posto

O Salvador,

Só na cruz se encontra glória,

Honra e louvor;

Vida e consolo na dor

Dá-nos a cruz,

E ao Céu é a estrada segura

Que conduz.

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XX

Abraçadas à Cruz

Vamos para o Céu tão belo,

Monjas do Carmelo.

Abracemos bem a Cruz

E sigamos a Jesus,

Que é nosso caminho e luz,

Fartura do nosso anelo,

Monjas do Carmelo.

Sereis livres de cuidados,

Desconsolo e mil enfados,

Se os três votos professados

Observardes com desvelo,

Monjas do Carmelo.

O voto da obediência,

Ainda que de alta ciência,

Só o quebra a resistência:

Aparte Deus tal flagelo,

Monjas do Carmelo!

A castidade guardai,

E só a Deus desejai;

E nele vos encerrai,

Sem do mundo ouvir o apelo,

Monjas do Carmelo.

Nosso voto de pobreza,

Se guardado com pureza,

Está cheio de riqueza

E nos abre o Céu tão belo,

Monjas do Carmelo.

Fazendo assim, venceremos

Tudo, e enfim descansaremos

No Criador, que, em seus extremos,

Fez a terra e o Céu tão belo,

Monjas do Carmelo.

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XXI

A Santo André

Se quem ama sofre alegre,

E acha tal gozo na dor,

Que será ver-te, Senhor?

Que será quando nós virmos

A suprema Majestade,

Se André a Cruz avistando

Sente tal felicidade?

Oh! que não pode em verdade

Faltar deleite na dor!

Que será ver-te, Senhor?

O amor, quando já crescido,

Não pode ocioso ficar;

Nem o forte sem lutar;

Por amor de seu Querido.

Deus, de seu amor vencido,

Sempre o fará vencedor.

Que será ver-te, Senhor?

— Se todos temem a morte,

Como te é doce o morrer?

— É que vou para viver

De outra mais subida sorte.

Morrendo, ó meu Deus, tão forte

Ao fraco deste vigor.

Que será ver-te, Senhor?

Ó Cruz, madeiro precioso,

De sublime majestade,

Pois jazendo na humildade,

Tomaste a Deus por esposo!

Sem merecer tanto gozo,

Venho a ti, cheio de amor

Ao ver-te, ó Cruz do Senhor!

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XXII

A Santo Hilarião

Venceu hoje um cavaleiro

Ao mundo e seus valedores.

Voltai! voltai! pecadores!1

Sigamos este guerreiro.

Busquemos a soledade,

E não queiramos morrer

Até ganhar o viver.

Em tão subida pobreza.

Oh! como é grande a destreza

Do nosso audaz cavaleiro!

Voltai! voltai! pecadores!

Sigamos este guerreiro.

Com armas de penitência

Soube a Lúcifer vencer;

Combateu pela paciência

E já não tem que temer.

Todos podemos vencer,

Seguindo este cavaleiro.

Voltai! voltai! pecadores!

Sigamos este guerreiro.

Não encontrou protetores,

Abraçou-se à santa Cruz.

Sempre nela achamos luz,

Pois foi dada aos pecadores.

Oh! que ditosos amores

Teve o nosso cavaleiro!

Voltai! voltai! pecadores!

Sigamos este guerreiro.

Coroa e eterna memória,

Gozo sem fim mereceu.

Acabou-se o que sofreu…

Já reina em sublime glória.

Oh! venturosa a vitória

De nosso forte guerreiro!

Voltai! voltai! pecadores,

Ao caminho verdadeiro.

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XXIII

A Santa Catarina Mártir

Ó grande amadora

Do Eterno Senhor,

Dai-nos, clara estrela,

Amparo e fervor.

Desde tenra idade

Tomastes Esposo.

Vosso amor tamanho

Não vos deu repouso.

A vós não se chegue

O que, em vez da Cruz,

Ama a vida e teme

Morrer por Jesus.

Olhai, ó covardes,

A santa donzela:

Não faz caso do ouro,

Nem de ser tão bela.

Na luta vê-se ela

Da perseguição;

Mas nas dores mostra

Grande coração.

Mais pena lhe dava

Viver sem o Esposo,

E, assim, nos tormentos

Achava repouso.

Tudo lhe era gozo,

Quisera morrer;

Pois já nesta vida

Não pode viver.

Nós que pretendemos

Gozar de seu gozo,

Nunca nos cansemos

A buscar repouso.

Oh! engano enganoso!

Que falta de amor!

Querer só regalos

Sem pena e sem dor!…

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XXIV

À Tomada de Hábito da Irmã Jerônima da Encarnação

Quem do vale da amargura,

Aqui vos trouxe, donzela?

Meu Deus e minha ventura.

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XXV2

À Tomada de Véu da Irmã Isabel dos Anjos

Irmã, para que veleis

Sois velada, e nesse véu

Em jogo está vosso Céu:

Assim, não vos descuideis.

Diz este véu tão gracioso

Que estejais sempre de vela,

Vigilante sentinela,

Aguardando vosso Esposo,

Que, como ladrão famoso,

Virá quando não penseis…

Assim, não vos descuideis.

Vem, mas ninguém sabe a que hora…

Se na vigília primeira,

Na segunda ou na terceira.

Todo cristão isto ignora.

Velai, Irmã, desde agora:

Não roubem o que trazeis…

Assim, não vos descuideis.

Vossa candeia empunhando,

Bem acesa e espevitada,

Velai, pois estais velada,

Os rins cingindo e apertando.

Não vos fiqueis dormitando,

Porque muito arriscareis…

Assim, não vos descuideis.

Tende óleo na almotolia,

Trabalhando e merecendo,

Para a lâmpada ir provendo,

Que não morra de vazia.

Se nisto fordes vadia,

Às bodas não entrareis.

Assim, não vos descuideis.

Não tereis óleo emprestado,

E, se o fordes a comprar,

Poder-vos-eis retardar;

E, uma vez o Esposo entrado,

Havendo a porta cerrado,

Não abre, embora clameis…

Assim, não vos descuideis.

Tende contínuo cuidado

De cumprir, com alma forte,

Até o instante da morte,

O que hoje haveis professado;

Porque, tendo assim velado,

Com vosso Esposo entrareis:

Assim, não vos descuideis.

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XXVI

À Profissão de Isabel dos Anjos

Seja meu gozo no pranto;

Sobressalto, meu repouso;

Meu sossego, doloroso;

Minha ventura, quebranto.

Nas borrascas, meu amor;

Meu regalo, o ser ferida;

Na morte encontre eu a vida;

Nos desprezos, meu favor;

Meus tesouros, na pobreza;

Meu triunfo, em pelejar;

Meu descanso, em trabalhar;

Meu consolo, na tristeza;

Na escuridão, minha luz;

Meu trono, em posto mesquinho;

O atalho de meu caminho,

Minha glória seja a cruz.

Seja-me honra o abatimento;

Minha palma, o padecer;

Nas mínguas, o meu crescer;

Nas perdas, o meu aumento;

Na fome, a minha fartura;

A esperança, no temor;

Meus regalos, no pavor;

E meus gostos, na amargura;

No olvido, minha memória;

Meu trono na humilhação;

No opróbrio, minha opinião;

Na afronta, minha vitória;

Minha coroa, a humildade;

As penas, minha afeição;

Um cantinho, meu quinhão;

Meu apreço, a soledade;

Em Cristo, a minha confiança,

E d’Ele só meu sustento;

Seu langor seja-me alento;

Gozo, sua semelhança.

Nisto encontro fortaleza,

Encontro tranqüilidade;

Prova de minha verdade,

Penhor de minha firmeza.

XXVII

A uma Professa1

Oh! que zagala ditosa

De hoje um Zagal desposar

Que reina e que há de reinar!

— Venturosa a sua sorte,

Pois mereceu tal Esposo!

Eu, Gil, me sinto medroso,

Nem a ousarei mais olhar!

Pois tal Esposo há tomado,

Que reina e que há de reinar.

— Que lhe deu ela por dote,

Para viver a seu lado?

— Um coração abrasado.

— Só isso? É pouco pagar:

Que é Zagal muito formoso,

Que reina e que há de reinar!

— Mais daria se tivera…

— Rapaz, não sejas mesquinho!

Dá-lhe o nosso cabazinho

Para o seu gosto tirar,

Porque hoje há tomado Esposo

Que reina e que há de reinar!

— Já vimos o que deu ela,

E o Zagal como a prendou?

— Com seu sangue a resgatou…

— Que precioso cabedal!

E que zagala ditosa,

Que contenta a este Zagal!

— Pois deu tão grande tesouro,

Muito a deve ter amado…

— Não vês que roupa e calçado

E tudo mais lhe há de dar?

Olha que é já seu Esposo,

Que reina e que há de reinar!

— Para este nosso rebanho

Bem será que hoje a tomemos,

E, alegres, a festejemos

Para seu amor ganhar,

Pois tomou tão grande Esposo,

Que sem fim há de reinar.

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XXVIII

Para uma Profissão

Oh! que bem tão sem segundo!

Oh! casamento sagrado!

O Rei dos Céus e da terra

Quis ser hoje o desposado!

Oh! que venturosa sorte

Vos estava aparelhada!

Deus que vos quis por amada

Vos ganhou com sua morte!

Em servi-lo sede forte,

Porquanto o haveis professado.

Sim, que o Rei dos Céus e da terra

É já vosso desposado.

Ricas jóias vos dará

O Rei do Céu, vosso Esposo,

E também consolo e gozo

Que ninguém vos tirará.

Em vossa alma infundirá

Um espírito humilhado.

É Rei, bem o poderá,

Pois quer ser hoje o esposado.

Dar-vos-á este Senhor

Um amor tão santo e puro,

Que podereis, asseguro,

Perder ao mundo o temor;

E ainda mais ao tentador,

Porque ficou maniatado;

Que o Rei do Céu e da terra

Hoje foi o desposado.

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XXIX

Para uma Profissão

Vós todas que militais

Sob este pendão de guerra,

Ah! não durmais, ah! não durmais,

Porquanto não há paz na terra.

Nosso Deus, capitão forte,

Por nós se quis imolar.

Comecemo-lo a imitar,

Pois lhe demos nós a morte.

Oh! que venturosa sorte

Se lhe seguiu desta guerra!

Ah! não durmais, ah! não durmais,

Pois vai faltando Deus na terra.

Com grande contentamento

Prestou-se a morrer na cruz,

Para dar a todos luz

Com seu atroz sofrimento.

Oh! glorioso vencimento!

Afortunada esta guerra!

Ah! não durmais, ah! não durmais,

Pois vai faltando Deus na terra.

Não haja, entre nós, covarde!

Aventuremos a vida:

Não há quem melhor a guarde

Que o que a deu por já perdida.

Jesus comanda a investida,

E prêmio será da guerra;

Ah! não durmais, ah! não durmais,

Porquanto não há paz na terra.

Correi, corramos ligeiras

A morrer por Cristo, todas:

E nas celestiais bodas

Estaremos prazenteiras.

Sigamos estas bandeiras:

Cristo vai na frente à guerra!

Longe o temor! Ah! não durmais

Porquanto não há paz na terra.

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XXX

Para uma Profissão

Pois que nosso Esposo

Nos quer em prisão,

Oh! que bela vida

A da Religião!

Oh! que ricas bodas

Ordenou Jesus!

Quer-nos a nós todas,

E dá-nos a luz.

Sigamos a Cruz,

E com perfeição!

Oh! que bela vida

A da Religião!

Este é o nosso estado

Por Deus escolhido,

Com que do pecado

Nos há defendido.

Tem-nos prometido

Dar consolação

Se nos alegrarmos

Em nossa prisão.

Na suprema glória

Dar-nos-á grandezas

E eternas riquezas,

Em troca da escória

Mundana e ilusória,

Que é só perdição.

Oh! que bela vida

A da Religião!

Grande liberdade

Este cativeiro!

Viver prazenteiro

Para a eternidade!

Dou-lhe de verdade

Todo o coração.

Oh! que bela vida

A da Religião!

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XXXI

Contra um Flagelo Impertinente

Pois nos dais vestido novo,

Rei celestial,

Livrai da praga importuna

Este saial.

A Santa: Filhas, pois tomais a Cruz,

Tende valor,

E a Jesus que é vossa luz

Pedi favor.

Será vosso defensor

Em transe tal.

Todas: Livrai da praga importuna

Este saial.

A Santa: Inquieta este mal, durante

Nossa oração,

Ao ânimo vacilante

Na devoção.

Mas em Deus o coração

Mantende igual.

Todas: Livrai da praga importuna

Este saial.

A Santa: Pois por Deus morrer viestes,
Não desmaieis;

E tal praga em vossas vestes

Não temereis.

Remédio em Deus achareis

A tanto mal.

Todas: Pois nos dais vestido novo

Rei celestial,

Livrai da praga importuna

Este saial.

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Saudades de Deus

Vejam-te meus olhos,

Doce e bom Senhor;

Vejam-te meus olhos,

E morra eu de amor.

Olhe quem quiser,

Rosas e jasmins:

Que eu, com a tua vista,

Verei mil jardins.

Flor de serafins,

Jesus Nazareno,

Vejam-te meus olhos,

E morra eu sereno.

Sem tal companhia

Vejo-me cativo.

Sem ti, vida minha,

É morte o que eu vivo.

Este meu desterro

Quando terá fim?

Vejam-te meus olhos

E morra eu, enfim.

Prazeres não quero,

— Meu Jesus ausente:

Que tudo é suplício

A quem tanto o sente.

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