Nascida para todos
Atualidade da mensagem de Santa Teresa de Jesus
Atualidade ou não atualidade (“ inattualità” )
Não sei se se
seja mais importante que Teresa seja “atual” ou, ao invés, “não atual”, ou
seja, que responda às necessidades e às perspectivas de nosso tempo ou que, ao
contrário, nos liberte delas. Tenho receio de uma Teresa adequada ao nosso
tempo, interpretada e revestida conforme nossos gostos e nossas necessidades,
enquanto o que eu espero dela é a abertura de um horizonte, que hoje vejo, com
preocupação, restrito.
Lembro o que
diz F. Nietzsche numa de suas Considerações
não atuais (inattuali) (extemporâneas): “imaginava que poderia encontrar
como educador um verdadeiro filósofo,
que pudesse libertar um homem da insatisfação própria da época e lhe ensinasse novamente a ser, no pensamento e na vida, simples e sincero, isto é, não atual, no sentido mais profundo da palavra”( Schopenhauer como educador)
500 anos: uma continuidade e uma distância
Tentemos medir
a distância que nos separa de Teresa, e contemporaneamente a que a ela nos une,
baseados em três elementos do seu (e nosso) universo. São elementos que a
caracterizam a nível histórico, a nível cultural e a nível religioso-espiritual.
Nos três elementos podemos encontrar as características de uma época nova que
está começando, a modernidade, e com elas o abrir-se de uma criatividade e um
despertar de energias, que colaboram para a edificação desse mundo e tempos
novos. Deste mundo nós também fazemos parte, mas como é diferente o espírito
com que nele vivemos! Passamos do sermos construtores deste mundo a sermos dele
prisioneiros, seguindo uma parábola que se repete frequentemente no decorrer da
história. O processo, iniciado no século de Teresa, alcançou sua fase terminal,
uma fase entrópica, na qual tende à desorganização e à “confusão (eliminação de
diferenças). E dado que eu creio que o sentido de um centenário não pode
consistir exclusivamente em celebrar Teresa, mas em imergir-nos em Teresa,
em “fazer-nos Teresa”, parece-me
essencial verificar a quais condições isto seja eventualmente possível hoje.
A)
A
GEOGRAFIA. O Novo Mundo entra diretamente no horizonte da vida de Teresa.
Teresa teve (parece) nove irmãos. À
exceção do primeiro, que se alistou no exército
e morreu na Itália, os outros sete ou oito partiram todos para as
Américas. Três deles morreram por lá (Antônio na batalha de Inhaquito em 1546;
Rodrigo combatendo contra os Araucanos
em Chile em 1555; Fernando morreu em Pasto (Colômbia) em 1565. Também
Jerônimo morre em Panamá, em 1575, na viagem de volta à Espanha. Somente dois
voltaram: Lourenço e Pedro, em 1575, enquanto um terceiro, Agostinho,
permaneceu nas Índias até o ano de 1585. Além disso, para Teresa teve uma importância
fundamental o encontro com o franciscano
Afonso de Maldonado, acontecido em São José em 1566. Maldonado, depois de ter
trabalhado em Peru e México, foi expressamente à Espanha para defender a causa
dos indígenas e denunciar os abusos dos conquistadores. Em Teresa, como ela
mesma conta no cap. I das Fundações, criou
um impacto fortíssimo , a ponto de abri-la à uma perspectiva missionária,
também com a fundação do ramo masculino
da Ordem.
Este elemento é para ser seriamente
considerado: uma contemplativa que se move numa geografia terrena moderna,
cujos limites não são nem os de seu convento, nem os de seu país ( até porque
seu país era naquele tempo um império sobre o qual não se poria o sol).
A
geografia de Teresa se abre também à África: no mesmo ano de sua morte, dia 15
de abril de 1582, parte de Lisboa a primeira missão dos Carmelitas Descalços em
direção ao Congo. Teresa envia uma saudação ao chefe desta expedição, P.
Antônio da Mãe de Deus, numa carta de março do mesmo ano a Ambrósio Mariano.
A Ordem nasce então com grandes horizontes,
potencialmente aberta a alcançar os extremos confins da terra. Há nisso um
espírito novo, moderno, próprio da época e compartilhado por outras
Congregações Religiosas do tempo, primeiros entre todos os jesuítas e os
capuchinhos. Ao mesmo tempo conhecemos as dificuldades que esse espírito
encontrou dentro da mesma Ordem, até o ponto de provocar uma divisão entre a
Congregação espanhola e a Congregação italiana (em cuja origem esteve, entre outros,
P. Tomás de Jesus, um dos primeiros teóricos das missões).
E
nosso mundo de hoje como é? Percorremo-lo de um extremo ao outro com facilidade
e desembaraço. Hoje o mundo pode-se encontrar, etnicamente, totalmente
concentrado numa grande cidade (ou até numa paróquia, como experimentei em
nossa paróquia de Perth, em que convivem mais de cem grupos étnicos diferentes)
ou, em nível de produtos e mercadorias, pode estar totalmente presente num
centro comercial (em que pode-se passar de um restaurante vietnamita a um
restaurante argentino, da cozinha grega
à cozinha indiana). O mundo tornou-se um
grande mercado, feito de necessidades e de consumo, que se vão uniformando
sempre mais. Nossas cidades assemelham-se sempre mais a “não lugares”, nos
quais não nos encontramos, mas passamos simplesmente como utentes anônimos e
distraídos. São lugares virtuais, absolutamente abstratos da realidade, em que,
contudo, se gasta o tempo, como num videojogo do qual, porém, somos nós os
protagonistas.
Passamos dos amplos horizontes da
geografia de Teresa, com seu espírito de aventura, seus riscos, suas
descobertas emocionantes, à potencial
transformação de nossos ambientes de vida em não-lugares ( quase o oposto da
utopia, que é o lugar ideal, em que o homem pode desenvolver todas as suas potencialidades).
O efeito é paralisante: tudo é igual, o valor das coisas se reduz ao seu preço.
Não vos parece que haja necessidade de libertar-nos deste mundo?
B) Os livros. Teresa foi desde a
adolescência uma apaixonada leitora (exatamente nos seus tempos o livro
impresso iniciava a ser um objeto de consumo). Começou “devorando” a literatura
cavalheiresca do seu tempo, da qual foi tão apaixonada, que criou em si certa
dependência: “ cheguei ao ponto que se não tivesse entre as mãos um novo livro
não me parecia estar contente” (V 2, 1).
A entrada no mosteiro não lhe tirou a paixão, mas a orientou em direção
dos que Teresa chama” Buenos libros” (Cf V 3, 7 “ Diome la vida haber quedado
ya amiga de Buenos libros”; 6, 4 “ amiguíssima de ler Buenos libros”), isto é,
livros espirituais, tratados de oração, como o Tercer Abecedario de Francisco de Osuna ou a Subida del Monte Sión de Bernardino de Laredo, ou também clássicos
da patrística: as cartas de São Jerônimo, os Moralia in Job de Gregório Magno e, sobretudo, as Confissões de Agostinho, publicado em
tradução espanhola em 1554 e imediatamente lido por Teresa no mesmo ano (cf V
9, 7). Nas Constituições, que ela mesma
escreveu para as monjas em 1567, no n. 8, estabelece que a Priora “ faça de
tudo que haja bons livros... porque este alimento é tão necessário para a alma
quanto o é a comida para o corpo”.
Ainda antes
que escritora, a partir de 1560-1562, Teresa foi então leitora e “amiga de
letras”. Este aspecto de sua personalidade possui também ele uma importância
decisiva não somente em sua formação, mas sobre o modo de conceber a vida
religiosa e a mesma vida espiritual. Ler e escrever são atos cotidianos de sua
vida de monja e contemplativa. Existe nela uma inesgotável sede de verdade, de
conhecimento, de confronto com outros que enfrentaram as mesmas questões, que
as estudaram duma maneira mais sistemática e aprofundada do que ela, mulher,
para quem era fechado o mundo dos estudos acadêmicos.
Ao lado deste
desejo de conhecimento, Teresa sente a necessidade de comunicar o que está
vivendo. É impressionante, sobretudo, o número de cartas por ela escritas. Para
nós chegaram aproximadamente 500 cartas (metade das quais em forma
fragmentária), mas esta é somente a ponta de um iceberg (há quem fala de 10.000
cartas).
Temos a que ver então com uma monja de
clausura, contemplativa, que dedica uma parte não secundária de seu tempo à
leitura e à escrita, com a intenção clara de entrar no debate eclesial,
teológico e espiritual do seu tempo. Teresa encontra-se no centro de uma
verdadeira e concreta rede de relações. Pense-se que são mais de 110 os
destinatários das cartas que chegaram até nós.
E hoje? A
parábola do livro impresso parece que está terminando, com ressonâncias
antropológicas importantes. Como alguém observou, todas as vezes que se
introduzem modificações importantes no
âmbito da comunicação, isto produz também
uma “mudança antropológica”, como afirmava Pasolini. Hoje, de certa
maneira, continua-se a ler e também a escrever, mas passamos do escrever ao
“texting”, à mensagem, a postar. Se até aos anos Setenta, a mudança importante
parecia ser a passagem da cultura de elite à cultura de massa, com conseguinte
empobrecimento e rebaixamento de nível cultural e de linguagem, hoje estamos
assistindo a um fenômeno ainda mais radical e abrangente, que engloba os atos
mesmos do ler e do escrever. Movemo-nos num continuum
de imagens-textos-mensagens, cujo conteúdo semântico é normalmente reduzido a
simples sinal de uma informação ou até mesmo de uma emoção (gosto, não gosto).
Esta “liquidez” de palavras e de textos (além de tudo efêmeros, porque somente
virtuais) é paralela à já descrita “indiferenciação” (indifferenziazione) dos
lugares. O resultado final é um “não texto”, uma sucessão de palavras e sinais,
indefinida e indeterminada, à qual se acrescentam, a todo instante, novos
segmentos. O que mais fica prejudicada é a capacidade de comunicação, que
parece ser reduzida à instantânea condivisão
de um fato ou de uma imagem ou de uma emoção, e ainda mais a capacidade
de alimentar-se/alimentar através da leitura/ escrita.
C) A Igreja. Teresa vive num dos períodos
mais inquietos e dramáticos da história da Igreja. As feridas causadas pela
Reforma protestante e a nova ordem dada à doutrina e à disciplina da Igreja
católica com o Concílio de Trento (1545-1563) são os eventos macroscópicos
deste período. É a grande crise da passagem do mundo e do homem medieval ao
mundo da modernidade, com todas as implicações que ela comporta a nível
político, cultural, científico e espiritual.
Não faltam nos escritos de Teresa
referências diretas às guerras de religião na França ou a profanações da
Eucaristia por obra dos luteranos. Analogamente a publicação dos decretos de
Trento sobre a vida religiosa, teve influência sobre sua história de fundadora,
seja criando obstáculos para sua atividade, seja obrigando-a a rever as normas
sobre a clausura.
O que mais conta, porém, é o fato
que Teresa vive uma fase da história da Igreja, em que de um lado domina um
sentido de insegurança e de medo, do outro está difundida uma irreprimível necessidade de novas formas, capaz de acolher
a procura espiritual do homem moderno, com sua subjetividade, com seu novo modo
de estar no mundo, de conhecer a natureza e agir na história.
Embora, obviamente, não se ache
notícia na obra de Teresa sobre questões teológicas cruciais na controvérsia
com os protestantes, contudo ela participa em cheio da sensibilidade e das
inquietudes de sua época. Limito-me a enumerar somente alguns aspectos mais
importantes:
1) O
primeiro e fundamental é a centralidade da pessoa de Jesus Cristo, enquanto
revelação e cumprimento definitivo da relação Deus-homem: é em Jesus Cristo que
o homem assume sua dignidade de filho de Deus e Deus revela o rosto do Pai. É
em Cristo que a fé se torna vida, adesão vital a uma história que compromete
intimamente a pessoa.
2) A
profunda consciência da impotência do homem e de sua condição de pecado e de
“perdição” no mundo. Junto a esta consciência, a exigência de uma relação de
amizade pessoal com Cristo, em quem o homem se reencontra e se enraíza.
3) A
dinâmica atividade-passividade no caminho espiritual, no qual a passagem
decisiva consiste exatamente no abandono ao operar de Deus.
4) A
veneração pela S. Escritura, fonte de toda verdade, não obstante o problemático
acesso ao texto bíblico (com certeza Teresa nunca teve à disposição uma
Bíblia).
Teresa é doutora da Igreja e protagonista
de uma reflexão profunda sobre a vida religiosa e a vida espiritual. Por isso
deve ser considerada como um dos pilares da Reforma católica, ou seja, daquele
longo e complexo processo de discernimento e assimilação do espírito moderno e
de sua “evangelização”. É através de pessoas como ela que o Senhor leva à
frente o caminho da Igreja e abre novas direções, que não nascem simplesmente
de uma reforma moral ou pela reafirmação de princípios doutrinais, mas de
experiências guiadas pelo Espírito.
E hoje? O
processo de assimilação da cultura moderna da parte da Igreja foi tão à frente
até confundir-se num processo de assimilação da Igreja da parte de nossa
cultura. Igreja, evangelho, papa: tudo entra no “pot-pourri” de nossa
informação cotidiana. Não tenho nada contra a midiatização da Igreja, mas
tampouco a considero um sinal de particular vitalidade. Não me preocupa o fato
de que os estádios e as praças se enchem, enquanto as igrejas se esvaziam. O
que me preocupa é o esvaziamento endógeno dos corações e das mentes, ao qual
corresponde um proporcional enchimento exógeno. Que a Igreja possa hoje e deva
assumir linguagens diferentes e formas novas de presença, é absolutamente
normal e sempre aconteceu no curso dos dois milênios de história. Minha
pergunta é orientada além da sociologia,
além das igrejas vazias e das praças lotadas. Que tipo de trabalho se está
realizando hoje dentro do crente (leigo, padre, religioso, ou quem quer que
seja)? Porque sem este trabalho sobre nós mesmos, sobre nossa fé, e mais
exatamente entre nossa fé e nossas seguranças, entre nossa esperança teologal e
nossos medos, entre nossa caridade e nossos afetos, não há futuro para nós, não
se constrói uma Igreja, uma comunidade cristã para o nosso tempo.
A atualidade de Teresa: “superar o nosso tempo”
Escrevia
Nietzsche: “O que exige de si mesmo um filósofo em primeira e última instância?
Superar (ultrapassar) dentro de si o próprio tempo, tornar-se “sem tempo”(
senza tempo) ( O caso Wagner). É isso
que legitimamente podemos pedir também a Teresa: ajudar-nos a superar este
nosso tempo.
Só para
começar, temos de purificar a mente da imagem de uma Teresa mística barroca
(mas lembremos de que, ao lado da Teresa transverberada de Bernini, existe uma
Teresa escritora, sentada em sua cela, em ato de produzir seus textos). Mas
dizia Contini: Teresa não consegue comunicar, expressar a experiência mística. Tinha
razão. Efetivamente, quem procurar em Teresa formas de escrita excessiva, aptas
a expressar um “excessus mentis”, ficará decepcionado. Teresa não é Maria
Madalena de’ Pazzi, nem Jacopone da
Todi, nem Verônica Giuliani, nem um poeta sufi. Suas palavras não são “palavras
de êxtase”. Sua linguagem é uma linguagem falada, não isenta de suas
estratégias retóricas, e com uma finalidade bem precisa: explicar e convidar
para uma experiência. Neste sentido, poderíamos dizer que sua intenção é antes didática
(didascálica) e parenética.
A escrita não
é, para Teresa, nem o esboço de uma alteração psicofísica, nem uma criação
lírica, nem um espelho no qual possa espelhar-se. É por um lado um modo para
procurar a verdade e a clareza numa série tumultuosa de experiências; do outro,
é um anúncio e uma catequese, que convida outros a entrar num modo novo de ser
e de se perceber.
O que nos
ensina fundamentalmente Teresa? As respostas que com mais facilidade nos vem à
mente são: Teresa mestra de oração, mãe dos espirituais, doutora mística. Todos
estes títulos, com os quais a tradição reconheceu o valor da doutrina de
Teresa, podem entretanto ser mal
compreendidos se não os compreendermos à luz do ponto central de sua
experiência e de seu ensinamento. Este centro da vida e da obra teresiana vem
indicado de maneira bem sintética e eficaz pelas palavras do decreto Multiformis Sapientia Dei, com o qual
Paulo VI, em 1970, declarou Teresa doutora da Igreja: “O centro da doutrina
espiritual de Teresa é Cristo que revela o Pai, nos une a Ele e nos associa a
si {...} a humanidade de Cristo assume intimamente o homem que nele
inteiramente confia, no mistério de sua morte, ressurreição e vida gloriosa junto
com o Pai. Por isso a humanidade sacratíssima de Cristo compreende todo o nosso
bem e salvação”.
Teresa é
doutora do Cristo vivo. Para expressar-nos com as palavras de Rowan Williams,
Teresa nos ensina a “fazer com que a realidade de Jesus se torne viva em nós”
(“about letting the reality os Jesus come alive in us”). Embora usando a
linguagem própria da teologia espiritual do seu tempo, Teresa dela modifica o
conteúdo, o significado. Não lhe interessa tanto desenvolver uma doutrina
sistemática sobre os graus de oração, quanto contar o que acontece na vida de
uma pessoa, quando se abre progressivamente à acolhida da humanidade de Jesus.
Seria com certeza interessante fazer um confronto entre a Vida, o Caminho e o Castelo, para examinar detalhadamente como
evolui o esquema dos graus ou das etapas da oração no pensamento de Teresa.
Na Vida (cap. 11-21) o esquema dos quatro
graus de oração é ainda muito dependente daquele comum à literatura espiritual
do tempo (em particular, dos autores caro à Teresa, especialmente os
franciscanos Osuna e Bernardino de Laredo): meditação, oração de quietude, “sono
espiritual das potências”, união. São como gavetas que Teresa encontrou
prontas, nas quais tenta inserir uma matéria razoavelmente magmática e difícil
de ser catalogada e inserida.
Um novo
esquema é apresentado no Castelo interior.
Desta vez, porém, Teresa domina a matéria com maior liberdade e é então capaz
de dar ao esquema uma flexibilidade e uma mobilidade que seguem e acompanham a
viagem da alma. Teresa não utiliza mais um esquema “de gavetas”, mas mais um
esquema narrativo, dinâmico. A metáfora de base do castelo serve para ambientar
o acontecimento narrativo, que pode ser sintetizada como narração de uma viagem
da pessoa ao interior de si mesma. Não é mais o tratado dos graus de oração,
mas o percurso do eu que passa de um estado inferior, mínimo, de
autoconhecimento ao seu estado mais pleno e elevado.
Edith Stein bem
viu que a relação com o centro do castelo (ou da alma) é também relação consigo
mesmo , com a fonte de onde brota nosso ser.
O caminho através das moradas é caminho de estados de crescente
autoconsciência do eu, que desde a dispersão e mediação do mundo externo, sobe
à sua simplicidade originária e de lá se levanta “sobre si mesmo”, isto é,
chega a participar da vida Daquele de quem provém. Parece-me que este seja o
modo mais correto e atual para ler Teresa: não procurar estabelecer a
quantidade de “sobrenatural”, presente nos estados intermediários, da qual,
contudo, teríamos consciência de um modo psicológico-experiencial (“sentindo”
Deus de alguma maneira), mas antes descrever o desenvolvimento, a manifestação
completa do eu que provém de sua fonte segreda:” A alma penetra aí tanto mais
profundamente quanto mais solidamente se coloca no seu centro, quanto mais
livremente se eleva e se liberta da prisão da matéria {...} até chegar à
“transformação da alma vivente num espírito dispensador de vida” (E. Stein, “O castelo da alma” {1935}).
O caminho da
alma em direção ao seu centro: é este – nas palavras de Edith Stein – o sentido
da narração do Castelo interior. Mas
o que entendemos com esta expressão “o centro da alma e da pessoa”? Também neste caso temos a ver com uma
metáfora rica de conotações. Limito-me a salientar três, que me parecem
particularmente importantes para nosso assunto, a atualidade de Teresa.
1) O
centro é o que não está na periferia, no exterior, o que constitui o coração de
uma realidade, sua dimensão mais interna e profunda. Caminhar em direção ao
centro significa ser capaz de despojamento e de aprofundamento, de silêncio e escuta
interior. Existe, atrás da tela da superfície, uma realidade que corre o risco
de não ser percebida, porque seu modo de expressar-se e de manifestar sua
presença é diferente daquilo das coisas do mundo. E, contudo, o conhecimento
desta realidade é efetivamente central, pois ela é de alguma maneira ligada a
tudo o que acontece na periferia, dela é como que sua consciência escondida.
2) O
centro é o que dá unidade e consistência ao ser. Ir em direção ao centro
significa então descobrir a própria unidade e adquirir um critério de
discernimento entre o que é efetivamente importante e o que é acessório, entre
o que reconhecemos como nosso e o que rejeitamos como estranho, entre o que
favorece nosso crescimento e o nosso processo de identificação e o que o bloqueia
e o lhe é de impedimento.
3) O
centro é aquilo do qual nasce o ser e para o qual o ser constantemente retorna.
O centro é por isso fonte de constante de energia e de vitalidade. Perder o
contato com o centro leva a um enfraquecimento da pessoa, torna-a incapaz de
encontrar em si a força de assumir sua realidade. Ao contrário, enraizando-se
no seu centro, a pessoa é livre de acolher seu ser assim como é concretamente,
inclusive com as experiências negativas (feridas, sofrimentos, fracassos
pecados), pois também elas se inserem numa dinâmica de vida e, paradoxalmente,
em lugar de prejudica-la, fortalecem-na.
Teresa
nos fala de um centro, que revela, organiza, anima a pessoa e sua identidade.
Não é exatamente o que necessitamos nós, homens e mulheres agregados em “não
lugares”, diluídos num “continuum” de palavras periféricas, desconhecidos pela
distância abissal que nos separa de nós mesmos? Teresa nos indica o centro,
para o qual sentimos uma profunda, instintiva atração, a nostalgia do
totalmente nosso, para parafrasear Max Horkheimer.
Falando
em centro da pessoa, pode-se correr o risco de interpretar este caminho num
sentido egocêntrico, quase que o objetivo fosse um fortalecimento do eu, uma
espécie de self empowerment. Na
realidade, assim se entenderia de modo totalmente errado a doutrina de Teresa.
O centro da pessoa não é o eu, assim como eu sou capaz de conhecê-lo e
controla-lo. O eu pertence também ele às dinâmicas da pessoa, mas dela não
expressa toda a sua complexidade e plenitude. O centro da pessoa é uma relação/encontro entre um Tu e um Eu. É
o fato que um Tu me chame e me atraia a si, que me dá a percepção exata daquilo que eu sou, não enquanto ator dos
meus pensamentos, palavras e obras, mas
sim como destinatário dos pensamentos, palavras e obras dum outro. É somente no
apelo deste Tu, que me chama a si, e em fazê-lo me chama também ao ser e à
vida, que eu posso compreender-me, entender-me para além dos limites dos meus
atos e de minhas prestações e das imagens de mim mesmo.
Na
realidade, nossa relação conosco mesmos não é absolutamente totalmente direta, mas
mediada por uma história e por um mundo, e ela nos remete normalmente uma
imagem de nós mesmos como partes desta história, peças deste mundo, cuja
insensatez e cujo pecado recai inevitavelmente também sobre nós. A única
possibilidade de chegar a um olhar sobre nós mesmos, livre destes
condicionamentos, dá-se no interior da relação com o meu
Deus, com o Deus que habita em mim, com o Deus
interior intimo meo. A identidade,
nesta perspectiva, não pode ser compreendida mediante um conceito ou uma
descrição científica, mas somente pode-se conhecer no ato de ser chamados. Por
isso, segundo a tradição hebraica, a identidade está no Nome, isto é ao interno
de uma relação de reconhecimento recíproco, em última análise: de amizade.
Concluindo,
é a isto que Teresa nos convida, é isto que nos propõe: chegar a nós mesmos, passando
por Aquele que nos conhece (uma espécie de antropológico “buscar el levante por
el poniente”). É o que o Senhor dizia a Teresa: “Procura-te em mim (o famoso Vejamen de 1576), palavra sobre a qual Teresa compôs
sua poesia n° 8: “Alma, procura-te em mim, e em ti deves procurar a mim”.
Quem
sou eu? É esta provavelmente a verdadeira pergunta que preocupa
subterraneamente nossa geração. A resposta, lembra-nos Teresa, podemos
encontra-la somente fora de nós, num lugar em que eu não me conheço, mas sou
conhecido e amado por um Outro, por aquele que habita no mais profundo de mim.
Para Ele, como Teresa, todos nós nascemos.
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