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segunda-feira, 11 de maio de 2015

Conferência do Pe. Geral, frei Savério Canistrà, sobre Santa Teresa de Jesus


Nascida para todos
Atualidade da mensagem de Santa Teresa de Jesus

Atualidade ou não atualidade (“ inattualità” )

Não sei se se seja mais importante que Teresa seja “atual” ou, ao invés, “não atual”, ou seja, que responda às necessidades e às perspectivas de nosso tempo ou que, ao contrário, nos liberte delas. Tenho receio de uma Teresa adequada ao nosso tempo, interpretada e revestida conforme nossos gostos e nossas necessidades, enquanto o que eu espero dela é a abertura de um horizonte, que hoje vejo, com preocupação,  restrito.
Lembro o que diz F. Nietzsche numa de suas Considerações não atuais (inattuali) (extemporâneas): “imaginava que poderia encontrar como educador  um verdadeiro filósofo, que pudesse libertar um homem da insatisfação  própria da época e lhe ensinasse novamente a ser, no pensamento e na vida, simples e sincero, isto é, não atual,  no sentido mais profundo da palavra”( Schopenhauer como educador)

500 anos: uma continuidade e uma distância

Tentemos medir a distância que nos separa de Teresa, e contemporaneamente a que a ela nos une, baseados em três elementos do seu (e nosso) universo. São elementos que a caracterizam a nível histórico, a nível cultural e a nível religioso-espiritual. Nos três elementos podemos encontrar as características de uma época nova que está começando, a modernidade, e com elas o abrir-se de uma criatividade e um despertar de energias, que colaboram para a edificação desse mundo e tempos novos. Deste mundo nós também fazemos parte, mas como é diferente o espírito com que nele vivemos! Passamos do sermos construtores deste mundo a sermos dele prisioneiros, seguindo uma parábola que se repete frequentemente no decorrer da história. O processo, iniciado no século de Teresa, alcançou sua fase terminal, uma fase entrópica, na qual tende à desorganização e à “confusão (eliminação de diferenças). E dado que eu creio que o sentido de um centenário não pode consistir exclusivamente em celebrar Teresa, mas em imergir-nos em Teresa, em  “fazer-nos Teresa”, parece-me essencial verificar a quais condições isto seja eventualmente possível  hoje.

A)     A GEOGRAFIA. O Novo Mundo entra diretamente no horizonte da vida de Teresa. Teresa teve (parece) nove irmãos.  À exceção do primeiro, que se alistou no exército  e morreu na Itália, os outros sete ou oito partiram todos para as Américas. Três deles morreram por lá (Antônio na batalha de Inhaquito em 1546; Rodrigo combatendo contra os Araucanos  em Chile em 1555; Fernando morreu em Pasto (Colômbia) em 1565. Também Jerônimo morre em Panamá,  em 1575,  na viagem de volta à Espanha. Somente dois voltaram: Lourenço e Pedro, em 1575, enquanto um terceiro, Agostinho, permaneceu nas Índias até o ano de 1585. Além disso, para Teresa teve uma importância fundamental  o encontro com o franciscano Afonso de Maldonado, acontecido em São José em 1566. Maldonado, depois de ter trabalhado em Peru e México, foi expressamente à Espanha para defender a causa dos indígenas e denunciar os abusos dos conquistadores. Em Teresa, como ela mesma conta no cap. I das Fundações, criou um impacto fortíssimo , a ponto de abri-la à uma perspectiva missionária, também com a fundação do ramo masculino  da Ordem.
Este elemento é para ser seriamente considerado: uma contemplativa que se move numa geografia terrena moderna, cujos limites não são nem os de seu convento, nem os de seu país ( até porque seu país era naquele tempo um império sobre o qual não se poria o sol).

A geografia de Teresa se abre também à África: no mesmo ano de sua morte, dia 15 de abril de 1582, parte de Lisboa a primeira missão dos Carmelitas Descalços em direção ao Congo. Teresa envia uma saudação ao chefe desta expedição, P. Antônio da Mãe de Deus, numa carta de março do mesmo ano a Ambrósio Mariano.

A Ordem nasce então com grandes horizontes, potencialmente aberta a alcançar os extremos confins da terra. Há nisso um espírito novo, moderno, próprio da época e compartilhado por outras Congregações Religiosas do tempo, primeiros entre todos os jesuítas e os capuchinhos. Ao mesmo tempo conhecemos as dificuldades que esse espírito encontrou dentro da mesma Ordem, até o ponto de provocar uma divisão entre a Congregação espanhola e a Congregação italiana (em cuja origem esteve, entre outros, P. Tomás de Jesus, um dos primeiros teóricos das missões).

E nosso mundo de hoje como é? Percorremo-lo de um extremo ao outro com facilidade e desembaraço. Hoje o mundo pode-se encontrar, etnicamente, totalmente concentrado numa grande cidade (ou até numa paróquia, como experimentei em nossa paróquia de Perth, em que convivem mais de cem grupos étnicos diferentes) ou, em nível de produtos e mercadorias, pode estar totalmente presente num centro comercial (em que pode-se passar de um restaurante vietnamita a um restaurante  argentino, da cozinha grega à  cozinha indiana). O mundo tornou-se um grande mercado, feito de necessidades e de consumo, que se vão uniformando sempre mais. Nossas cidades assemelham-se sempre mais a “não lugares”, nos quais não nos encontramos, mas passamos simplesmente como utentes anônimos e distraídos. São lugares virtuais, absolutamente abstratos da realidade, em que, contudo, se gasta o tempo, como num videojogo do qual, porém, somos nós os protagonistas.

               Passamos dos amplos horizontes da geografia de Teresa, com seu espírito de aventura, seus riscos, suas descobertas emocionantes,  à potencial transformação de nossos ambientes de vida em não-lugares ( quase o oposto da utopia, que é o lugar ideal, em que o homem pode desenvolver todas as suas potencialidades). O efeito é paralisante: tudo é igual, o valor das coisas se reduz ao seu preço. Não vos parece que haja necessidade de libertar-nos deste mundo?

B)      Os livros. Teresa foi desde a adolescência uma apaixonada leitora (exatamente nos seus tempos o livro impresso iniciava a ser um objeto de consumo). Começou “devorando” a literatura cavalheiresca do seu tempo, da qual foi tão apaixonada, que criou em si certa dependência: “ cheguei ao ponto que se não tivesse entre as mãos um novo livro não me parecia estar contente” (V 2, 1).  A entrada no mosteiro não lhe tirou a paixão, mas a orientou em direção dos que Teresa chama” Buenos libros” (Cf V 3, 7 “ Diome la vida haber quedado ya amiga de Buenos libros”; 6, 4 “ amiguíssima de ler Buenos libros”), isto é, livros espirituais, tratados de oração, como o Tercer Abecedario de Francisco de Osuna ou a Subida del Monte Sión de Bernardino de Laredo, ou também clássicos da patrística: as cartas de São Jerônimo, os Moralia in Job de Gregório Magno e, sobretudo, as Confissões de Agostinho, publicado em tradução espanhola em 1554 e imediatamente lido por Teresa no mesmo ano (cf V 9, 7). Nas Constituições, que ela mesma escreveu para as monjas em 1567, no n. 8, estabelece que a Priora “ faça de tudo que haja bons livros... porque este alimento é tão necessário para a alma quanto o é a comida para o corpo”.

Ainda antes que escritora, a partir de 1560-1562, Teresa foi então leitora e “amiga de letras”. Este aspecto de sua personalidade possui também ele uma importância decisiva não somente em sua formação, mas sobre o modo de conceber a vida religiosa e a mesma vida espiritual. Ler e escrever são atos cotidianos de sua vida de monja e contemplativa. Existe nela uma inesgotável sede de verdade, de conhecimento, de confronto com outros que enfrentaram as mesmas questões, que as estudaram duma maneira mais sistemática e aprofundada do que ela, mulher, para quem era fechado o mundo dos estudos acadêmicos.

Ao lado deste desejo de conhecimento, Teresa sente a necessidade de comunicar o que está vivendo. É impressionante, sobretudo, o número de cartas por ela escritas. Para nós chegaram aproximadamente 500 cartas (metade das quais em forma fragmentária), mas esta é somente a ponta de um iceberg (há quem fala de 10.000 cartas).

Temos a que ver então com uma monja de clausura, contemplativa, que dedica uma parte não secundária de seu tempo à leitura e à escrita, com a intenção clara de entrar no debate eclesial, teológico e espiritual do seu tempo. Teresa encontra-se no centro de uma verdadeira e concreta rede de relações. Pense-se que são mais de 110 os destinatários das cartas que chegaram até nós.

E hoje? A parábola do livro impresso parece que está terminando, com ressonâncias antropológicas importantes. Como alguém observou, todas as vezes que se introduzem  modificações importantes no âmbito da comunicação, isto produz também  uma “mudança antropológica”, como afirmava Pasolini. Hoje, de certa maneira, continua-se a ler e também a escrever, mas passamos do escrever ao “texting”, à mensagem, a postar. Se até aos anos Setenta, a mudança importante parecia ser a passagem da cultura de elite à cultura de massa, com conseguinte empobrecimento e rebaixamento de nível cultural e de linguagem, hoje estamos assistindo a um fenômeno ainda mais radical e abrangente, que engloba os atos mesmos do ler e do escrever. Movemo-nos num continuum de imagens-textos-mensagens, cujo conteúdo semântico é normalmente reduzido a simples sinal de uma informação ou até mesmo de uma emoção (gosto, não gosto). Esta “liquidez” de palavras e de textos (além de tudo efêmeros, porque somente virtuais) é paralela à já descrita “indiferenciação” (indifferenziazione) dos lugares. O resultado final é um “não texto”, uma sucessão de palavras e sinais, indefinida e indeterminada, à qual se acrescentam, a todo instante, novos segmentos. O que mais fica prejudicada é a capacidade de comunicação, que parece ser reduzida à instantânea condivisão  de um fato ou de uma imagem ou de uma emoção, e ainda mais a capacidade de alimentar-se/alimentar através da leitura/ escrita.

C)      A Igreja. Teresa vive num dos períodos mais inquietos e dramáticos da história da Igreja. As feridas causadas pela Reforma protestante e a nova ordem dada à doutrina e à disciplina da Igreja católica com o Concílio de Trento (1545-1563) são os eventos macroscópicos deste período. É a grande crise da passagem do mundo e do homem medieval ao mundo da modernidade, com todas as implicações que ela comporta a nível político, cultural, científico e espiritual.

Não faltam nos escritos de Teresa referências diretas às guerras de religião na França ou a profanações da Eucaristia por obra dos luteranos. Analogamente a publicação dos decretos de Trento sobre a vida religiosa, teve influência sobre sua história de fundadora, seja criando obstáculos para sua atividade, seja obrigando-a a rever as normas sobre a clausura.

O que mais conta, porém, é o fato que Teresa vive uma fase da história da Igreja, em que de um lado domina um sentido de insegurança e de medo, do outro está difundida uma irreprimível  necessidade de novas formas, capaz de acolher a procura espiritual do homem moderno, com sua subjetividade, com seu novo modo de estar no mundo, de conhecer a natureza e agir na história.

Embora, obviamente, não se ache notícia na obra de Teresa sobre questões teológicas cruciais na controvérsia com os protestantes, contudo ela participa em cheio da sensibilidade e das inquietudes de sua época. Limito-me a enumerar somente alguns aspectos mais importantes:

1)      O primeiro e fundamental é a centralidade da pessoa de Jesus Cristo, enquanto revelação e cumprimento definitivo da relação Deus-homem: é em Jesus Cristo que o homem assume sua dignidade de filho de Deus e Deus revela o rosto do Pai. É em Cristo que a fé se torna vida, adesão vital a uma história que compromete intimamente a pessoa.
2)      A profunda consciência da impotência do homem e de sua condição de pecado e de “perdição” no mundo. Junto a esta consciência, a exigência de uma relação de amizade pessoal com Cristo, em quem o homem se reencontra e se enraíza.
3)      A dinâmica atividade-passividade no caminho espiritual, no qual a passagem decisiva consiste exatamente no abandono ao operar de Deus.

4)      A veneração pela S. Escritura, fonte de toda verdade, não obstante o problemático acesso ao texto bíblico (com certeza Teresa nunca teve à disposição uma Bíblia).

Teresa é doutora da Igreja e protagonista de uma reflexão profunda sobre a vida religiosa e a vida espiritual. Por isso deve ser considerada como um dos pilares da Reforma católica, ou seja, daquele longo e complexo processo de discernimento e assimilação do espírito moderno e de sua “evangelização”. É através de pessoas como ela que o Senhor leva à frente o caminho da Igreja e abre novas direções, que não nascem simplesmente de uma reforma moral ou pela reafirmação de princípios doutrinais, mas de experiências guiadas pelo Espírito.

E hoje? O processo de assimilação da cultura moderna da parte da Igreja foi tão à frente até confundir-se num processo de assimilação da Igreja da parte de nossa cultura. Igreja, evangelho, papa: tudo entra no “pot-pourri” de nossa informação cotidiana. Não tenho nada contra a midiatização da Igreja, mas tampouco a considero um sinal de particular vitalidade. Não me preocupa o fato de que os estádios e as praças se enchem, enquanto as igrejas se esvaziam. O que me preocupa é o esvaziamento endógeno dos corações e das mentes, ao qual corresponde um proporcional enchimento exógeno. Que a Igreja possa hoje e deva assumir linguagens diferentes e formas novas de presença, é absolutamente normal e sempre aconteceu no curso dos dois milênios de história. Minha pergunta é orientada além  da sociologia, além das igrejas vazias e das praças lotadas. Que tipo de trabalho se está realizando hoje dentro do crente (leigo, padre, religioso, ou quem quer que seja)? Porque sem este trabalho sobre nós mesmos, sobre nossa fé, e mais exatamente entre nossa fé e nossas seguranças, entre nossa esperança teologal e nossos medos, entre nossa caridade e nossos afetos, não há futuro para nós, não se constrói uma Igreja, uma comunidade cristã para o nosso tempo.

A atualidade de Teresa: “superar o nosso tempo”

Escrevia Nietzsche: “O que exige de si mesmo um filósofo em primeira e última instância? Superar (ultrapassar) dentro de si o próprio tempo, tornar-se “sem tempo”( senza tempo) ( O caso Wagner). É isso que legitimamente podemos pedir também a Teresa: ajudar-nos a superar este nosso tempo.

Só para começar, temos de purificar a mente da imagem de uma Teresa mística barroca (mas lembremos de que, ao lado da Teresa transverberada de Bernini, existe uma Teresa escritora, sentada em sua cela, em ato de produzir seus textos). Mas dizia Contini: Teresa não consegue comunicar, expressar a experiência mística. Tinha razão. Efetivamente, quem procurar em Teresa formas de escrita excessiva, aptas a expressar um “excessus mentis”, ficará decepcionado. Teresa não é Maria Madalena de’ Pazzi, nem Jacopone  da Todi, nem Verônica Giuliani, nem um poeta sufi. Suas palavras não são “palavras de êxtase”. Sua linguagem é uma linguagem falada, não isenta de suas estratégias retóricas, e com uma finalidade bem precisa: explicar e convidar para uma experiência. Neste sentido, poderíamos dizer que sua intenção é antes didática (didascálica) e parenética.
A escrita não é, para Teresa, nem o esboço de uma alteração psicofísica, nem uma criação lírica, nem um espelho no qual possa espelhar-se. É por um lado um modo para procurar a verdade e a clareza numa série tumultuosa de experiências; do outro, é um anúncio e uma catequese, que convida outros a entrar num modo novo de ser e de se perceber.

O que nos ensina fundamentalmente Teresa? As respostas que com mais facilidade nos vem à mente são: Teresa mestra de oração, mãe dos espirituais, doutora mística. Todos estes títulos, com os quais a tradição reconheceu o valor da doutrina de Teresa, podem  entretanto ser mal compreendidos se não os compreendermos à luz do ponto central de sua experiência e de seu ensinamento. Este centro da vida e da obra teresiana vem indicado de maneira bem sintética e eficaz pelas palavras do decreto Multiformis Sapientia Dei, com o qual Paulo VI, em 1970, declarou Teresa doutora da Igreja: “O centro da doutrina espiritual de Teresa é Cristo que revela o Pai, nos une a Ele e nos associa a si {...} a humanidade de Cristo assume intimamente o homem que nele inteiramente confia, no mistério de sua morte, ressurreição e vida gloriosa junto com o Pai. Por isso a humanidade sacratíssima de Cristo compreende todo o nosso bem e salvação”.

Teresa é doutora do Cristo vivo. Para expressar-nos com as palavras de Rowan Williams, Teresa nos ensina a “fazer com que a realidade de Jesus se torne viva em nós” (“about letting the reality os Jesus come alive in us”). Embora usando a linguagem própria da teologia espiritual do seu tempo, Teresa dela modifica o conteúdo, o significado. Não lhe interessa tanto desenvolver uma doutrina sistemática sobre os graus de oração, quanto contar o que acontece na vida de uma pessoa, quando se abre progressivamente à acolhida da humanidade de Jesus. Seria com certeza interessante fazer um confronto entre a Vida, o Caminho e o Castelo, para examinar detalhadamente como evolui o esquema dos graus ou das etapas da oração no pensamento de Teresa.

Na Vida (cap. 11-21) o esquema dos quatro graus de oração é ainda muito dependente daquele comum à literatura espiritual do tempo (em particular, dos autores caro à Teresa, especialmente os franciscanos Osuna e Bernardino de Laredo): meditação, oração de quietude, “sono espiritual das potências”, união. São como gavetas que Teresa encontrou prontas, nas quais tenta inserir uma matéria razoavelmente magmática e difícil de ser catalogada e  inserida.

Um novo esquema é apresentado no Castelo interior. Desta vez, porém, Teresa domina a matéria com maior liberdade e é então capaz de dar ao esquema uma flexibilidade e uma mobilidade que seguem e acompanham a viagem da alma. Teresa não utiliza mais um esquema “de gavetas”, mas mais um esquema narrativo, dinâmico. A metáfora de base do castelo serve para ambientar o acontecimento narrativo, que pode ser sintetizada como narração de uma viagem da pessoa ao interior de si mesma. Não é mais o tratado dos graus de oração, mas o percurso do eu que passa de um estado inferior, mínimo, de autoconhecimento ao seu estado mais pleno e elevado.

Edith Stein bem viu que a relação com o centro do castelo (ou da alma) é também relação consigo mesmo , com a fonte de onde brota nosso ser.  O caminho através das moradas é caminho de estados de crescente autoconsciência do eu, que desde a dispersão e mediação do mundo externo, sobe à sua simplicidade originária e de lá se levanta “sobre si mesmo”, isto é, chega a participar da vida Daquele de quem provém. Parece-me que este seja o modo mais correto e atual para ler Teresa: não procurar estabelecer a quantidade de “sobrenatural”, presente nos estados intermediários, da qual, contudo, teríamos consciência de um modo psicológico-experiencial (“sentindo” Deus de alguma maneira), mas antes descrever o desenvolvimento, a manifestação completa do eu que provém de sua fonte segreda:” A alma penetra aí tanto mais profundamente quanto mais solidamente se coloca no seu centro, quanto mais livremente se eleva e se liberta da prisão da matéria {...} até chegar à “transformação da alma vivente num espírito dispensador de vida”  (E. Stein, “O castelo da alma” {1935}).
O caminho da alma em direção ao seu centro: é este – nas palavras de Edith Stein – o sentido da narração do Castelo interior. Mas o que entendemos com esta expressão “o centro da alma e da pessoa”?  Também neste caso temos a ver com uma metáfora rica de conotações. Limito-me a salientar três, que me parecem particularmente importantes para nosso assunto, a atualidade de Teresa.

1)      O centro é o que não está na periferia, no exterior, o que constitui o coração de uma realidade, sua dimensão mais interna e profunda. Caminhar em direção ao centro significa ser capaz de despojamento e de aprofundamento, de silêncio e escuta interior. Existe, atrás da tela da superfície, uma realidade que corre o risco de não ser percebida, porque seu modo de expressar-se e de manifestar sua presença é diferente daquilo das coisas do mundo. E, contudo, o conhecimento desta realidade é efetivamente central, pois ela é de alguma maneira ligada a tudo o que acontece na periferia, dela é como que sua consciência escondida.

2)      O centro é o que dá unidade e consistência ao ser. Ir em direção ao centro significa então descobrir a própria unidade e adquirir um critério de discernimento entre o que é efetivamente importante e o que é acessório, entre o que reconhecemos como nosso e o que rejeitamos como estranho, entre o que favorece nosso crescimento e o nosso processo de identificação e o que o bloqueia e o lhe é de impedimento.
3)      O centro é aquilo do qual nasce o ser e para o qual o ser constantemente retorna. O centro é por isso fonte de constante de energia e de vitalidade. Perder o contato com o centro leva a um enfraquecimento da pessoa, torna-a incapaz de encontrar em si a força de assumir sua realidade. Ao contrário, enraizando-se no seu centro, a pessoa é livre de acolher seu ser assim como é concretamente, inclusive com as experiências negativas (feridas, sofrimentos, fracassos pecados), pois também elas se inserem numa dinâmica de vida e, paradoxalmente, em lugar de prejudica-la, fortalecem-na.

Teresa nos fala de um centro, que revela, organiza, anima a pessoa e sua identidade. Não é exatamente o que necessitamos nós, homens e mulheres agregados em “não lugares”, diluídos num “continuum” de palavras periféricas, desconhecidos pela distância abissal que nos separa de nós mesmos? Teresa nos indica o centro, para o qual sentimos uma profunda, instintiva atração, a nostalgia do totalmente nosso, para parafrasear Max Horkheimer.

Falando em centro da pessoa, pode-se correr o risco de interpretar este caminho num sentido egocêntrico, quase que o objetivo fosse um fortalecimento do eu, uma espécie de self empowerment. Na realidade, assim se entenderia de modo totalmente errado a doutrina de Teresa. O centro da pessoa não é o eu, assim como eu sou capaz de conhecê-lo e controla-lo. O eu pertence também ele às dinâmicas da pessoa, mas dela não expressa toda a sua complexidade e plenitude. O centro da pessoa  é uma relação/encontro entre um Tu e um Eu. É o fato que um Tu me chame e me atraia a si,  que me dá a percepção exata  daquilo que eu sou, não enquanto ator dos meus pensamentos,  palavras e obras, mas sim como destinatário dos pensamentos, palavras e obras dum outro. É somente no apelo deste Tu, que me chama a si, e em fazê-lo me chama também ao ser e à vida, que eu posso compreender-me, entender-me para além dos limites dos meus atos e de minhas prestações e das imagens de mim mesmo.

Na realidade, nossa relação conosco mesmos não é absolutamente totalmente direta, mas mediada por uma história e por um mundo, e ela nos remete normalmente uma imagem de nós mesmos como partes desta história, peças deste mundo, cuja insensatez e cujo pecado recai inevitavelmente também sobre nós. A única possibilidade de chegar a um olhar sobre nós mesmos, livre destes condicionamentos, dá-se no interior da relação com o  meu Deus, com o Deus que habita em mim, com o Deus interior intimo meo.  A identidade, nesta perspectiva, não pode ser compreendida mediante um conceito ou uma descrição científica, mas somente pode-se conhecer no ato de ser chamados. Por isso, segundo a tradição hebraica, a identidade está no Nome, isto é ao interno de uma relação de reconhecimento recíproco, em última análise: de amizade.

Concluindo, é a isto que Teresa nos convida, é isto  que nos propõe: chegar a nós mesmos, passando por Aquele que nos conhece (uma espécie de antropológico “buscar el levante por el poniente”). É o que o Senhor dizia a Teresa: “Procura-te em mim (o famoso Vejamen  de 1576), palavra sobre a qual Teresa compôs sua poesia n° 8: “Alma, procura-te em mim, e em ti deves procurar a mim”.


Quem sou eu? É esta provavelmente a verdadeira pergunta que preocupa subterraneamente nossa geração. A resposta, lembra-nos Teresa, podemos encontra-la somente fora de nós, num lugar em que eu não me conheço, mas sou conhecido e amado por um Outro, por aquele que habita no mais profundo de mim. Para Ele, como Teresa, todos nós nascemos.

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