Rabi’a al-’Adawiyya e Teresa de Jesus:
Rabi’a al-’Adawiyya introduziu no universo sufi a concepção de amor gratuito pelo Amado. Já Teresa abriu-se para o Mistério por meio de uma vida de oração, entendida como “vida de amizade com o Amado”, explica Carlos Frederico Barboza de Souza
Por: Moisés Sbardelotto
Mulher ou homem: isso não importa para se “viver a experiência radical de encontro com o Mistério Profundo”. Para Carlos Frederico Barboza de Souza, professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas, “o que é primordial na vida mística é a capacidade de abertura, de receptividade e acolhimento ao Totalmente Outro, ao Mistério Absoluto que a tudo constitui. E para isso não importam questões de gênero”.
Porém, é necessário “o desenvolvimento de novos paradigmas capazes de recuperar a singularidade – e de certa forma, sua irredutibilidade – da experiência dessas mulheres”, um verdadeiro “resgate da mística na perspectiva feminina”, defende, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.
Essa via feminina se expressa em mulheres que experimentam o “Mistério profundo do Real como acolhida, ternura, receptividade, entrega, fragilidade (não no sentido pejorativo, mas como fruto do reconhecimento profundo e radical da condição humana), sombra, silêncio, criatividade, misericórdia”: como Rabi’a al-’Adawiyya e Teresa de Jesus, dois marcos da mística no islamismo e no cristianismo, respectivamente, analisadas nesta entrevista.
Rabi’a al-’Adawiyya foi uma das figuras mais significativas da primeira fase do sufismo e “sua singularidade no universo sufi é ter introduzido a concepção do amor gratuito, desinteressado, pelo Amado”. Já Teresa, a partir de um “cansaço interior”, irá se abrir para “a busca de um novo estilo de vida mais coerente consigo mesma e seus questionamentos”, por meio de uma vida de oração, entendida como “vida de amizade com o Amado”. E ambas “acabaram encontrando-se com o Amado, a quem dedicam um amor total e exclusivo, chegando à opção celibatária”. Em ambas, também, pode-se
encontrar “a busca do Amado de forma intensa e gratuita”.
encontrar “a busca do Amado de forma intensa e gratuita”.
Carlos Frederico Barboza de Souza é doutor em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF, professor de Cultura Religiosa e Ecumenismo e Diálogo Inter-Religioso da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas e coordenador do Anima PUC Minas, Sistema Avançado de Formação. Também é autor do livro A mística do coração (Edições Paulinas, 2010) e da coleção de Ensino Religioso Construindo a vida (Editora Fumarc).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em sua opinião, qual a importância, hoje, de se retomar o estudo e a reflexão da mística a partir da experiência feminina?
Carlos Frederico Barboza de Souza – Penso que muitas considerações podem ser feitas sobre esse assunto. A primeira é que, para muitos místicos, viver a experiência radical de encontro com o Mistério Profundo independe de se ser homem ou mulher: “No estado místico não há diferença entre eles [homens e mulheres], não são diferentes na ‘unidade da existência’ (wahdat al-wujud). Na ‘unicidade de Deus’ (tawhid) que coisa resta da existência do Eu e do Tu? Como poderia haver, então, diferença entre homem e mulher?” . Assim, o que é primordial na vida mística é a capacidade de abertura, de receptividade e acolhimento ao Totalmente Outro, ao Mistério Absoluto que a tudo constitui. E para isso não importam questões de gênero. Entretanto, essa concepção desqualifica os estudos e reflexão da mística a partir da experiência feminina? Creio que não, pois, se por um lado pode-se pensar que, para esta experiência, o que vale são as atitudes humanas frente ao Sagrado, por outro lado, penso ser importante complexificar esta relação entre masculino, feminino e a mística, pois as questões referentes aos homens e mulheres, feminino e masculino, de alguma maneira permeiam as vivências envolvendo as experiências místicas e suas possibilidades na vida humana.
Assim, numa sociedade machista, caracterizada pela leitura masculinizada da vida e que se constituiu de forma patriarcal, impedindo muitas vezes as vozes das mulheres de expressarem seus dizeres mais íntimos, singulares e originais, nessa sociedade há a tendência de se reprimir, também no nível da espiritualidade e da mística, as vozes femininas. Como afirma Constance FitzGerald, em 1699, a marginalização da linguagem dos místicos “possui uma afinidade simbólica com a marginalização das mulheres e a negligência do Espírito. Não tenha dúvida de que o silenciamento da contemplação estava/está diretamente relacionado com o lugar das mulheres na sociedade, o papel da consciência na religião e na política, o medo da inspiração direta do Espírito e o transformativo e rebelde caráter da contemplação” . Isso porque o processo de marginalização das mulheres e o fato de se considerá-las como seres de segunda categoria em muitas sociedades impediram a muitas mulheres de desenvolverem autoconfiança a ponto de lhes permitir um profundo amadurecimento espiritual e na vida mística e, sobretudo, de desenvolver uma voz singular e única a partir da qual sua experiência pode se concretizar, ser ouvida, compreendida e comunicada.
A repressão da mulher e, consequentemente, das expressões da feminilidade presentes em homens e mulheres se traduzem, de alguma maneira, numa repressão no nível da experiência mística ou de aspectos dela, exigindo de quem se dispõe a caminhar por esta trilha que tenha, além do grande esforço a ser feito em se superar e superar suas forças egoicas que lhe impedem a abertura radical ao Totalmente Outro, que se deparar com a dificuldade de não ter em seu repertório, desenvolvido e amadurecido, todo o potencial que a feminilidade pode lhe propiciar em termos da realização de uma vida mística.
Perspectiva feminina
Dessa maneira, torna-se de grande importância o resgate por parte das tradições místico-religiosas, das mulheres que, de alguma forma, viveram profundamente esse tipo de experiência. E isso não se faz sem o estudo e a redescoberta dessas mulheres. E estudos como esses serão ricos se não forem simplesmente leituras pautadas por uma lógica masculina de ler as tradições místicas, formas construídas em meio a séculos de patriarcalismo. Exige-se, sobretudo, o desenvolvimento de novos paradigmas capazes de recuperar a singularidade – e, de certa forma, sua irredutibilidade – da experiência dessas mulheres. Se formos capazes disso, penso que o resgate da mística na perspectiva feminina propiciará – e já tem propiciado – maneiras criativas e inusitadas desse tipo de vivência se revelar, possibilitando novas linguagens e novas traduções da experiência do Real, fornecendo um repertório rico com que esse – de forma infinita, inesgotável e inabarcável em sua totalidade – possa ser reconhecido em suas infinitas manifestações na história humana. Assim, o resgate da mística na perspectiva feminina possibilitará novos e inusitados acessos ao Mistério Profundo que a tudo habita.
Além do mais, as vivências místicas realizadas por muitas mulheres resgatam dimensões fundamentais e profundas de todos os seres humanos, sendo mais uma das possíveis e ricas manifestações com que a humanidade pode se expressar. Nesse sentido, retomar o estudo e a reflexão da mística a partir das experiências femininas pode possibilitar a integração com as expressões masculinas dessas vivências. Isso, por si só, pode colaborar com os próprios homens na descoberta de dimensões femininas de suas vivências místicas, elemento muito comum em muitos místicos, sendo João da Cruz um exemplo claro: chama a atenção que em seu Cântico espiritual e no poema da Noite escura, a personagem que busca o Amado é uma mulher. Dessa forma, pode-se pensar na existência de uma via feminina que pede reconhecimento, aberta a homens e mulheres que experimentam o Mistério profundo do Real como acolhida, ternura, receptividade, entrega, fragilidade (não no sentido pejorativo, mas como fruto do reconhecimento profundo e radical da condição humana), sombra, silêncio, criatividade, misericórdia (é interessante observar como misericórdia, em árabe, possui a mesma raiz linguística que útero, lugar que protege a gestação de uma vida nova), etc. Por fim, com Ibn ‘Arabi, tendo a pensar e reconhecer que, se a receptividade perfeita é um dos atributos da mística feminina, “a atividade de Deus se observa mais claramente nas mulheres” .
IHU On-Line – Uma das figuras mais importantes do misticismo islâmico foi uma mulher, Rabi’a al-’Adawiyya? Quem foi ela e como se deu a sua abertura à experiência mística?
Carlos Frederico Barboza de Souza – Rabi’a al-’Adawiyya foi uma das figuras mais significativas da primeira fase do sufismo, sendo que muitos sufis a citaram com frequência. Sua singularidade no universo sufi é ter introduzido a concepção do amor gratuito, desinteressado, pelo Amado. Entretanto, de sua vida, cercada por lendas, pouco se sabe. A principal fonte sobre ela foi sua auxiliar, ‘Abda, que registrou muitos de seus ditos e atos.
Rabia al-Qaysiyya al-’Adawiyya al-Basriyya – seu nome completo – nasceu na cidade de Basra, hoje situada ao sul do país que denominamos Iraque. Nasceu entre 713 e 718 do calendário cristão (entre 95 e 98 do calendário islâmico), em uma família paupérrima, sendo sua quarta filha. Daí seu nome Rabi’a, que em árabe significa “a quarta”.
Na adolescência, torna-se órfã de pai e mãe e acaba sendo vendida para uma pessoa que provavelmente a leva para Damasco, onde servirá em regime de escravidão, submetendo-se a serviços pesados. Nesse ambiente, um homem desconhecido por ela se encanta e tenta molestá-la. Diante disso, ela foge e faz uma oração: “Senhor, eu sou uma estrangeira, uma órfã, prisioneira e até me tornei escrava, mas o que me preocupa é saber se tu te comprazes ou não se comprazes em mim”. E nesse instante ela ouviu uma voz que lhe disse: “Não te entristeças, porque no paraíso os que te forem próximos te olharão e te invejarão devido ao lugar por ti ocupado” . A partir dessa experiência, Rabi’a descobre sua vocação da entrega amorosa total e incondicional a Deus, retorna à casa de seu patrão e passa a levar uma vida dedicada à oração e jejum, buscando a união com Deus (wasl).
Mais tarde, após adquirir sua liberdade novamente, Rabi’a retorna a Basra, onde vai morar numa casa simples fora da cidade, para dedicar-se integralmente à sua busca espiritual. Mora na companhia de ‘Abda, que é uma discípula que se colocou a seu serviço. Distanciando-se da visão majoritária presente no Islã, opta por uma vida celibatária: “O matrimônio é necessário para quem tem escolha. Quanto a mim, não tenho escolha; sou do meu Senhor e vivo à sombra dos seus mandamentos” . Não demorará muito para sua casa se tornar lugar de “peregrinação”, onde muitos – inclusive sábios – irão lhe consultar e ouvir seu falar de Deus. Daí que sua vida será muito marcada por tempos dedicados à oração e tempos dedicados à orientação espiritual.
Puro e gratuito amor
Sua concepção acerca da oração situa-se dentro da tradição sufi, que insiste na oração contínua e na educação para esta prática por meio do dhikr, que é a repetição dos nomes divinos – acompanhada, muitas vezes, com exercícios de introspecção baseados na postura corporal, respiração, recitações, etc. – no intuito de recordar contínua e cordialmente de sua presença: “Recorda continuamente o Seu nome” . Com isso ela visava uma vida de intimidade com Deus, pois “tudo tem um fruto. E o fruto do reconhecimento é aproximar-se de Deus” .
Aqui nos deparamos com o elemento que mais chama a atenção em sua mística: a busca do puro e gratuito amor: “Amo-te com dois amores: um é fruto da minha paixão e o outro porque Tu és digno de ser amado. No primeiro, penso em Ti, excluindo qualquer outro. No segundo, Tu mesmo te desvelas a mim, para que eu te veja” . Na linha da gratuidade amorosa, uma história ficou famosa e retrata bem sua experiência: “Um dia, nas ruas de Basra, ela foi perguntada por que estaria carregando uma tocha em uma mão e um jarro na outra, e ela respondeu: ‘Eu quero jogar fogo no Paraíso e despejar água no Inferno, pois assim esses dois véus desaparecerão e se tornarão claros os que adoram a Deus por amor, não por medo do Inferno ou pela esperança do Paraíso” . Dessa maneira, nos ditos de Rabi’a depreende-se uma concepção de um Deus próximo e íntimo, terno e amoroso, que, sem perder sua transcendência, torna-se presente na sua vida e a acompanha continuamente.
Rabi’a morre em Basra, com quase 90 anos, depois de um processo de envelhecimento e adoecimento. Mesmo assim, não perde sua lucidez e afirma: “Todo o bem que hás decretado para mim neste mundo, dê-o aos seus inimigos; e tudo que hás decretado para mim no Paraíso, concede-o aos teus amigos. Eu aspiro somente a Ti” .
IHU On-Line – Por outro lado, que fatos históricos – pessoais ou sociais – fizeram aflorar ou despertar a experiência mística no caso de Teresa de Jesus?
Carlos Frederico Barboza de Souza – As experiências místicas, embora possam muitas vezes estar relacionadas a situações históricas vividas pelo/a místico/a, têm em sua subjetividade as causas do seu despertar. E isso é claro em Teresa de Jesus.
Teresa de Ahumada nasce em 1515, na cidade de Ávila, Espanha. De uma família de comerciantes e, tendo ficado órfã de mãe aos 14 anos, aos 20 anos entra para o mosteiro das Carmelitas da Encarnação. Quatro anos depois tem uma doença grave que a leva à Becedas, onde tem contato com um tio que lhe introduz em algumas práticas da vida de oração. Em seguida, em 1543, aos 28 anos, perde seu pai.
Após a morte de seu pai, ela passa a se dedicar com mais intensidade à oração, porém, a duras penas, de modo que se pode dizer que, nos 10 anos seguintes, ela oscilou entre a busca intensa da oração e a acomodação e dispersão, associados aos momentos em que passava no locutório com pessoas da sociedade abulense, entretida e distraída com conversas fúteis. Foi um período de grande luta entre a mediocridade que caracterizava algumas de suas posturas e costumes e a coerência de vida e profundidade por ela almejada.
Além disso, o ambiente do mosteiro da Encarnação em nada lhe favorecia a vivenciar um ambiente de maior interiorização, visto que nele moravam muitas irmãs (quase 200); não havia um clima orante, mas necessidades financeiras que favoreciam a saída de irmãs por alguns períodos para se instalarem em casas de pessoas ricas – pelo menos nestas casas teriam sustento e não onerariam os parcos recursos do mosteiro – e, por fim, mantinha-se neste mosteiro a divisão de classes sociais muito presente na sociedade espanhola daquele tempo, havendo monjas que possuíam empregadas domésticas particulares e mantinham seus títulos de nobreza, situação que em muito prejudicava o centramento na vida espiritual e a prática da fraternidade no contexto da comunidade. Essa época na vida de Teresa é caracterizada como um período de crise acerca de sua vocação fundamental na vida, marcado pela experiência de uma grande e solitária luta em busca de seu caminho.
A grande mudança nesta situação vai ocorrer em 1554. Nesse ano, em seu relato autobiográfico – Livro da Vida – ela narra o seguinte: “A minha alma já estava cansada e, embora quisesse, seus maus costumes não a deixavam descansar” (Vida 9,1). Como se depreende desse relato, em sua subjetividade Teresa experimentava um cansaço interior, o que lhe abrirá para a busca de um novo estilo de vida mais coerente consigo mesma e com seus questionamentos.
Cristo e Agostinho
Além disso, dois eventos – ambos narrados no Livro da Vida – são importantes. No primeiro deles, ela se depara, ao entrar num oratório do Mosteiro da Encarnação, com uma imagem de Cristo chagado e ela o narra assim: “Aconteceu-me de, entrando certo dia no oratório, ver uma imagem guardada ali para certa festa a ser celebrada no mosteiro. Era um Cristo com grandes chagas que inspirava tamanha devoção que eu, de vê-lo, fiquei perturbada, visto que ela representava bem o que Ele passou por nós. Foi tão grande o meu sentimento por ter sido tão mal-agradecida àquelas chagas que o meu coração quase se partiu; lancei-me a seus pés, derramando muitas lágrimas e suplicando-lhe que me fortalecesse de uma vez para que eu não O ofendesse mais” (Vida 9,1). Essa experiência lhe foi tão marcante que ela afirmou que não se levantaria dali enquanto sua “súplica não fosse atendida” (Vida 9,3).
O segundo evento importante, nesse mesmo ano de 1554, foi a publicação em Salamanca das Confissões, de Santo Agostinho . Teresa leu-as com intensidade e paixão, identificando-se com a busca de Agostinho: “Começando a ler as Confissões, tive a impressão de me ver ali” (Vida 9,8). Houve uma empatia tão grande com ele que chegou a afirmar que, quando se deparou com a “sua conversão e li que ele ouvira uma voz no jardim, senti ser o Senhor quem me falava, tamanha foi a dor do meu coração. Passei muito tempo chorando, com grande aflição e sofrimento” (Vida 9,8).
A partir dessas experiências, a vida de Teresa sofre uma guinada e muda completamente. Fazendo uma breve interpretação da estrutura do Livro da Vida, pode-se pensar assim: nos capítulos iniciais (até o capítulo 7), ela narra sua vida em família, sua formação e seus altos e baixos na busca da oração; no capítulo 8 ela define o que é oração: “Para mim, a oração mental não é senão tratar de amizade – estando muitas vezes tratando a sós – com quem sabemos que nos ama” (Vida 8,5). Aqui ela já dá o seu tom sobre a oração: vida de amizade com o Amado. Em seguida vem o capítulo 9, indicando verdadeiro divisor de águas em sua vida, onde ela vai narrar sua experiência que passa para a história como uma experiência de conversão; após esse, o capítulo décimo indica sua mudança e a seguir ela interrompe a narrativa da sua vida, introduzindo um pequeno tratado sobre a oração (capítulos 11 a 21).
Nesse tratado, ela apresenta uma metáfora, comparando a vida de oração a um jardim e as formas de irrigá-lo, articulando a ação humana e a divina no irrigar. Na verdade, trata-se da explicação de quatro graus de oração, indo do grau em que mais esforço pessoal se tem – que é o tirar a água de um poço puxando-a por meio de um balde (1) e passando pela utilização de roldanas (2) e a captação da água de um rio (3) – até o grau em que não se precisa fazer esforço, pois a própria chuva irriga o jardim (4). Esse é o tipo de oração mais mística, em que a pessoa se coloca em atitude de total receptividade e recolhimento das suas potências e paixões diante do Mistério divino, que a inunda totalmente. A partir da explicação dos quatro graus da oração, Teresa se detém em narrativas acerca das graças místicas recebidas (capítulos 22 a 31) para, logo em seguida, narrar a fundação do Carmelo de São José de Ávila, início da Reforma (verdadeira e singular Fundação) Teresiana que dará origem à Ordem dos Carmelitas Descalços. Ou seja, há uma Teresa antes da oração (até o capítulo 8) e outra depois da oração (do capítulo 10 em diante), cujo fruto maior será sua obra de fundadora.
Teresa continua sua vida de profunda experiência do Mistério e se dedica a fundar mosteiros, em sua maioria femininos;também participa e colabora com fundações de frades. Vive uma vida de intensa atividade e contatos. Morre em Alba de Tormes aos 15 de outubro de 1582, deixando três grandes obras: Livro da Vida; Caminho de Perfeição; e Castelo Interior ou Moradas.
IHU On-Line – É possível estabelecer uma relação entre Rabi’a al-’Adawiyya e Teresa de Jesus a partir de suas experiências místicas?
Carlos Frederico Barboza de Souza – Sim, é possível estabelecer paralelos entre ambas, resguardando a singularidade de cada uma e a irredutibilidade de suas experiências, assim como de suas pertenças religiosas, pois uma era muçulmana e a outra era cristã. Ou seja, é importante não se perder de vista o que David Tracy chamará de a existência de “similaridades na diferença”.
Ambas foram órfãs e já na infância experimentaram uma busca por Deus. E passando por diversos dissabores vivenciaram algum tipo de experiência fundante – o que não é exclusividade delas, mas trata-se de um elemento presente em muitos místicos –, que as modificou e lhes abriu para uma intimidade profunda com o Real. Dessa forma, acabaram encontrando-se com o Amado, a quem dedicam um amor total e exclusivo, chegando à opção celibatária – o que no caso de Rabi’a extrapola a tradição islâmica, que valoriza o casamento de forma muito significativa. Assim, em ambas se pode encontrar a busca do Amado de forma intensa e gratuita; e também se percebe uma semelhança nas diferentes etapas espirituais percorridas por elas rumo à união mística. E esse amor gerou comportamentos e atitudes de amantes, registrados na busca intensa que ambas vivenciaram por meio de buscas de orientação e vivências comunitárias, forte ascese, vigílias, momentos intensos de oração, graças místicas, cultivo da solidão, etc. Desenvolvem uma linguagem esponsal e apaixonada pelo Amado e sua busca de união com ele se baseia na condição amorosa do Amado que sai de si em busca da Amada, objeto de seu amor. Por isso em ambas é comum a linguagem amorosa dos esposos, que trocam carícias e anseiam pela presença e entrega mútuas.
Por fim, um último elemento comum entre elas que seria importante ressaltar é que, devido a esta trajetória intensa de busca, de experiências e de interlocuções com pessoas de seu entorno, elas vêm a se tornar grandes orientadoras espirituais e muito requisitadas inclusive por lideranças religiosas de suas épocas. E seus escritos, apesar de datados e serem elaborados dentro de contextos históricos específicos, adquirem uma dimensão de universalidade, sendo capazes de falar a leitores e “buscadores” de outras épocas, religiões e contextos socioculturais distantes dos delas, além de comunicarem certo “calor”, na linguagem de João da Cruz, aos que os leem.
IHU On-Line – Rabi’a e Teresa estão separadas por quase um século. A partir dessa diferença, qual foi a relação dessas místicas com a cultura, a teologia e a sociedade do seu tempo?
Carlos Frederico Barboza de Souza – Rabi’a vive em um período de mudanças muito intensas na história das sociedades islâmicas: ela se encontra entre a grande transição da dinastia dos omíadas para a dos abássidas. Períodos como esses, de grande transição, são marcados por convulsões e verdadeiras revoluções no pensamento, nas artes e na teologia.
Em termos históricos, os abássidas, que governarão o Império Islâmico de 750 a 1258 do calendário cristão, mudarão a capital do império de Damasco para Bagdá. Com isso, a região da Mesopotâmia se converterá em um grande centro da cultura árabe, abrindo-se às mais diversas manifestações culturais, filosóficas e artísticas. Basra, cidade em que nasce Rabi’a, também conhecerá um grande florescimento cultural, sendo referência inclusive nas ciências religiosas: a sua grande mesquita se converterá numa pequena universidade com duas especializações: as ciências literárias e as ciências jurídicas.
Rabi’a bebe deste ambiente e, embora não seja propriamente uma intelectual, vai se encontrar com muitos mestres de sua época, de quem muito aprende e, mais tarde, orientará. Pautada em seu ambiente histórico e cultural, ela desenvolverá uma relação profunda e singular com o Islã e sua teologia, sendo capaz de deixar sua marca em ambos, sendo a primeira mística a introduzir o elemento do amor puro e desinteressado por Deus no meio do austero e ascético ambiente vivido pelos sufis de sua época. Essa sua concepção influenciará muitos mestres sufis posteriores, como Jafar al-Sadiq , Dhu’n Nun , ‘Attar – que possui um relato sobre sua vida – e Rûmî, que também reconta histórias por ela contadas. Junto a esse elemento amoroso, também acabará por direcionar o sufismo na direção de uma busca da união mística com o Real.
Teresa também possuiu um fecundo diálogo com sua cultura (cf. a obra de Tomás Álvarez, 100 fichas sobre Teresa de Jesus, que em seus capítulos iniciais faz essa contextualização da obra e vida de Teresa com a Espanha do século XVI). É capaz de criticar os valores de sua sociedade, como o culto da honra e as leis relativas à pureza de sangue, a busca desenfreada pelo dinheiro, a busca incessante dos deleites, assim como a forte divisão de classes sociais: “Nunca, jamais a priora ou qualquer uma das irmãs poderá chamar-se de dona” (Constituições 9,13). Da mesma forma, dá voz e decisão às mulheres em seus mosteiros e insiste para que estudem, coisa não muito valorizada em sua época, de modo que não concebe a estrutura de seus Carmelos sem uma boa biblioteca para “alimento espiritual” das monjas. Ao mesmo tempo, sua preocupação em fundar seus mosteiros é de prestar um serviço à sua igreja e sociedade por meio da oração. É claro que também absorveu pensamentos característicos de sua época. Apesar de apontar para alguma valorização da mulher, em seus escritos aparece uma concepção de certa inferioridade da mulher em relação aos homens. Também manifesta uma concepção cristã que lida com dificuldade com a reforma protestante, sobretudo com o luteranismo, ao mesmo tempo em que tem grandes preocupações com os índios que poderão morrer nas Américas sem o batismo.
Porém, apesar disso tudo que aponta para sua pertença a uma determinada época e história, Teresa, com sua rica personalidade e inteligência, acabou oferecendo uma síntese importante para a espiritualidade de seu tempo, juntamente com outros místicos do Século de Ouro espanhol, sobretudo, João da Cruz e Inácio de Loyola : “Na obra dos grandes místicos espanhóis vemos, pois, realizar-se um equilíbrio entre tendências opostas, que não somente interessam à experiência religiosa, mas que valem para a vida cultural em geral: submeter a sensibilidade a uma disciplina para não deixar-se levar a uma adesão ao que é simplesmente confuso e vago; construir uma técnica intelectual que permita ir mais adiante dos estados distintos sem perder-se nas regiões turvas da vida afetiva; controlar a inspiração pela análise; inventar um método em vez de contentar-se com fiar-se no instinto; conciliar experiência pessoal e vida coletiva” .
IHU On-Line – No atual contexto contemporâneo, em sua opinião, qual o papel da mística e da espiritualidade? É possível que o ser humano do século XXI se abra novamente para o lado místico da existência?
Carlos Frederico Barboza de Souza – Sobre o papel da mística e da espiritualidade na sociedade contemporânea: inicialmente penso que há uma tendência a banalizar essa dimensão tão fundamental nas vivências das tradições religiosas. Hoje muita coisa vira consumo e meio de satisfação intimista, evidenciando o risco de a mística se perder nessa busca de autossatisfação egocêntrica em que o centro é o próprio ser humano e não o Mistério Real. Junto a tal concepção, percebe-se também uma forma de compreender a mística como algo da ordem da produção humana, fruto de um ambiente preparado para gerar sentimentos de êxtase provocados por rituais e elementos exteriores ao sujeito humano e ao Real. Penso que isso tudo descaracteriza a mística, que se fundamenta, sobretudo, numa busca profunda e intensa de abertura ao Mistério Sagrado, gerando um autoesquecimento, desapego e atitudes reais de compromisso com o Real e com as pessoas.
Quanto ao papel da mística, penso que ela pode nos humanizar ao ajudar a relativizar o que não é essencial. Nesse sentido, nos ajuda a ser mais críticos em relação a todo comportamento superficial que nos cerca, comportamentos que não nos abrem ao amor, ao compromisso e à solidariedade, seja com Deus, seja com outros seres humanos e a natureza. De igual forma, a experiência mística ajuda a superar a dispersão e a falta de concentração e integração que muitos de nós sofremos nesta sociedade fragmentada e dispersa. Nesse sentido, penso que a mística é muito útil em termos de autoconhecimento, pois o que entra no Mistério e nele se aprofunda conhece profundamente a miséria de que é feito e a fragilidade de sua própria condição humana, ao mesmo tempo em que reconhece sua riqueza e percebe-se de forma positiva como amado e acolhido por Alguém ou Algo para além de toda obscuridade que possa estar vivendo.
Dessa maneira, penso que a mística pode gerar experiências de potencialização das capacidades humanas e de sutilização das próprias percepções, gerando um olhar para além do costumeiro, do corriqueiro, como afirma Comte-Sponville no livro O espírito do ateísmo : devemos descobrir o mistério “por trás da fingida transparência das explicações. Na maioria das vezes passamos ao largo: somos prisioneiros das falsas evidências da consciência comum, do cotidiano, da repetição, do já conhecido, do já pensado, da familiaridade suposta ou comprovada de tudo, em suma, da ideologia ou do hábito”. Assim, creio que a mística nos ajuda a ir além das falsas impressões, da necessidade de ver tudo, obrigando-nos a desenvolver o encantamento que nasce da descoberta da dimensão simbólica da vida. Por isso muitos místicos foram artistas e souberam poetizar suas experiências com a natureza, a vida e Deus, transformando tudo em poesia. Como escreveu Rainer Maria Rilke : “Se a própria existência cotidiana lhe parecer pobre, não a acuse. Acuse a si mesmo, diga consigo que não é bastante poeta para extrair suas riquezas” (Cartas a um jovem poeta, p. 23).
Quanto ao que é necessário para que as pessoas deem atenção ao lado místico da vida: penso que um primeiro ponto é não ter ilusão do que é a mística. Há uma tendência a enfatizar apenas os momentos alegres que a experiência do Mistério proporciona, mas o que se vê nos relatos dos místicos é que todos se submetem a um longo e doloroso processo de autoconhecimento e desprendimento, para deixar-se transformar pelo Real e, com isso, se submeterem à morte sempre dolorosa de seu “Eu”. A satisfação é presente também, porém, como fruto de um renascer, de um ressignificar a vida, de um permitir-se ser transformado.
E para se entrar nesse caminho, é preciso se cercar de bons orientadores espirituais, pessoas vividas nesse tipo de experiência e que podem nos oferecer indicações dos perigos de engano que se encontram pelo percurso. Dentre esses orientadores, também são úteis se recorrer a livros com relatos de místicos. É o caso de ler as obras de Teresa e João da Cruz, assim como de tantos outros que oferecem pistas interessantes para quem quer perseverar nesta via profunda, como Rûmî, Rabi’a, Mestre Eckart, Teresa do Menino Jesus , Thomas Merton, Charles de Foucauld , Suzuki , Dogen , ‘Attar, etc.
Por fim, é necessária prática insistente e perseverança... mesmo em meio às noites e tempestades, saber que tudo pode ser vivido como encontro com o Real. Não que ele queira e seja responsável por todas as dores do mundo, mas, nestas dores, ser capaz de encontrar uma palavra que enxergue além, por trás das aparências, e que ajude a recobrar o sentido e a beleza do existir e da condição humana.
CARLOS FREDERICO DE SOUZA
Possui mestrado em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2002) e doutorado em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2008). Atualmente é professor Adjunto III da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Tem experiência na área de Ciências da Religião, atuando principalmente nos seguintes temas: espiritualidade, mística, mística comparada, islamismo, sufismo, mística carmelitana, diálogo inter-religioso, joão da cruz, educação e psicanálise.
(Texto informado pelo autor)
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