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segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Os Cantares de Teresa de Jesus

 



                                      CÂNTICO DOS CÂNTICOS


Poema bíblico que contém uma coleção de cantos de amor. De autor anônimo. Supostamente atribuído a Salomão. Assim o crê também Teresa, que os intitula “Cantares de Salomão” (prólogo de Conc., 1), ou simplesmente “os Cantares” (R 24,1; 44,2; V 27,10; E 16,2), ou “Cânticos” (Conc 1,3.6; 3,14; 6,8). Livro de transmissão bíblica singular, pois provocou uma dupla atitude em sua leitura: por um lado, receio e grande reserva; por outro, encanto e admiração. Esta segunda atitude prevalece nos místicos. Também em Teresa, que entretanto é ao mesmo tempo testemunha da primeira atitude, agravada em seu tempo não só pelo dramático episódio de frei Luís e sua tradução dos Cantares ao castelhano, mas oposição de certos teólogos a que a Bíblia fosse lida por mulheres.
Nesse contexto histórico é surpreendente a postura de Teresa frente ao poema. Será este o único livro bíblico expressamente comentado por ela. Durante vários anos - a fase de sua efervescente exaltação mística: período extático -, a leitura dos Cantares é seu refúgio e consolo, “Tem me dado o Senhor, de alguns anos para cá, um gosto muito grande cada vez que ouço ou leio algumas palavras dos Cânticos...” (Conc. prol. 1). Reiterado mais expressamente, embora no anonimato: “E sei de uma que ficou muitos anos com muitos temores, não havendo coisa que lhe desse segurança até que o Senhor fosse servido de que ela ouvisse algumas coisas dos Cânticos, e nelas entendesse que a sua alma estava no caminho certo” (1,6).
Freqüentemente ela pediu aos teólogos a explicação profunda do texto, “rogando-lhes eu que me declarassem o que o Espírito Santo quer dizer e o verdadeiro sentido dessas palavras (dos Cânticos)...” (1,8). Não é improvável que tenha possuído e lido a tradução manuscrita dos Cantares por frei Luís, tradução destinada por esses anos (1561...) a outra monja, Dª Isabel de Osório, e difundida largamente em Castela e Portugal, e inclusive na América, até que o tradutor frei Luís cai no cárcere inquisitorial de Valladolid (1572).
Seria não muito antes dessa data quando a Madre Teresa decidiu-se a comentar “para as monjas” de seus Carmelos (Conc. Prol. 1) alguns versos do livro bíblico: “para consolo das Irmãs (carmelitas) que Nosso Senhor leva por este caminho, e até para o meu” (ib 2). Uma vez escritas suas “meditações” sobre versos seletos do Cantar, submeteu suas cartilhas à aprovação dos teólogos dominicanos, implicados ao menos um deles no episódio de frei Luís de León, cuja primeira proposição delatada soava que “o Cântico dos Cânticos é um poema amoroso para a filha do Faraó, e ensinar o contrário é fútil”, e a segunda proposição: que “o Cântico se pode ler e explicar em língua vernácula”. O primeiro teólogo, Diego de Yanguas, foi de parecer negativo com relação ao escrito teresiano: “por lhe parecer que não era justo que mulher escrevesse sobre a Escritura, afirmou-lhe, e ela foi tão pronta na obediência..., que o queimou prontamente” (BMC 18,320). Ao contrário, o outro consultor, Domingo Báñez, mais prestigioso e mais metido na polêmica da versão castelhana dos Cantares, foi de parecer positivo. Tarde demais. Quando já o original teresiano sucumbiu ao fogo, escreveu ele de próprio punho uma das cópias salva das chamas: “Vi com atenção estes quatro caderninhos, que entre todos tem oito páginas e meia, e não encontrei nada que seja má doutrina, mas antes boa e proveitosa. No Colégio de São Gregório de Valladolid, 10 de junho de 1575. Frei Domingo Báñez”. (Códice de Alba: BMC 4,268).
Esta tomada de posições por parte do famoso teólogo dominicano reveste especial importância por vários motivos: porque em sua autoridade se apoiaram as duas proposições antes citadas sobre os Cânticos e sua tradução vernácula; porque na data de sua assinatura a favor da autora, está em seu transe crucial o processo de frei Luís, preso na mesma cidade de Valladolid onde Báñez comunica sua aprovação; e porque, igualmente por essas datas, o teólogo dominicano tem em suas mãos o autógrafo teresiano do “Livro da Vida”, já denunciado a Inquisição.
Quando em 1588 frei Luís editar pela primeira vez as Obras da Madre Teresa, omitirá este comentário aos Cantares, e evita assim novas tribulações ao escrito e provavelmente também ao editor.

A leitura teresiana do poema bíblico

A Santa enfrenta a tarefa de interpretar com absoluta espontaneidade. Propõe-se escrever o que o texto bíblico lhe sugere. Sabe que o poema tem outro tipo de leitura, literal e teológica, na qual deve-se empenhar os letrados, responsáveis da palavra de Deus: eles “hão de trabalhar nisso” (Conc 1,2). Mas essa leitura-estudo não exclui, segundo ela, a leitura livre, a partir da vida mesma: “O que pretendo é que, assim como eu me regalo com o que o Senhor me dá a entender quando ouço algumas dessas palavras (dos Cânticos), o dizer-vos talvez vos console como a mim” (Conc 1,8). Nem ficam excluídas desta leitura as mulheres, pois “nós, mulheres, também não haveremos de ficar tão longe de gozar das riquezas do Senhor; fiquemos fora, sim, de entrar em disputas a seu respeito” (1,8). Teresa está convencida de que o poema tem “palavras que muito ferem” (3,14), capazes de atingir a leitores e leitoras altamente enamorados. Chega a pensar que algumas palavras dos Cânticos não se lhas poderá apropriar o leitor senão a partir de um alto grau de enamoramento: que não se pode dizer “com o beijo de sua boca” senão a partir dos contíguos do êxtase: “essas palavras são proferidas pelo amor... Assim é que essas palavras suscitariam verdadeiramente temor se quem as diz estivesse em si, mesmo tomadas ao pé da letra. Mas a quem Vosso amor tirou de si, Senhor, bem perdoareis que diga isso e mais, embora seja atrevimento” (1,12). Eis aqui um espécime desse tipo de leitura:
“ Ó Senhor do céu e da terra! Como é possível que, estando-se ainda nesta vida mortal, se goze de Vós com amizade tão particular! E que o Espírito Santo o diga tão às claras nessas palavras, e que mesmo assim não queiramos entender como são os prazeres com que tratais as almas nesses Cânticos? Que delicadeza, que suavidade! Deveria bastar-nos uma só palavra destas para nos desfazer em Vós...” (3,14).
Geralmente, Teresa prefere dar ao poema valor de simbolismo nupcial entre Deus e o homem. Mais que a tradicional versão esponsal cristológica e eclesial (amor entre Cristo e a Igreja), ela se inclina pelo simbolismo interpessoal: Deus e a alma, ou Cristo e ela. Mas dando por suposta a abertura do símbolo a outros setores.
Desde o ponto de vista literal ou textual, não sabemos quantos e quais versos do Cântico Teresa comentou, devido às mutilações e lacunas com que nos chegaram seu comentário. De fato, naquilo que nos resta de seu escrito aparecem comentados os seguintes versos:
-“Beije-me com o beijo de sua boca...” (Cant 1,1: Conc 1,1).
-“Mais valem teus peitos do que o vinho, fragrantes como os mais preciosos bálsamos” (Cant 1,1-2: Conc 4,1)
-“À sua sombra, como desejei, estou sentada, e seu fruto é doce à minha boca” (Cant 2,3: Conc 5,1)
-“Ele me introduziu no celeiro do vinho e o estandarte erguido sobre mim é o amor” (Cant 2,4: Conc 6,1)
-“Amparai-me com bolos de uva, reanimai-me com maçãs, pois estou doente de amor ” (Cant 2,5: Conc 7,1).
-implícita alusão ao texto da vulgata “lectulus noster floridus” (Cant 1,15: Conc 2,5. -Frei Luís havia traduzido: nosso leito está florido”. No comentário Teresa cita livremente: “Oh, Sua Majestade faz uma cama de rosas e flores para Si na alma”.
-“Eu sou para meu Amado, e meu Amado é para mim” (Cant 6,2; 2,16: Conc 4,8)
-“Ele a mantém com maçãs”: Cant 2,5: Conc 5,5
-“Toda bela és, ó minha bem-amada”: Cant 4,7: Conc 6,9
-“Quem é essa que se eleva como a aurora, bela como a lua, resplandecente como o sol”: Cant 6,9: Conc 6,11
-“Sob a macieira eu te despertei”: Cant 8,5: Conc 7,8.


O poema bíblico nos demais escritos da Santa

Como se sabe, o Cântico dos Cânticos, teve seu melhor eco e prolongação poética no Cântico Espiritual de são João da Cruz. Também em Teresa teve repercussão poética. Na breve coleção de poemas da Santa há duas peças inspiradas no Cântico.
Uma delas comenta o verso “meu Amado para mim” (Cant 6,2), e o incorpora ao estribilho de cada estrofe: “Entreguei-me toda, e assim / Os corações se hão trocado / Meu Amado é para mim / E eu sou para meu Amado”. A este lema inicial seguem duas oitavinhas nas quais reaparecem sendo motivos poéticos do Cântico: a caça do amor (“Quando o doce Caçador / Me atingiu com sua seta,...”), e “era aquela seta eleita, ervada em sucos de amor”, que faz recordar as “palavras que muito ferem” dos Conceitos (cf E 16,2).
O segundo poema não tem tão estreita vinculação com o Cântico. Reproduz o “colóquio amoroso” dos amantes, e pretende a igualdade de amor entre ambos: “Deus meu, se o amor que me tendes,/ É como o amor que vos tenho...”.
Mas além dos poemas, a imagem e simbolismo do livro bíblico estão presentes em quase todos os escritos teresianos, a partir do Livro da Vida. a) O mútuo olhar: “...sem que percebamos, estes dois amantes se olham, face a face, como diz o Esposo à Esposa no Cântico dos Cânticos, ou ao menos acho que ouvi dizer que é aí que diz” (V 27,10, com referência a Cant 4,9 e 6,4: “com um só de teus olhares me enamoraste”, que frei Luís havia traduzido: “roubaste meu coração com um só de teus olhos”). -b) Esse momento simbólico do olhar recíproco recordá-lo-á a seus leitores do Caminho (26,3): “Peço-vos apenas que olheis para Ele..., que o vosso Esposo nunca tira, filhas, os olhos de vós... Vede que Ele, como diz à esposa, não está esperando outra coisa”. -c) Reaparecerá várias vezes nas Exclamações, onde evocará ao menos dois versos não mencionados nos Conceitos: o conjuro das filhas de Jerusalém que vão pelas ruas e praças (Cant 3,2: Excl 16,3), e a Exclamação final, em que se apropria o verso “forte como a morte é o amor, e duro como o inferno” (Cant 8,6), comentado assim: “Ó, quem se visse já morto às vossas mãos e arrojado nesse divino inferno de onde já não esperasse poder sair, ou melhor, já não temesse ver-se expulso!” (E 17,3).
Contudo, o mais decisivo influxo do Cântico bíblico na espiritualidade teresiana acontece nas Moradas, não já pela evocação de versos soltos (cf M 5,1,12; 6,4,10; 6,7,9; 7,3,13), mas porque só neste livro a autora leva a pleno desenvolvimento o símbolo nupcial herdado do Cântico, e que lhe serve para estruturar a seção mística do Castelo. Será aqui, nas Moradas, onde melhor articulará em torno ao símbolo nupcial os outros símbolos dos Cantares: o vinho, a adega, a embriaguez de amor, a flecha, a ferida, o fogo... e o selo, que nos Cânticos é impressão da face da esposa no braço ou no coração do amado (8,6), e que no Castelo é profunda impressão do rosto do Amado na cera da alma (M 5,2,12).
Em um de seus poemas festivos (“Na cruz está a vida...”), Teresa identifica a cruz do Senhor com a “árvore desejada” da Esposa dos Cantares (2,3):

“É o madeiro verdejante
E desejado
Da Esposa, que à sua sombra
Se há sentado,
A gozar de seu Amado,
O Rei Jesus.
Pois ao Céu é a única senda
Que conduz”,

identifica de novo a cruz com a palma preciosa dos Cantares:

“Da cruz é que diz a Esposa
A seu Querido,
Que é a palmeira preciosa
Aonde há subido;
Cujo fruto lhe há sabido

Ao seu Jesus...” (Po 19).


Bibliografía - A. M Pelletier, Lecture du Cantique des Cantiques, Roma 1989, 370-378

T. Alvarez

3 comentários:

  1. muito bom, tb estava pensando que Santa Teresa havia vivido este esta especifica concepção de deus em humor de amado e amante ... o que chamamos no Vaishnavismo de madhurya-rasa. Voc~e tem algum trecho que comprove que sao Joao da cruz ou teresa tinha a concepção pessoal - de Deus com forma como proeminente em sua teologia?

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  3. muito bom, tb estava pensando que Santa Teresa havia vivido este esta especifica concepção de deus em humor de amado e amante ... o que chamamos no Vaishnavismo de madhurya-rasa. Voc~e tem algum trecho que comprove que sao Joao da cruz ou teresa tinha a concepção pessoal - de Deus com forma como proeminente em sua teologia?

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