A Palavra de Deus e a Regra do Carmelo
"A Palavra de Deus esteja sempre abundantemente em vossa boca e em vossos corações, e tudo quanto fizerdes, fazei-o em nome do Senhor"
(c. 16). Esse convite dirigido aos "eremitas" do Carmelo fica confirmado e provado pelo exemplo do Legislador e pelo texto da Regra. De fato, nossa Regra é um projeto de vida concebido e formulado por uma pessoa na qual habitava abundantemente a Palavra de Deus e, conseqüentemente, uma pessoa guiada pelo instinto de pensar e expressar tudo com o verbo bíblico. É tal a presença da Palavra de Deus no documento, que lhe imprime a forma de um discurso bíblico, inteligentemente conduzido, aplicado, articulado. Se pensamos que, para santo Alberto, a Palavra de Deus não podia estar distante da pessoa de Cristo e das Escrituras que nos apresentam Cristo, compreendemos o alcance [1] da citada exortação: Vivam os irmãos do Carmelo as riquezas de Cristo, realizando-as em suas pessoas, e formem a inteligência das coisas de Deus nas fontes das Escrituras. Assim, a sabedoria da vida, os estímulos e as certezas espirituais são coisas de Deus que se ajustam às necessidades dos crentes chamados a percorrer o caminho cristão da coerência e da fidelidade com radicalismo evangélico.
O convite declarado de santo Alberto é o de fixar um "estilo de vida" que digna o modo no qual os eremitas deverão alcançar o propositum para o qual se reuniram no Monte Carmelo e, assim, "viver em obséquio de Jesus Cristo e servindo-o fielmente com puro coração e reta consciência" (Prólogo). Mais além de qualquer possível interpretação justificada ou sugerida pelos fatores históricos ou ambientais[2], essas palavras denotam o que convém reconhecer como vocação comum dos batizados.
Revestidos de Cristo e de seu Espírito, os batizados pertencem a Cristo (Gl 3,27.29; Rm 8,9.10) como a seu Senhor (Fl 2,9-11), em cujo reino foram inseridos pela Graça de Deus (CI 1,13). Sua união a Cristo propõe aos batizados este imperativo: "Ele morreu por todos para que os que vivem não vivam já para si mesmos, senão para aquele que por eles morreu mas ressuscitou" (2Cor 5,15). Recordemos a linguagem incisiva de Rm 14,8-9: "porque se vivemos é para o Senhor que vivemos, e se morremos é para o Senhor que morremos. Portanto, quer vivamos, quer morramos, pertencemos ao Senhor. Com efeito, Cristo morreu e reviveu para ser o Senhor dos mortos e dos vivos".
Já a fé, que é obediência da mente e do coração ao divino senhorio revelado e operante no Evangelho (cf. Rm 1,5; 10,6; 15; 18; 16) [3], assinala aos batizados como pessoas sujeitas a Cristo Senhor (cf. 2Cor 10,5) e chamadas a servi-l o com total e fiel dedicação. "Vós sois de Cristo e Cristo é de Deus", recorda Paulo (1 Cor 3,23), e precisará: "Quem desta maneira serve a Cristo, toma-se agradável a Deus e aprovado pelos homens" (Rm 14,18).
É oportuno ressaltar desde o início este fundamento da intenção albertina como a verdade de maior qualidade do ato cristão [4]. Com efeito, é essa a conotação global e primária que se obtém da freqüente e articulada presença da Palavra de Deus no texto da Regra.
O legislador recorre com cautela, sem dúvida, à mensagem da Escritura, já que se inspira sobretudo nela, para formular a específica modalidade que deverá encarnar no Monte Carmelo a mencionada vocação cristã comum. É tanta a abundância de material que poderíamos analisar, que seria contraproducente, para não dizer impossível, estudar neste trabalho cada uma das referências bíblicas [5]. Deixemos não poucos elementos importantes em si mesmos e biblicamente relevantes; elementos que conferem à Regra harmonia e integridade, mas entram no grupo dos valores comuns a qualquer forma de vida religiosa. Pensamos que o melhor método seja o de isolar os temas de fundo que apresentam com maior clareza a estrutura da "fórmula de vida" proposta e o "espírito" que a deve modelar, segundo a intenção do legislador. Em outras palavras: faremos uma leitura seletiva, atentos às indicações bíblicas que com maior clareza expressam a originalidade do projeto albertino.
Antecipando, podemos dizer que esse projeto, tal como se pode intuir à luz do dado escriturístico, aparece como a expressão institucional de um compromisso e de um ideal. Ambos concebidos como busca consciente de uma coerência cristã radical. O ideal é uma vida comum que reproduza a face e a alma da primeira comunidade cristã de Jerusalém. Comunidade exemplarmente descrita no livro dos Atos dos Apóstolos. O compromisso a que obriga tal ideal é principalmente um combate vigilante e perseverante. Destinado a crentes decididos a defender sua própria identidade batismal e a viver de maneira renovada em suas pessoas a vitória pascal de Cristo Senhor.
A simultânea presença dessas tendências dá à Regra uma tensão característica: a primeira tendência encontra sua verificação coerente em um projeto comunitário em que a união fraterna é veículo e lugar para viver em "obséquio de Jesus Cristo", com riqueza e novidade. E assim ser digna da "futura plenitude dos tempos". A segunda tendência, pelo contrário, apóia-se em uma orientação à primeira vista divergente: não obstante, vivendo em comunidade e buscando a perfeição evangélica da união fraterna, o carmelita combaterá a batalha da fidelidade cristã no "deserto", apoiado em uma solidão vigilante, orante e reverente. Precisamente, na relação assim vivida radica-se, a nosso modo de ver, a proposta religiosa mais original da Regra, ao menos isto é o que sugere o dado bíblico.
Sem dúvida, precisamos deixar-nos guiar por uma indicação metodológica presente na estrutura literária do documento. Entre o prólogo e o epílogo é fácil individualizar, atentos à sua linguagem e conteúdo, duas partes principais: na primeira, que chamaremos "institucional", aparece fixada em seus elementos estruturais de comunhão fraterna, de prática cultual e ascética, a vida religiosa que os irmãos do Carmelo deverão observar (cc. 1-16); na segunda parte, que conviria chamar "exortativa", essa forma de vida se explica e pontualiza em sua dimensão evangélica e em sua finalidade espiritual (cc. 17-21). Como se pode ver, as duas partes são complementares, de maneira que a contribuição específica de uma reflete-se logicamente na outra. Sem dúvida, essa tensão constitui a imprescindível chave de leitura.
A partir dessas premissas e com a certeza de que a palavra bíblica está presente na Regra como veículo de privilegiada expressividade e como fonte de inspiração e garantia de autenticidade cristã, examinaremos estes três pontos de uma maneira progressiva:
1. Um projeto de vida comum inspirado no testemunho exemplar do livro dos Atos dos Apóstolos.
2. O cotidiano combate espiritual, vestidos com a armadura da solidão própria do ermitão.
3. Uma fecunda tensão encaminhada à evangelização.
Não pensamos que com isso se esgotem os tesouros contidos na Regra do Carmelo. Nosso propósito será simplesmente fazer emergir algumas orientações de fundo, tal como podem ser intuídas à luz do texto bíblico empregado por Santo Alberto.
"Comunhão" e "comunidade"
Escreve Paulo aos Efésios: "Exorto-vos... a que vivais de uma maneira digna da vocação a que fostes chamados" (4,1). Por um lado, o chamado divino que interpela os fiéis com a voz vitalmente renovadora da graça de Cristo; por outro, o imperativo prático que se deduz: caminhem os fiéis com o empenho da coerência de vida e movidos pela mesma graça naquela novidade de ser e de vida que os defina como homens que vivem na presença de Deus. A realidade da novidade cristã suscita o imperativo de um novo comportamento [6]. Precisando esse comportamento, o apóstolo acrescenta "com toda humildade, mansidão e paciência, suportando-vos uns aos outros por amor, pondo empenho em conservar a unidade do Espírito pelo vínculo da paz" (vv. 2-3). É a comunhão fraterna, concretamente vivida, o caminho novo que se oferece aos que foram introduzidos na novidade de Cristo. E para confirmar a relação Paulo nos recorda que essa novidade é objetivamente um mistério de comunhão: "Um só corpo, um só Espírito (...) uma só esperança (...) um só Senhor, uma só fé, um só batismo, um só Deus e Pai de todos" (vv. 4-6).
Quisemos sublinhar essa doutrina paulina porque é uma temática comum e central na catequese de Paulo, porque tal temática é utilizada pelo autor do livro dos Atos, ali onde se apresenta o rosto ideal da nova Igreja de Cristo, e porque o legislador do Carmelo se inspira, certamente, na proposta do evangelista Lucas.
É necessário reconhecer que a comunhão fraterna vivida como a expressão evangélica da caridade qualifica profundamente o projeto religioso formulado na Regra do Carmelo. O modo em que deverá ser eleito o Prior (co 3), o modo como se assinalará a cada um uma cela própria (c. 5), a mesa comum enquanto escutam algum fragmento da Sagrada Escritura (co 6), a celebração comum da Liturgia das Horas (co 9), a comunhão de bens "tendo em conta a idade e as necessidades de cada um" (c. 10), a comum e quotidiana celebração da Eucaristia (co 12), a periódica reunião comunitária e a correção fraterna caritate media (c. 13), a benévola discrição com que se propõe a ascese corporal (eco 14 e 15), a figura do prior como humilde servidor dos irmãos (c. 19) são alguns traços que globalmente analisados definem um projeto de vida, pensado e proposto como busca de comunhão fraterna madura e generosa, humilde e caritativa. "Vínculo de perfeição" (CI 3,14) e vitalidade específica da família de Deus, nascida em Jesus Cristo (Rm 5,5; 8,14-17.29), a caridade é a realidade que "constrói" a Igreja (1Cor 8,2) e dá ao povo de Deus a possibilidade de viver como comunidade de irmãos. Inclui a paciência e a humildade, a bondade e a comiseração, a benignidade e o respeito recíproco, a generosidade e o serviço, a compreensão e o perdão (1 Cor 13,4-7; GI 5,13-15.22; 6,1-2; Rm 12,9-16; Ef 4,2-3.31-32; 55,1-2; Fl 2,1-4; CI3,12-14; lPd 1,22-23; 3,8-9 etc.) - todos eles, traços próprios da fisionomia comunitária e fraterna da identidade cristã. Sem dúvida, a Regra do Carmelo pode ser lida como uma afirmação articulada em tomo da caridade: que mana das fontes da Eucaristia diária, da oração perseverante, da Palavra de Deus meditada assiduamente. A caridade é verdadeiramente o vínculo que dará consistência à vida comum, fixada para os irmãos do Carmelo, e a projetará como comunidade cristã solidamente fundada na presença de Deus.
"Um só coração e uma só alma"
Esta visão, ancorada no fundamento da caridade e inspirada na verdade de que a união fraterna é a originalidade de uma vivência sincera do ato cristão, santo Alberto a vê cristalizada no livro dos Atos dos Apóstolos, que aparece como "pedra angular" das primeiras comunidades [7].
"A multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma" (At 4,32b). A intenção é propor uma novidade antropológica que surge com a Palavra do Senhor e com Pentecostes. E que se nos aparece encarnada na primeira comunidade de Jerusalém. A Nova Aliança já realizada: ter "um só coração e uma só alma", assim o compreende Lucas; e a perfeição de uma humanidade capaz de viver em caridade pela força renovadora de Deus e, deste modo, agradar a Deus. Uma comunidade em que cada pessoa, revestida em seu interior pela energia divina do Espírito, recebeu um coração novo e um espírito novo [8]. Escreve Paulo, o teólogo da "novidade do Espírito" (Rm 7,6) e da "lei do Espírito" (8,2): "E a esperança não decepciona, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado" (5,5).
Semblante exemplar de uma humanidade renovada em Cristo pelo poder do Espírito Santo, que o evangelista Lucas, tomando a realidade da comunidade de Jerusalém, nos descreve na segunda parte do versículo: "ninguém considerava seu o que possuía, mas tudo era comum entre eles" (At 4,32b). Desde a comunhão de corações até a comunhão de bens. A fraternidade evangélica dos novos tempos vivida em sua radicalidade, exclui aquele fator de distinção social, de interesse fechado e de egoísmo divisor, chamado propriedade particular. E assim a renúncia pessoal aos bens da terra toma um sentido profundamente cristão: viver a pobreza como convém a uma comunidade que tem "um só coração e uma só alma", por isso uma comunidade obrigada a testemunhar a unidade cristã na prática. Lucas insiste sobre esse aspecto da "koinonía evangélica" cristã, que modela a primitiva Igreja de Jerusalém: "Todos os fiéis, unidos, tinham tudo em comum, vendiam suas propriedades e seus bens e dividiam o preço entre todos, segundo as necessidades de cada um" (At 2,44-45), e ainda: "Não havia entre eles indigente algum, porquanto os que possuíam terras ou casas vendiam-nas, traziam o dinheiro e o colocavam aos pés dos apóstolos; e distribuía-se a cada um segundo a sua necessidade" (At 4,34-35). É importante notar que Lucas foi também o evangelista que pensou com maior profundidade o problema religioso da riqueza e insistiu com maior radicalismo na exigência espiritual da pobreza [9]. No livro dos Atos precisa o modo como deve ser vivida essa exigência no contexto específico da koinonía cristã: em sua dimensão de renúncia, vivida com os olhos postos no reino dos céus e no seguimento de Cristo, a pobreza é experimentada como sinal de união fraterna e testemunho da comunhão de corações. Comunhão que distingue o povo da Nova Aliança.
A perspectiva da Regra do Carmelo em matéria de pobreza vai nesta direção: "Nenhum irmão diga que tem alguma coisa própria, mas tudo entre vós seja comum e se distribua por mão do prior ou do irmão por ele escolhido para esse ofício, dando a cada um o que lhe faltar, ponderando as idades e necessidades de cada um" (c. 10). O legislador, como outros antes dele, entende a pobreza no sentido lucano de koinonía na caridade vivida evangelicamente, e vê na renúncia à propriedade e na comunhão de bens uma expressão específica daquela perfeição que quer que tenham os que se chamam irmãos em Cristo. Essa perfeição é ter "um só coração e uma só alma".
Nas fontes da comunhão fraterna
Esta comunhão em que a pobreza é fruto e indício de caridade é primeiramente uma graça de Deus no coração e depois um comportamento observado socialmente. Os irmãos em Cristo estão unidos na prática do amor, porque age em suas pessoas um mistério de unidade, um dom do alto que é acolhido e feito prosperar. Por conseguinte, não é casual esta descrição programática da comunidade jerosolimitana: "Eles se mostravam assíduos ao ensinamento dos apóstolos, à comunhão fraterna, à fração do pão e às orações" (At 2,42). É o belo semblante de uma cristandade proposta como acertada encarnação da Igreja de Deus. Se os primeiros cristãos de Jerusalém estavam unidos fraternalmente, tanto como para ter, como dizia Lucas, "um só coração e uma só alma", é porque enraizavam a caridade nos ensinamentos dos apóstolos, na vivência da fração do pão e na oração. Não se trata de valores substituíveis, senão de exigências conaturais à novidade cristã.
Como não advertir que esses três valores estão enraizados na estrutura da fórmula cristã albertina e propostos em vista da koinonía que os irmãos do Carmelo deverão alcançar? É certo que são valores presentes na inteira literatura apostólica e já naquele tempo patrimônio tradicional do Povo de Deus; também é claro que nenhum projeto autêntico de vida religiosa os pode ignorar. Porém, não é menos certo, e tudo o que se disse da pobreza e da comunhão de vida o evidencia suficientemente, que o Patriarca de Jerusalém tinha presente o testemunho recolhido no livro dos Atos dos Apóstolos.
Os ensinamentos dos apóstolos
Obviamente não se trata da proclamação da Boa Nova feita aos crentes em vista de sua conversão, senão da instrução que os apóstolos, convertidos em mestres da verdade divina e da vida cristã, davam aos novos conversos, em vista de uma fé mais madura e de uma caridade mais comprometida. As Escrituras eram lidas à luz dos acontecimentos pascais, explicava-se o mistério de Cristo Salvador, palavra plena e obra perfeita de Deus, propunha-se um caminho novo, cuja novidade e sublime expressão achava-se naqueles que tinham a Cristo como seu Salvador e Senhor. Era, com efeito, o ensinamento apostólico o que articulava a verdade do ato cristão, o que educava aos fiéis em sua nova dignidade e os exortava a caminhar com coerência de vida. A verdade de Cristo, a graça vital de Cristo, a lei nova de Cristo: eis aqui o ensinamento que os primeiros cristãos de Jerusalém escutavam assiduamente.
Pensando bem, o conteúdo global dos livros do Novo Testamento consiste nisto: a substância da mensagem que os filhos da Igreja de todos os tempos devem interiorizar e aprofundar na celebração e na meditação da Palavra de Deus: "dia e noite meditando a lei do Senhor" (c. 8), "ouvindo todos juntos uma lição da Sagrada Escritura" (c. 6) [10], "A Palavra de Deus esteja sempre abundantemente em vossa boca e em vossos corações" (c. 16). Os primeiros cristãos se abriam à Palavra de Deus, escutando assiduamente os ensinamentos dos apóstolos. Os irmãos do Carmelo escutarão a Palavra de Deus meditando-a, deixando-se cobrir por suas riquezas. Nessas duas coisas, a finalidade perseguida não pode ser senão esta: crescer no conhecimento de Deus e no conhecimento de si mesmo, à luz do mistério de Cristo, em tal grau que se sinta a posse da verdade evangélica como um instinto de vida, cada vez mais claro e urgente.
Assíduos na ''fração do pão”
"Dia após dia, precisará Lucas, partiam o pão pelas casas e tomavam o alimento com alegria e simplicidade" (At 2,46). Devemos assinalar a normalidade dessa alusão à Eucaristia diária - porque se trata de Eucaristia [11] - em um quadro onde o ideal cristão reflete-se no culto comunitário dos irmãos que tinham "um só coração e uma só alma". "O cálice de bênção que abençoamos não é a comunhão do corpo de Cristo? Porque o pão é um, somos muitos num só corpo, pois todos participamos desse único pão" (1 Cor 10,16-17). Essa doutrina paulina, em que a unidade na caridade se expressa na "fração do pão" e mana da comunhão com o Corpo de Cristo, é certamente conhecida pelo discípulo Lucas: a exemplar koinonía da Igreja de Jerusalém fazia-se presente de tal modo e de tal fonte manava [12].
Devemos estar agradecidos a Santo Alberto por ter dado tanto relevo à Eucaristia na estrutura comunitária (c. 12). "Cada manhã" os irmãos participarão juntos na celebração eucarística: é o pão que todos os dias desce do céu, fonte de energia celeste e de união fraterna (cf. At 2,46; lCor 10,16-17; Jo 6,48s); é o novo maná que a cada manhã nutri-los-á em seu êxodo pascal (cf. Ex 16,8-21); é o Corpo de Cristo, sede dinâmica de todas as riquezas de Deus. Sede que Cristo, enriquecendo-a com seu amor, fará viver e prosperar em suas pessoas.
A Eucaristia, precisa a Regra, será celebrada no oratório construído para tal propósito in medio cellularum: centralização material entendida como sinal de uma centralização vital e unificante. Ter o oratório para o culto divino construído no meio das celas significa, com igual verdade, ter as celas dos irmãos dispostas ao redor do oratório: um motivo arquitetônico de unidade, símbolo da busca de unidade, centrada no Corpo de Cristo. Se pensamos que o Corpo de Cristo é o "templo" novo do Novo Povo de Deus [13], a comunidade carmelitana idealizada no projeto albertino não pode deixar de aparecer como uma assembléia de culto, típica da "plenitude dos tempos", uma assembléia convocada para a unidade e chamada todos os dias a beber na fonte da unidade a koinonía fraterna, que deverá testemunhar na presença de Deus.
Assíduos na oração
A Igreja alimenta-se, diz o concílio, "do pão da vida que toma da mesa da Palavra de Deus e do Corpo de Cristo" (Dei Vérbum, 21). Ao redor dessa mesa da abundância divina (Sl 23,5-6) reuniam-se com assiduidade os primeiros crentes de Jerusalém; a ela estão convocados cotidianamente os irmãos do Monte Carmelo. Lucas acrescenta o exercício da oração como valor que completa e exemplifica essa perfeição primigênia da comunidade (At 2,42). Exigência instintiva de um povo que reconhece a seu Deus e fala-lhe com voz suplicante para obter seu favor.
Estamos seguros de que, quando o legislador fixou aos irmãos do Carmelo uma vida marcada pela oração freqüente (cc. 8 e 9), tinha a idéia de propor uma visão semelhante. Na solidão orante e na celebração cotidiana da salmodia, os irmãos louvarão a Deus pelo mistério de sua graça e expressarão, de modo particular mediante a súplica e a ação de graças, as riquezas da vida evangélica e da comunhão fraterna. Tesouros escondidos que os irmãos "terão descoberto" na fonte da Palavra de Deus.
Também o Pai-nosso, oração destinada aos irmãos que não sabem ler, entra dentro desta visão: o que é a oração do Senhor, senão um compêndio de mistérios celestes vividos pelo Filho de Deus, o Evangelho feito vida nos corações e expresso coerente e espontaneamente em forma orante? [14]
"Eles se mostravam assíduos ao ensinamento dos apóstolos, à comunhão fraterna, à fração do pão e às orações" (At 2,42). "A multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma" (At 4,32a). O rasgo central é certamente essa união fraterna dos irmãos no amor. Com efeito, na koinonía aparecem juntos o dom de Deus e o compromisso comunitário, e por sua mediação Lucas vê surgir em Jerusalém o semblante ideal da universalidade da Igreja de Deus. Posteriormente, a koinonía relaciona-se com sua fonte cotidiana e insubstituível: a escuta da Palavra de Deus e o Pão Eucarístico, e assim se precisa como pobreza evangélica vivida em fraternidade do amor para chegar a ser um compromisso vital e uma expressão coerente da piedade orante. É agradável constatar a presença incisiva destes valores no documento albertino: o que fixa a Regra do Carmelo é um projeto de vida em que a comunidade fraterna reproduzirá de maneira concentrada e articulada a perfeição própria do povo de Deus reunido em nome de Jesus.
Cingidos com a armadura de Deus
Os eremitas, a que se dirige o documento albertino, haviam chegado do Ocidente latino com a intenção de participar de maneira diversa (uns como peregrinos penitentes, outros como combatentes cruzados) na restauração do cristianismo na Terra Santa e na conquista da cidade santa de Jerusalém. Sem dúvida, haviam-se reunido fazia tempo no Monte Carmelo para buscar uma cidade infinitamente mais preciosa e atraente. Desse modo, a denominada "guerra de Deus" travada contra os infiéis com armas terrenas perde a primazia, dando lugar a uma empresa mais digna: a conquista da Jerusalém celeste com as armas específicas da solidão orante, da santa penitência, da fé - esperança - caridade. Já entendiam assim o obediente serviço a Cristo Senhor. Santo Alberto fixou-Ihes em seu projeto de vida este ideal: "segundo o vosso propósito" (c. 2).
Com a segurança e a sutileza de um religioso intuitivo, propõe àqueles eremitas envolvidos na atmosfera típica das cruzadas uma fórmula de vida humilde e bondosa, modelada sobre a koinonía evangélica da primeira comunidade de Jerusalém. Na intenção do legislador entrecruzam-se de modo atraente motivos históricos, geográficos e teológicos. Os irmãos do Monte Carmelo conquistarão a Jerusalém do futuro seguindo o exemplo da primeira comunidade surgida na Jerusalém do passado. E o exemplo disto o encontramos em uma humanidade nova, partícipe das riquezas do Cristo pascal à qual se compromete a viver na coerência e na fidelidade. E, deste modo, tender à realização completa do mistério celestial.
A este ponto aparece no documento uma nova linha de fundo: o caminho atual é luta e Constança, vigilância e perseverança. O motivo que reuniu esses "eremitas" no Monte Carmelo é uma empresa castrense, porque, se é certo que caminharão para a Jerusalém celeste movidos pela graça de Cristo e fiéis à sua identidade cristã, não é menos certo que esse itinerário terreno está cheio de obstáculos e de insídias. O tema é bíblico, e com uma linguagem bíblica o propõe o Legislador [15].
Resistir às insídias do inimigo
Chama a atenção a seqüência bíblica (Tg 7,1; 2Tm 3,12; lPd 5,8; Ef 6,11) com a qual se abre a parte "exortativa" da Regra e introduz-se com nitidez o tema do combate cristão (c. 16). "Porque a vida do homem sobre a terra é uma contínua tentação" (cf. Jó 7,1): a vida terrena é tempo de prova e de luta; o repouso não é do tempo presente, mas da plenitude futura. Essa verdade geral interpela o cristão com determinativa urgência: com efeito, como diz Paulo, "todos os que querem viver piedosamente sofrerão perseguições" (cf. 2Tm 3,12). É o que chama o Apóstolo "a tribulação do momento presente" (Rm 8,18; 2Cor 4,17) - uma tribulação inevitável (cf. At 14,22), porque a fidelidade cristã choca com a hostilidade de um mundo seduzido pelas aspirações antievangélicas. Essa hostilidade entra na vontade maligna do Tentador, que rege a sabedoria deste mundo e procura com todos os meios estabelecer seu império na mente e no coração dos crentes: é o "inimigo" invisível que, como leão rugindo, ronda buscando a quem devorar (cf. lPd 5,8). Sejam, portanto, os irmãos do Carmelo, conhecedores dessa realidade e recorram aos meios idôneos para poder resistir. Meios idôneos não há senão um, já indicado por Paulo em sua Carta aos Efésios. O legislador recorre às palavras de Paulo para exortar os irmãos: "revesti-vos das armas de Deus para poder resistir às insídias do Diabo" (cf. Ef 6,11).
Proposição articulada e profundamente pensada. A natureza do caminho, que desde o batismo o deve levar até "o prêmio da vida eterna" (d. c. 20), impõe ao cristão a adoção de disposições e comportamentos próprios de um guerreiro. O seu, sem dúvida, é um combate particular. "Pois nosso combate - precisa Paulo - não é contra o sangue nem contra a carne, mas contra os Principados, contra as Autoridades, contra os Dominadores deste mundo de trevas, contra os Espíritos do Mal, que povoam as regiões celestiais" (Ef 6,12). O cristão deve "resistir às insídias do inimigo - diabo", ou seja, para usar uma expressão albertina, impedir ao Tentador a possibilidade de "entrar em vossas almas" (c. 17). Essa dupla imagem guerreira nos faz pensar em combatentes assediados por um inimigo insidioso, que os obriga a estar atentos e a obstaculizar qualquer possibilidade de infiltração. A defesa vigilante do cristão é, em realidade, autodefesa de quem quer permanecer "firme na fé" contra todo tipo de incitação contrária [16].
Esse combate, guiado pelo ensinamento da fidelidade cristã e da coerência batismal, necessita de armas apropriadas, e o crente as encontra na "armadura de Deus" que nos convida a assumi-Ias com tenacidade. Porém, o que é essa armadura? É a graça batismal de Cristo impressa nos corações. "Finalmente, fortalecei-vos no Senhor e na força do seu poder", especificava Paulo nesse contexto (Ef 6,10). "A armadura de Deus" é um poder que provém de Deus. Esse mesmo poder define o Evangelho da salvação (d. Rm 1,16) e sustenta o mistério do Cristo morto e ressuscitado (1 Cor 1,24; Ef 1,19-23) - poder divino convertido nos batizados em Graça Vital. Essa visão, segundo a qual o combate espiritual da existência cristã requer o uso de um armamento especificamente cristão, já dava forma a esta exortação paulina: "Nós, pelo contrário, que somos do dia, sejamos sóbrios, revestidos da couraça da fé e da caridade, e do capacete da esperança da salvação" (ITs 5,8). O fiel se comportará como verdadeiro soldado de Cristo na medida em que se defender com as armas sobrenaturais da fé, esperança e caridade. Em um texto similar dir-se-á: "vistamos a armadura da luz" e acentuará: "Vesti-vos do Senhor Jesus Cristo" (Rm 13,12.14). Em outras palavras: se nos vestimos com a "armadura de Deus", vivendo com fidelidade a própria realidade de batizados, morrendo o "homem velho" com suas aspirações e ações e nascendo o "homem novo" criado por Deus e segundo Deus (d. Ef 4,22-23; CI 3,9-10).
O Apóstolo procura assinalar ao crente as armas que deve utilizar nesse combate terreno e que não são senão as riquezas próprias de sua identidade cristã ameaçada. O combate é áspero, e sem dúvida o cristão vencê-lo-á de uma única maneira: exercitando com a coragem prudente e perseverante de um homem de armas, a vitalidade batismal que lhe foi dada pela graça de Deus, testemunhando com sua existência "o homem novo" e permitindo crescer nele o herdeiro da glória que são as imagens vivas de
Jesus Cristo [17].
o imperativo da coerência cristã
É importante assinalar a especialíssima natureza do combate cristão: chamado a defender-se das "insídias do diabo" e dos "dardos inflamados do maligno" (Ef 6,11.16), o fiel lutará com as armas que residem em seu interior e que são as riquezas de sua nova vida, riquezas nas quais Cristo se faz presente.
Insistimos nesse aspecto porque é o que santo Alberto quer evidenciar.
A precedente imagem paulina "da armadura de Deus" desenvolve-se no capítulo 16 da Regra com uma vistosa insistência, aplicada aos distintos valores que o Legislador quer ver nos irmãos do Carmelo, valores que devem cultivar em seu caminho terreno cheio de provas. O tema desenvolve-se com uma premeditada liberdade a respeito do paralelo paulino da Carta aos Efésios (6,14-17). Os componentes da "armadura de guerra", tal como são catalogados pelo Apóstolo, aparecem todos, exceto o denominado "calçado" [18]. Pelo que se refere à aplicação, o documento segue em alguns casos o modelo paulino e em outros se afasta acrescentando novas referências bíblicas. De qualquer modo e sem deter-nos em detalhes que poderiam ser pesados, indicamos que santo Alberto projeta um combate espiritual que será uma busca comprometida destes valores: a castidade com os pensamentos santos, a justiça em vista do amor de Deus e do próximo, a fé sem a qual é impossível agradar a Deus, a confiança no único Salvador, a Palavra de Deus que deverá transformar o coração dos irmãos e guiar todo o seu agir. Como se pode ver, não há nada que não entre na catequese cristã mais normal. Porém, é precisamente nessa normalidade que reside uma mensagem digna de ser assinalada: o legislador procura ensinar aos irmãos do Carmelo o único modo de vencer as insídias do inimigo. Somente sairão vitoriosos da batalha se usarem as armas específicas que receberam no dia no batismo. São soldados empenhados em uma batalha sem tréguas e, conseqüentemente, são pessoas obrigadas a estar preparadas e a ser fortes a todo momento - como é forte e está preparado o soldado armado. Sem dúvida, sua batalha será a luta cotidiana da fidelidade cristã e a combaterão com a serenidade dos que se reconhecem fortes no Senhor e com a coerência de quem está decidido a andar de uma maneira digna de sua identidade em Jesus Cristo (cf. Ef 4,1; lTs 2,12; CI 1,10; Fl 1,27) [19].
Uma proposta religiosa diferente
Este capítulo 16 tão sagazmente pensado, tão denso de doutrina e tão repleto de referências bíblicas é suficiente por si só para demonstrar que o tema do combate cristão ocupa um lugar de relevo na intenção global do legislador.
Por tal motivo devemos ler na mesma ótica também os capítulos seguintes sobre o trabalho e o silêncio (cc. 17-18). Os irmãos deverão "empregar-se em algum trabalho, para que o demônio os ache sempre ocupados e não tome ocasião de sua ociosidade para entrar em suas almas" (c. 17). Para além dos ensinamentos e do exemplo do apóstolo Paulo (a longa citação de 2Ts 3,7-12), o chamado ao trabalho encontra-se claramente justificado pela necessidade precedentemente articulada de "resistir às insídias do inimigo" (c. 16). Santo Alberto continuará exortando os combatentes a estar sempre preparados.
No que se refere ao silêncio (c. 18), citam-se textos bíblicos como este: "No silêncio e na esperança estará vossa fortaleza" (Is 30,15); "No muito falar não faltará pecado" (Pr 10,19); "Aquele que fala muito ofende sua alma" (Eclo 20,8). Também se exortam os irmãos à vigilância e se lhes põem em guarda contra a facilidade "de cair" por causa da língua (Eclo 14,1; 22,27; 28,25-26). A linguagem é própria de quem os está advertindo para não se deixarem surpreender sem estar preparados e para não resvalar e cair no engano mortal do Tentador [20].
A propósito do trabalho e do silêncio retoma o tema ascético da auto-defesa vigilante e decidida iniciada no capítulo 16. O estar ociosos e o falar muito são denunciados primariamente como dois defeitos que debilitam a solidez da resistência que se deve opor ao adversário em nome da fidelidade e da coerência.
Surge assim, no texto albertino, uma série de "exortações" unidas tematicamente, em que contemplamos o autor aplicado em definir a natureza do combate que os irmãos do Carmelo sustentarão segundo seu "propósito", precisando do mesmo modo a modalidade espiritual e ascética. O aspecto mais vistoso dessa unidade temática é sua extensão material: ocupa mais da terça parte do documento. Não é um dado casual: o combate cristão é um tema que deve voltar a entrar de modo incisivo em uma eventual definição da proposta religiosa articulada na Regra do Carmelo.
Vida "comunitária" e orientação "eremítica"
A proposta albertina está dirigida a uma colônia de eremitas dispostos a servir ao Senhor com a ascese da pobreza, da humildade e da santa penitência. Para isso lhes é fixada uma fórmula de vida inspirada, em sua dimensão comunitária, no modelo da primitiva Igreja de Jerusalém. Contudo, essa koinonía (união fraterna no amor) não deve fazê-los esquecer a orientação originária de seu "propósito". Reuniu-os no Monte Carmelo uma aspiração "eremítica", a qual não fica oprimida pelas novas estruturas, pelo contrário, encontra-se acomodada e conformada, incluída inteligentemente em um projeto religioso completo e organizado.
A prova bíblica do "deserto"
Precisamente a força e a insistência com as quais é afirmado na Regra o imperativo do combate cristão são uma indicação em tal sentido. Encaminhados para a conquista da Jerusalém celeste com o empenho combatente da fidelidade cristã, os irmãos do Carmelo não poderão não sentir-se chamados a perseverar em seu ideal eremítico. Deste modo saberão que o caminho (2Cor 5,7), que é também o seu, é o de um novo Israel guiado pela promessa de uma Páscoa Nova e empenhado na luta de um novo êxodo - o êxodo de uma humanidade que avança, como um povo de peregrinos e de estrangeiros, pelo duro e inóspito "deserto" das provas incessantes. "A vida do homem sobre a terra é uma contínua tentação" (c. 16), e na perspectiva da Regra esse tempo de prova se vive e se supera como se vive e se supera a específica "prova bíblica do deserto": perseverando no caminho iniciado, deixando-se guiar pela esperança da herança prometida, esperando a salvação do único Salvador, crendo, contra todo estratagema contrário, no Deus que promete misericórdia e cumpre fielmente.
A esperança celeste, lembra a Regra aos irmãos do Carmelo, os reuniu como sinal do ideal eremítico; ela os compromete a promover o ideal da koinonía fraterna com sua nova fórmula de vida.
Essa temática bíblica, convertida em patrimônio tradicional da espiritualidade cristã, toma-se clara no nível institucional. Não tanto nas cláusulas: "Podereis habitar nos ermos..." (c. 4) como na insistência sobre a "cela separada" (cc. 5 e 7) e na finalidade assinalada a tal ordem: "Permaneça cada um na sua cela ou junto dela, meditando dia e noite na Lei do Senhor e velando em oração, a não ser que se ache legitimamente ocupado em outros afazeres" (c. 8).
É um programa de vida proposto a um religioso que, não obstante vivendo em comunidade as exigências evangélicas da união fraterna, deve ver-se como um "ermitão-combatente". A cela é o deserto do caminho cristão, o ambiente que recreia na comunidade a solidão temperada do ermo, o lugar onde o carmelita, abrindo-se à Palavra de Deus e velando em oração, reveste-se com a armadura de Deus e resiste como convém às insídias do inimigo; deixando que se renove nele, dia a dia, a vitória Pascal de Cristo Senhor. Retirando-se ao ermo de sua cela, desafia ao inimigo pouco menos que a um duelo, sabendo-se homem humilde que encontra em Cristo a força para derrotá-lo. Imita nisso a Jesus, de quem se diz no evangelho de Mateus que "foi levado pelo Espírito ao deserto para ser tentado pelo diabo" (4,1): e, assim, medir-se com o adversário e transformar em vitória o poder divino que obrava nele.
"Velando em oração"
Para provar quanto estamos dizendo, analisamos agora a pontualização: "velando em oração" (c. 8). A expressão é típica da ascese neotestamentária. A esse propósito são significativas as palavras ditas por Jesus no horto: "Velai e orai para não cairdes em tentação, pois o espírito está pronto, porém a carne é fraca" (cf. Mc 14,38; Mt 26,41; Lc 22,46). Pelo contexto, "velar" significa resistir às fraquezas da "carne" que, por sua tendência ao sono, pode inutilizar a ação do "Espírito"; e "orar" significa "fortalecer no Senhor e na força de seu poder" (cf. Ef 6,10) para permanecer "firmes na fé" (cf. lCor 16,13; lP 5,8-9) [21].
O contexto ideal é sempre o do combate cristão. Em particular quando se fala de "vigilância" no Novo Testamento, refere-se àquela característica da existência cristã que indica uma espera dinâmica e sofrida da "bem-aventurada esperança" (Tt 2,11-13; d. Lc 12,35-40; 21,34-36; lPd 1,13; Ap 16,15; também lTs 1,9-10; lCor 1,4-9; Rm 8,25; GI5,55; Fl3,20; 2Tm 4,8). Na realidade acentua-se que a esperança é incerta e pode prolongar-se (ITs 5,1-3; cf. Mt 24,36-42; At 1,17; 2Pd 3,10; Ap 3,3); também que a espera cristã é uma espera na fé, como de noite (2Cor 5,7; Rm 8,24). Por isso, é uma espera que põe à dura prova a perseverança do fiel. O primeiro perigo é o de dormir, vencidos pelo sono (d. Mt 25,5). Debilidade típica da "carne" (Mc 14,38; Lc 22,46), a qual se converteria, assim, em inconsciente aliada do Inimigo-Tentador, que espreita a firmeza da fé. Por isso a necessidade de "velar" e de permanecer "vigilantes" tendo sentido de estar despertos, com os olhos abertos em estado de tensão e prontidão. Assim, a admoestação de Jesus: "Vigiai... para que, vindo de repente, não vos encontre dormindo" Mc 13,35.36) foi recolhida na exortação paulina: "Portanto, não durmamos, a exemplo dos outros; mas vigiemos e sejamos sóbrios" (1Ts 5,6). No fundo trata-se de não se deixar vencer pelo peso de uma noite que se prolonga, de impedir que o coração se canse e se converta em um coração alérgico às coisas do céu, de não permitir que se afrouxe a tensão da espera, de não ceder aos estratagemas sedutores e insidiosos da "carne" e do Tentador.
Por isso a vigilância que é também sobriedade, controle de si, lucidez e realismo, presteza e saúde interior (cf. lTs 5,6-8; Rm 13,13; lPd 5,8; Lc 12, 35-40; 21, 34-36), é proposta na catequese apostólica como um esforço ascético do fiel chamado a defender sua própria dignidade ao longo do caminho "noturno", obstaculizado e doloroso, que é seu "exílio" presente e seu "êxodo" pascal. Da mesma forma, por isso, o imperativo da vigilância aparece muitas vezes associado ao da oração (Mt 26,41; Mc 14,38; Lc 21,36; 22,46; Cl 4,2; Ef 6,18; lPd 4,7), sendo precisamente a oração o exercício em que com mais lucidez é vivida a espera da bem-aventurada esperança e com mais eficácia nutrida a tensão do coração para a Jerusalém do céu. Nessa mesma linha podemos citar a exortação de Paulo: "Alegrando-vos na esperança, perseverando na tribulação, assíduos na oração" (Rm 12,12).
Na solidão de sua própria cela, restaurado e conscientemente buscado, o irmão do Carmelo meditará a Palavra de Deus e velará em oração (c. 8). Deste modo, será "forte na tribulação", "firme na fé", "alegre na esperança" e progredirá como fiel combatente e fiel servidor de Cristo em seu caminhar para o prêmio da Vida Eterna. São Paulo já tinha concluído sua notória exposição sobre a "armadura de Deus" (Ef 6,l0s) com um urgente chamado à oração perseverante e vigilante (v. 18). Santo Alberto introduz esse chamado no ponto em que mais claramente aparece indicada a orientação ermitã de sua formula vitae. Uma prova ulterior é a "cela ermo" projetada para hospedar a realidade cotidiana do combate cristão.
Conclusão
As duas tendências principais que o exame do dado bíblico permite advertir no documento albertino são a vida comunitária inspirada na koinonía exemplar da primitiva Igreja de Jerusalém e o compromisso erernítico e combatente de religiosos convocados para a conquista da Jerusalém do céu. Não é uma dicotomia, mas uma simultaneidade destinada a ser vivida em harmonia profunda, como sinal da coerência batismal e do radicalismo evangélico.
Na moderada solidão de cada cela ermo, o religioso pensado por santo Alberto se enriquece com a Palavra de Deus e vela em oração com a precisa consciência de um combatente chamado "a vestir-se com a armadura de Deus", a permanecer "firmes na fé", a manter acesa no coração a chama da esperança da herança celeste, a fazer sua, todos os dias, a vitória de Cristo Senhor. No que se refere à relação comunitária, antes de tudo vive nela a perfeição eclesial do amor e as exigências cotidianas da união fraterna - e de tal modo testemunha que seu compromisso eremítico é uma autêntica busca da fidelidade cristã.
Não é possível separá-los. Na unidade de um projeto articulado, os valores vividos em uma linha refletem-se no compromisso assumido noutra. No fundo trata-se de viver o batismo cada dia na fé, esperança e caridade, despojando-se progressivamente do homem velho e revestindo-se do homem novo - tal chamado, junto com a dignidade pessoal em Cristo e o caminho imperativo na novidade de Cristo, interpela o batizado e combatente que obtém sua força no Senhor e no batismo que cresce no amor.
Não é possível nem sequer indicar uma ordem de prioridades. A problemática relação "contemplação-ação", tão discutida no passado, fica desterrada da perspectiva própria e oriunda da Regra. Sem dúvida, existe na fórmula de vida albertina uma tensão que é a relação entre ideal comunitário e compromisso eremítico. Tensão que se ajusta em um projeto unitário, expressão carismática da novidade de Cristo. Como eremitas, comprometidos no combate da fidelidade cristã, e como irmãos reunidos sob o sinal da comunhão cristã, os frades eremitas do Monte Carmelo encamarão a Igreja de Deus, convocada na unidade orientada para a plenitude de seu mistério.
Fonte: AA.VV. Regra do Carmelo Novos Horizontes. Edições carmelitanas OCD.
[1] Observe-se que a exortação "... e tudo seja realizado pela Palavra do Senhor" lê-se em paralelo paulino como se segue: "E tudo que fizerdes, por palavras e obras, fazei-o no nome do Senhor Jesus, dando graças a Deus Pai". Habitando a Palavra de Deus nos fiéis, a vida destes se desenvolve diante de Deus e segundo Deus, testemunhando a abundante graça de Cristo para glorificar a Deus mesmo (Cl 3,16-17; lCor 10,31; lPd 4,11).
[2] O obséquio de Jesus Cristo e o serviço a Cristo Senhor caracterizavam particularmente a religiosidade medieval e a cristandade das Cruzadas: d. C. Cicconetti, A Regra do Carmelo. Originen, natura, significado origem, natureza. Roma, 1973.
[3] É notória a expressão paulina: "Obediência da fé" (Rm 1,5; 16,26), em que genitivo é epesegético: a mesma fé se define como obediência. Este conceito de uma "fé" que é "obediência" (Rm 1,8 =16,19; 10,16; 15,18; 16,19; 2Ts 1,8...) é uma significativa contribuição do pensamento paulino, e daqui tomou o concílio Vaticano 11 o tema para delinear os traços fundamentais da fé cristã: "Quando Deus revela, o homem tem que se submeter pela fé" (cf. Rm1,5; 2Cor 10,5-6). Pela fé o homem se entrega inteiro e livremente a Deus; oferece-lhe "a homenagem total de seu entendimento e vontade, dando assentimento livremente ao que Deus revela" (Dei Verbum, 5).
[4] Sem dúvida podemos reconhecer em santo Alberto, em linhas gerais, a intenção de propor um valor similar àquele que aparece na exortação paulina: "Portanto, assim como recebestes a Cristo Jesus como o Senhor, assim nele andai, arraigados nele, sobre ele edificados, e apoiados na fé, como aprendestes..." (CI 2,6-7).
[5] Ver o estudo de Pietro della Madre di Dio, Le fonti bibliche della Regola carmelitana, em Ephemerides Carmeliticae 2 (1948), 65-97.
[6] Agere seguitur esse: neste específico caso, o ser é "criação nova em Cristo Jesus" e o "agir é comportar-se como corresponde a tal identidade nova". É a nota dialética do indicativo e do imperativo, característica lógica da exortação apostólica e expressão típica da catequese cristã. Exemplos paulinos: "Vivei de uma maneira digna" de Deus Salvador, do Senhor Jesus, do evangelho, da chamada batismal (1Ts 2,1l-12; Cl 10; Fl 1,27; Ef 4,1); "Não extingais o Espírito" (ITs 5,19) e não entristeçais o Espírito Santo de Deus" (Ef 4,30); "Não recebais em vão a graça de Deus" (2Cor 6,1); "Deixar-se guiar pelo Espírito" (GI 5,8) e "vivei segundo o Espírito" (5,16-25; Rm 8,44ss); "Louvai a Deus com o próprio corpo" que é o "templo do Espírito Santo" (1 Cor 6,19-20); "Despojar-se do homem velho" e revestir-se do homem novo" (Ef 4,22-24; Cl 3,9-10); "Revestir-se de Jesus Cristo, o Senhor" (Rm 13-14); "Fortalecei-vos no Senhor e na força de seu poder" (Ef 6-10); Cumprir "as obras boas que Deus de antemão dispôs para que as realizássemos" como "criaturas novas em Cristo Jesus" (Ef 2,10) etc.
[7] Já estava consolidada entre os institutos religiosos a tradição de inspirar-se na koinonía fraterna e evangélica, vivida pela primitiva Igreja de Jerusalém (At 2,42-47; 4,32-35). Ver também PC, 15 e B. Secondin, La Regola del Carmelo per una nova interpretazione, Roma, 1982, 33-36.
[8] .Especialmente Ez 11,19-20; 36,26-27; também Jr 24,7; 31,31-34; 32,39-40. A Nova Aliança predita pelos Profetas e instaurada em Cristo Jesus: G. Helewa, a palavra Alianzal, em Dizionario di Spiritualitá dei Laici, coordenada por E. Ancilli, ed. O. R., Milão, 1981, vol. I, 1-16, com bibliografia essencial (p. 16).
[9] F. M. Lopez Melus, Pobreza y riqueza en los evangélios, San Lucas, el evangelista de la pobreza Madrid 1963; S. Legasse, L'appel du riche (Mare 10, 17-31 e paralelos). Contribution a l'étude des fondementes de l'etat religieux. Paris 1966; também J. Dupont, Les Béatitudes, col. "Études Bibliques", especialmente o volume III: Les Evangelistes, Paris 1973.
[10] Essa declaração, junto com a ordem da mesa em comum, é própria do texto "Inocenciano" da Regra carmelitana.
[11] 46 A "fração do pão" (At 2,42.46; 20,7.11; 27,35; cf. Lc 24,30-35): expressão que se refere a uma refeição judaica na qual o que preside diz a bênção e parte o pão que depois distribuirá. Sem dúvida, na linguagem cristã entende-se o rito eucarístico (1Cor 10,16; 11,24; Lc 22,19).
[12] O Corpo "físico" de Cristo, imaculado e glorificado; o Corpo "eucarístico" de Cristo; o Corpo "eclesial" de Cristo: tríplice dimensão de um único mistério em que a soteriologia manifesta-se na eclesiologia e em que a eclesiologia é afirmação de nova koinonía na caridade. G. Helewa, La Chiesa, Corpo di Cristo, em VV.AA., La Chiesa sacramento di Comunione, coordenado por E. Ancilli, Teresianum, Roma, 1979, 76-130 (com bibliografia essencial pp. 76-77).
[13] "Ele, porém, falava do templo do seu corpo" (Jo 2,21). O Corpo imaculado e glorificado do Filho de Deus é o centro do novo culto, do culto que já se desenvolve "em espírito e verdade" (Jo 4,21-26); é o lugar onde reside a plenitude da divindade para a salvação do mundo (cf. Cl l,19.29) e, portanto, é a fonte de toda "graça e verdade" (Jo 1,14.16): é o templo espiritual do qual brota a fonte de água viva (Jo 7,37-39; 19,34; Ap 21,22; 22,1; Ez 47,ls).
[14] Permaneceu como tradicional no pensamento cristão a definição de Tertuliano, o mais antigo comentarista do Pai-nosso: "Breviarium totius Evangelii” quer dizer, "Compêndio de todo o Evangelho" (De Orationibus, I: CCSL, I, p. 258). Igualmente perspicaz é a intuição de são Cipriano, bispo africano do sêculo III: "Como são numerosos e grandes os mistérios da oração do Senhor! Estão resumidos em poucas palavras, mas rica ê sua eficácia espiritual. Certamente nada daquilo que deve constituir nossas orações e nossas súplicas foi omitido, nada que não esteja compreendido neste compêndio de doutrina celeste" (De oratione Dominica, 9: CSEL, 3,1, p. 272).
[15] Para uma visão geral do tema bíblico do combate cristão: C. SPICQ, Theologie morale du Nouveau Testament, vol. 11, Coleção "Etudes bíbliques", Paris, 1965, vol. 11, 165-228 e 292380. Também: H. Schlier, Machte und Gewalten nach den Neuen Testamente, Coleção "Quaestiones Disputatae" 3, Freíburg, 1958 (tradução ítaliana: Principati e Potestà nel Nuovo Testamento, Brescia, 1967); G. Helewa, Il combattimento dell"uomo nuovo" nel messaggio ascetico di Paolo Apostolo, em VV.AA., Ascesi cristiana coordenado por E. Ancilli, Teresianum, Roma, 1977, 72-115.
[16] "Sede sóbrios e vigilantes! Eis que vosso adversário, o diabo, vos rodeia como um leão a rugir, procurando quem devorar. Resisti-lhe, firmes na fé..." (1Pd 5,8-9). Também Paulo exorta a isto: "Velai, mantendo-vos firmes na fé, sede homens, sede fortes" (cf. lCor 10,13; lTs 3,8; lCor 15,58; Fl 4,1; Cl 1). A assim denominada "insídia do diabo" (Ef 6,11) está dirigida essencialmente contra a fé do discípulo (cf. Lc 22,31-32), e este se defenderá somente permanecendo "firme na fé". A fé é ameaçada, e a própria fé é a arma com a qual poderão "extinguir os dardos inflamados do maligno" (Ef 6,16). Por isso a fé é também sinônimo de vitória (1Jo 5,4-5; 2,14). De resto, quem crê participa vitalmente na Páscoa do Senhor - e o Senhor morto e ressuscitado venceu o mundo e o príncipe deste mundo (cf. Jo 12,31; 14,1.30; 16,11.33...).
[17] Ao formular sua mensagem ascética, toda ela centralizada no tema do combate, Paulo privilegia a linguagem esportiva e militar: C. Spicq, L'image sportive de 2Cor 4,7-9, em Ephemerides Theologieae Lovanienses, 1937, 209-229; idem, Gymnastique et morale, em Revue Biblique 54 (1947), 229-242; J. Molager, Saint Paul et l'ideal chrétien du soldat, Lyon, 1955; S. Zedda, Le metafore sportive si S Paolo, em Rivista Biblica 6 (1958), 248-251;]. P. Lafuente, El cristiano en la metáfora castrense de San Pablo, em Analecta Biblica, 18, Roma, 1963, 343-358; V. C. Pfitzner, Paul and the Agon Motif. Traditional Athletie Imagery in the Pauline Literature, Brill, Leiden, 1967.
[18] Ef 6,15: "Calçai vossos pés com a preparação do evangelho da paz". Certamente é uma referência a Is 52,7 e 40,3.9, em que se fala "os pés do mensageiro que traz boas notícias" - "boas notícias" que são precisamente a "paz" e a "salvação". Na Vulgata aparece esta tradução: "Et calceati pedes in praeparatione evangelii paris". Não sabemos com segurança o motivo que induziu santo AIberto a omitir este elemento. Talvez não o tenha achado em consonância com um gênero de vida - precisamente dos "eremitas" do Carmelo - que não previa uma atividade evangelizadora propriamente dita.
[19] 54 Aqui queremos precisar alguns pontos. Não é o caso de distinguir nas "armas de guerra" divinas entre "armas defensivas e armas ofensivas": isto escapa completamente da perspectiva do apóstolo Paulo e de santo AIberto. Nem sequer é o caso de supor uma relação particular entre cada arma mencionada e o valor religioso que ela representa. Finalmente, a designação dos valores cristãos com os quais o fiel está obrigado a combater está muito longe de esgotar esse argumento. Tanto Paulo como santo Alberto teriam podido indicar a tal propósito também as outras riquezas da graça de Deus. Somente aparecem algumas indicações, escolhidas entre outras muitas, daquele poder divino global que age nos batizados e assegura sua vitória. Este é um ensinamento fundamental da prolongada metáfora bélica. Porque está cercada por poderes hostis e porque exige fidelidade, vigilância, fortaleza e perseverança, a exigência cristã aparece comparada com um combate sem tréguas: e o cristão resistirá às insídias desses poderes na medida em que se comprometer a construir sua vida em Cristo Jesus.
[20] É necessário evitar o erro de pensar aqui em uma perspectiva ascética preponderantemente "negativa". No início e no final deste capítulo 18, precisa-se que o silêncio é o "culto da justiça". E a "justiça" de quem busca este preeminente valor: agradar a Deus. E a Deus devemos estar agradecidos também pelo fato de que vigiamos e resistimos às insídias do inimigo.
[21] "Entra-se em tentação" quando nos deixamos vencer pelo Tentador. Semelhante a um engano ou uma armadilha, a tentação é uma insídia na qual o crente pode "entrar", isto é, "cair" e ser colhido. Com efeito, quem "entra em uma armadilha" é alguém que "cai em uma armadilha", que sucumbe às insídias do Maligno, deixando-se, por assim dizer, enganar. Também é essa a imagem pressuposta no Pai-nosso: "Não nos deixeis cair em tentação" (Mt 6,13; Lc 11,4). Não se pede ao Pai o não ser tentados, senão o ser protegidos por Ele no momento da tentação. "Não peço que os tires do mundo, mas que o guardes do Maligno" (Jo 17,15).
Nenhum comentário:
Postar um comentário