A SUBIDA DO MONTE CARMELO
A seguir, excertos feitos a partir da tradução de obras de João da Cruz realizada pelas Carmelitas Descalças do Convento de Santa Teresa do Rio de Janeiro, publicada pela Editora Vozes.
Apresentação do Pe. M.T.L. Penido
A Subida do Monte Carmelo. A vida mística, à qual João da Cruz nos convida a nos dispormos, êle a concebe como união de amor com Deus. A perfeição desta vida será a «união transformante», na qual a vontade da alma se acha transformada, pelo amor, na vontade de Deus: duas vontades num só e mesmo amor. Graça muito alta e rara. Mas os primeiros graus da união de amor são mais encontradiços entre os espirituais. Embora êles também sejam dons gratuitos de Deus, podemos e devemos nos dispor a recebê-los se fôr conforme ao divino beneplácito. Deus não põe sua graça na alma senão na medida da vontade e do amor dela. Por conseguinte, desejando a alma que Deus se dê todo a ela, deve entregar-se tôda a êle. Sem dúvida, é Deus que vem a nós; todavia, devemos nos pôr a caminho, procurá-lo, remover os obstáculos.
A Subida ensina, de modo concreto, essa entrega e o caráter total que deve revestir. A obra enfeixa, pois, os princípios ascéticos de João da Cruz. Ascetismo implacável. Não admite complacência ou meia-medida. Exige a renúncia absoluta. Não por calúnia foi João da Cruz alcunhado o Doutor do Nada, e ficou célebre, entre os espirituais, esta sua frase : "Nada, nada, nada, até deixar a própria pele e o resto, por Cristo".
(...)
A preparação ascética - ou, como êle diz, a "purificação ativa" - à vida mística, João da Cruz concebe-a como exercício constante, puro, heróico até, das 3 virtudes teologais. Se queremos, com efeito, nos unir a Deus, o único meio de encontrá-lo será através da fé, da esperança e da caridade. Mais intensas essas virtudes, mais estreita a união. Donde a divisão da Subida em três livros, para ensinar nos a tríplice «purificação». Despida a inteligência, pela fé, de pensamentos que não são puramente Deus, poderá, ser elevada às coisas divinas; esvaziada a memória, pela esperança, de lembranças terrenas, poderá ser enchida de divinas notícias; desprendida a vontade de qualquer apego, pela caridade, poderá ser livremente movida pelo divino amor.
João da Cruz não aconselha apenas a depuração e pacificação das atividades naturais - sensações, imagens, lembranças, reflexões, desejos, - mas ainda de toda a atividade religiosa menos perfeita. Não se cansa de pedir a renúncia à religião gozadora: devoção sensível, apegos às graças extraordinárias (visões etc.). Só assim viverá o discípulo em pura fé, esperança e caridade. Na Subida o Santo pormenoriza, com férrea lógica, os meios práticos a empregar pela alma no seu esfôrço de desnudamento.
Modo para chegar ao Tudo
Para chegares ao que não sabes,
Hás de ir por onde não sabes.
Para chegares ao que não gozas,
Hás de ir por onde não gozas.
Para vires ao que não possuis,
Hás de ir por onde não possuis.
Para vires a ser o que não és,
Hás de ir por onde não és.
Modo de possuir tudo
Para vires a saber tudo,
Não queiras saber coisa alguma.
Para vires a gozar tudo,
Não queiras gozar coisa alguma.
Para vires a possuir tudo,
Não queiras possuir coisa alguma.
Para vires a ser tudo,
Não queiras ser coisa alguma.
Modo para não impedir o tudo
Quando reparas em alguma coisa,
Deixas de arrojar-te ao tudo.
Porque para vires de todo ao tudo,
Hás de deixar de todo ao tudo.
E quando vieres a tudo ter,
Hás de tê-lo sem nada querer.
Porque se queres ter algo em tudo,
Não tens puro em Deus teu tesouro.
Indício de que se tem tudo
Nesta desnudez acha o espírito
sua quietação e descanso,
porque, nada cobiçando, nada
o impele para cima e nada
o oprime para baixo, porque
está no centro de sua humildade;
pois quando cobiça alguma coisa
nisto mesmo se fatiga.
rata êste livro de como poderá a alma dispor-se para chegar em breve à divina união. Dá avisos e doutrina, tanto para os principiantes, como para os mais adiantados, muito proveitosa, para saberem desembaraçar-se de tudo o que é temporal e não serem prejudicados mesmo no que é espiritual, ficando em suma desnudez e liberdade de espírito, como se requer para a união divina.
ARGUMENTO
Encerra-se nas canções seguintes tôda a doutrina que desejo expor na Subida do Monte Carmelo, assim como o segrêdo de alcançar o mais alto cume desta montanha, que outra coisa não é senão o estado de perfeição - estado sublime que chamamos aqui união da alma com Deus. E como tudo que tenho a dizer se apóia sôbre estas canções, eu quis reuni-las aqui para apresentar ao leitor, em conjunto, a substância do que devo escrever. Isso, porém, não impedirá que seja depois cada uma delas repetida separadamente, assim como os versos que as compõem, segundo as exigências da matéria e a necessidade da exposição.
CANÇÕES
Em que canta a alma a ditosa ventura que teve
em passar pela noite escura da fé,
na desnudez e purificação de si mesma,
à união com o amado.
1. Em uma noite escura,
De amor em vivas ânsias inflamada,
Oh! ditosa ventura!
Saí sem ser notada,
Já minha casa estando sossegada.
2. Na escuridão, segura,
Pela secreta escada disfarçada,
Oh! ditosa ventura!
Na escuridão, velada,
Já minha casa estando sossegada.
3. Em noite tão ditosa,
num segrêdo em que ninguém me via,
Nem eu olhava coisa,
Sem outra luz nem guia
Além da que no coração me ardia.
4. Essa luz me guiava
Com mais clareza que a do meio-dia,
Aonde me esperava
Quem eu bem conhecia,
Em sítio onde ninguém aparecia.
5. Oh! noite que me guiaste,
Oh! noite mais amável que a alvorada;
Oh! noite que juntaste
Amado com amada,
Amada já no Amado transformada!
6. Em meu peito florido
Que inteiro só para Ele se guardava,
Quedou-se adormecido...
E eu, terna, O regalava,
dos cedros o leque O refrescava.
7. Da ameia a brisa amena,
Quando eu os seus cabelos afagava,
com sua mão serena
Em meu colo soprava,
meus sentidos todos transportava.
8. Esquecida, quedei-me,
rosto reclinando sôbre o Amado,
Cessou tudo e deixei-me,
Largando meu cuidado
Por entre as açucenas olvidado.
PRÓLOGO
1. Para explicar e fazer compreender a noite escura pela qual passa a alma antes de chegar à divina luz da perfeita união do amor de Deus, na medida do possível neste mundo, seria necessária outra maior luz de experiência e de ciência do que a minha. As ditosas almas destinadas a chegar a êste estado de perfeição devem, de ordinário, afrontar trevas tão profundas, suportar sofrimentos físicos e morais tão dolorosos, que a inteligência humana é incapaz de compreendê-los e a palavra de exprimi-los. Sòmente aquêle que por isso passa saberá senti-lo, sem todavia poder defini-lo.
2. Para dizer, portanto, alguma coisa desta noite escura, não me fiarei de experiência nem de ciência, porque uma e outra podem falhar e enganar; todavia ajudar-me-ei de ambas no que me puderem valer. Para tudo quanto com o favor divino hei de dizer, ao menos para as coisas de mais difícil compreensão apoiar-me-ei na Sagrada Escritura : tomando-a por guia, não há perigo de engano, pois nela fala o Espírito Santo. E, se em algum ponto errar, pelo fato de não entender bem o que com a mesma Escritura ou sem ela disser, declaro não ser minha intenção apartar-me da sã doutrina e sentido da Santa Madre Igreja Católica. Submeto-me e resigno-me inteiramente, não só à sua autoridade, mas à de todos os que oferecerem melhores razões que as minhas.
3. Se me decido a êste trabalho, não é por crer-me capaz de tratar de assunto tão árduo, mas confiando que o Senhor me ajudará a dizer alguma coisa, para proveito de grande número de almas muito necessitadas. Estas iniciam o caminho da virtude e, no momento em que Nosso Senhor quer introduzi-las na noite escura, visando elevá-las à união divina, detêm-se, seja pelo receio de entrar e deixar-se introduzir nessa via, seja por não se entenderem a si mesmas, ou por lhes faltar guia esclarecido e hábil que as conduza até o cume. Causa lástima ver muitas almas às quais Deus dá talento e graças para irem adiante e, - se quisessem ter ânimo, - chegariam a êsse alto estado de perfeição ; e ficam paradas, sem progredir, no seu modo de tratar com Deus, não querendo ou não sabendo, por falta de orientação, desapegar-se daqueles princípios. E mesmo se Nosso Senhor lhes concede enfim a grande mercê de se adiantarem sem os meios adequados, chegam muito mais tarde, com maior trabalho e menor merecimento, por não corresponderem a Deus nem se deixarem conduzir livremente por Êle no puro e certo caminho da união. Porque, embora Deus que as leva possa certamente prescindir destas ajudas, contudo, com a resistência que tais almas lhe opõem, caminham menos e não merecem tanto, pois não entregam a vontade ao Senhor e encontram dêste modo maiores sofrimentos. Ao invés de se abandonarem a Deus e secundá-lo em seus propósitos, O entravam por sua resistência ou ação indiscreta. Assemelham-se às criancinhas que, teimando em caminhar por si mesmas, batem o pé e choram quando suas mães procuram levá-las nos braços, e assim ou não adiantam ou vão a passos de criança.
4. Ensinaremos aqui a alma a deixar-se conduzir pelo Espírito de Deus, quando sua divina Majestade quiser fazê-la chegar à perfeição. Com a ajuda de sua graça, daremos aos que começam, e aos que estão em via de progresso, doutrina e avisos para entender a ação divina ou, ao menos, deixar-se guiar por ela. Existem confessores e diretores espirituais faltos de luz e experiência nestes caminhos : longe de ajudarem as almas, causam-lhes maior prejuízo. Assemelham-se aos obreiros da tôrre de Babel: em lugar de transportarem os materiais convenientes, levavam outros diferentes por causa da confusão de línguas e assim não era possível construir coisa alguma. E' doloroso para a alma não se compreender e não achar quem a compreenda nestes tempos de provação. Pode acontecer que Deus a leve por altíssimo caminho de contemplação obscura e árida, no qual lhe pareça correr o risco de perder-se. Condenada dessa forma à obscuridade, ao sofrimento, às tentações e angústias de tôda espécie, talvez encontre quem lhe fale na linguagem dos pretensos consoladores de Job : vosso estado é resultado da melancolia, da desolação ou do temperamento, ou ainda conseqüência de alguma falta secreta em punição da qual Deus vos abandonou. Desde logo êsses confessores se crêem no direito de julgar aquela alma gravemente culpada, já que sofre tais castigos.
5. Haverá também quem lhe diga : está recuando no caminho da virtude, por não mais conhecer, como antes, gostos e consôlo no serviço de Deus. Duplicam, dessa forma, o martírio da pobre alma cujo maior sofrimento é precisamente o conhecimento de sua própria miséria : vê mais claro que a luz do dia, como está cheia de pecados e faltas. Deus assim lho revela nesta noite de contemplação, como mais tarde diremos. Se acha quem concorde com o seu modo de pensar, afirmando ser seu estado o castigo de seus pecados, a aflição e as angústias da alma crescem desmedidamente e soem chegar a uma agonia pior que a morte. Nem basta a tais confessores : como, a seu ver, estas aflições constituem a punição de culpas cometidas, obrigam as almas a revolver a vida passada, não cessando de crucificá-Ias novamente, fazendo-as repetir muitas confissões gerais. Não compreendem já não ser mais tempo de agir assim, mas de deixá-las no estado de purificação em que Deus as pôs, consolando-as e animando-as a aceitar a provação enquanto Deus quiser. Porque até então, por mais que elas façam e êles digam, não há remédio.
6. Favorecendo Deus, trataremos desta questão mais adiante, indicando como a alma deve proceder e também o confessor, e por quais indícios poderá reconhecer se a alma está, verdadeiramente, na via de purificação dos sentidos
ou do espírito (a que chamamos noite escura). Explicaremos ainda como distinguir se o estado procede de melancolia ou de qualquer outra imperfeição, sensível ou espiritual. Realmente, certas almas ou seus confessores podem imaginar estar Deus levando-as pelo caminho da noite escura da purificação interior, quando, na verdade. apenas se trata de alguma das supraditas imperfeições. Sucede também que muitas almas pensam não ter oração e a têm muitíssima; e outras, julgando ter muita oração, quase nenhuma têm.
7. Faz pena ver ainda outras almas trabalharem e se fatigarem inútilmente com grande esfôrco, e em vez de progredir, retrocedem, porque pensam achar proveito naquilo que lhes é estôrvo. Outras fazem progressos rápidos com descanso e quietação. Muitas, com as mesmas mercês e regalos concedidos por Deus, embaraçam-se e atrasam-se no caminho. Enfim, as almas no trilhar o caminho da perfeição passam por diversas alternativas de alegria, de aflição, esperança e dor, nascendo umas de espírito perfeito e outras de espírito imperfeito. Tentaremos, com a graça de Deus, dizer alguma coisa sôbre tudo isto, assim cada alma poderá conhecer o caminho que segue e o que deve seguir, se pretende alcançar o cume dêste Monte.
8. Sendo esta doutrina a da noite escura pela qual a alma há de ir a Deus, não se surpreenda o leitor por lhe parecer algo obscura. Creio assim será apenas no início desta leitura ; em se adiantando, compreenderá melhor ; nestes assuntos, uma coisa explicaa a outra. E depois, se vier a reler esta obra, achará mais luz e lhe parecerá mais segura esta doutrina. Se, no entanto, algumas pessoas não se acharem satisfeitas, seria necessário culpar o meu pouco saber e a imperfeição do meu estilo, pois o assunto em si mesmo é bom, e muito útil. Parece-me, contudo, que por mais cabal e perfeitamente se escrevesse, a bem poucos seria de proveito ; porque não se trata de matéria muito moral e saborosa, nem de consolações sensíveis, como gostam muitos espirituais. Pretendo ensinar doutrina substancial e sólida para aquêles que estão determinados a passar pelo despojamento interior aqui exposto.
9. Não é aliás meu principal intento dirigir-me a todos, mas a algumas pessoas de Nossa Santa Ordem dos Primitivos do Monte Carmelo, tanto frades como monjas, que me pediram empreendesse esta obra; êstes, aos quais Deus concedeu a graça de pôr no caminho dêsse Monte, como já se acham desapegados das coisas do mundo, compreenderão melhor a doutrina da desnudez do espírito.
CAPÍTULO I - Exposição da primeira canção. Trata das diferentes noites por que passam os espirituais, segundo as duas partes do homem, inferior e superior, e declara a canção seguinte:
Canção I
Em uma noite escura,
De amor em vivas ânsias inflamada,
Oh! ditosa ventura!
Saí sem ser notada,
Já minha casa estando sossegada.
1. A alma, nesta primeira canção, canta a ditosa sorte e ventura que teve em sair das coisas criadas e livrar-se dos apetites e imperfeições existentes na parte sensível do homem em virtude do desregramento da razão. A exata compreensão desta doutrina, porém, exige que se saiba não ser possível à alma alcançar o estado de perfeição sem passar ordinariamente por duas espécies principais de noites, denominadas pelos mestres da vida espiritual vias purgativas ou purificações da alma. Aqui as chamamos «noites», porque, numa e noutra, a alma caminha às escuras como de noite.
2. A primeira noite ou purificação se realiza na região sensitiva da alma: será explicada nesta canção e na primeira parte deste livro. A segunda noite, que visa as faculdades espirituais, será tratada na segunda canção e na segunda e terceira partes no que diz respeito à atividade da alma. Quanto à purificação passiva, trataremos dela na quarta parte.
3. Esta primeira noite refere-se aos principiantes, quando Deus os começa a pôr no estado de contemplação; dela também participa o espírito, como a seu tempo diremos. A segunda noite ou purificação refere-se aos já aproveitados, quando Deus os quer pôr no estado de união com Êle; e esta é mais obscura, tenebrosa e terrível purificação, conforme explicaremos mais adiante.
EXPLICAÇÃO DA CANÇÃO
4. A alma revela sumariamente, nesta canção, que saiu, levada por Deus, só por amor dele e inflamada neste amor, para procurá-lo em uma noite escura. Esta noite é a privação e a purificação de todos os seus apetites sensitivos relativamente a todas as coisas exteriores deste mundo, aos prazeres da carne como também aos gostos da vontade. Este trabalho é feito pela purificação dos sentidos; e por isso diz ter saído «quando sua casa se achava sossegada», isto é, tendo pacificada a parte sensível, e todos os apetites nela adormecidos; porque, em verdade, não pode sair das penas e angústias dos cárceres dos apetites sem estes estarem mortificados ou adormecidos. Ditosa ventura foi «sair sem ser notada», isto é, sem que qualquer apetite da carne, ou outra qualquer coisa pudesse impedi-la, por ter saído «de noite», isto é, quando Deus a privava de todos os apetites. A esta privação, a alma chamava «noite».
5. Foi verdadeiramente «ditosa ventura» para ela o ter-se deixado levar por Deus nesta noite na qual lucrou tantos bens. Seria incapaz de nela entrar com os próprios esforços, pois é bem difícil acertar alguém a desprender-se por si mesmo de todos os seus apetites, para chegar à união com Deus.
6. Em resumo, tal a explicação da canção. Daremos, agora, a cada verso o seu desenvolvimento, declarando o que vem a nosso propósito. Do mesmo modo faremos com as demais canções, como ficou dito no prólogo, isto é, primeiro cada canção e depois cada verso.
CAPÍTULO II Explicação do que é a noite escura pela qual passa a alma para alcançar a união divina.
EM UMA NOITE ESCURA
1. A purificação que leva a alma à união com Deus pode receber a denominação de noite por três razões. A primeira, quanto ao ponto de partida, pois, renunciando a tudo o que possuía, a alma priva-se do apetite de todas as coisas do mundo, pela negação delas. Ora, isto, sem dúvida, constitui uma noite para todos os sentidos e todos os apetites do homem. A segunda razão, quanto à via a tomar para atingir o estado da união. Esta via é a fé, noite verdadeiramente escura para o entendimento. Enfim, a terceira razão se refere ao termo ao qual a alma se destina, — termo que é Deus, (ser incompreensível e infinitamente acima das nossas faculdades – NT: palavras tomadas da “edição príncipe”) e que, por isso mesmo, pode ser denominado uma noite escura para a alma nesta vida. Estas três noites hão de passar pela alma, ou melhor, por estas três noites há de passar a alma a fim de chegar à divina união.
2. No Livro de Tobias são elas figuradas pelas três noites que, em obediência ao Anjo, o jovem Tobias deixou passar antes de se unir à esposa. O Anjo Rafael ordenou-lhe que queimasse, durante a primeira noite, o coração do peixe, símbolo de um coração afeiçoado e preso às coisas criadas. A fim de começar a elevar-se a Deus deve-se, desde o início, purificar o coração no fogo do amo» divino e aí deixar consumir-se tudo o que é criatura. Esta purificação põe em fuga o demônio que tem poder sobre a alma apegada às coisas temporais e corporais.
3. Na segunda noite o Anjo disse a Tobias que seria admitido na companhia dos santos Patriarcas, que são os Pais da fé. A alma, do mesmo modo, após passar a primeira noite figurada pela privação de todos os objetos sensíveis, logo penetra na segunda noite. Aí repousa na solidão dafé que exclui, não a caridade, mas todas as notícias do entendimento; pois, como adiante diremos, a fé não cai sob os sentidos.
4. Afinal, durante a terceira noite, foi prometida a Tobias a bênção. Esta bênção é o próprio Deus que, pela segunda noite — a da fé — se comunica à alma de forma tão secreta e íntima, que se torna uma outra noite para ela, E, como veremos depois, esta última comunicação se realiza numa obscuridade mais profunda que a das outras duas noites. Passada esta terceira noite, — que é quando se acaba de fazer a comunicação de Deus ao espírito, ordinariamente em grande treva para a alma, — logo se segue a união com a esposa, que é a Sabedoria de Deus. O Anjo disse a Tobias que após a terceira noite se unisse com a esposa no temor do Senhor, para significar que quando o temor é perfeito o amor divino também o é, e a transformação da alma em Deus por amor logo se opera.
5. Para compreensão, vamos explicar com clareza cada uma dessas noites; observamos, porém, que as três são uma só noite dividida em três partes. A primeira noite — a dos sentidos — pode ser comparada ao crepúsculo: momento em que já não mais se distinguem os objetos entre si. A segunda noite — a da fé — assemelha-se à meia-noite, quando a obscuridade é total. A terceira, finalmente, comparada ao fim da noite, e que dissemos ser o próprio Deus, precede imediatamente a luz do dia.
CAPITULO III - Declara a primeira causa desta noite, que consiste na privação do apetite em todas as coisas, e dá a razão por que se denomina "noite".
1. Damos aqui o nome de noite à privação do gosto no apetite de todas as coisas. Com efeito, sendo a noite a privação da luz, e conseqüentemente de todos os objetos visíveis, ficando a potência visual às escuras e sem nada, assim podemos chamar noite para a alma à mortificação dos apetites : pois a privação de todos eles a deixa na obscuridade e no vazio. A potência visual por meio da luz se satisfaz e emprega nos objetos, que não mais se vêem quando esta se extingue; de modo análogo a alma por meio do apetite se deleita e satisfaz nas coisas saboreadas pelas suas potências ; uma vez apagado, ou por melhor dizer, mortificado o apetite, a alma deixa de satisfazer-se no gosto de todas as coisas e fica, segundo o mesmo apetite, às escuras e no vazio.
2. Ponhamos exemplo em todas as potências (NT: com sentido de sentidos). Quando a alma priva o seu apetite no gosto de tudo quanto pode deleitar o sentido auditivo, permanece às escuras e no vazio quanto a esta potência. Em renunciando ao gosto nas coisas que podem agradar ao sentido da vista, fica igualmente, segundo este, às escuras e no vazio. Em negando ao sentido do olfato toda a suavidade que lhe advém dos olores, do mesmo modo se põe na obscuridade e no vazio relativamente a esta potência: e se renunciar ao sabor de todos os manjares que podem satisfazer ao paladar, também permanece, quanto a este sentido, às escuras e sem nada. Finalmente mortificando-se em todos os deleites e contentamentos que pode receber quanto ao sentido do tato, do mesmo modo fica a alma, segundo esta potência, na obscuridade e no vazio. Por conseguinte, a alma renunciando e afastando de si o gosto de todas as coisas, mortificando nelas o seu apetite, está às escuras como de noite, o que não é outra coisa senão um vazio em relação a tudo.
3. A razão disto, segundo os filósofos, é o assemelhar-se a alma, no momento em que Deus a une ao corpo, a uma tábua rasa-, na qual nada se houvesse gravado; nenhum meio natural tem de adquirir qualquer conhecimento (gnosis - episteme), a não ser através dos sentidos. É semelhante ao prisioneiro retido em um cárcere escuro, onde nada distingue, com exceção do que pode ser entrevisto pelas janelas da prisão; se não olhar por elas, nada verá. Deste modo, se a alma nada percebesse pelos sentidos — que são as janelas da prisão — nada poderia perceber por outro meio.
4. Renunciar às noções que vêm dos sentidos e rejeitá-las é, evidentemente, colocar-se na obscuridade e no vazio, pois, repetimos, segundo as leis da natureza, a luz não lhe pode chegar por outro meio. Porque, embora a alma não possa deixar de ouvir, ver, cheirar, gostar e sentir, todavia, se recusa usar destes meios, e não se embaraça com eles, é para ela a mesma coisa do que se não visse, não ouvisse, etc. Assim quem fecha os olhos fica tão às escuras como o cego privado da vista. David, a este respeito, diz: «Sou pobre e vivo em trabalhos desde a minha mocidade» (Sl 87, 15). No entanto, está claro que era rico; mas dizia-se pobre porque sua vontade estava livre das riquezas, e tão absoluto era o seu desprendimento como se fosse, de fato, pobre. Ao contrário, se o fosse realmente sem o ser pela vontade, não seria verdadeiramente pobre, pois a alma estaria rica e cheia no apetite. Com razão, pois, dizemos ser esta desnudez noite para a alma. Ora, não pretendemos falar aqui da pobreza material que não despoja o coração ávido dos bens deste mundo; mas nos ocupamos da desnudez do gosto e apetite, que deixa a almalivre e vazia de tudo, mesmo possuindo muitas riquezas. Efetivamente, não são as coisas deste mundo que ocupam a alma nem a prejudicam, pois lhe são exteriores, mas somente a vontade e o apetite que nela estão e a inclinam para estes mesmos bens.
5. Esta primeira espécie de noite, como depois diremos, relaciona-se com a parte sensível do homem, e é uma das duas de que falamos, pela qual há de passar a alma para chegar à união.
6. Vamos explicar agora como convém à alma sair de sua morada, na noite escura dos sentidos, a fim de alcançar a união divina.
CAPÍTULO IV - Trata de quão necessário seja passar deveras a alma pela noite escura dos sentidos, que é a mortificação dos apetites, para chegar à união divina.
1. Para atingir este estado sublime de união com Deus, é indispensável à alma atravessar a noite escura da mortificação dos apetites, e da renúncia a todos os prazeres deste mundo. As afeições às criaturas são diante de Deus como profundas trevas, de tal modo que a alma, quando aí fica mergulhada, torna-se incapaz de ser iluminada e revestida da pura e singela claridade divina. A luz é incompatível com as trevas, como no-lo afirma S. João ao dizer que as trevas não puderam compreender a luz ( Jo 1, 5 ).
2. A razão está em que dois contrários, segundo o ensinamento da filosofia, não podem subsistir ao mesmo tempo num só sujeito. Ora, as trevas, que consistem no apego às criaturas, e a luz, que é Deus, são opostas e dessemelhantes. É o pensamento de São Paulo escrevendo aos Coríntios: «Que pode haver de comum entre a luz e as trevas?» ( 2 Cor 6, 14 ). Portanto, se a alma não rejeita todas as afeições às criaturas, não está apta a receber a luz da união divina.
3. Para dar mais evidência a esta doutrina, observemos que o afeto e o apego da alma à criatura a torna semelhante a esta mesma criatura. Quanto maior a afeição, maior a identidade e semelhança, porque é próprio do amor fazer o que ama semelhante ao amado. David, falando dos que colocavam o amor nos ídolos, disse: «Sejam semelhantes a eles os que os fazem; e todos os que confiam neles» ( Sl 113, 8 ). Assim, o que ama a criatura desce ao mesmo nível que ela, e desce, de algum modo, ainda mais baixo, porque o amor não somente iguala, mas ainda submete o amante ao objeto do seu amor. Deste modo, quando a alma ama alguma coisa fora de Deus, torna-se incapaz de se transformar nele e de se unir a Ele. A baixeza da criatura é infinitamente mais afastada da soberania do Criador do que as trevas o são da luz. Todas as coisas da terra e do céu, comparadas com Deus, nada são, como disse Jeremias: «Olhei para a terra, e eis que estava vazia, e era nada; e para os céus, e não havia neles luz» ( Jer 4, 23 ). Dizendo ter visto a terra vazia, dá a entender todas as criaturas e a própria terra serem nada. Acrescentando: Contemplei o céu e não vi luz — quer significar que todos os astros do céu comparados com Deus são puras trevas. Daí se conclui que todas as criaturas nada são, e as inclinações que nos fazem pender para elas, menos que nada, pois são um entrave para a alma e a privam da mercê da transformação em Deus; assim como as trevas, igualmente, por serem a privação da luz, são nada e menos que nada. Quem está nas trevas não compreende a luz; da mesma forma, a alma colocando sua afeição na criatura não compreenderá as coisas divinas; porque até que se purifique completamente não poderá possuir Deus neste mundo pela pura transformação do amor, nem no outro pela clara visão. Para esclarecer ainda mais esta doutrina, vejamos algumas particularidades.
4. Todo o ser das criaturas comparadas ao Ser infinito de Deus nada é. Resulta daí que a alma, dirigindo suas afeições para o criado, nada é para Deus, e até menos que nada, pois, conforme já dissemos, o amor a assemelha e torna igual ao objeto amado e a faz descer ainda mais baixo. Esta alma tão apegada às criaturas não poderá de forma alguma unir-se ao Ser infinito de Deus, porque não pode existir conveniência entre o que é e o que não é. Descendo a alguns exemplos particulares, vemos que toda a beleza das criaturas comparada à infinita beleza de Deus não passa de suma fealdade, segundo diz Salomão nos Provérbios: «A graça é enganadora e vã a formosura» ( Prov 31, 30 ). A alma, presa pelos encantos de qualquer criatura, é sumamente feia diante de Deus, e não pode de forma alguma transformar-se na verdadeira beleza, que é Deus, pois a fealdade é de todo incompatível com a beleza. Todas as graças e todos os encantos das criaturas, comparados às perfeições de Deus, são disformes e insípidos. A alma, subjugada por seus encantos e agrados, torna-se, por si mesma, desgraciosa e desagradável aos olhos de Deus, sendo, deste modo, incapaz de unir-se à sua infinita graça e beleza. Porque o feio está separado do infinitamente belo, por imensa distância. E toda a bondade das criaturas posta em paralelo com a bondade infinita de Deus mais parece malícia. Ninguém é bom, senão só Deus ( Lc 18, 19 ). A alma, prendendo seu coração aos bens deste mundo, torna-se viciosa aos olhos de Deus; e assim como a malícia não pode entrar em comunhão com a bondade, também esta alma não se poderá unir perfeitamente ao Senhor, que é a' bondade por essência. Toda a sabedoria do mundo, toda a habilidade humana comparadas à sabedoria infinita de Deus são pura e suprema ignorância. São Paulo o ensina aos Coríntios: «A sabedoria deste mundo é estultícia diante de Deus» ( 1 Cor 3, 19 ). 5. A alma, apoiando-se em seu saber e habilidade para alcançar a união com a sabedoria divina, jamais a alcançará, permanecendo muito afastada, pois a ignorância não sabe o que seja a sabedoria, ensinando S. Paulo que tal sabedoria parece a Deus estultícia. Aos olhos de Deus, os que crêem algo saber são os mais ignorantes. O Apóstolo, falando desses homens, teve razão em dizer aos romanos: «Porque se atribuindo o nome de sábios se tornaram estultos» ( Rom 1, 22 ). Só chegam a adquirir a sabedoria divina aqueles que, assemelhando-se aos pequeninos e ignorantes, renunciam ao próprio saber para caminhar com amor no serviço de Deus. S. Paulo nos ensina esta espécie de sabedoria quando diz: «Se algum dentre vós se tem por sábio neste mundo, faça-se insensato para ser sábio; porque a sabedoria deste mundo é uma estultícia diante de Deus» ( 1Co 3, 18, 19 ). Em conseqüência, a alma se unirá à sabedoria divina antes pelo não saber que pelo saber. Todo o poder e toda a liberdade do mundo, comparados com a soberania e a independência do espírito de Deus, são completa servidão, angústia e cativeiro.
6. A alma enamorada das grandezas e dignidades ou muito ciosa da liberdade de seus apetites está diante de Deus como escrava e prisioneira e como tal — e não como filha — é tratada por Ele, porque não quis seguir os preceitos de sua doutrina sagrada que nos ensina: Quem quer ser o maior deve fazer-se o menor, e o que quiser ser o menor seja o maior. A alma não poderá, portanto, chegar à verdadeira liberdade de espírito que se alcança na união divina; porque sendo a escravidão incompatível com a liberdade, não pode esta permanecer num coração de escravo, sujeito a seus próprios caprichos; mas somente no que é livre, isto é, num coração de filho. Neste sentido Sara diz a Abraão, seu esposo, que expulse de casa a escrava e seu filho: «Expulsa esta escrava e seu filho, porque o filho da escrava não será herdeiro com meu filho Isaac» ( Gn 21, 10 ).
7. Todas as delícias e doçuras que a vontade saboreia nas coisas terrenas, comparadas aos gozos e às delícias da união divina, são suma aflição, tormento e amargura. Assim todo aquele que prende o coração aos prazeres terrenos é digno diante do Senhor de suma pena, tormento e amargura, e jamais poderá gozar os suaves abraços da união de Deus. Toda a glória e todas as riquezas das criaturas, comparadas à infinita riqueza que é Deus, são suma pobreza e miséria. Logo a alma afeiçoada à posse das coisas terrenas é profundamente pobre e miserável aos olhos do Senhor, e por isto jamais alcançará o bem-aventurado estado da glória e riqueza, isto é, a transformação em Deus; porque há infinita distância entre o pobre e indigente, e o sumamente rico e glorioso.
8. A Sabedoria divina, ao se queixar das almas que caem na vileza, miséria e pobreza, em conseqüência da afeição que dedicam ao que é elevado, grande e belo segundo a apreciação do mundo, fala assim nos Provérbios: «A vós, ó homens, é que eu estou continuamente clamando, aos filhos dos homens é que se dirige a minha voz. Aprendei, ó pequeninos, a astúcia e vós, insensatos, prestai-me atenção. Ouvi, porque tenho de vos falar acerca de grandes coisas. Comigo estão as riquezas e a glória, a magnífica opulência, e a justiça. Porque é melhor o meu fruto que o ouro e que a pedra preciosa, e as minhas produções melhores que a prata escolhida. Eu ando nos caminhos da justiça, no meio das veredas do juízo, para enriquecer aos que me amam e para encher os seus tesouros» ( Prov 8, 4-6 e 18-21 ). A divina sabedoria se dirige aqui a todos os que põem o coração e a afeição nas criaturas. Chama-os de «pequeninos» porque se tornam semelhantes ao objeto de seu amor, que é pequeno. Convida-os a ter prudência (sophrosyne - phronesis) e a observar que ela trata de grandes coisas e não de pequenas como eles. Com ela e nela se encontram a glória e as verdadeiras riquezas desejadas, e não onde eles supõem. A magnificência e justiça lhe são inerentes; e exorta os homens a refletir sobre a superioridade de seus bens em relação aos do mundo. Ensina-lhes que o fruto nela encontrado é preferível ao ouro e às pedras preciosas; afinal, mostra que sua obra na alma está acima da prata mais pura que eles amam. Nestas palavras se compreende todo gênero de apego existente nesta vida.
CAPÍTULO V - Continuação do mesmo assunto. Provas extraídas de autoridades e figuras da Sagrada Escritura para demonstrar quanto é necessário à alma ir a Deus por esta noite escura da mortificação do apetite em todas as coisas.
1. Pelo que ficou dito até agora, podemos conhecer, de algum modo, qual o abismo separando as criaturas do Criador, e como as almas, que em alguma destas põem sua afeição, se acham a essa mesma distância de Deus; pois, como dissemos, o amor produz igualdade e semelhança. Santo Agostinho compreendeu esta verdade quando disse ao Senhor em seus solilóquios: «Miserável que sou! Em que a minha pequenez e minha imperfeição poderão se comparar com a vossa retidão? Sois verdadeiramente bom, e eu mau; sois piedoso, e eu ímpio; sois santo, e eu miserável; sois justo, e eu injusto; sois luz, e eu cego; sois vida, e eu morte; sois remédio, e eu enfermo; sois suprema verdade, e eu tão somente vaidade».' Tudo isto diz o Santo.
2. É, portanto, grande ignorância da alma ousar aspirar a esse estado tão sublime da união com Deus, antes de haver despojado a vontade do apetite de todas as coisas naturais e sobrenaturais que lhe podem servir de impedimento, como em seguida veremos; pois é incomensurável a distância existente entre elas e o dom recebido no estado da pura transformação em Deus. Nosso Senhor Jesus Cristo, ensinando-nos este caminho, diz por S. Lucas: «Quem não renuncia a tudo que possui, pela vontade, não pode ser meu discípulo» ( Lc 14, 33 ). E' verdade evidente: pois a doutrina ensinada pelo Filho de Deus ao mundo consiste neste desprezo de todas as coisas, a fim de nos tornar capazes de receber a recompensa do espírito de Deus. E enquanto a alma não se despojar de tudo, não terá capacidade para receber esse espírito de Deus em pura transformação.
3. Encontramos uma figura dessa verdade no livro do Êxodo, onde se lê que Deus enviou o maná do Céu aos filhos de Israel só quando lhes faltou a farinha trazida do Egito. Quis assim dar-nos a entender a necessidade de primeiramente renunciar a todas as coisas, pois este manjar dos Anjos não convém ao paladar que toma sabor no alimento dos homens. E não somente se torna incapaz do espírito divino a alma detida e apascentada por gostos estranhos, mas ainda causam grande enfado à Majestade de Deus os que, buscando o manjar do espírito, não se contentam puramente com o Senhor e querem conservar ao mesmo tempo o apetite e afeição de outras coisas. A Sagrada Escritura ainda nos narra, no mesmo livro do Êxodo, que os Israelitas, pouco satisfeitos com aquele manjar tão leve, apeteceram e pediram carne. E Nosso Senhor ficou gravemente irado, por ver que queriam misturar comida tão baixa e grosseira com manjar tão alto e simples que encerrava em si o sabor e substância de todos os alimentos. Também Davi nos diz que aquelas carnes estavam ainda em sua boca, quando a cólera de Deus rebentou sobre eles e o fogo do Céu consumiu muitos milhares ( Sl 77, 31 ), mostrando assim o Senhor julgar coisa abominável o terem eles apetite de outro alimento, quando lhes era dado manjar do Céu.
4. Oh! se soubessem as almas interiores a abundância de graças e de bens espirituais de que se privam, recusando desapegar-se inteiramente do desejo das ninharias deste mundo! Como achariam, nesta simples alimentação do espírito, o gosto de todas as melhores coisas! Mas, por causa desta persistência em não querer contentar-se, não podem apreciar a delicadeza do maná celeste, assim como os israelitas não descobriram os variados sabores do maná, porque não concentravam somente nele o seu apetite. No entanto, se ali não acharam gosto, conforme os seus desejos, não era por não o possuir o maná: o verdadeiro motivo foi buscarem eles outra coisa. A alma cujo amor se reparte entre a criatura e o Criador testemunha sua pouca estima por este, ousando colocar na mesma balança Deus e um objeto que dele está infinitamente distante.
5. Sabe-se bem, por experiência, que a vontade, quando afeiçoada a um objeto, prefere-o a qualquer outro que seria melhor em si, porém satisfaria menos o seu gosto. Se quiser gozar de um e de outro ao mesmo tempo, injuriará necessariamente ao que é superior e isto porque estabelece igualdade entre eles. Ora, como não há na terra coisa que se possa igualar a Deus, a alma lhe faz muito agravo quando juntamente com Ele ama outra coisa e a ela se prende. Que acontecerá, então, se vier a amá-la mais que ao próprio Deus?
6. Vemos, no livro do Êxodo, um exemplo confirmando este ponto. Quando Deus ordenou a Moisés que subisse ao Monte Sinai para conversar com Ele, não somente ordenou fosse sozinho, deixando em baixo os filhos de Israel, como ainda proibiu apascentassem os rebanhos nas encostas da montanha. Quis Ele dar-nos a entender que a alma desejosa de subir a montanha da perfeição para entrar em comunhão com Deus, não só há de renunciar a todas as coisas, mas também aos apetites, figurados nos animais; não lhes deve permitir que venham apascentar-se nas encostas da montanha, isto é, naquilo que não é exclusivamente Deus, em quem todos os apetites cessam; o que acontece no estado de perfeição. Durante a ascensão desta montanha, é necessário reprimir e mortificar, com cuidado incessante, todos os apetites. E tanto mais depressa chegará a seu fim, quanto mais rapidamente isto fizer. Se assim não for, jamais subirá ao cume, por mais virtudes que pratique, pois não as exercita com a perfeição que consiste em ter a alma vazia, nua e purificada de todo apetite. Outra viva figura do que afirmamos nos dá o Gênesis: querendo o Patriarca Jacob subir ao monte Betei, para aí edificar um altar a Deus e lhe oferecer sacrifícios, ordenou primeiro três coisas às pessoas de sua casa. A primeira, que arrojassem de si todos os deuses estranhos; a segunda, que se purificassem; a terceira, que mudassem suas vestes ( Gn 35, 2 ).
7. Estas três coisas nos indicam as disposições da alma que pretende subir a montanha da perfeição e fazer de si mesma altar para oferecer a Deus o tríplice sacrifício de puro amor, louvor e adoração pura. Antes de chegar com segurança ao cume desta montanha, deve ter cumprido perfeitamente os três avisos citados: primeiro, rejeitar todos os deuses estranhos, isto é, os apegos e afeições do coração; a seguir, purificar-se na noite escura do sentido, dos ressaibos deixados por esses apetites, negando-os e arrependendo-se deles ordenadamente e, por último, trocar as vestes que, em conseqüência das duas primeiras condições, mudará Deus de velhas em novas, pondo na alma novo conhecimento (gnosis -episteme) de Deus em Deus, e novo amor de Deus em Deus, despojada a vontade de todos os velhos quereres e gostos humanos; e nova notícia e deleite abismai ser-lhe-á comunicado, rejeitadas todas as suas antigas concepções. Posto de lado tudo o que havia no velho homem — as aptidões naturais — e substituído por sobrenatural aptidão em todas as suas potências, será seu modo de agir transformado de humano em divino. Tal é o resultado deste estado de união no qual a alma se torna altar onde somente Deus reside e recebe o sacrifício de adoração, louvor e amor. Determinou o Senhor que o altar onde devia estar a arca do Testamento fosse oco por dentro % a fim de nos dar a entender quanto nossa alma deve estar despida de tudo, para que seja altar digno de servir de morada à divina Majestade. Sobre esse altar, cujo fogo próprio jamais deveria extinguir-se, não era permitido que houvesse fogo estranho. E porque Nadab e Abiud, filhos do Sumo Sacerdote Aarão, transgrediram esta ordem, o Senhor, irritado, lhes deu a morte diante do mesmo altar ( Lv 10, 1 ). Mostra-nos esta figura como, para ser a almadigno altar de Deus, jamais há de carecer de amor divino, nem tampouco há de mesclá-lo com qualquer outro amor.
8. Não consente Deus que outra coisa more juntamente com Ele no mesmo altar. Lê-se no primeiro livro dos Reis que os filisteus colocaram a Arca do Testamento no templo com seu ídolo: cada dia, o ídolo era jogado por terra, feito em pedaços. O único desejo que o Senhor admite consigo numa alma é o de guardar a lei divina e levar a cruz de Cristo. E assim no Antigo Testamento não consentia Deus que se conservasse na Arca, onde estava o maná, objeto algum além do livro da lei ( Dt 31, 26 ) e da vara de Moisés, imagem da cruz. Porque a alma, cuja única pretensão é cumprir perfeitamente a lei do Senhor e carregar a cruz de Cristo, tornar-se-á arca viva, que encerrará o verdadeiro maná, o próprio Deus, quando chegar a ter em si esta lei e esta vara perfeitamente, sem mistura de outra coisa.
CAPITULO VI - Dos dois principais danos causados à alma pelos apetites: um privativo e outro positivo.
1. Será bom, para maior esclarecimento do que foi dito, explicarmos aqui o duplo prejuízo causado à alma por seus apetites. Primeiro, privam-na do espírito de Deus. Segundo, fatigam, atormentam, obscurecem, mancham e enfraquecem a alma em que vivem, segundo a palavra de Jeremias: «Dois males fez o meu povo: deixaram-me a mim, fonte de água viva, e cavaram para si cisternas, cisternas rotas, que não podem reter as águas» ( Jer 2, 13 ). Estes dois males — privativo e positivo — são causados por qualquer ato desordenado do apetite. Quanto ao primeiro, é evidente que, afeiçoando-se a alma à criatura, quanto mais tal apetite ocupar a alma, tanto menos capacidade terá ela para possuir a Deus. Explicamos no capítulo IV que dois contrários não podem existir num mesmo sujeito ao mesmo tempo. Ora, a afeição a Deus e à criatura são dois contrários: não podem, desse modo, existir em uma só vontade. Que relação existe entre a criatura e o Criador, entre o material e o espiritual, entre o visível e o invisível, entre o temporal e o eterno, entre o alimento celeste, puro e espiritual e o alimento grosseiro dos sentidos, entre a desnudez de Cristo e o apego a alguma coisa? 2. Assim como na ordem natural, uma forma não pode ser introduzida num recipiente sem ser primeiramente expelida do mesmo a forma contrária, e, enquanto uma permanecer, se tornará obstáculo à outra devido à incompatibilidade existente, do mesmo modo a alma cativa do espírito sensível jamais poderá receber o espírito puramente espiritual. Nosso Senhor diz em São Mateus: «Não é bom tomar o pão dos filhos e lançá-lo aos cães» ( Mt 15, 26 ) ; e, num outro trecho: «Não deis aos cães o que é santo» ( Mt 7, 6 ). Nestas palavras, Nosso Senhor compara aos filhos de Deus aqueles que, renunciando a todos os apetites de criaturas, se dispõem a receber puramente o espírito de Deus; e compara aos cães os que procuram encontrar nas mesmas criaturas alimento para seus apetites. Porque cabe aos filhos comerem à mesa de seu pai e dos manjares que lhes são servidos, isto é, nutrirem-se de seu espírito, enquanto os cães se regalam com as migalhas caídas da mesa.
3. Ora, todas as criaturas são na realidade migalhas caídas da mesa de Deus; portanto os que procuram alimentar-se das coisas criadas são justamente chamados cães. E' razoável que se lhes tire o pão dos filhos, pois não se querem elevar acima das migalhas das criaturas até à mesa do espírito incriado de seu Pai. Caminham sempre famintos, como cães, e as migalhas que conseguem juntar servem antes para excitar o apetite que saciar a fome. Falando deles David diz: «Padecerão fome como cães e rodearão a cidade; e, se não se fartarem, ainda murmurarão» ( SI 58, 15, 16 ). Tal é o estado de quem se abandona aos seus apetites: vive sempre inquieto e descontente como um faminto. Que comparação se pode estabelecer entre a fome causada por todas as criaturas e a fartura que proporciona o divino espírito? A alma não receberá a fartura incriada de Deus enquanto não houver perdido aquela fome criada de seus apetites; pois, como dissemos, não cabem num só sujeito dois contrários que neste caso são a fome e a fartura.
4. Podemos entender, pelo que foi dito, como Deus realiza maior obra purificando a alma de suas imperfeições do que criando-a do nada. O desregramento dos apetites e das afeições opõe mais obstáculos à ação divina que o nada, pois o nada não resiste a Deus como o faz a vontadeda criatura. E isto baste para declarar o primeiro dano causado à alma por seus apetites imortificados: a resistência ao espírito de Deus, pois já falamos suficientemente a tal respeito.
5. Tratemos agora do segundo dano chamado positivo, que produz cinco principais efeitos: porque os apetites cansam, atormentam, obscurecem, mancham e enfraquecem a alma. Expliquemos cada um desses efeitos em particular.
6. É manifesto que os apetites fatigam e cansam a alma; assemelham-se às criancinhas inquietas e descontentes que sempre estão pedindo à sua mãe, ora uma coisa, ora outra, e jamais se satisfazem. Como os que procuram tesouros se cansam e se fatigam pelas contínuas escavações que são obrigados a fazer, igual cansaço experimenta a alma quando procura o objeto de seus apetites. E ainda que afinal o consiga, sempre se cansa, porque nunca se contenta. E' como cavar cisternas rotas, incapazes de conter a água que poderia saciar-lhe a sede. E assim, como diz Isaías, «Fatigado, ainda tem sede, e sua alma está vazia» ( Is 29, 8 ). A alma presa aos apetites efetivamente se cansa: é como um doente febril, cuja sede aumenta a cada instante, e que não se sentirá bem enquanto a febre não houver passado. Lemos no livro de Job: «Depois que se fartar, padecerá ânsias, e se abrasará; e toda a sorte de dores virá sobre Ele» ( Job 20, 22 ). Cansa-se e fatiga-se a alma com seus apetitesporque é ferida e perturbada por eles, como a água agitada pelos ventos que a revolvem sem deixá-la sossegar: em lugar nenhum, nem em coisa alguma pode achar repouso. Delas diz Isaías: «O coração do ímpio é como um mar agitado» ( Is 57, 20 ). Ora, é ímpio todo aquele que não sabe vencer os seus apetites. E' como homem faminto que abre a boca para se alimentar de vento. Bem longe de satisfazer a fome, definha, porque o ar não é o seu alimento. «Abrasada no seu apetite chamou a si o vento do que ama» ( Jer 2, 24 ) diz Jeremias. E, para explicar a secura a que se expõe esta alma, o Profeta, adiante, acrescenta: «Guarda o teu pé, isto é, o teu pensamento, da nudez, e a tua garganta da sede» ( Jer 2, 25 ), isto é, afasta tua vontade da satisfação do teu apetite que produz maior secura. O homem apaixonado se cansa e exaure com as próprias esperanças frustradas; assim, a alma que busca saciar os apetites nada mais faz senão aumentar a fome e os desejos. Porque, como se diz vulgarmente, o apetite é semelhante ao fogo: lançai-lhe a lenha, Ele crescerá em proporção dela, e diminuirá na medida em que a for consumindo.
7. E ainda os apetites estão, neste caso, em condições mais deploráveis: porque o fogo, em faltando a lenha, se amortece, mas o apetite não diminui quando se acaba aquilo que o satisfaz; e longe de se extinguir como o fogo sem combustível, cansa-se em desejos, pela fome aumentada e o alimento diminuído. Isaías, a este respeito, diz: «E virá à direita e terá fome: e comerá à esquerda, e não se fartará» ( Is 9, 20 ). Aqueles que não mortificam seus apetites justamente são torturados pela fome, quando se desviam do caminho de Deus que está à direita, pois não merecem a fartura do espírito de suavidade. E quando, à esquerda, vão procurar alimento, isto é, quando satisfazem seus apetites na criatura, justo é então que não sejam saciados, porque, rejeitando o que lhes podia satisfazer, nutrem-se do que lhes aumenta a fome. Claro está, pois, que osapetites cansam e fatigam a alma.
CAPITULO VII - Como os apetites atormentam a alma. Prova-se também por comparações e textos da Sagrada Escritura.
1. Os apetites causam na alma o segundo efeito do dano positivo, que consiste em atormentá-la e afligi-la, tornando-a semelhante a uma pessoa carregada de grilhões, privada de qualquer repouso até a completa libertação. Destes tais diz David: «Laços de pecados, isto é, de apetitesdesregrados, me tingiram por todas as partes» ( Sl 118, 61 ). Do mesmo modo que se atormenta e aflige quem, despojado das vestes, se deita sobre espinhos e aguilhões, assim a alma sente os mesmos tormentos quando sobre os seus apetites se recosta; porque estes, como os espinhos, ferem, magoam e deixam dor. A esse propósito, disse também David: «Cercaram-me como abelhas; e se incendiaram como fogo em espinhos» ( SI 117, 12 ). Efetivamente, o fogo da angústia e da dor se aviva em meio dos espinhos dos apetites. Como o lavrador, desejoso da colheita, excita e atormenta o boi que está sob o jugo, assim a concupiscência (pleonexia, epithymia) aflige a alma que se sujeita ao jugo dos seus apetitespara obter o que aspira. O desejo que tinha Dalila de conhecer o segredo da força de Sansão prova esta verdade. A Escritura diz que, preocupada e atormentada, desfaleceu quase até morrer: «Sua alma caiu num mortal desfalecimento» ( Jdt 16, 16 ).
2. Quanto mais intenso é o apetite tanto maior tormento traz à alma, de sorte que ela tanto mais tormento tem, quanto mais os apetites a possuem. Vê-se, então, desde esta vida, cumprir-se nela a sentença do Apocalipse: «Quanto se tem glorificado e tem vivido em deleites, tanto lhe dai de tormento e pranto» ( Apoc 18, 7 ). A alma presa dos seus apetites sofre dor e suplício comparáveis aos da pessoa que cai em mãos deinimigos. O forte Sansão disso nos oferece exemplo: era Juiz de Israel, célebre por seu valor, gozava de grande liberdade. Tendo caído em poder de seus inimigos, privaram-no de sua força, vazaram-lhe os olhos, obrigaram-no a rodar a mó do moinho e lhe infligiram as mais cruéis torturas. Tal é a condição da alma na qual os seus apetites vivem e vencem. Causam-lhe um primeiro mal que é o de enfraquecê-la e cegá-la, como explicaremos mais adiante. Atormentam-na e afligem-na depois, atando-a à mó da concupiscência (pleonexia, epithymia) . E os laços com que está presa são seus próprios apetites.
3. Deus, tocado de compaixão para com as almas que tão penosamente procuram satisfazer nas criaturas a fome e a sede de seus apetites, disse-lhes por Isaías: «Todos vós os que tendes sede, vinde às águas: e os que não tendes prata, isto é, vontade própria, apressai-vos, comprai, e comei; vinde, comprai sem prata, e sem comutação alguma, como sois obrigados a fazer para vossos apetites: comprai vinho e leite, ou seja a paz e a doçura espirituais. Por que motivo empregais o dinheiro não em pães, isto é, em coisas que não são o espírito divino, e o vosso trabalho não em fartura? «Ouvi-me com atenção, comei do bom alimento, e a vossa alma se deleitará com o suco nutritivo dele» ( Is 55, 1, 2 ).
4. Para chegar a esta fartura, é preciso livrar-se do gosto de todas as coisas criadas, pois a criatura atormenta e o espírito de Deus gera alegria. O Senhor nos convida nesta passagem de S. Mateus: «Vinde a mim, todos os que andais em trabalho, e vos achais carregados, e eu vos aliviarei» ( Mt 11, 28, 29 ). Como se dissesse: Todos vós que andais atormentados, aflitos e carregados com o fardo de vossos cuidados eapetites, vinde a mim, e achareis o repouso que os mesmos apetites tiram às vossas almas, pois são pesada carga. «Como carga pesada se agravaram sobre mim» ( SI 37, 5 ), neste sentido diz David.
CAPITULO VIII - Como os apetites obscurecem e cegam a alma. Testemunhos e comparações da Sagrada Escritura em apoio desta doutrina.
1. O terceiro dano que causam na alma os apetites é obscuridade e cegueira. Assim como os vapores obscurecem o ar e interceptam os raios solares, ou como o espelho embaciado não pode refletir com nitidez a imagem que lhe é apresentada; assim como a água turva não pode reproduzir distintamente os traços do rosto que nela se mira; do mesmo modo a alma, cujo entendimento é cativo dos apetites, se acha obscurecida e não permite ao sol da razão natural, nem ao sol sobrenatural, que é a Sabedoria de Deus, a liberdade de penetrá-la e iluminá-la com os seus esplendores. Sobre isso diz David: «Senhorearam-me as minhas iniqüidades, e eu não pude ver» ( Sl 39, 13 ).
2. Quando o entendimento é sepultado nas trevas, a vontade desfalece e a memória fica embotada. Ora, como estas duas potências dependem, em suas operações, da primeira, cegando-se o entendimento as outras caem necessariamente na perturbação e na desordem. E assim diz David: «E a minha alma se turbou em extremo» ( Sl 6, 4 ). Em outros termos: as suas potências estão desordenadas. Neste estado o entendimento, como já dissemos, não está mais apto a receber a luz da Sabedoria divina do que o ar carregado de pesados vapores para receber a luz do sol. Avontade fica impotente para abraçar em si a Deus com amor puro, assim como o espelho embaciado não pode refletir claramente a imagem que lhe é oferecida. Menos habilidade tem ainda a memória, obscurecida pelas trevas do apetite: torna-se incapaz de se deixar penetrar tranqüilamente pela imagem de Deus, como acontece com a água turva que não reproduz com nitidez o rosto de quem nela se mira.
3. O apetite cega e ainda obscurece a alma porque, enquanto apetite, é cego e necessita da razão como guia. Disto se depreende que, todas as vezes que a alma cede às tendências do apetite, assemelha-se ao que, tendo boa vista, se deixa guiar por quem não enxerga. Então, são dois cegos. E a palavra de Nosso Senhor, segundo S. Mateus, encontra aqui a exata aplicação: «E se um cego guia a outro cego ambos vêm a cair no barranco» ( Mt 15, 14 ). Para que servem os olhos à mariposa, quando, ofuscada pela formosura da luz, precipita-se dentro da mesma chama? Assim podemos comparar quem se entrega aos seus apetites ao peixe fascinado pelo archote cuja luz antes lhe serve de trevas, impedindo-o de ver as redes armadas pelo pescador. Explica-o muito bem o Profeta em um dos seus Salmos, quando diz: «Caiu fogo de cima e não viram o sol» ( Sl 57, 9 ). O apetite é verdadeiramente um fogo cujo calor aquece e cuja luz fascina; isto é, acende a concupiscência (pleonexia, epithymia) e deslumbra o entendimento de modo a esconder a luz que lhe é própria. O deslumbramento é o resultado de uma luz estranha colocada diante dos olhos. A vista recebe então a luz interposta e não vê mais a outra. Assim, o apetite cinge tão de perto a alma e se interpõe a seus olhos tão fortemente, que ela se detém nesta primeira luz, contentando-se com ela, não mais percebendo a verdadeira luz do entendimento. Só poderá vê-la novamente quando o deslumbramento do apetite desaparecer.
4. A ignorância de certas pessoas sobre este ponto é digna de muitas lágrimas: sobrecarregam-se de penitências excessivas e outras muitaspráticas extraordinárias, de todo arbitrárias, e imaginam que somente isto basta para chegar à união com a Sabedoria divina, sem a mortificação dos seus apetites desordenados. O erro é manifesto e, a não ser que façam esforços constantes para triunfar das próprias inclinações, jamais atingirão o seu fim. Se quisessem esforçar-se por empregar, nessa renúncia dos apetites, sequer a metade do trabalho que têm nos seus muitos exercícios, em um mês lucrariam muito mais do que nestes em muitos anos. Pois que, assim como é indispensável lavrar a terra para fazê-la frutificar, e sem ser lavrada só produzirá ervas daninhas, — também à alma se faz necessária a mortificação dos apetites, se quiser progredir navirtude. Tudo o que empreender fora disso para conquistar o conhecimento (gnosis - episteme) de Deus e de si mesma, ouso dizer, será perdido, assim como a semente lançada em terra sem cultura não pode germinar. Por conseguinte, a alma permanecerá nas trevas e na incapacidade até se apagarem os apetites. Estes são como a catarata ou os argueiros nos olhos: impedem a vista até serem eliminados.
5. David considerando, de um lado, qual a cegueira dessas almas cujos apetites não mortificados as privam de ver a luz da verdade, e, de outro lado, quanto Deus se irrita contra elas, lhes dirige estas palavras: «Antes que vossos espinhos, que são os vossos apetites, entendam como vivos, assim Ele na sua ira os devorará» ( Sl 57, 10 ). Deus destruirá assim em sua cólera os apetites conservados vivos e que são obstáculo para o conhecimento (gnosis - episteme) de Deus. Ele os destruirá, seja nesta vida ou na outra, com castigo e correção, isto é, com a purificação. Diz que os absorverá em sua ira, porque o sofrimento que se padece na mortificação dos apetites é o castigo do estrago causado por eles à alma.
6. Oh! se os homens soubessem de quantos bens de luz divina os priva esta cegueira causada pelos seus apegos e afeições desregradas, e em quantos males e danos os fazem cair cada dia por não se quererem mortificar! Porque não há que fiar de bom entendimento, nem de dons recebidos de Deus, para julgar que deixará a alma de ficar cega e obscura, e de ir caindo de mal a pior, se tiver alguma afeição ou apetite. Poderia alguém acreditar que um varão tão perfeito, sábio e dotado dos favores do céu, como foi Salomão, havia de cair na velhice em tal desvario e endurecimento da vontade, a ponto de levantar altares a tantos ídolos e os adorasse? ( 3Rs 11, 4 ). Para isto foi suficiente aquela afeição que tinha às mulheres, e a negligência em reprimir os apetites e deleites de seu coração. Falando de si mesmo, no Eclesiastes, Salomão reconhece que assim fez, dizendo que não negou ao seu coração quanto lhe pediu ( Ecle 2, 10 ). E se, na verdade, a princípio Ele se conduziu com prudência (sophrosyne - phronesis), mais tarde, por não ter renunciado aos apetites e a eles se ter entregue sem moderação, tornou-se pouco a pouco cego e obscurecido no entendimento a ponto de vir extinguir-se a grande luz da sabedoria com que Deus o favorecera, e, assim, na velhice, abandonou o Senhor.
7. Se as paixões não mortificadas tiveram tal domínio sobre quem era tão versado na ciência do bem e do mal, que serão para nossa ignorância os apetites não mortificados? Neste ponto, podemos ser comparados aos ninivitas, dos quais dizia o Senhor ao Profeta Jonas: «Não sabem distinguir entre a mão direita e a esquerda» ( Jon 4, 11 ). Porque tomamos a cada passo o mal por bem e o bem por mal: isto é o fruto da nossa própria colheita. Que será, então, se o apetite se juntar às trevas de nossa natural ignorância? Seremos como aqueles de quem se queixa Isaías ao dirigir-se aos homens que se divertiam em satisfazer os próprios apetites: «Andamos como cegos apalpando as paredes, e, como se não tivéssemos olhos, fomos pelo tato, e nossa cegueira chegou ao ponto de tropeçarmos ao pino do meio-dia como em trevas» ( Is 59, 10 ). Tal é, com efeito, o estado de quem se deixou cegar pelos apetites: colocado em face da verdade e do dever, nada percebe, como se estivera mergulhado na mais profunda obscuridade.
CAPÍTULO IX - Diz como os apetites mancham a alma e prova com testemunhos e comparações da Sagrada Escritura.
1. O quarto dano que fazem os apetites à alma é que a sujam e mancham, segundo o ensinamento do Eclesiástico: «Quem tocar o piche ficará manchado dele» ( Ecli 13, 1 ). Ora, tocar o piche é satisfazer com qualquer criatura o apetite de sua vontade. Nessa passagem da Sagrada Escritura compara o Sábio as criaturas com o piche; porque entre a excelência da alma e o que há de mais perfeito nas outras criaturas é maior a diferença que entre o fúlgido diamante ou fino ouro e o piche. E assim como o ouro ou diamante se caísse, aquecido, no piche ficaria disforme e besuntado, porquanto o calor derrete e torna mais aderente o piche, assim a alma, dirigindo o ardor de seus apetites para qualquer criatura, dela recebe, pelo calor do mesmo apetite, máculas e impureza. Existe ainda entre a alma e as criaturas corpóreas diferença maior do que há entre o licor mais límpido e a água mais lodosa; esse licor, sem dúvida, se turvaria se fosse misturado com a lama; deste modo se mancha e suja a almaque se apega à criatura, pois nisto se faz semelhante à mesma criatura. Assim como ficaria desfigurado o rosto mais formoso, com manchas de tisne, a alma, igualmente, que é em si muito perfeita e acabada imagem de Deus, fica desfigurada pelos apetites desregrados que conserva.
2. Jeremias, deplorando o estrago que os afetos desordenados produzem na alma, descreve primeiro a sua formosura, para em seguida declarar-lhe a fealdade: «Os seus cabelos, dizia, eram mais alvos que a neve, mais nítidos que o leite, mais vermelhos que o marfim antigo, mais formosos que a safira. Denegrida está a face deles mais do que os carvões, e não são conhecidos nas praças» ( Lam 4, 7-8 ). Por cabelos entendemos as afeições e os pensamentos da alma que são mais alvos que a neve, mais nítidos que o leito, mais vermelhos que o marfim antigo e mais formosos que a safira, quando estão de acordo com a vontade divina. Estas quatro qualidades representam a beleza e a excelência de todas as criaturas corporais; mas a alma e as suas ações lhes são muito superiores e eis por que e comparada aqui aos cabelos que são o ornamento da cabeça. Quando as suas ações são desregradas e dirigidas a fins contrários à lei de Deus, isto é, quando a alma se deixa absorver pelas criaturas, Jeremias assegura que o seu rosto se torna mais negro que o carvão.
8. Todos estes danos, e outros ainda maiores, causam na beleza interior da alma os apetites desordenados de coisas do século. Chegam a tal ponto, que se tivéssemos de tratar expressamente da abominável e suja figura que nela deixam, não acharíamos coisa, por mais manchada e imunda, ou lugar tão cheio de teias de aranha e repteis repelentes, nem podridão de corpo morto, a que pudéssemos compará-la. Porque, embora a alma desordenada permaneça, quanto à sua substância e natureza, tão perfeita quanto no momento em que Deus a tirou do nada, todavia, na parte racional do seu ser, torna-se feia, obscura, manchada e exposta a todos estes males e ainda a grande número de outros. Uma só destas inclinações desordenadas, ainda mesmo não sendo matéria de pecado mortal, é suficiente para manchar, enfear e tornar a almaincapaz de chegar à união perfeita com Deus. Qual não será, pois, a fealdade de uma alma completamente dominada pelas próprias paixões e entregue a todos os seus apetites? Quão afastada estará de Deus e de sua infinita pureza!
4. A língua não pode dizer, nem a inteligência conceber, a multiplicidade de impurezas que os diversos apetites acumulam na alma. Se fosse possível dar a entender, seria admirável, digna de compaixão, ver cada apetite apor na alma o sinal do seu caráter e aí imprimir as suas próprias manchas e fealdades, e como uma só desordem de razão pode conter inúmeras manchas de intensidades diferentes. Porque assim como a almado justo possui em uma só perfeição, que é a retidão da alma, grande número de sublimes virtudes e inumeráveis dons preciosos, cada um com seu encanto particular, segundo o número e a diversidade dos impulsos de amor que a levam para Deus, assim a alma desordenada possui em si lamentável variedade de manchas e baixezas em relação à multiplicidade das inclinações que a fazem pender para as criaturas.
5. Ezequiel nos oferece exata imagem dessa verdade quando diz que Deus lhe mostrou, pintadas nos muros interiores do templo, todas as figuras dos reptis que rastejam pela terra, assim como todas as abominações dos animais impuros ( Ez 8, 10 ). Deus diz ao Profeta: «Por certo, filho do homem, que tu vês o que fazem nas trevas, o que cada um deles pratica no secreto da sua câmara? E o Senhor lhe ordenou, em seguida, que entrasse mais adentro a fim de ver abominações ainda maiores. Ezequiel, então, percebeu umas mulheres assentadas, chorando a Adônis, deus dos amores» ( Ez 8, 14 ). Afinal o Senhor lhe ordenou que entrasse ainda mais adentro e o Profeta viu vinte e cinco velhos que tinham as costas voltadas para o templo ( Ez 8, 16 ).
6. Esses diferentes repteis e animais imundos, pintados na primeira parte do templo, são os pensamentos e concepções que o entendimento faz das coisas baixas deste mundo e, em geral, de todas as criaturas. Ora, estas coisas, tais quais são, pintam-se no santuário da alma, quando esta embaraça nelas o entendimento, que é o seu primeiro aposento. Essas mulheres sentadas mais adentro, no segundo aposento do templo, que choram o deus Adônis, representam os apetites localizados na segunda potência da alma, a vontade. As suas lágrimas exprimem esses desejos aos quais a vontade está presa, isto é, os repteis já representados no entendimento. Enfim, os homens no terceiro aposento são o símbolo das imaginações e fantasmas de criaturas que a memória, terceira potência da alma, guarda e revolve em si. Foi dito que eles tinham as costas voltadas para o templo porque a alma, cujas potências são voluntária e resolutamente dirigidas para alguma criatura, volta, por assim dizer, as costas ao templo de Deus que é a reta razão, a qual não admite em si coisa alguma de criatura.
7. O que acabamos de dizer é suficiente para dar alguma idéia da feia desordem produzida pelos apetites na alma. Este assunto seria interminável tratássemos particularmente da fealdade que causam na mesma alma as imperfeições, bem como da que produzem os pecadosveniais, mais considerável, e enfim da total deformidade dos apetites de pecados mortais. Se fôssemos enumerar toda a variedade e multidão dessas três espécies de apetites, não haveria entendimento angélico que bastasse para chegar a compreender semelhantes coisas. Contento-me em dizer, e isto vem a propósito do nosso assunto, que qualquer apetite, ainda mesmo de mínima imperfeição, mancha e suja a alma.
CAPÍTULO X - Os apetites entibiam a alma e a enfraquecem na virtude.
1. Os apetites entibiam e enfraquecem a alma, tirando-lhe a força de progredir e perseverar na virtude: tal é o quinto prejuízo que lhe causam. Com efeito, se a força do apetite é repartida, o seu vigor se torna menos intenso do que se fosse concentrado inteiro em um só ponto; quanto mais numerosos são os objetos em que se reparte, tanto menos intensidade de afeto emprega em cada um deles. Verifica-se, assim, este axioma da filosofia: a força unida tem mais poder que a dividida. Por conseguinte, se a vontade gasta a sua energia em algo fora da virtude, necessariamente se tornará mais fraca na mesma virtude. A alma cuja vontade se perde em ninharias assemelha-se à água que, encontrando saída em baixo para escoar-se, não sobe para as alturas e perde assim sua utilidade. O patriarca Jacob compara seu filho Rubens à águaderramada porque Ele dera curso aos seus apetites cometendo um pecado secreto: «Derramaste-te como a água: não cresças» ( Gn 49, 4 ). Isto significa: porque estás derramado em teus desejos, como a água que se escoa, não crescerás em virtude. Se descobrimos um vaso de águaquente, esta perde facilmente o calor; as essências aromáticas, quando expostas ao ar, se evaporam gradualmente, perdendo a fragrância e a força do perfume; a alma, do mesmo modo, não concentrando os seus apetites só em Deus, perde o ardor e o vigor da virtude. David possuía perfeita compreensão desta verdade quando se dirigia ao Senhor nestes termos: «Guardarei para vós toda a minha fortaleza» ( Sl 58, 10 ), isto é, recolherei toda a força das minhas afeições somente para Vós.
2. Os apetites enfraquecem a virtude da alma, como as vergônteas que, crescendo em torno da árvore, lhe sugam a seiva e a impedem de dar frutos em abundância. O Senhor, no santo Evangelho, diz: «Ai das que estiverem pejadas e das que criarem naqueles dias» ( Mt 24, 19 ). Esta é a figura dos apetites não mortificados que consomem pouco a pouco a virtude da alma e se desenvolvem em detrimento dela, como as vergônteas que tanto prejudicam à árvore. Nosso Senhor também nos dá este conselho: «Estejam cingidos os vossos lombos» ( Lc 12, 35 ), que significam os apetites. Também se parecem estes com as sanguessugas sempre chupando o sangue das veias; é o nome que lhes dá o sábio, quando diz: sanguessugas são as filhas, isto é, os apetites: sempre dizem: dá-me, dá-me ( Prov 30, 15 ).
3. Evidentemente, os apetites não trazem à alma bem algum, mas, ao contrário, roubam-lhe o que possui. Se ela os não mortificar, irão os apetites adiante até fazerem à alma o que, como alguns dizem, fazem à mãe as viborazinhas que a mordem e matam à medida que crescem em seu ventre, conservando a própria vida às expensas da de sua mãe. Assim, os apetites não mortificados chegam a ponto de matar na alma a vida divina, porque a mesma alma não os matou primeiro, mas deixou-os viver em si. Diz, com razão, o Eclesiástico: «Afastai de mim a concupiscência (pleonexia, epithymia) da carne» ( Ecli 23, 6 ).
4. Mesmo que não cheguem a tanto, é grande lástima considerar em que estado deixam a pobre alma os apetites quando nela vivem, tornando-a infeliz consigo mesma, áspera para com o próximo, pesada e preguiçosa para as coisas de Deus. Porque não há humor maligno que tão difícil e pesado ponha um enfermo para caminhar, causando-lhe fastio para todo alimento, quanto o apetite de criaturas torna a alma triste e pesada para praticar a virtude. E assim, ordinariamente, sucede muitas almas não terem diligência e vontade para progredir na perfeição: e a causa disto são os apetites e afeições conservados e o não terem a Deus puramente por objeto.
CAPITULO XI - Necessidades de reprimir os apetites por mínimos que sejam, para chegar a alma à união divina.
1. O leitor parece-me estar há muito desejoso de saber se para atingir este alto estado de perfeição é preciso ter reprimido totalmente os apetites, grandes e pequenos, ou se é suficiente mortificar alguns sem se ocupar dos menos importantes. Parece extremamente difícil e árduo atingir a alma grau de desnudez tão completa e pureza tão grande, não tendo mais vontade nem afeição posta em coisa alguma.
2. Respondendo à pergunta, começo por dizer que, na verdade, todos os apetites não são igualmente prejudiciais e não perturbam a alma do mesmo modo. Refiro-me aos voluntários, porque os apetites naturais pouco ou nada impedem à união da alma, quando não são consentidos nem passam de primeiros movimentos. Entendo aqui por apetites naturais e primeiros movimentos, todos aqueles em que a vontade racional não toma parte nem antes nem depois do ato. Porque é impossível mortificá-los inteiramente e fazê-los desaparecer nesta vida; aliás, não impedem a união divina, ainda que não estejam de todo mortificados. Pode muito bem acontecer que subsistam na parte inferior da alma, e deles esteja livre a parte superior. Sucederá estar a alma elevada a altíssima união, em oração de quietude na vontade, enquanto os seus apetites se agitam na parte sensitiva sem perturbar a parte superior que permanece em oração. Mas, em relação a todos os apetites voluntários, a alma deve purificar-se e desembaraçar-se deles completamente; não só dos mais graves que a levam ao pecado mortal, mas ainda dos menores que a induzem aopecado venial, e até dos mais leves que a fazem cair em imperfeições. Sem isto, inutilmente pretenderá chegar à perfeita união com Deus. Com efeito, esta união consiste na transformação total da vontade humana na divina, de modo que não haja nela coisa contrária a essa vontade, mas seja sempre movida, em tudo e por tudo, pela vontade de Deus.
3. Por esta causa dizemos que, neste estado, as duas vontades fazem uma só que é a de Deus, e, portanto, a vontade de Deus é também a daalma. Ora, se esta alma quisesse alguma imperfeição, o que evidentemente Deus não pode querer, nasceria daí divergência, pois a alma poria sua vontade onde não está a de Deus. Para se unir pela vontade e pelo amor a seu soberano Bem, a alma deve renunciar primeiro a todo o apetite voluntário, por mínimo que seja, o que significa não dever consentir com pleno conhecimento (gnosis - episteme) e advertência, em imperfeição alguma, e chegar a um estado de liberdade e posse tão completa de si mesma, que possa reprimir as imperfeições assim que as perceba. Com advertência, digo; porque muitas vezes cairá de surpresa em imperfeições e faltas veniais, bem como nos apetites naturais de que falamos. Destes pecados, nos quais a vontade toma tão fraca parte, está escrito que o justo cairá sete vezes, e tornar-se-á a levantar (Prov 24, 16). Quanto aos apetites deliberados e voluntários, e pecados veniais de advertência, ainda sendo em coisa mínima, basta um só deles que não se vença, para impedir a união da alma com Deus. Refiro-me a um tal hábito não mortificado e não a alguns atos passageiros de apetites diferentes que não causam tanto prejuízo. Contudo, até mesmo esses últimos hão de ser vencidos, pois se originam de hábito de imperfeição. Quanto a certos hábitos de voluntárias imperfeições, dos quais a alma não consegue corrigir-se, não somente impedem a união com Deus, como detêm os progressos espirituais.
4. Estas imperfeições habituais são, costume de falar, muito apego a alguma coisa que jamais se acaba de querer vencer, seja a pessoa, vestido, livro ou cela; tal espécie de alimento; algumas coisinhas de gostos, conversações, querendo saber e ouvir notícias, e outros pontos semelhantes. Qualquer dessas imperfeições, a que tenha a alma apego ou hábito, se opõe mais ao adiantamento na virtude do que grande número de faltas, mesmo veniais e diárias, não procedentes de hábito ou mau costume. Porque enquanto houver apego a alguma coisa, por mínima seja, é escusado poder progredir a alma na perfeição. Pouco importa estar o pássaro amarrado por um fio grosso ou fino; desde que não se liberte, tão preso estará por um como por outro. Verdade é que quanto mais tênue for o fio, mais fácil será de se partir. Mas, por frágil que seja, o pássaro estará sempre retido por ele enquanto não o quebrar para alçar vôo. Assim sucede à alma cativa por afeição a qualquer coisa: jamais chegará a liberdade da união divina, por mais virtudes possua. Os apetites têm ainda, com relação à alma, a mesma propriedade que tem o peixe chamado rêmora em relação ao navio ao qual se agarra; não obstante o seu pequeno tamanho, detém o navio, como alguns dizem, na própria marcha, impedindo-o de chegar ao porto. É lamentável ver certas almas, semelhantes a navios ricamente carregados de boas obras, exercícios espirituais,virtudes e favores celestes, sem coragem para vencer completamente algum pequeno apego, ou afeição, ou gosto natural (que é tudo o mesmo), e, por este motivo, nunca vão adiante, nem chegam ao porto da perfeição; e apenas bastaria um esforço corajoso para quebrar completamente aquele fio de apego que a prende, ou arrancar aquela rêmora de apetite que a detém.
5. Depois de Deus lhes ter dado a graça de quebrar outros laços muito mais fortes, como os das afeições ao pecado e às vaidades do mundo, como é triste ver almas, que, por falta de generosidade em desapegar-se de uma ninharia, — um simples fio que o Senhor lhes deixa para romper por seu amor, — deixam de chegar a tão grande bem! O pior é que por aquele pequenino apego, não somente se atrasam, mas perdem o que tinham adquirido em tanto tempo e com tanto trabalho; pois ninguém ignora que, no caminho da perfeição, não ir adiante é recuar; e não ir ganhando é ir perdendo. Nosso Senhor quis dar-nos a entender esta doutrina quando disse: «Quem não é comigo é contra mim; e quem comigo não ajunta espalha» (Mt 12, 30). É bastante não vedar a menor fenda de um vaso para que todo o licor que ele encerra se derrame e perca. Quem desprezar as menores coisas cairá pouco a pouco nas maiores (Ecli 19, 1), diz o Eclesiástico. O mesmo livro nos ensina que basta uma centelha para dar início a um incêndio» (Ecli 11, 34) ; de modo idêntico, basta uma imperfeição para atrair outra, e outras ainda. Raramente haverá uma alma negligente em vencer um apetite que não tenha outros muitos que do primeiro se originam. E assim sempre vão caindo; temos encontrado, por várias vezes, pessoas a quem Deus concedera a graça de adiantar-se muito no caminho do desprendimento e da liberdade de espírito e que por conservarem a vontade presa em algum pequeno apego, sob pretexto de algum bem, conveniência ou amizade, daí vieram a perder gradualmente o espírito da santa solidão, o gosto das coisas de Deus, a alegria e a constância nos exercícios espirituais. Precipitaram-se, enfim, numa ruína total, devido a não se terem privado, desde o início, desse apetite ou desse gosto sensível, e de não haverem guardado ocoração unicamente para Deus.
6. Nesse caminho sempre se há de ir adiante para chegar ao fim, isto é, faz-se necessário repelir todos os desejos e nunca alimentá-los, pois se não se acaba de os reprimir, jamais se há de chegar. Porque assim como a lenha não se transformará em fogo se lhe faltar um único grau de calor, do mesmo modo a alma não se transformará perfeitamente em Deus, por uma única imperfeição que tenha, embora esta seja menos que um apetite voluntário. Pois — como mais tarde se dirá na noite da fé — a alma não possui mais que uma só vontade e, se a ocupa ou embaraça em algo, não fica livre, só e pura, como se requer para a transformação divina.
7. Disto temos figura no livro dos Juízes, onde está escrito que o Anjo veio censurar aos filhos de Israel por não terem exterminado completamente os seus inimigos, e, ao contrário, terem feito aliança com alguns dentre eles; por isso resolvia deixar a estes entre o povo eleito para que lhe fossem ocasião de quedas e perdição (Juiz 2, 3). Deus procede justamente assim com muitas almas. Tirou-as do mundo, matou os gigantes dos seus pecados, exterminou a multidão dos seus inimigos que são as ocasiões perigosas encontradas neste mundo, a fim de lhes facilitar o acesso à terra da Promissão da união divina. Mas, ao invés de responderem a tantos favores do Senhor, elas fazem amizade e aliança com a plebe das imperfeições, em lugar de exterminá-la sem piedade. À vista de tal ingratidão, Nosso Senhor se enfada, deixando-as cair nos seus apetites de mal a pior.
8. O livro de Josué nos oferece igualmente outro exemplo. No momento de tomar posse da terra prometida, o Senhor ordenou aos israelitas que destruíssem todos os seres vivos da cidade de Jerico, homens e mulheres, velhos e crianças, e também todos os animais. Ordenou-lhes ainda que não levassem despojos e nada cobiçassem (Jos 6, 21). Esta ordem nos ensina que, para entrar na divina união, devem morrer todos os afetos que vivem na alma, poucos ou muitos, pequenos ou grandes; e a alma deve estar tão desapegada deles como se não existissem para ela, nem ela para eles. S. Paulo, escrevendo aos coríntios, nos ensina a mesma coisa.
«Isto finalmente vos digo, irmãos: o tempo é breve; resta que os que têm mulheres sejam como se as não tivessem; os que choram, como se não chorassem; os que folgam, como se não folgassem; os que compram, como se não possuíssem; e os que usam deste mundo, como se dele não usassem ( 1Cor 7, 29-31 ). Estas palavras do Apóstolo nos mostram quão desprendida de todas as coisas deve estar nossa alma se quisermos ir a Deus.
CAPITULO XII - Resposta à segunda pergunta: que apetites são suficientes para causar à alma os danos de que falamos.
1. Poderíamos estender-nos longamente neste assunto da noite dos sentidos, pois teríamos muito que dizer sobre os prejuízos que os apetites trazem à alma, não somente pelas maneiras já explicadas, mas ainda sob muitos outros pontos de vista. Todavia, com relação ao fim que nos propomos, desenvolvemos suficientemente o assunto. O leitor deve ter compreendido, parece-me, por que denominamos noite a mortificação dos apetites, e quanto importa atravessar esta noite para ir a Deus. No entanto, poderia surgir uma dúvida sobre o que foi dito; vamos então responder, antes de tratar da maneira de penetrar na noite dos sentidos.
2. Pode-se perguntar, em primeiro lugar, se qualquer apetite é suficiente para produzir na alma as duas espécies de males, a saber: o privativo que consiste em privar a alma da graça de Deus, e o positivo que produz os cinco danos já referidos. Em segundo lugar, se um apetite qualquer, por mínimo seja, é suficiente para trazer à alma todos os cinco danos de uma só vez, ou então se cada um deles produz seu dano particular; por exemplo, um traz o tormento, outro a fadiga e um terceiro a cegueira, etc.
3. Respondendo à primeira pergunta: só os apetites voluntários que são matéria de pecado mortal podem operar, e na verdade operam de maneira total, este dano privativo, porque roubam à alma a graça nesta vida e na outra, a glória, que é a posse de Deus. À segunda pergunta respondo: cada apetite voluntário, não só em matéria de pecado mortal, mas também em matéria de pecado venial, ou ainda de faltas consideradas como simples imperfeições, é suficiente para causar de uma vez todos os danos positivos. Embora sob determinado ponto de vista, possam chamar-se privativos, nós os denominamos aqui positivos porque correspondem à conversão da alma para a criatura, como o privativo corresponde ao seu afastamento de Deus. Mas observemos a diferença: os apetites que levam a pecado mortal produzem cegueira completa, tormento, nódoa e fraqueza absolutas, etc. Mas os que não passam de pecado venial ou de imperfeições voluntárias não produzem estes danos em grau tão excessivo, pois não privam da graça; só os causam em parte e em grau menor, proporcionado à tibieza e ao relaxamento que introduzem na alma. Portanto, quanto maior a tibieza, mais aumentarão os tormentos, a cegueira e as manchas.
4. Deve-se notar: se cada apetite traz consigo todos os males que denominamos positivos, há alguns que causam diretamente certos danos, embora produzam, cie maneira indireta, todos os outros. Por exemplo: conquanto o apetite sensual cause todos os males reunidos, o seu efeito próprio e principal é manchar a alma e o corpo. O apetite de avareza os produz igualmente a todos, mas cria direta e especialmente a aflição. O apetite de vangloria igualmente os faz nascer a todos, mas causa principal e imediatamente as trevas e a cegueira. E se o apetite da gula gera todos os males, o seu principal resultado é trazer tibieza na virtude; e assim por diante.
5. Se todos esses efeitos reunidos redundam na alma em resultado de um ato qualquer de apetite voluntário, é pela sua oposição aos atos davirtude, que produzem na alma os efeitos contrários. Como a virtude produz suavidade, paz, consolação, luz, pureza e força, assim o apetite desordenado causa tormento, cansaço, fadiga, cegueira e fraqueza. E como a prática de uma só virtude aumenta e fortalece todas as outras, assim, sob a ação de um único vício, todos os vícios crescem, e multiplicam na alma as suas conseqüências. Sem dúvida, todos esses tristes resultados não se manifestam no momento em que se satisfaz o apetite, porque o gosto então sentido não permite percebê-los. A sua má influência, porém, se manifesta antes ou depois. Temos exemplo disso no Apocalipse, onde se narra que o Anjo mandou S. João comer aquele livro cujo sabor na boca lhe foi doce, e no ventre se lhe tornou amargo (Apoc 10, 9). Quem se abandona aos apetites sabe por experiência que, no princípio, a paixão parece doce e agradável e que, somente mais tarde, se produzem seus efeitos cheios de amargor. No entanto, não ignoro a existência de pessoas tão cegas e endurecidas que não lhes sintam os efeitos; pouco ciosas de se inclinarem para Deus, não percebem os obstáculos que dele as afastam.
6. Não trato aqui dos apetites irrefletidos da natureza, dos pensamentos que não passam de primeiro movimento ou das tentações não consentidas, porque tudo isso nenhum dos ditos males causa à alma. Embora a pessoa que por essas coisas passa julgue estar manchada e cega, por causa da perturbação e paixão que tais tentações lhe causam, não sucede deste modo: antes, lhe trazem os proveitos contrários. Ao resistir, adquire força, pureza, luz, consolação e outros muitos bens, segundo a palavra de Nosso Senhor a São Paulo: «A virtude se aperfeiçoa na enfermidade» (2 Cor 12, 9). Os apetites voluntários, porém, causam à alma todos os males de que já falamos e maiores ainda. Eis por que o principal cuidado dos mestres na vida espiritual deve ser mortificar logo a seus discípulos em qualquer apetite, ensinando-lhes a ficar na privação do que desejavam, a fim de os livrar de tanta miséria.
CAPÍTULO XIII - Trata do modo que há de ter a alma para entrar na noite do sentido.
1. Resta agora dar alguns avisos sobre a maneira de saber e poder entrar nesta noite do sentido. Para isto devemos observar que a alma, ordinariamente, entra nesta noite sensitiva de duas maneiras, ativa e passiva. Ao que pode fazer e faz por si mesma para entrar, denominamos noite ativa e dela trataremos nos avisos seguintes. Na passiva, a alma nada faz e limita-se a consentir livremente no trabalho de Deus, sob o qual se há como paciente. Será na Noite Escura, quando nos referirmos aos principiantes, que trataremos dela. E como ali, com o favor divino, darei muitos avisos aos principiantes, a respeito das numerosas imperfeições em que costumam cair neste caminho, não me estenderei agora sobre este assunto. Aliás, não é aqui o lugar próprio para esses conselhos; agora queremos somente explicar por que se chama noite esta passagem, em que consiste e quais as suas partes. Todavia, no receio de ser muito resumido e de prejudicar o progresso das almas, não lhes dando imediatamente alguns avisos, indicar-lhes-ei aqui um meio breve que as poderá iniciar na prática desta noite dos apetites. E, no fim de cada uma das outras duas partes desta noite, das quais tratarei mais tarde com o auxílio do Senhor, usarei o mesmo método.
2. Os avisos que se seguem, sobre o modo de vencer os apetites, embora poucos e breves, são tão proveitosos e eficazes quanto são compendiosos. Portanto, quem verdadeiramente quiser pô-los em prática, não sentirá falta de outros ensinamentos, porque nestes estão encerrados todos.
3. Primeiramente: tenha sempre a alma o desejo contínuo de imitar a Cristo em todas as coisas, conformando-se à sua vida que deve meditar para saber imitá-la, e agir em todas as circunstâncias como ele próprio agiria.
4. Em segundo lugar, para bem se haver nisto, se lhe for oferecida aos sentidos alguma coisa de agradável que não tenda exclusivamente para a honra e a glória de Deus, renuncie e prive-se dela pelo amor de Jesus Cristo, que, durante a vida, jamais teve outro gosto, nem outra coisa quis senão a fazer a vontade do Pai, a que chamava sua comida e manjar. Por exemplo: se acha satisfação em ouvir coisas em que a glória de Deus não está interessada, rejeite esta satisfação e mortifique a vontade de ouvir. Se tem prazer em olhar objetos que não a levam a Deus, afaste este prazer e desvie os olhos. Igualmente nas conversações e em qualquer outra circunstância, deve fazer o mesmo. Em uma palavra, proceda deste modo, na medida do possível, em todas as operações dos sentidos; no caso de não ser possível, basta que a vontade não queira gozar desses atos que lhe vão na alma. Desta maneira há de deixar logo mortificados e vazios de todo' o gosto, e como às escuras. E com este cuidado, em breve aproveitará muito.
5. Para mortificar e pacificar as quatro paixões naturais que são gozo, esperança, temor e dor, de cuja concórdia e harmonia nascem inumeráveis bens, trazendo à alma grande merecimento e muitas virtudes, o remédio universal é o seguinte:
6. Procure sempre inclinar-se não ao mais fácil, senão ao mais difícil. Não ao mais saboroso, senão ao mais insípido. Não ao mais agradável, senão ao mais desagradável. Não ao descanso, senão ao trabalho. Não ao consolo, mas à desolação. Não ao mais, senão ao menos. Não ao mais alto e precioso, senão ao mais baixo e desprezível. Não a querer algo, e sim, a nada querer. Não a andar buscando o melhor das coisas temporais, mas o pior; enfim, desejando entrar por amor de Cristo na total desnudez, vazio e pobreza de tudo quanto há no mundo.
7. Abrace de coração essas práticas, procurando acostumar a vontade a elas. Porque se de coração as exercitar, em pouco tempo achará nelas grande deleite e consolo, procedendo com ordem e discrição.
8. Basta observar fielmente essas máximas para entrar na noite sensitiva. Todavia, a fim de dar a esta doutrina maior desenvolvimento, proporemos outro gênero de exercício que ensina a mortificar a concupiscência (pleonexia, epithymia) da carne, a concupiscência (pleonexia,epithymia) dos olhos e a soberba da vida; são três coisas essas que, como afirma S. João, reinam no mundo, e das quais procedem todos os outros apetites desordenados.
9. O espiritual deve: 1 Agir em seu desprezo e desejar que os outros o desprezem. 2 Falar contra si e desejar que os outros também o façam. 3 Esforçar-se por conceber baixos sentimentos de sua própria pessoa e desejar que os outros pensem do mesmo modo.
10. Para conclusão destes conselhos e regras, convém aqui repetir aqueles versos escritos na Subida do Monte que figura no princípio deste livro, os quais contêm doutrina para subir a ele, isto é, para atingir o cume da união divina. Embora visem a parte espiritual e interior da alma, aplicam-se também ao espírito imperfeito conforme o sensível e exterior, como se vê nas duas veredas que estão aos lados da senda estreita de perfeição. É neste último sentido que os tomaremos aqui; mais tarde, quando tratarmos da noite do espírito, aplicá-los-emos à parte espiritual.
11. Dizem assim:
1. Para chegares a saborear tudo,
Não queiras ter gosto em coisa alguma.
2. Para chegares a possuir tudo, Não queiras possuir coisa alguma.
3. Para chegares a ser tudo, Não queiras ser coisa alguma.
4. Para chegares a saber tudo, Não queiras saber coisa alguma.
5. Para chegares ao que não gostas, Hás de ir por onde não gostas.
6. Para chegares ao que não sabes, Hás de ir por onde não sabes.
7. Para vires ao que não possuis, Hás de ir por onde não possuis.
8. Para chegares ao que não és, Hás de ir por onde não és.
12. Modo de não impedir o tudo
1. Quando reparas em alguma coisa, Deixas de arrojar-te ao tudo.
2. Porque para vir de todo ao tudo, Hás de negar-te de todo em tudo.
3. E quando vieres a tudo ter, Hás de tê-lo sem nada querer.
4. Porque se queres ter alguma coisa em tudo, Não tens puramente em Deus teu tesouro.
13. Nesta desnudez acha o espírito sua quietação e descanso, pois nada cobiçando, nada o fatiga para cima e nada o oprime para baixo, por estar no centro de sua humildade. Porque quando alguma coisa cobiça, nisto mesmo se cansa e atormenta.
CAPÍTULO XIV - Explicação do segundo verso da primeira canção.
DE AMOR EM VIVAS ÂNSIAS INFLAMADA
1. Já comentamos o primeiro verso dessa canção que trata da noite sensitiva, demos a entender a natureza desta noite e por que lhe damos este nome; indicamos igualmente o modo e a ordem a ser observada para que a alma nela possa entrar ativamente. Vem a propósito, agora, tratar das suas propriedades e dos seus admiráveis efeitos, expressos nos seguintes versos da dita canção. Falarei deles brevemente, como prometi no Prólogo. Passarei, a seguir, ao segundo livro, que se ocupa da segunda parte desta noite, a saber, da espiritual.
2. A alma diz que, «de amor em vivas ânsias inflamada», atravessou a noite escura dos sentidos para chegar à união com o Amado. De fato, para vencer todos os apetites e se privar cios gostos de todas as coisas em cujo amor e afeto costuma a vontade se inflamar para delas gozar, era mister outro maior incêndio de mais excelente amor, que é o de seu Esposo; a fim de que, concentrando neste amor toda a sua força e alegria, pudesse achar valor e constância para facilmente desprezar tudo o mais. Entretanto, para vencer a violência dos apetites sensíveis, não bastaria apenas ser cativa do amor do Esposo: ainda necessitava estar inflamada nesse amor em vivas ânsias. Sendo, como é, a parte sensitiva do homem atraída e arrastada para as coisas sensíveis pelas fortes ânsias do apetite, se não estivesse a parte espiritual inflamada, de outro lado, por ânsias muito mais vivas dos bens espirituais, seria a alma impotente para libertar-se do jugo da natureza e entrar assim na noite dos sentidos; e não teria coragem para ficar às escuras em relação a todas as coisas, mortificando-se no apetite de todas elas.
3. Explicar a variedade e o modo dessas ânsias de amor que as almas têm na entrada da via de união, seus esforços e diligências para sair da sua morada, que é a própria vontade, na noite da mortificação dos sentidos, e declarar como estas veementes ânsias do Esposo lhes fazem parecer fáceis, e até doces e saborosos os trabalhos e perigos desta noite, não é coisa para se dizer aqui, nem é possível exprimir como seja. Bem melhor é experimentar e considerar do que escrever. E assim passaremos a explicar os outros versos no capítulo seguinte.
CAPÍTULO XV - Explicação dos outros versos da mesma canção.
Oh! ditosa ventura!
Saí sem ser notada
Já minha casa estando sossegada.
1. A alma, para expressar-se, toma por metáfora o miserável estado do cativeiro; quem dele consegue escapar sem estorvo de nenhum dos carcereiros tem por «ditosa ventura» a sua libertação. Porque a alma, depois do pecado original, está verdadeiramente como cativa neste corpode morte, sujeita às paixões e apetites naturais; eis a razão de considerar «ditosa ventura» o «haver saído sem ser notada», fugindo ao m cerco e sujeição dos mesmos, isto é, sem que eles a tenham podido impedir ou deter.
2. Para isto lhe foi proveitoso sair «na noite escura», que é a privação de todos os gostos e a mortificação de todos os apetites, do modo já indicado. Esta saída se efetua «já sua casa estando sossegada», ou, em outros termos, quando a parte sensitiva, que é a casa de todos os apetites, está em repouso, pelo adormecimento e pela vitória alcançada sobre eles. Porque enquanto os apetites não se aquietam pela mortificação da parte sensitiva, ficando esta sossegada quanto á a eles, de modo que nenhuma guerra façam ao espírito, a alma não pode sair à verdadeira liberdade para gozar da união com seu Amado.
FIM DO PRIMEIRO LIVRO
Observações
Para Edith Stein o entendimento da mensagem do santo reside na compreensão do próprio nome pelo qual ficou conhecido João de Yepes na tradição cristã: São João DA CRUZ. A "mensagem da cruz" é o capítulo inicial de sua obra que minuciosamente estuda a obra do santo e assim progride, para uma reflexão profunda sobre "a doutrina da cruz", finalizando seu livro pela "aceitação da cruz", capítulo inacabado devido a sua morte nos campos de concentração.
Assim podemos tomar como ponto de partida dos termos-chaves as referências ao termo "contemplação" na Subida do Monte Carmelo, já que esta relação de termos significativos nos exige um justa contemplação.
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