INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA REGRA DE SANTO ALBERTO
( Regra do Carmelo )
Por ocasião do 8º Centenário da mesma.
"Por
que uma Regra? E por que Regra ainda hoje?"
1º
Ponto -
Por que uma Regra?
"Antes de se tratar da Regra de
Santo Alberto ou de qualquer outra, é bem adequado responder a perguntas como
essas. Para se compreender isto, temos que nos transferir aos inícios do
cristianismo e estudarmos um pouco as situações vividas nas comunidades
eclesiais e pelos cristãos individualmente com respeito ao conhecimento e ao
manuseio dos Livros Sagrados do Novo e do Antigo Testamento. Temos que
considerar que a Bíblia não estava compilada ainda da forma como ela se
apresenta hoje. A própria redação dos livros do Novo Testamento não se fez de
uma só vez. A mensagem evangélica, originalmente, era passada de viva voz nas
reuniões litúrgicas e de pessoa a pessoa. Só depois de certo tempo é que
circularam alguns escritos, uns vinte e mais anos depois da morte e
ressurreição de Cristo. A constituição do elenco dos livros do Novo Testamento
se fez aos poucos. E tinham que ser reconhecidos como inspirados pelas
comunidades. As línguas em que estavam escritos não eram de acesso geral. Não
havia cópias disponíveis aos indivíduos para uso pessoal, e as que havia
custavam caro pela tecnologia existente à época (estava-se muito longe ainda
sequer da “imprensa” de gravação de textos fixos, e mais ainda da imprensa com
tipos móveis de Guttenberg, no século 15). Tudo dificultava o amplo acesso ao
conteúdo da Revelação. Usava-se o grego nos textos do Novo Testamento que, além
do latim, era a língua mais falada no Império Romano. Na periferia do Império,
e aos povos conquistados ou absorvidos nele, os romanos ensinavam sua língua, o
latim. A esses povos o grego bíblico se constituía como um impedimento. O Papa
Dâmaso, em 382, ordenou ao presbítero São Jerônimo que fizesse uma compilação
de todos os textos bíblicos do Antigo e do Novo Testamento e sua versão para o
latim falado pelo povo. O trabalho só foi concluído pelo ano de 405. A Bíblia traduzida por
São Jerônimo será apelidada mais tarde de "Vulgata", exatamente pelo
esforço de oferecer um texto latino mais compreensível ao povo de Deus.
Diante de todas as dificuldades
apontadas já se percebe as dificuldades de acesso aos textos da Sagrada
Escritura. Acrescente-se a mais: a grande dispersão das comunidades cristãs
pelo Império Romano; as distâncias enormes entre as comunidades; os meios de
transporte e comunicação bastante precários, o que dificultavam grandemente a
existência de um controle centralizado da Igreja; as repetidas perseguições aos
cristãos; a decadência advinda à Igreja depois do seu reconhecimento oficial e
com as invasões bárbaras, etc. A reação em busca de uma maior autenticidade da
vida cristã surgiu com o monasticismo. Se antes disto os autores cristãos
usavam esparsamente os textos bíblicos de que dispunham e com os mesmos
argumentavam em suas obras, os primeiros monges necessitavam dos mesmos para
compor sínteses deles para facilitar aos que não podiam manuseá-los a
organizarem suas formas de vida religiosa, dando origem assim às
"regras". No Oriente, as regras de S. Pacômio (cerca do ano de 330),
e a de São Basílio, igualmente do século 4º (cerca de 340).
No Ocidente, a primeira regra foi a de Santo
Agostinho, por volta de 391.
A de São Bento, no século 6º. A de Santo Alberto (Regra
dos Carmelitas), entre 1207 e 1214.
A de São Francisco, aprovada oralmente pelo Papa
Inocêncio 3º, em 1210; e por Bula do Papa Honório 3º, em 1223.
Já em 1215, o 4º Concílio de Latrão estabelece
uma proibição de novas Regras e novas Ordens religiosas. Os franciscanos se
valem da aprovação oral anterior de sua regra. Os carmelitas, da carta de Santo
Alberto, anterior a 1215. Já os dominicanos acolhem para viver a Regra de Santo
Agostinho.
Mas, voltemos à questão inicial, por
que uma Regra? Resumindo todos os detalhes já explicados, pode-se trazer, além
do contexto aduzido, outros elementos de ordem prática, a saber: é algo muito
prático, textos curtos, seguros, fáceis de memorizar, indicam um caminho
provado de santificação pessoal, se constituem como uma referência direta para
avaliação individual e comunitária. Seus conteúdos apresentam, por assim dizer,
uma súmula do Evangelho, dos Atos dos Apóstolos, das epístolas dos apóstolos,
principalmente das de São Paulo. Conteúdo, portanto, bíblico. Algumas Regras,
como a de São Bento, com larga citação do Antigo Testamento, particularmente,
dos Salmos e dos Livros Sapienciais. Ainda, seus apelos e motivações são
dirigidos pessoalmente ao leitor e lhe são propostos quadros de vida e normas
de conduta.
2º
Ponto -
Por que Regra, ainda hoje?
Está certo que além das restrições
instrumentais, técnicas, históricas ao uso da Sagrada Escritura, outras
restrições também foram criadas na Igreja Católica no correr dos séculos,
"justificadas" por receios de interpretações errôneas individuais ou
grupais que levassem a uma desagregação eclesial; por cuidados morais,
considerando o despreparo do povo de compreender certos comportamentos humanos em
textos descritivos da história de Israel, comportamentos esses nem sempre de
conformidade com os desígnios divinos de salvação, etc. Também a questão da
língua em que os textos circulavam: nem todos a conheciam e, muitas vezes,
muitos cristãos, embora capazes de se comunicarem nessa língua, não eram
igualmente capazes de a lerem. Já a partir do século 4º os povos romanizados
não falavam o latim clássico e também não o grego falado em Roma.
Mesmo o latim da "Vulgata"
nem era assim tão entendido pelo povo, mais pelos letrados. E com o correr dos
séculos, mais e mais os povos se distanciavam do latim, emergindo os dialetos,
berçários das línguas neolatinas. Alguns exemplos podem nos fazer compreender
essa realidade quando nove séculos mais tarde nem esse latim vulgar era mais
entendido. Assim, São Francisco, no século 13, por não entender os ritos
sacramentais e a Santa Missa, recorria a pessoas doutas que os explicassem. Nem
sequer todos os padres o entendiam. Santa Teresa d'Ávila no século 16, também
não era versada em latim, apesar de ter que passar horas e horas no coro
rezando os Ofícios em
latim. Seu pai, homem fidalgo e rico, dispunha em sua
biblioteca um exemplar dos Evangelhos traduzidos em Espanhol. Nesse período,
também foi publicado na Espanha a Bíblia numa tradução poliglota. Não seria
difícil a seu pai ter tido acesso a tal aquisição, mas não se pode afirmar por
falta de prova documental. Após sua morte, muito provavelmente Teresa -
inventariante - já religiosa, o reteve consigo para seu uso,
além de outros livros, como os “Comentários de São Jerônimo sobre o livro de
Jó” e outros livros de espiritualidade. Depois, vários desses livros lhe foram tirados
pela Inquisição. Nesse tempo, então, já havia Guttemberg inventado a imprensa
(1456) e publicado várias edições da Sagrada Escritura, mas em latim. Mesmo assim,
eram obras muito caras e de tiragens reduzidas, para poucos.
Lamentavelmente, só com a ruptura
causada pelo cisma luterano, no século 16, o Reformador realiza uma tradução da
Bíblia para a língua alemã.
No âmbito católico, tudo continuava
aproximadamente como nos séculos anteriores, com a versão latina da
"Vulgata" autenticada pelo Concílio de Trento e com todas as
restrições antes aqui assinaladas, até os albores do século 20. Com os estudos bíblicos
e de arqueologia bíblica desenvolvidos dentro do protestantismo, outros
estudiosos católicos se movimentaram igualmente criando grupos de
pesquisadores, escolas de estudo bíblico e um movimento para pôr a Bíblia na
ordem do dia com as traduções que foram surgindo. Esse movimento bíblico
católico vai desembocar no Concílio Vaticano 2º (1962-1965), que não apenas
ratifica todo esse esforço para pôr a Bíblia nas mãos e no dia a dia do povo
católico (cf. Dei Verbum) como aprova
a utilização do vernáculo em todos os atos litúrgicos, sobretudo na Santa
Missa. Assim, chega cada vez mais próximo do povo a Palavra de Deus contida na
Sagrada Escritura. A partir daí, crescem os cursos de introdução à Bíblia,
multiplicam-se os círculos de reflexão a partir da Bíblia, mais e mais o povo
bebe diretamente da fonte da Palavra de Deus a orientação para a sua vida. A
Bíblia se faz regra de vida para os católicos.
Cabe, então, novamente se trazer a
pergunta que ensejou todo este desenvolvimento, a saber: ainda hoje, uma Regra
é necessária? Ao que se pode responder assim: se não de todo necessária -
porque afinal os Evangelhos estão aí nas mãos do povo cristão a indicar
o caminho do seguimento de Jesus Cristo (PC 2a)
- mas, sem dúvida alguma uma
Regra ajuda muito quando representa uma modalidade pedagógica de expressar uma
determinada espiritualidade de um grupo eclesial que a vivenciou; se constitui
como um referencial básico, breve e simples de conferir; e, quando vivida em
comunidade, declara uma concordância e estimula sua prática por consenso
espiritual fraterno."
*
Palestra de improviso feita por
Gustavo Castro no Carmelo de Camaragibe, PE, em 4 de agosto de 2007.
e-mail: gustavo-passo@hotmail.com
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