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sexta-feira, 13 de maio de 2016

INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA REGRA DE SANTO ALBERTO
( Regra do Carmelo )
Por ocasião do 8º Centenário da mesma.


            "Por que uma Regra? E por que Regra ainda hoje?"

1º Ponto  -  Por que uma Regra?
            "Antes de se tratar da Regra de Santo Alberto ou de qualquer outra, é bem adequado responder a perguntas como essas. Para se compreender isto, temos que nos transferir aos inícios do cristianismo e estudarmos um pouco as situações vividas nas comunidades eclesiais e pelos cristãos individualmente com respeito ao conhecimento e ao manuseio dos Livros Sagrados do Novo e do Antigo Testamento. Temos que considerar que a Bíblia não estava compilada ainda da forma como ela se apresenta hoje. A própria redação dos livros do Novo Testamento não se fez de uma só vez. A mensagem evangélica, originalmente, era passada de viva voz nas reuniões litúrgicas e de pessoa a pessoa. Só depois de certo tempo é que circularam alguns escritos, uns vinte e mais anos depois da morte e ressurreição de Cristo. A constituição do elenco dos livros do Novo Testamento se fez aos poucos. E tinham que ser reconhecidos como inspirados pelas comunidades. As línguas em que estavam escritos não eram de acesso geral. Não havia cópias disponíveis aos indivíduos para uso pessoal, e as que havia custavam caro pela tecnologia existente à época (estava-se muito longe ainda sequer da “imprensa” de gravação de textos fixos, e mais ainda da imprensa com tipos móveis de Guttenberg, no século 15). Tudo dificultava o amplo acesso ao conteúdo da Revelação. Usava-se o grego nos textos do Novo Testamento que, além do latim, era a língua mais falada no Império Romano. Na periferia do Império, e aos povos conquistados ou absorvidos nele, os romanos ensinavam sua língua, o latim. A esses povos o grego bíblico se constituía como um impedimento. O Papa Dâmaso, em 382, ordenou ao presbítero São Jerônimo que fizesse uma compilação de todos os textos bíblicos do Antigo e do Novo Testamento e sua versão para o latim falado pelo povo. O trabalho só foi concluído pelo ano de 405. A Bíblia traduzida por São Jerônimo será apelidada mais tarde de "Vulgata", exatamente pelo esforço de oferecer um texto latino mais compreensível ao povo de Deus.
            Diante de todas as dificuldades apontadas já se percebe as dificuldades de acesso aos textos da Sagrada Escritura. Acrescente-se a mais: a grande dispersão das comunidades cristãs pelo Império Romano; as distâncias enormes entre as comunidades; os meios de transporte e comunicação bastante precários, o que dificultavam grandemente a existência de um controle centralizado da Igreja; as repetidas perseguições aos cristãos; a decadência advinda à Igreja depois do seu reconhecimento oficial e com as invasões bárbaras, etc. A reação em busca de uma maior autenticidade da vida cristã surgiu com o monasticismo. Se antes disto os autores cristãos usavam esparsamente os textos bíblicos de que dispunham e com os mesmos argumentavam em suas obras, os primeiros monges necessitavam dos mesmos para compor sínteses deles para facilitar aos que não podiam manuseá-los a organizarem suas formas de vida religiosa, dando origem assim às "regras". No Oriente, as regras de S. Pacômio (cerca do ano de 330), e a de São Basílio, igualmente do século 4º (cerca de 340).
No Ocidente, a primeira regra foi a de Santo Agostinho, por volta de 391. A de São Bento, no século 6º. A de Santo Alberto (Regra dos Carmelitas), entre 1207 e 1214. A de São Francisco, aprovada oralmente pelo Papa Inocêncio 3º, em 1210; e por Bula do Papa Honório 3º, em 1223.
            Já em 1215, o 4º Concílio de Latrão estabelece uma proibição de novas Regras e novas Ordens religiosas. Os franciscanos se valem da aprovação oral anterior de sua regra. Os carmelitas, da carta de Santo Alberto, anterior a 1215. Já os dominicanos acolhem para viver a Regra de Santo Agostinho.
            Mas, voltemos à questão inicial, por que uma Regra? Resumindo todos os detalhes já explicados, pode-se trazer, além do contexto aduzido, outros elementos de ordem prática, a saber: é algo muito prático, textos curtos, seguros, fáceis de memorizar, indicam um caminho provado de santificação pessoal, se constituem como uma referência direta para avaliação individual e comunitária. Seus conteúdos apresentam, por assim dizer, uma súmula do Evangelho, dos Atos dos Apóstolos, das epístolas dos apóstolos, principalmente das de São Paulo. Conteúdo, portanto, bíblico. Algumas Regras, como a de São Bento, com larga citação do Antigo Testamento, particularmente, dos Salmos e dos Livros Sapienciais. Ainda, seus apelos e motivações são dirigidos pessoalmente ao leitor e lhe são propostos quadros de vida e normas de conduta.

2º Ponto  -  Por que Regra, ainda hoje?
            Está certo que além das restrições instrumentais, técnicas, históricas ao uso da Sagrada Escritura, outras restrições também foram criadas na Igreja Católica no correr dos séculos, "justificadas" por receios de interpretações errôneas individuais ou grupais que levassem a uma desagregação eclesial; por cuidados morais, considerando o despreparo do povo de compreender certos comportamentos humanos em textos descritivos da história de Israel, comportamentos esses nem sempre de conformidade com os desígnios divinos de salvação, etc. Também a questão da língua em que os textos circulavam: nem todos a conheciam e, muitas vezes, muitos cristãos, embora capazes de se comunicarem nessa língua, não eram igualmente capazes de a lerem. Já a partir do século 4º os povos romanizados não falavam o latim clássico e também não o grego falado em Roma.
            Mesmo o latim da "Vulgata" nem era assim tão entendido pelo povo, mais pelos letrados. E com o correr dos séculos, mais e mais os povos se distanciavam do latim, emergindo os dialetos, berçários das línguas neolatinas. Alguns exemplos podem nos fazer compreender essa realidade quando nove séculos mais tarde nem esse latim vulgar era mais entendido. Assim, São Francisco, no século 13, por não entender os ritos sacramentais e a Santa Missa, recorria a pessoas doutas que os explicassem. Nem sequer todos os padres o entendiam. Santa Teresa d'Ávila no século 16, também não era versada em latim, apesar de ter que passar horas e horas no coro rezando os Ofícios em latim. Seu pai, homem fidalgo e rico, dispunha em sua biblioteca um exemplar dos Evangelhos traduzidos em Espanhol. Nesse período, também foi publicado na Espanha a Bíblia numa tradução poliglota. Não seria difícil a seu pai ter tido acesso a tal aquisição, mas não se pode afirmar por falta de prova documental. Após sua morte, muito provavelmente Teresa  -  inventariante  -  já religiosa, o reteve consigo para seu uso, além de outros livros, como os “Comentários de São Jerônimo sobre o livro de Jó” e outros livros de espiritualidade. Depois, vários desses livros lhe foram tirados pela Inquisição. Nesse tempo, então, já havia Guttemberg inventado a imprensa (1456) e publicado várias edições da Sagrada Escritura, mas em latim. Mesmo assim, eram obras muito caras e de tiragens reduzidas, para poucos.
            Lamentavelmente, só com a ruptura causada pelo cisma luterano, no século 16, o Reformador realiza uma tradução da Bíblia para a língua alemã.
            No âmbito católico, tudo continuava aproximadamente como nos séculos anteriores, com a versão latina da "Vulgata" autenticada pelo Concílio de Trento e com todas as restrições antes aqui assinaladas, até os albores do século 20. Com os estudos bíblicos e de arqueologia bíblica desenvolvidos dentro do protestantismo, outros estudiosos católicos se movimentaram igualmente criando grupos de pesquisadores, escolas de estudo bíblico e um movimento para pôr a Bíblia na ordem do dia com as traduções que foram surgindo. Esse movimento bíblico católico vai desembocar no Concílio Vaticano 2º (1962-1965), que não apenas ratifica todo esse esforço para pôr a Bíblia nas mãos e no dia a dia do povo católico (cf. Dei Verbum) como aprova a utilização do vernáculo em todos os atos litúrgicos, sobretudo na Santa Missa. Assim, chega cada vez mais próximo do povo a Palavra de Deus contida na Sagrada Escritura. A partir daí, crescem os cursos de introdução à Bíblia, multiplicam-se os círculos de reflexão a partir da Bíblia, mais e mais o povo bebe diretamente da fonte da Palavra de Deus a orientação para a sua vida. A Bíblia se faz regra de vida para os católicos.
            Cabe, então, novamente se trazer a pergunta que ensejou todo este desenvolvimento, a saber: ainda hoje, uma Regra é necessária? Ao que se pode responder assim: se não de todo necessária  -  porque afinal os Evangelhos estão aí nas mãos do povo cristão a indicar o caminho do seguimento de Jesus Cristo (PC 2a)  -  mas, sem dúvida alguma uma Regra ajuda muito quando representa uma modalidade pedagógica de expressar uma determinada espiritualidade de um grupo eclesial que a vivenciou; se constitui como um referencial básico, breve e simples de conferir; e, quando vivida em comunidade, declara uma concordância e estimula sua prática por consenso espiritual fraterno."

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Palestra de improviso feita por Gustavo Castro no Carmelo de Camaragibe, PE, em 4 de agosto de 2007.


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