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segunda-feira, 2 de março de 2009

II- "VOSSO CULTO ESPIRITUAL"

 


- "VOSSO CULTO ESPIRITUAL"



S. Paulo escreveu aos cristãos de Roma exortando-os, como fez com todas as igrejas, a praticar o ascetismo. Isto lhes era necessário, para que vivessem a sua vocação. A renúncia a si mesmo é a característica dos que seguem a Cristo, porque o sinal do cristão é o sinal da cruz. Incorporados a Cristo pelo batismo, devemos crescer em boas obras, cujo princípio é o Espírito, o Espírito de nossa adoção como filhos de Deus. "Os que são impelidos pelo Espírito de Deus, diz S. Paulo, são filhos de Deus. Se viveis conforme a carne, morrereis. Mas se pelo Espírito mortificais os atos da carne, vivereis" E assim acrescenta o Apóstolo : "Exorto-vos, irmãos, a oferecer vossos corpos como um sacrifício vivo, santo, agradável a Deus, vosso culto espiritual".

Que significa este sacrifício dos nossos corpos a Deus? Os cristãos não se atiram dentro de vulcões, como os Aztecas. Que sacrifício este? S.Tomás de Aquino esclareceu a teologia de S. Paulo. Podemos sacrificar nossos corpos a Deus aceitando o martírio, isto é, uma morte violenta infligida por causa da . Podemos sacrificar o corpo a Deus também pelo jejum, a abstinência e outras obras ascéticas. Mas não podemos, a título de renúncia, destruir inconsideradamente a saúde do corpo. Isso nos incapacitaria para o terceiro modo de sacrificar nossos corpos a Deus, isto é, em boas obras e no culto. S. Tomás discute as qualidades deste sacrifício, que deve ser guiado pela  e a pura intenção, constituindo, sobretudo, um "culto espiritual".

A razão traz consigo a decência e a ordem. S. Tomás cita outro princípio de S. Paulo: "Tudo se faça entre vós com decência e ordem". A nossaascese torna-se espiritual, ordenada e decente, quando as ações exteriores se ordenam às virtudes interiores e todas juntas se dirigem ao crescimento da vida sobrenatural de esperança e caridade, nas almas. Os atos exteriores de mortificação e oração são meios para um fim espiritual, e não fins em si mesmos. Ora, o uso racional dos meios que levam a certo fim exige neles proporção ao fim. Como bem observa S. Tomás, com equilíbrio e bom senso aristotélico, "um médico tenta dar ao paciente a saúde que pode, mas não todos os remédios que conhece: porque ele só prescreve o remédio de que o doente parece precisar para a cura". Um homem que toma remédio não por estar doente mas por um "complexo de compulsão" pelo remédio, é um hipocondríaco. Há também hipocondríacos espirituais que tomam remédios desnecessários e ao mesmo tempo deixam de aceitar as penitências que realmente lhes fariam bem, as únicas que exigem disciplina da sua vontade e razão. A verdadeira medida da ascese, diz S. Tomás, é a caridade. A renúncia só é a marca do cristão por ser a predisposição negativa para a caridadeque é a única a nos dar a conhecer se pertencemos ou não ao Cristo. Se temos de renegar-nos a nós mesmos, é que, na prática, o amor que concentramos em nós é um amor roubado a Deus e aos outros homens. O amor só vive pela doação. Quando furta e é furtado, ele morre, porque deixa de ser livre.

S. João da Cruz repete o ensino de S. Paulo e S. Tomás, em outro capítulo da Noite Escura da Alma, onde descreve aquela gula pela penitência exterior, que ele considera uma imperfeição de "principiantes". Chega mesmo a dizer que esta forma de ascetismo "não é" melhor do que a penitência dos animais".

Este termo aparentemente humilhante tem para S. João um sentido preciso. Que "animais"? Lembremo-nos da distinção paulina entre o "homem animal" (animalis homo) que não entende as coisa de Deus" e o "homem espiritual que julga de todas as coisas". Eis a exegese que S. João faz do texto: "Por homem animal entende-se quem só usa dos sentidos: por espiritual, o que não é preso nem guiado por eles". É a interpretação tradicional da passagem.

Avidez por mortificações exteriores é uma sorte de sensualidade às avessas. Leva o penitente a punir sua carne pelo prazer destes exercícios. Seria, entretanto, ignorância da psicologia religiosa rotular de "masoquismo" todas estas manifestações de entusiasmo religioso. Devem-se distinguir cuidadosamente os excessos de uma alma psicologicamente sadia e as aberrações de um neurótico. S. João não fala duma doença, mental, mas de uma imperfeição espiritual. É preciso dizer imediatamente que ninguém de saúde acha prazer no sofrimento como tal. Um amor mórbido pelo sofrimento em si mesmo é sinal de neurose. O santo fala não de neuróticos mas de atletas. O prazer que esses homens tiram de seus jejuns e penitências não lhes vem da pena que inflingem ao corpo, mas do sentimento de fazerem coisas objetivamente penosas, sem, no entanto, sofrerem tanto quanto se poderia esperar. É mais a deliciosa experiência de ter superado a dôr pela coragem e a força moral. Longe de ser neurótico, este instinto natural é muito sadio. É bom para o homem tirar deleite da sua força. Se a maioria dos homens não sentisse prazerem vencer os obstáculos, seria tão deprimente atacá-los, que provavelmente desistiriam de enfrentá-los. Apesar disso, a maior fortaleza é aquela em que vencemos os obstáculos sem nenhum sentimento de satisfação. O homem mais bravo não é o que não sente medo, mas o que o supera e assim pode avançar friamente em presença do terror.

Mas se é sadio o deleite proveniente de força moral, o seu abuso é uma imperfeição moral. A finalidade da mortificação é libertar o espírito para torná-lo plástico nas mãos de Deus. Quem concede excessiva atenção aos exercícios penitenciais por eles mesmos, acaba preocupado só consigo. Ao invés de sair de si mesmo, aprisiona o espírito no labirinto da vontade própria e da ilusão.

Ora, o segredo do desprendimento consiste, como vimos, em agir sem ceder aos impulsos da fantasia, ao bel-prazer, seguindo a razão iluminada pela , seja ou não seja do nosso gosto o caminho que ela nos traça. Para os membros das ordens religiosas o caminho é o da obediência.

Eis como explica S. João a imperfeição a que dá o nome de "gula espiritual". Primeiro, qual é a essência desta desordem? Ela consiste em seguir a atração "da doçura e do prazer que encontram nos exercícios (penitenciais) e procurar mais a suavidade espiritual do que a pureza e adiscreção espirituais, que é o que Deus olha e aceita na jornada espiritual"

O leitor precisa de ser posto ao par das explicações que a palavra "discreção", tem na ascética cristã.

"Além das imperfeições em que essa procura de suavidade os faz cair, a sua gula espiritual impele-os a ir cada vez mais longe, e assim excedem os limites da moderação dentro dos quais se adquirem as virtudes e em que elas consistem. Pois algumas das pessoas, atraídas pelo prazer que nisso encontram, matam-se com penitências e outras se enfraquecem com jejuns, fazendo mais do que a sua fraqueza pode suportar, sem o conselho de alguém, tratando mesmo de evitar aqueles aos quais deviam obedecer nesses assuntos. Alguns até ousam fazer as coisas apesar de lhes ter sido mandado o contrário".

A situação é daquelas que quem já viveu num mosteiro fervoroso reconhecerá facilmente. Deve-se, aliás, dizer que é melhor que os monges sejam animados a fazer mais do que podem. A paixão que leva os homens a assumir coisas duras e aparentemente heróicas, fornece boa matéria prima para a santidade. Com boa direção, é possível fazer alguma coisa de tais homens. Mas que fazer com gente que já decidiu de antemão que todo obstáculo é insuperável? Eles transformam os mosteiros em hospitais, e seus diretores espirituais devem ficar contentes se conseguem levá-los a guardar os jejuns da Igreja e a dizer as suas orações de obrigação. Voltando a S. João e a seus atletas espirituais, vemos o místico carmelita demonstrar mais uma vez claramente o papel da razão como pedra angular da sua ascética:

"Estas pessoas são mais imperfeitas e faltas de razão, pois elas colocam a penitência corporal acima da submissão e da obediência, que é a penitência da razão e discreção, e por isto um sacrifício mais agradável a Deus do que qualquer outro. (Seu apego à penitência corporal) não é mais do que a penitência dos animais, à qual são atraídas, exatamente como os animais, pelo prazer e o desejo que aí encontram. Desde que todos os extremos são pecaminosos e que, assim procedendo estão fazendo a sua própria vontade, essas pessoas crescem no vício e não navirtude."

É significativo que boa parte da linguagem mais forte usada por S. João é dirigida contra homens que desafiam a razão com um desordenado amor de penitência corporal. Mas o que há de mais importante sobre este parágrafo da "Noite Escura" é que ele estabelece' o princípio fundamental a que já aludimos, critério da verdadeira discreção.

O progresso ou a morte da vida espiritual depende cia clareza com que se vêm e julgam os motivos dos atos morais. Usando um termo canonizado pela tradição ascética, o primeiro passo para a santidade é o conhecimento (gnosis) de si mesmo. A função da razão é julgar desses motivos, sondar a pureza de intenção e avaliar os objetos do desejo e todas as circunstâncias que acompanham a nossa atividade moral. Mas esta obra da razão é dificultada pelo hábito de agir por movimentos instintivos da paixão e do desejo.

Ora, os impulsos de desejo que apresentam o maior problema na vida ascética não são aqueles que tendem ao mal. Pelo contrário, a mais importante tarefa da razão, na vida espiritual, é desmascarar os impulsos desordenados que parecem à primeira vista espirituais e tendentes ao bem mais alto. A razão do malogro de muitos homens piedosos é que eles praticam o mal para a glória de Deus.

A aparente crueldade de S. João da Cruz consiste em que ele dirige a implacável luz de sua inteligência purificada sobre objetos e desejos que dão a impressão de pertencer à própria essência da santidade. E ele os condena a todos. Não que sejam todos maus. Mas o simples fato de não serem assás bons significa que não são dignos do nosso desejo. Devemos deixá-los. O asceta renuncia não só a coisas boas do mundo, mas até a alguns dos mais elevados dons de Deus. Não que se deva formalmente recusar um dom de Deus. Devemos, porém, ter o cuidado de receber de tal modo as suas dádivas extraordinárias, que o nosso desejo se concentre no Doador e não no presente.

Mas os prazeres da vida interior são tão grandes e puros, acham-se tão acima das cruas alegrias dos sentidos, que exercem terrível atração sobre as almas. A lembrança que deixam e a esperança da sua recaptura comovem o homem em suas profundezas e quase o rompem dedesejo. Ele será capaz de realizar as façanhas mais árduas, se espera que isso lhe devolva dois dedos da alegria que um dia saboreou no que lhe pareceu ser uma visão de Deus. Mas S. João da Cruz lhe dirá que esses impulsos devem ser degolados com a espada da razão, e que o caminho de Deus é um caminho de renúncia, sem refrigério nem prazer, onde não se procura a luz mas a , até que, enfim, possamos andar totalmenta às escuras, no silêncio e na noite.

É por isto que algumas das máximas do santo esfriam o entusiasmo de contemplativos imaturos. Serão realmente do autor da Viva Flama do Amor?

"Entra em combinação com a tua razão para fazer o que ela te aconselha no caminho para Deus, e ela te será mais útil do que todas as obras que fizeste sem ela e todos os prazeres espirituais que procuraste.

Abençoado é aquele que põe de lado o seu prazer e inclinação e olha as coisas segundo a razão e a justiça, afim de realizá-las.

Quem age segundo a razão é como quem come unr alimento substancial, e quem é movido pelo desejo da sua vontade é como quem come um fruto sensaborão."

Outra máxima um tanto curiosa, mostra um novo aspecto do assunto, lembrando a doutrina que os leitores costumam logo associar a S. João da Cruz: a da oração passiva e da luz infusa e do amor do Espírito Santo. Adverte esta máxima que, às vezes, a alma é movida passivamente por impulsos espirituais procedentes de outro:

"Considera que teu anjo da guarda nem sempre move o teu desejo a agir embora ele sempre ilumine a razão. Pelo que não te detenhas a desejar antes de realizar uma ação virtuosa, pois a razão e o entendimento te bastam".

S. João pensava, talvez, nos Quietistas que acreditavam que os praticantes da oração espiritual não deviam jamais realizar qualquer ato devirtude sem sentir-se positivamente impelidos por um impulso interior de Deus.

Este é um dos poucos lugares em que ele se refere à mediação do» anjos em nossa vida mística, aspecto muito sublinhado pelo Pseudo-Dionísio. Em todo caso, ele fala aqui definidamente de mística. A razão não desempenha papel ativo na experiência mística como tal. A contemplação é mística, estritamente falando, na medida em que as nossas faculdades são movidas passivamente por especiais inspirações de Deus. Há um nível da oração em que as faculdades não são totalmente absorvidas em Deus. Mas quando a vontade e a razão podem ainda agir por própria iniciativa, mesmo se em conjunção com alguns movimentos passivos recebidos de Deus, a nossa contemplação é menos pura.

Há, contudo, uma continuidade essencial entre esses dois níveis de atividade espiritual. A doutrina de S. João neste ponto é também baseada no ensino de S. Tomás. Trata-se do princípio tomístico que se reflete na máxima acima citada. A vida espiritual do cristão é uma ascensão ordenada para a plenitude. Do princípio ao fim dessa subida, o homem é movido, iluminado, robustecido e elevado pela ação de Deus. No começo, é pela instrumentalidade da razão, que Deus age, iluminada pela graça e dirigida pelas virtudes. Mais tarde, Deus move o espírito do homem, de modo mais direto, através das inspirações especiais que os sete Dons do Espírito nos dispõem a receber. Mas o fim é um só, quer seja a razão, quer seja a ação direta de Deus que nos mova, e uma só a obra, pois é sempre Deus que conduz à divina união o espírito do homem, pela perfeição da , da esperança e do amor.

III-ASCENSÃO PARA A VERDADE

THOMAS MERTON

Este é um livro de meditação sobre a obra de São João da Cruz, traduzido por D. Timóteo Amoroso Anastácio, do original em inglês The Ascent to Truth, e publicado pela Editora Itatiaia, em 1958 (hoje dificilmente encontrado).



I-A RAZÃO NA VIDA CONTEMPLATIVA
 

São João da Cruz começa a Subida do Monte Carmelo afirmando que a alma não poderá chegar à união com Deus sem entrar nas "trevas" com respeito a tudo que possa ser conhecido e desejado tanto pelos sentidos como pela inteligência e a vontade. Quer isto dizer que em certo sentido a  e a contemplação "escurecem" e "cegam" a razão. Nenhum conceito claro e inteligível de Deus pode delimitar o seu Ser como Ele é realmente em si mesmo. A , levando o homem a um nível que está além da sua inteligência finita é "escura", mas S. João da Cruz admite que ela não é jamais contrária à razão.

Mas, infelizmente, muitos leitores dos místicos procedem dessas premissas, à falsa conclusão de que a razão não tem lugar na vida mística. Basear nesta posição anti-racional uma doutrina ascética, é um verdadeiro suicídio espiritual. É verdade que a razão sozinha não pode fazer a ninguém santo, e que as virtudes cristãs devem operar em nível mais elevado do que as virtudes naturalmente adquiridas de um filósofo pagão. O santo é aquele que nasceu não do sangue nem na carne, nem da vontade do homem, mas de Deus. (Jo. 1,13). Entretanto, Cristo, a Luz do mundo, que ilumina cada homem, dá-nos uma participação natural na Luz Divina: a razão humana. Não é sem motivo que Deus nos deu a razão. Ela tem um papel a desempenhar na vida sobrenatural. Deus ordenou de tal modo as coisas, que não podemos normalmente chegar à santidade sem fazer uso dela. Este é o ensino de S. João da Cruz.

Para o carmelita espanhol é lei fundamental da vida espiritual que Deus, suposta a ajuda da graça, quer que nos santifiquemos pelo uso de nossas faculdades naturais postas ao seu serviço. A graça não destrói a natureza, mas a eleva e consagra a Deus. Os homens não se tornam santos deixando de ser homens. Não se atinge a união mística através de uma separação entre a alma e o corpo, na vã tentativa de viver comoanjos. É, aliás, óbvio que o nosso teólogo jamais usou o aforismo "a graça constrói sobre a natureza", para defender uma espiritualidade fácil e materialística. A razão deve servir-nos na luta pela perfeição. Só que não pode lutar com as suas próprias normas. Ela não chefia, ela está alistada ao serviço da . Temos de refletir nas conseqüências morais da , temos de usar a mente para conhecer e guardar os mandamentos e conselhos de Deus.

Sublinhando a importância da razão na vida mística, o santo Carmelita estabelece, em alguns capítulos da Subida do Monte Carmelo , os contrastes entre duas espécies de mística. De um lado há o caminho estreito da União Transformante, o caminho da "Noite", do nada, que é pura. Genuína mística cristã, que é desenvolvimento direto da vida da graça santificante, das virtudes teologais e dos dons do Espírito Santo. de outro lado, há uma espécie de mística que não é exatamente falsa, pois abunda em experiências que podem ser autenticamente sobrenaturais, mas que é um desvio do reto caminhe para a santidade e a união divina. Essa mística floresce em visões e revelações, em epifanias e sinais extraordinários. S. João não nega que Deus muitas vezes se comunica desta maneira com os seus santos. Mas ele insiste em que essas experiências incomuns não devem ser procuradas nem desejadas, já que não estão em conexão essencial com a santidade nem podem manifestar-nos Deus como Ele é. Ha, mesmo, naquele apetite de visões o grande perigo de perder o caminho que leva a Deus, a  perfeita.

É aqui que aparece a razão. Sua função principal na vida contemplativa, segundo S. João da Cruz, é resguardar o contemplativo de sair da estrada real da divina união, o caminho da . Um dos característicos mais notáveis da ascética joanina é que ela exige o constante crivo das experiências espirituais e a rejeição de inspirações situadas fora do reino da pura . O instrumento desta ascese interior não é outro senão a inata luz da razão. A razão, agindo ao serviço da , deve inquirir, pesar e julgar as nossas aspirações mas íntimas e espirituais. Ela deve examinar com inexorável objetividade tudo que se nos apresenta como um impulso sobrenatural. Deve provar cada voz interior, mergulhar as nossas "luzes" mais puras no negro oceano da . O grande paradoxo desta doutrina é que o ascetismo da "noite" não pode ser posto em práticasem a luz da razão. É pela luz da razão que navegamos através da noite da .

Pode-se comparar a jornada da alma para a união mística, pela estrada da pura , à viagem de um carro numa estrada sem luzes. O único recurso do condutor para guardar a estrada é usar os seus faróis. É esta a função da razão na vida mística. O caminho da  é necessariamente escuro e nós viajamos de noite. Nossa razão, todavia, penetra nas trevas o bastante para mostrar-nos um pouco da estrada em frente. É pela luzda razão que interpretamos a sinalização ao longo do caminho.

Os que não compreendem bem a S. João imaginam que a via do Nada é guiar de noite, sem faróis. Isto é uma perigosa incompreensão. S. João critica severamente os que persistem em querer de Deus sinais do gênero de visões, ou outras experiências extraordinárias. E ele explica o motivo:

"Embora Deus possa responder, este método não é bom nem agradável a Deus. É feito mais para desagradar-Lhe... A razão é que não é lícito « nenhuma criatura passar os limites que Deus ordenou por seu governo na ordem da natureza. No governo do homem, Ele pôs limites racionais e naturais e por este motivo é ilícito desejar ultrapassá-los". Em outro lugar, ele repete a mesma coisa com maior clareza:

"Com respeito a divinas visões, revelações e locuções, Deus não costuma revelá-los, porque Ele é sempre desejoso de que os homens façam tanto quanto possível o uso da sua razão".

Em outras palavras, os obstáculos encontrados no caminho da contemplação e da santidade devem ser removidos não por milagre mas pelo senso comum guiado pela luz da  e animado pelo poder da graça divina.

Com a sua ascética só aspira S. João a ordenar em paz o ser inteiro do homem, de modo que os sentidos se submetam à razão e esta, com tudo que há no homem, se consagre a Deus pela  sobrenatural. A perfeição dessa ordem culmina quando o homem é capaz de amar a Deus, "de todo o coração, de toda a mente, e com toda a força", em plena realização do primeiro mandamento. Corresponde isto à descrição que faz da santidade S. Tomás, ao afirmar que o homem alcança a relativa perfeição, quando nenhum obstáculo resta a impedi-lo de amar a Deus de todo o seu ser: ut ab affectu hominis exclitdatur omne illud quod impedit ne affectus mentis in Deum dirigatur". Segundo o Doutor Angélico, deve o homem procurar amar a Deus com todo o seu poder (ex totó posse suo) e chegar a um estado em que tudo nele é ordenado para o amor de Deus. S. João da Cruz diz a mesma coisa: "A alma perfeita é totalmente amor. . . todas as suas ações são amor, e ela emprega as suas faculdades e poderes a amar".

O místico carmelita atesta que é o resumo de toda a sua doutrina: "Nisto se acha tudo que o homem espiritual deve fazer e tudo que eu tenho a ensinar-lhe, a fim de poder atingir a Deus através da união da vontade. (Ele está falando o primeiro mandamento, amar a Deus de todo ocoração). Com isto o homem é mandado empregar todas as faculdades, desejos e afetos de sua alma em Deus". É perfeitamente claro que S. João só concebe a perfeição na união mística, para a qual a alma é preparada pela "noite escura" da purificação passiva.

Não há simples exercício ascético que possa dar à alma um tão completo império sobre todas as faculdades, a ponto de recolhê-las à vontade, consagrando-as ao amor de Deus, e abolindo até os primeiros e instintivos movimentos de amor por outros bens. É Deus mesmo que deve tomar a alma para Si num estado de "recolhimento passivo", antes que ela possa "amar com grande força e com todos os seus desejos e poderes do espírito e dos sentidos que não poderiam assim ser, se estivessem dispersos na fruição de qualquer outra coisa. . . (Portanto) Deus guarda no recolhimento todas as energias, faculdades e desejos da alma tanto do espírito como dos sentidos, de modo que toda esta harmonia pode empregar as suas energias e virtudes neste amor e assim atinge ao verdadeiro cumprimento do primeiro mandamento".

Entretanto, faz-se aqui necessária uma palavra de advertência.

Separar tal proposição do conjunto doutrinário de S. João levaria a sérios erros. É verdade que a perfeição final da alma, a completa união com Deus, é produzida passivamente por Deus. Este trabalho é realizado pela "noite" mística do espírito e não pela noite ativa da ascese. Esta é, no entanto, a preparação ordinária e normal para as graças da oração mística e para as purificações passivas.

Ponhamos em tudo isso um pouco de clareza. Primeiro de tudo, que é a ascese? É a purificação ativa pela qual a alma, inspirada e fortificada pela graça, se toma em mãos e se submete a um rigoroso exercício de renúncia e de virtude. É vim estado em que Deus nos deixa a iniciativa, limitando-se a sugerir e a inspirar, enquanto nos resta aceitar ou recusar.

purificação mística ou passiva não vem de nossa iniciativa. O nosso consentimento não tem nela um papel essencial. Não se vá, entretanto, pensar que toda provação vinda de agentes exteriores, a doença por exemplo, seja necessariamente purificação passiva. Pode, no entanto, acompanhá-la. A purificação passiva uma obra feita só por Deus na alma a emergir do seu próprio interior, exatamente como as graças daoração passiva, que sobem das profundezas mesmas da alma para ser-lhe infusas.

Nossas definições estão agora estabelecidas. Os autores, às vezes, descrevem a vida interior como se fosse uma nítida sucessão de dois estados distintos. O primeiro seria o "ascético", em que somos ativos: o segundo, "místico", em que somos passivos. Fica a impressão que na vida interior o homem vai-se exercitando por anos na prática laboriosa da virtude, e, de repente, um dia se vê a mancar. Daí em diante ele passa a vida como a flutuar e recebe misteriosas iluminações. Outros autores há que chegam a sustentar a existência de duas estradas distintas para a perfeição: uma, puramente ascética; a outra, mística. Não é aqui o lugar para discutir esta opinião.

Na prática, a vida interior jamais entra num estado em que o homem é completamente passivo em cada instante. Um certo grau de passividade existirá também em toda vida interior autêntica. A fronteira da vida mística, entretanto, só é cruzada quando a alma é habitualmente guiada por Deus, tanto na oração como na prática da virtude. Nem sempre é clara esta passividade. Geralmente falando, há sempre necessidade de cooperação ativa à graça, o que funda a exigência da ascese, sem a qual não se pode praticamente pensar em vida mística. Mas a ascese não precisa de exprimir-se em enérgicos exercícios de mortificação, e muito menos em macerações extraordinárias. Pelo contrário, a verdadeira senda da ascese é um caminho de obscuridade e simplicidade, e não há verdadeira abnegação cristã que não comece com uma cordial aceitação e prática dos deveres ordinários de estado. Cada um guiado pela graça desejará espontaneamente a juntar alguma coisa aos sacrifícios exigidos pela Providência e pelo estado de vicia. Mas o melhor destas mortificações só Deus o vê, e não atrai a atenção dos outros nem agrada à própriavaidade. Na prática é sempre mau ceder à rivalidade ascética, que só leva ao egoísmo, estreita a visão, e priva da liberdade interior que é absolutamente necessária ao progresso nos caminhos da oração.

A conclusão que decorre de tudo isso é que a ascese, retamente entendida e praticada, é absolutamente necessária à perfeição cristã e à vida contemplativa. Pode-se, com efeito, dizer que a vida mística, embora essencialmente independente dos nossos esforços é, em geral, posta em correspondência com a nossa generosidade em face do sacrifício.

Há para isto duas razões. A primeira é que Deus não concederá as inspirações especiais da oração e da purificação passiva a uma alma que não deu provas de fidelidade e de cooperação à graça ordinária. A segunda é que as purificações passivas exigem da alma uma coragem maior do que a mortificação ativa. No início da purificação passiva, a alma ainda é largamente ativa. Deus não a submerge imediatamente na sua açãodivina. Muita virtude ativa se lhe pede para que suporte o sofrimento que Deus passivamente leva às suas profundezas. Mas Ele aí a ajuda com graças especiais.



O papel da ascese é resumido por S. João da Cruz nesta fórmula: "dirigindo toda a força da alma para Deus".

Qual é a força da alma? Suas faculdades, suas paixões, seus desejos. Quando tudo isso é ordenado a Deus pela vontade, instala-se aquela perfeição limitada, que o esforço ascético é capaz de conquistar e nos dispõe à oração mística. Mas a vontade é cega. Reduzida a si mesma, ela não pode encaminhar a Deus toda a força da alma. Em todos os seus movimentos de desejo, a vontade deve formar com a razão. E assim é que, bem o declara S. João da Cruz, "quando estas paixões são dominadas pela razão com respeito a Deus, de modo que a alma não se contente senão com o que é só para glória de Deus. . . é claro que a força e a capacidade da alma são dirigidas a Deus e guardadas para Ele."

Falando de paixões, diz ele outra vez. "Destes afetos, quando são incontidos, desembocam na alma todos os vícios e imperfeições que ela possui, como também, se são ordenados e compostos, todas as suas virtudes. E deve-se saber que se uma destas (paixões) se tornar ordenada e regida pela razão, o resto também o será". . . "Onde quer que esteja uma destas paixões, ali estará igualmente toda a alma- com a vontade e todas as outras faculdades. . ." Se ã razão, pelo perfeito domínio de uma paixão, pode dirigir todas as faculdades da alma para o fim próprio do homem, aalma estará em paz. E S. João deixa claro que esta paz e silêncio interior. resultante da ascese, cria a única atmosfera em que as graças daoração mística podem florescer. "A tranqüilidade, a paz (em que não reinam as paixões) são necessárias à sabedoria que por meios naturais ou sobrenaturais a alma é capaz de receber".

A conclusão é rigorosa. A oração mística é um dom de Deus a uma alma purificada ao menos em parte pela disciplina ascética, o que só se consuma quando as paixões e as faculdades são regidas pela razão. A oração mística depende, per accidens, da reta ordenação da alma pela razão. Neste sentido, pois, a razão é a chave da vida mística! A explicação psicológica encontra-se nas palavras de Cristo escolhidas pela Igreja no Evangelho da Missa própria de S. João da Cruz, segundo o missal carmelita: "A luz do teu corpo são teus olhos. Se teu olho é simples (isto é, se ele vê claramente, sem confusão nem duplicidade) todo o teu corpo será luminoso, mas se ele é mau, todo o teu corpo será tenebroso. Cuida, pois, que a luz que existe em ti não seja em trevas".

luz em nós é a razão, ou a inteligência. Ela não é apenas aquilo que nos faz ver e compreender o mundo criado em sua realidade, mas é, sobretudo, o "olho" que recebe a luz infusa da  e da contemplação. A verdadeira contemplação é um "conhecimento (gnosis) amoroso de Deus", e de fato exige a ação coordenada do conhecimento (gnosis) e do amor sobrenatural. Ela é, porém, situada formalmente na inteligência, como pensam S. João da Cruz e S. Tomás. Vimos em que sentido se toma esta imagem: guadar claro o "olho" da inteligência. O que obscurece o espírito são os seus muitos apegos. Há uma cegueira espiritual que é fruto da emoção, da paixão, do desejo desordenado. Esta passagem de S. João da Cruz no-lo recordará: "Por menos que se beba desse vinho (o gosto pelas coisas criadas) ele sobe logo ao coração e o embriaga, e acaba escurecendo a razão... de modo que se não se toma depressa um antídoto para expelir sem demora o veneno, a vida da alma fica ameaçada".

O antídoto de S. João é a "crise", a separação dis-criminativa dos verdadeiros e falsos valores que discutimos no início deste livro. É precisamente através do trabalho da razão que esta crise acontece.

Seria, contudo, um erro fatal supor que a purificação da alma, em que a razão tem papel tão importante, se opera inteiramente ao nível davirtude natural. Dizendo que todos os poderes da alma devem ser ordenados pela razão, S. João não diz que eles devam conformar-se a um ideal racional e ¦natural. Não se trata aqui de uma purificação ética ou moral. S. João não considera o nível de perfeição segundo o qual os homens deixam de enganar uns aos outros nos negócios, ir à missa aos domingos, dar esmolas aos pobres, emprestar a cortadeira de grama ao vizinho sem praguejar mesmo baixinho. Quando ele fala que "os poderes da alma devem ser dominados pela razão", fala da perfeição sobrenatural consumada sob o impulso da graça, segundo os princípios revelados pela . Uma perfeição puramente ética é aquela em que a razão dirige todos os poderes da alma para Deus, considerado como o Autor da natureza e último fim das aspirações naturais do homem. Mas todo teólogo sabe que os homens vivem sob uma ordem sobrenatural em que são dirigidos por Deus a um fim sobrenatural, e se eles malogram na consecução deste fim, não podem substituí-lo por um outro, de nível natural. A vida de virtude deve, ao menos implícito ser de algum modo ordenada a um fim sobrenatural e dirigida pela graça, sob pena de acabar numa perda.

A razão deve dirigir a alma para Deus segundo o plano sobrenatural que Èle nos revelou e que só podemos conhecer pela . Mas será suficiente? S. João é ainda mais preciso. Deixêmo-lo falar num caso concreto. Importa não esquecer o fim que ele tem em vista: toda a força da alma deve ser inteiramente consagrada ao amor de Deus. Or"a, vem uma ocasião em que a alma se vê a tirar das coisas criadas um prazer sensível, e esteprazer é conexo com o amor de Deus. É um prazer bom para a alma? Como sabê-lo? Devemos tirar a limpo de que é que gostamos, de Deus ou do prazer. O fim, ou os meios. A resposta deve ser encontrada na intenção da verdade. Em que é que ela realmente repousa? Em que procura ela a sua maior satisfação? Se é em Deus, então o prazer encontrado nas coisas é só um meio. Esse prazer é bem ordenado, ajuda a louvar a Deus, santifica a alma. Aqui estão as palavras de S. João da Cruz:

"Quando o prazer que a vontade encontra no que ela ouve, vê e faz, serve para elevá-la até Deus, dando-lhe para tal motivo a força, isto é muito bom. Nesse caso, não só é preciso evitar aqueles movimentos de prazer, que causam devoção e oração, mas pode, e até deve aproveitar-se deles. . . Porque há almas que são fortemente movidas por objetos sensíveis a procurar a Deus".

Quando, no entanto, as coisas criadas nos causam um grande prazer, é fácil iludir-nos sobre a pureza de intenção. Um prazer humano, mesmo procurado de boa  como motivo de oração, pode levar a um apego, em que o desejo do prazer depressa se fará mais imperioso do que o daoração. Isso facilmente acontece, por exemplo, no caso de uma amizade sentimental.

Para determinar a natureza da invenção no uso das coisas criadas, muitos teólogos se contentam em prescrever um "ato de pureza de intenção", que não precisa de ser formal e explícito, e exprimirá o desejo de dar em tudo glória e honra a Deus. S. João da Cruz, em companhia de todos os teólogos, reconhece o valor sobrenatural da intenção pura. Mas também nos adverte do risco de ilusão em nossas boas intenções, dada a cegueira da alma. A sinceridade assegurará a orientação da vontade de Deus, na ordem da intenção. Mas como nos iludimos, acabamos por procurar mais o prazer do que a Deus. Diremos que nossa vontade é agradar a Deus, o que é, talvez, sincero; mas, como nos deixamos enganar pelo amor do prazer, inconscientemente é a nós mesmos que procuramos agradar. Não será bem uma hipocrisia, mas um amor própriodisfarçado, que não constitui jamais pecado formal, mas que não pode deixar de ter efeitos prejudiciais na vida espiritual. S. João assevera que psicologicamente esses atos enfraquecem a alma e a confirmam no mau hábito. Isso é evidente a quem considera que as leis da psicologia humana não são suspensas por atos de mera formalidade. Diz o santo:

"Grande cautela devemos ter aqui (no prazer tirado de criaturas sob o pretexto de glorificar a Deus por elas) e convém considerar os seus efeitos. Porque, muitas vezes, bom número de espirituais se entrega a recreios dos sentidos sob o pretexto de oferecer oração e devoção a Deus. E fazem isto dum modo que merece mais o nome de recreio do que de oração, pois lhes dá mais prazer a eles do que a Deus. E embora sua intenção seja por Deus, o que fazem é uma recreação dos sentidos, onde encontram mais fraqueza e imperfeição do que renovação da vontade e adesão a Deus.

S. João da Cruz assevera que um espiritual pode dizer, por experiência, com que intenção ele usa as criaturas. O sinal seguro é uma certa liberdade de espírito, que confere ao indivíduo a consciência de não estar cativo do prazer. Este fica indiferente e neutro, dentro do olhar perdido em Deus. Só Deus importa, só Ele está na pupila da alma, enquanto o resto, confundido num borrão indistinto, desaparece do campo visual.

Quando experimentamos esta liberdade interior, podemos confiar plenamente em nossa pura intenção ao usar das criaturas. Mas o místico carmelita declara, e isto é o mais importante, que quando esta liberdade não é experimentada, não podemos confiar só na razão para guiar-nos em nossa escolha de meios. Agora vemos que há limitações na razão, mesmo quando dirigida pelos princípios da . Sobre isto diz S. João:

"Aquele que não sente esta liberdade de espírito em face das coisas e prazeres sensíveis, nos quais sua vontade descansa e se refaz, recebe delas muito prejuízo e deve desviar daí a sua vontade. Pois, embora a razão possa desejar o seu emprego para ir a Deus, como, entretanto, oapetite que despertam corresponde ao sentido (desordenado), é certo que aquele encontra aí mais obstáculo do que ajuda e mais prejuízo do que proveito".

Mas nenhuma destas palavras modifica a essência do problema. A razão continua a chave da aseese de S. João da Cruz, enquanto é o único instrumento com que cooperamos à graça e pomos em prática os ensinos da . O que nos santifica é renegar-nos com toda a energia, pela Cruz do Cristo, pelo amor de Deus. Este o ensinamento da . Como pô-lo em prática? Voltemos ao começo da Subida do Monte Carmelo. Devemos ter um "desejo habitual de imitar o Cristo" em tudo quê fazemos. Para conformar nossa vida là do Cristo, é preciso meditar na sua vida, afim de "podermos conhecer como imitá-lo". E para fazê-lo bem, temos de renunciar "a cada prazer que não fôr para a honra e a glória de Deus". Nosso motivo em tudo isso é o "amor de Jesus Cristo".

 nos dá os princípios, mostra-nos o fim sobrenatural e os meios para ele. Dá-nos um motivo sobrenatural. Mas a êxito ou ou malogro da pratica aplicação desses princípios depende de podermos decidir quais os nossos atos que são e quais não são para, a honra e a glória de Deus. Deus é sempre livre de iluminar-nos por uma luz infusa que segundo um modo superior ao modo natural de julgamento prático, nos ajudará a fazer tal decisão. Esta luz é um bem que, estritamente falando, não podemos merecer. Por conseguinte, na medida em que está em jogo a nossa cooperação ativa com Deus, as decisões práticas dependem da clareza e eficiência de nossa razão e vontade, guiada pela graça ordinária e. iluminada pelas virtudes teológicas infusas. Ora, esta clareza e eficácia dependem, por sua vez, da nossa generosidade em renunciar a nós mesmos, a qual é proporcional ao amor. A  nos manda procurar a Deus antes de todo prazer criado. Mas na via da ascese é nossa razão que deve julgar da pureza da intenção e dizer-nos qual é, de fato, o sentido da nossa vontade, se tende para Deus ou fica nas coisas.

A mais simples solução do problema encontra-se nos severos conselhos que o santo dá no início da Subida:

"Se se apresenta ao homem o prazer de ouvir coisas que não tendem ao serviço e à honra de Deus, guarde-se de desejar tal prazer, guarde-se de ouvi-las".

Em outras palavras, a razão deve submeter todos os movimentos de desejo a um minucioso escrutínio sobrenatural, e recusar à vontade a liberdade de amar o que não é para a glória de Deus. O que se requer da vontade é obedecer às ordens da razão guiada pela  e a graça. Mas sem perder em tudo o senso das proporções. Somos ainda humanos! As nossas paixões podem ainda ser fortemente presas ao prazer que elas naturalmente desejam. Podem mesmo sentir alguma coisa deste prazer, a despeito de resistência da vontade. Neste caso, diz o santo:

"Basta que ele não deseje ter este prazer, apesar de estarem as coisas presentes aos seus sentidos, E desse modo ele será capaz de mortificar as sensaçõss desta prazer e deixá-las como se estivessem nas trevas".

Note-se a diferença das duas instâncias citadas pelo santo: uma em que a vontade descansa no prazer sensível, outra em que os sentidos descansam no prazer mas contra os ordens da vontade. No primeiro caso, a razão fica desamparada. Está cega pelo apego da vontade a umprazer desordenado, e pode com as suas mais especiosas decisões levar a alma a um extremo perigo.

No outro caso, o prazer é sentido, mas não desejado. A vontade é livre. A razão, portanto, continua clara. Suas decisões são seguras e verdadeiras. Podemos avançar com confiança, embora com extremo cuidado. Nossas intenções não talvez tão puras como pensamos que sejam. Graças à lealdade da razão ao serviço da graça, os atos são sobrenaturais em seu objeto, seu fim e suas circunstâncias.

A conclusão prática de tudo isso é importante. S. João da Cruz sustenta que, na prática deste ascetismo de que, de fato, depende normalmente o nosso progresso espiritual, nunca devemos formalmente conceder à nossa vontade que procure qualquer prazer pelo prazer mesmo. Não basta ser moderado e lícito segundo as normas da razão natural. Se é procurado por si mesmo, e a vontade, em vez de passar por ele afim de descanáar em Deus, repousa nele, o ato poderá não ser necessària.-mente pecaminoso, mas terá conseqüências danosas para a alma. Fará que esta descanse no prazer criado, cega à luz sobrenatural que nos levaria, pelo caminho da cruz, à união com Deus.

Se, contudo, a vontade não fica no prazer criado mas vai até Deus por uma intenção sobrenatural verdadeiramente pura (mesmo que seja só virtual), então o prazer não só deixa de causar dano à alma, mas pode mesmo constituir uma considerável contribuição ao seu bem espiritual.

São princípios abstratos a aplicar com moderação e bom senso. Muitas almas poderiam ser grandemente prejudicadas por uma compreensão errônea destes princípios. Os escrupulosos poderiam ter um efeito exatamente oposto ao que S. João da Cruz pretende, roubados da sua liberdade espiritual e incapazes de devotar-se inteiramente ao amor de Deus.