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segunda-feira, 9 de novembro de 2009

GUIAS DE LEITURA DO LIVRO DA VIDA

GUIAS DE LEITURA DO LIVRO DA VIDA

FESTA DE SANTA TERESA

Homilia do P. Saverio Cannistrà,

Prepósito Geral OCD Teresianum - Roma

Este ano a celebração da festa de Santa Teresa adquire para nós carmelitas um sentido particular. É o ano do Capítulo Geral, no qual nossa família religiosa decidiu empreender um caminho de preparação ao quinto centenário do nascimento de Teresa. Esta preparação consistirá sobretudo - segundo as mesmas palavras do documento capitular - em “ler cada ano na Ordem, desde o 15 de outubro de 2009 até 2014, pessoal e comunitariamente uma obra da Santa Madre Teresa de Jesus” (Para vós nasci, n° 38). Assim pois, desde hoje, nós carmelitas, tanto pessoal como comunitariamente, adquirimos o compromisso de dedicar todos os dias um pouco de nosso tempo e de nossa atenção à leitura dos escritos de Teresa. É um compromisso discreto, escondido e, no entanto, essencial. O que esperamos deste exercício de leitura? As obras de Teresa não serão lidas simplesmente para aumentar nossa cultura, para obter dela conteúdos históricos e doutrinais para estudar e ensinar. Ler-se-ão para entrar em comunicação com ela, para conhecer a pessoa que nos está falando e, em familiaridade com ela, para conhecermos a nós mesmos. Meu professor de filologia românica, Gianfranco Contini, um dos leitores mais penetrantes que conheci, definia ao bom leitor como “quem está disponível a deixar-se invadir pelo espírito do outro, através da leitura”. É isto precisamente o que esperamos da leitura: que o espírito de Teresa invada nosso espírito, e dos homens e mulheres deste tempo, portadores dos problemas, das esperanças e das angústias desta geração.

Nosso espírito está inquieto, como sempre está o coração do homem peregrino na história, ainda que esta inquietude na atualidade adquira conotações particulares, os traços característicos de nossa sociedade civil, de nossa igreja, de nossas comunidades familiares e religiosas. Estamos sedentos como a Samaritana que vai ao poço para tirar água. Mas, qual água poderá saciar-nos verdadeiramente, não só por um momento, não só superficialmente, mas plena e definitivamente? Não se trata da água que podemos tirar com nossas forças dos poços que nossos pais cavaram. É a água que mana abundantemente da pessoa de Jesus, que nos encontra aqui e agora, aparentemente de modo casual, mas que na realidade nos conhece desde sempre e lê no profundo de nós, nos escuros isolamentos de nosso coração. Também Jesus tem sede, é movido pela sede. A mulher Samaritana e o homem Jesus se encontram juntos no poço, levados pela busca de água. Jesus, cansado da viagem, no momento mais quente, experimenta a mesma sede da mulher, que foi ao poço, experimenta a mesma sede dos discípulos, que foram à cidade para comprar alimento. A humanidade de Jesus é exatamente nossa humanidade com seus achaques e suas fragilidades, mas também é, em tudo isso e através de tudo isso, a humanidade que chega a seu cumprimento, “que é perfeita”, como diz a carta aos Hebreus, e por isso mesmo levada à sua pátria, que é o seio das relações trinitárias. É a humanidade do Filho que se alimenta da vontade do Pai e perenemente é saciado e renovado pela água viva do Espírito. Jesus fez uma longa viagem para chegar ao poço no qual encontra a Samaritana: não só a viagem pelos caminhos da Galiléia e da Samaria, mas a viagem que o levou desde o Pai ao homem em sua distância, em seu extravio, em sua infidelidade. Entretanto, é belo observar como pelo encontro com ele, também a Samaritana empreende uma viagem, que é o de encontrar-se a si mesma e, portanto, de anúncio e de testemunho: Encontrei a quem me conheceu inteiramente, a quem me fez descobrir minha verdade e dignidade de filha na verdade do Pai.

Não nos surpreende que Teresa tenha se fascinado por este episódio evangélico e tenha se reconhecido na mesma mulher sedenta. Também ela estava cansada de caminhar (“A minha alma já estava cansada”, escreve no Livro da Vida 9,1) e tinha sede de paz e de luz: “Eu bem sabia que o amava, mas não compreendia, como iria entender, o que é amá-Lo verdadeiramente” (V 9,9). E nesta obscuridade e angústia se mantém até que não se levanta pela graça, até sua atuante presença: Ele estava ali, diante dela, para dizer-lhe, com todo seu corpo ferido, que estava por ela e com ela, sempre e em todas partes. Desde então Teresa começa a entender que amar verdadeiramente a Deus significa antes que qualquer outra coisa acolher-se de verdade em seu amor. É o amor de Deus que venceu a morte na ressurreição de Jesus. Teresa se encontra com o Crucificado ressuscitado e em seu corpo vê, lê com clareza o poder deste amor, capaz de superar toda resistência e diminuir qualquer obstáculo. Teresa se abandona totalmente a ele libertando-se de tudo o que a constrangia no plano pessoal, social e eclesial. Seu coração ferido é o coração do homem novo, o coração de carne (Ez 11,19), libertado e aliviado, como no impulso ascensional da representação de Bernini, para o amor que a atrai a si e a faz sua. Sua esposa, porém mais ainda sua amiga e colaboradora. Precisamente como a Samaritana é descrita como a amiga que fala com Jesus e a discípula que fala aos demais de Jesus, assim é Teresa. À passividade de ser perdoada, escutada e amada por Jesus, corresponde à atividade da amiga e colaboradora que já não se espantará mais com sua fragilidade ou das dificuldades materiais ou dos prejuízos dos homens, inclusive sendo eclesiásticos influentes. Teresa se coloca a caminho e não deixará de caminhar até sua morte, que é para ela o umbral mais além do qual continuará caminhando ao encontro com ele, já verdadeiramente Esposo contemplado face a face.

Teresa nos convida a segui-la em seu caminho ao encontro do Crucificado ressuscitado, em todas as páginas, em todas as linhas de seus escritos. Repete-nos que Jesus Cristo está vivo, com uma vida oferecida e doada a quem quiser acolhê-la. O que é o que nos impede de segui-lo? O que é que nos impede de fazer sua mesma experiência? Talvez encontremos uma resposta na passagem do livro da Sabedoria, que foi proclamado como primeira leitura: “Eu a preferi aos cetros e aos tronos e, junto dela, considerei como nada a riqueza” (Sb 7,8). A Sabedoria se deixa encontrar por quem se decide por ela, por quem compromete nela a própria liberdade. Demasiadas coisas nos ocupam, coisas que não escolhemos livremente, mas que deixamos que preencha nossa vida. Não nos alimentam, não nos saciam, não nos dão vivacidade, e entretanto não temos a força de nos livrarmos delas. Sabemos que Teresa lutou durante muito tempo por libertar-se do que possuía ou, melhor dizendo, do que a possuía. Não podemos por isso pensar que para nós seja mais fácil que para ela, nem que seja possível chegar a uma verdadeira transformação de nós mesmos sem a graça de Deus, invocá-lo de modo incansável, e sem um sério compromisso por nossa parte. Um compromisso que devemos exercer numa dupla direção: em desprendermos de tantas coisas, que nos detêm e nos confundem, e levarmos avante a obra para cumprir responsavelmente o trabalho que nos foi confiado. Na realidade, o homem está feito de tal modo que só a ação obediente à vontade de Deus pode transformá-lo. E o afirmo sabendo perfeitamente que a vontade de Deus deve direcionar, desde o interior, nossa vontade, e não a do homem. Que Teresa nos ensine a reencontrar nossa liberdade em entregar-nos àquele que nos quer efetivamente livre.

+Roma, 4 de setembro de 2009

Queridos irmãos no Carmelo

Enviamos uma nova ficha de leitura para o “Livro da Vida” de Santa Teresa de Jesus, com a finalidade de completar aquela que aprovamos no Capítulo Geral, possuidora de um conteúdo mais dinâmico e pastoral. A presente ficha de leitura, como poderá ser constatado, é mais teórico-doutrinal e trata de situar o livro contextualizando-o, apresentando seu conteúdo e seções e fazendo uma breve introdução para a leitura de cada uma delas.

Como também poderá se constatar, a ficha não é muito extensa; não queremos, em fidelidade ao que foi tratado no Capítulo Geral, fazer uma grande introdução que roube tempo no que realmente importa: ler as obras de Santa Teresa de Jesus.

Pedimos que, o quanto antes, possa chegar aos frades, monjas e membros da OCDS, do modo que for mais prático, uma cópia desta ficha a qual, em breve, poderá também apresentar-se na Web que, por motivo do Centenário, preparará a Comissão nomeada pelo Definitório geral, que preparou esta ficha com a ajuda do P. Salvador Ros, ocd. Cada ano irá chegar, para distribuí-las em sua circunscrição, duas fichas como estas: uma de caráter mais pastoral e outra mais teórica e doutrinal.

“Agora começamos...” e para fazê-lo “de bem a melhor” oferecemos a nossos irmãos e irmãs este simples material. A leitura fiel e criativa de cada um de nós, esperamos, será o terreno adequado no qual estas simples sementes darão fruto abundante.

Com afeto e unido a sua oração:

P. Emilio J. Martínez González, Vic. Gen. ocd.

SANTA TERESA DE JESUS

Livro da Vida

Guia de leitura

Introdução

Perante o Livro da Vida (V) de Santa Teresa, nossa atitude não é a de quem procura ler um livro por mera curiosidade ou por simples obrigação. Temos consciência de que nos encontramos diante de um bom livro, um livro que nos compromete, que narra fatos que sentimos que de em algum modo são também nossos; aquilo que é contado no Livro da Vida, de certa forma está dentro de nós, é algo que nos acontece.

O Livro da Vida pode ser lido de maneira participativa, porque a Madre Teresa propôs nele sua história pessoal como um caminho de experiência para outros. O modo como ela se conduziu ou, melhor, foi conduzida, é uma guia adequada para a aventura interior que nos leva ao pleno encontro com Deus. Ela o diz explicitamente quando afirma que é sua intenção ao escrever “despertar nas almas a avidez por um benefício tão elevado” (V 18,8).

Essa espontânea confissão teresiana nos proporciona a chave de leitura que deve guiar nossa aproximação ao Livro da Vida e, pode-se afirmar de todos seus escritos: Santa Teresa é mediadora de uma Presença ativa, a presença de Deus, tem a possibilidade de propiciar o encontro pessoal, não só com ela, mas também com seu interlocutor divino, pois Teresa sempre que fala de Deus o faz diante dele, coram Deo, de forma que ele apareça e se manifeste por si mesmo.

Uma leitura, portanto, receptiva e vibrante como a que costumava fazer seu primeiro editor, frei Luís de León: “E assim, sempre que os leio [os escritos teresianos], me admiro mais uma vez, e em muitas partes dele me parece que não é engenho de homem o que ouço; e não duvido que o Espírito Santo falava nela em muitos lugares, e que lhe regia a pena e a mão, que assim manifesta a luz que põe nas coisas escuras e o fogo que acende com suas palavras no coração que as lê”[1].

Esta sensação, esta convicção, se multiplica para seus filhos e filhas: como carmelitas somos chamados de um modo particular a encontrar nossa verdade, a Verdade, nas páginas deste Livro vivo.

Muitos de nossos irmãos e irmãs dão fé explicitamente desta experiência ao considerarmos sua vocação ou sua conversão como conseqüência do encontro com Teresa e com Jesus, caminho, verdade e vida, através da leitura de suas obras, particularmente do Livro da Vida (desde Francisco de Santa María Pulgar e Tomás de Jesus no século XVI, até Teresa Benedita da Cruz no século XX).

Assim as Constituições dos carmelitas descalços recordam: “A origem da família teresiana no Carmelo e o sentido de sua vocação na Igreja estão intimamente vinculados ao processo da vida espiritual e ao carisma de Santa Teresa e, sobretudo as graças místicas, sob cujo influxo concebeu ela o propósito de renovar a Ordem” (n. 5; cf. n. 4 das Constituições das carmelitas descalças).

E, se quisermos fazer uma leitura verdadeiramente proveitosa, não esqueçamos o que nos dizia N. P. Geral no prefácio ao documento do Capítulo “Para Vós nasci”:

“Apenas abrimos o volume das obras de Santa Teresa nos encontramos com o extraordinário prólogo do Livro da Vida, no qual ela adverte ao leitor não esquecer o lado obscuro de sua pessoa, do qual não lhe é permitido dizer nem uma palavra, porque só lhe é permitido escrever seu modo de orar e sobre as graças recebidas. É uma declaração que nos coloca em seguida fora do convencional estilo hagiográfico e nos reconduz a autenticidade de uma vida cristã em contínuo estado de conversão. Se Teresa escreve isto, é precisamente para que ninguém se sinta excluído da possibilidade de percorrer seu caminho e de receber graças semelhantes as que ela experimentou. Todavia se entre nós e Teresa de Jesus, entre nossa verdade e sua verdade se interpõe uma barreira feita de estereótipos, conformes mais que a história real de Teresa aos cânones de certa hagiografia ou de certa teologia espiritual, a escuta de suas palavras não poderá se converter para nós em manancial de saudável renovação, e ameaça de converter-se num piedoso exercício, do qual poderão derivar quando muito considerações de teor moralista ou espiritualista”.

1. Um Livro vivo

Este livro vivo é a primeira obra da Santa e não possui título autêntico. Foram os bibliotecários do Escorial que escreveram o título que chegou até nós em sua primeira página.

De todas suas obras, o Livro da Vida é a mais extensa e nela Santa Teresa se define como escritora. Trata-se, aliás, de um escrito profundo, surpreendente, uma autêntica revelação de sua alma, a ponto de que ela mesma o chamará assim: “minha alma” (Cta. A Dona Luisa de la Cerda, 23 de junho de 1568, 3; cf. V 16,6; V epílogo, 4).

Santa Teresa fez neste livro um esforço sistemático - o primeiro na história do pensamento e da literatura - por derramar em suas páginas a totalidade de sua pessoa, de modo que os críticos literários o consideram o livro mais original de toda a literatura espanhola.

Isso é assim porque Santa Teresa não pretende simplesmente escrever uma autobiografia, mas contar ao leitor sua vida como uma história de salvação, como um espaço de encontro com Deus. A Santa narra o modo que Deus toma o protagonismo de sua vida, esperando-a (cf. V, prólogo) e transformando-a pacientemente. Assim pois, o livro conta a intervenção de Deus na vida da mulher que é Teresa de Jesus com intenção comprometedora, ou seja, animando ao leitor a colocar-se na ocasião na qual Deus possa também tomar o protagonismo de sua própria vida.

Apesar de ter sido escrita em períodos distintos (1562-1565), trata-se de uma obra muito pensada e com uma estrutura bem definida, alternando a narração de acontecimentos biográficos e a exposição de caráter doutrinal. Este ritmo entre o narrativo e o didático é uma característica muito peculiar da escritora e nota distintiva de todos os seus escritos. Ela, que é uma excepcional narradora, não se limita a transmitir uma crônica, mas, influenciada de um afã comunicativo impossível de deter, prefere exercer o ofício de guia espiritual, fazendo da narração biográfica uma plataforma para o doutrinal, buscando acolhida às suas palavras mais que resposta às mesmas.

2. Estrutura do livro

O livro se desenvolve em 40 capítulos que dão lugar a cinco seções temáticas distintas:

Seção I. A primeira parte do livro corresponde aos capítulos de 1 ao 9, nos quais Santa Teresa faz uma descrição autobiográfica de 40 anos de existência, desde a infância até o acontecimento determinante de sua experiência mística. Ao longo da narração, Teresa parece desdobrar-se em dois sujeitos: narrador e personagem; o narrador possui a perspectiva que ela tem ao escrever, enquanto que o personagem atua e se relaciona segundo a perspectiva que a mesma Teresa tinha ao suceder os fatos narrados. A seção é de um dramatismo crescente no qual o leitor se vê nitidamente envolvido, até chegar ao episódio da conversão, que Santa Teresa mostra como o acontecimento chave de sua vida, ou seja, aquele que delimita períodos importantes.

Seção II. Após o capítulo 10, que serve de transição, nos capítulos de 11 a 22, a escritora faz uma exposição detalhada dos quatro graus da oração, mediante o uso de uma imagem alegórica: as quatro maneiras de regar o horto, que se corresponde com a oração meditativa (c. 11-13), a oração de recolhimento infuso e de quietude (c. 14-15), a oração de sono das potências (c. 16-17) e a oração de união (c. 18-21). O capítulo 22 resume e coroa todo o itinerário espiritual com a mediação insubstituível de Jesus Cristo, “por meio de quem nos vêm todos os bens” (V 22, 7). Esta seção nos preparará para compreender melhor a vida nova que ela está experimentando desde seu ingresso na experiência mística.

Seção III. Entre o capítulo 23 e o 31 a autora retorna à narração autobiográfica, todavia não como na primeira seção. Agora a distância da qual falávamos entre o sujeito narrador e o personagem se reduzem ao mínimo, confluindo ambos numa troca de identidade que se anuncia desde o princípio com expressão e experiência similares as de São Paulo: “Daqui por diante, é um novo livro, isto é, uma vida nova. A que levei até aqui era minha; a que passei a viver depois que comecei a falar dessas coisas de oração é a que Deus vive em mim” (V 23,1).

Seção IV. A quarta parte transcorre entre os capítulos 32 e 36, onde aparentemente se desvia do discurso sobre sua vida para tratar de acontecimentos externos: a fundação do mosteiro de São José de Ávila. Mas o acontecimento e a crônica são, segundo a própria autora, fruto do que anteriormente foi narrado, fruto e efeito de sua experiência mística, convertida em fonte de vida para outros. Sua história pessoal de salvação se une na História da Salvação e Santa Teresa, junto ao grupo de suas primeiras seguidoras, se dispõe em São José a servir a Cristo e a sua Igreja. As graças recebidas se revelam, assim, não como um privilégio particular do qual desfrutar pessoalmente, mas como um dom eclesial, do qual todos hão de beneficiar-se.

Seção V. Constituem os capítulos finais do Livro da Vida, do 37 ao 40, nos quais Santa Teresa, animada pelo P. García de Toledo, volta à narração autobiográfica para completar a seqüência da terceira parte com o que atualmente está vivendo. Em contraste com os temores e perplexidades de então, se manifesta aqui um sentimento de serenidade e de segurança interior que a leva a contar novas experiências com absoluta convicção.

3. Pistas para a leitura destas seções

Seção I. Verdadeiramente Teresa nos fala de si: sua família, sua vida de menina, adolescente e jovem, sua primeira vocação, seu encontro com a vida carmelitana, etc. Porém, primeiramente, Santa Teresa nos fala de Deus, da ação de Deus nela, de um Deus dinâmico e ativo que nada omite em seu desejo de aproximar-se do homem, de abaixar-se para compartilhar sua vida e transformá-lo, acima de qualquer crise. Fundada em sua experiência pessoal, Teresa nos ensina que Deus é uma presença positiva, que acrescenta à pessoa, alenta seus bons desejos e perdoa suas culpas.

Para mostrar de modo mais claro a grandeza de Deus e seu desejo indefectível de transformar à pessoa, Teresa se apresentará a si mesma como ingrata, resistente à ação divina. Não se trata, entretanto, de uma visão pessimista ou negativa da pessoa humana; Santa Teresa só pretende esclarecer o que é inigualável na iniciativa divina, fazendo-nos ver que a ação de Deus não depende de nossos méritos, ainda que valorize nossas boas intenções, senão única e exclusivamente de sua misericórdia.

Seção II. A oração é o espaço privilegiado do encontro entre Deus e a pessoa humana, no qual se realiza o milagre da transformação. Deus se assenta à mesa do homem e da mulher, gosta de estar com eles, com a finalidade de comunicar-lhes sua própria natureza. Por parte da pessoa isso exige, no domínio da oração, uma disposição desprendida e amorosa; a oração não é uma prática onde buscar-se a si mesmo, onde achar consolos espirituais, mas a porta aberta à ação de Deus que, a seu ritmo e não ao nosso, nos irá fazendo saber de sua amizade e amor, tomando as rédeas de nossa vida. Jesus Cristo, sua sacratíssima Humanidade, possui um papel insubstituível neste processo: nele fomos salvos e por ele Deus nos faz todas as mercês necessárias para nossa transformação à sua imagem; abandonar-lhe é fechar a passagem a qualquer progresso espiritual.

Seção III. Nesta seção Deus se faz ainda mais protagonista da vida de Teresa, que é uma vida nova. Tanto que a pessoa, assim como se deu com Santa Teresa, pode surpreender-se ao descobrir a Deus tão próximo, tão enamorado, fazendo mercês constantes à alma que ele ama. Até que tanto amor se impõe, terminam as dúvidas e a pessoa pode prosseguir em harmonia com Deus, que se converte em centro, raiz e objetivo único do homem e a mulher. As mercês recebidas por Teresa (visões, locuções, etc.), sendo importantes não constituem o essencial da experiência mística; o essencial é o ensinamento que se recebe mediante a elas, o aprofundamento na experiência de comunhão com Deus tão próximo e amante da pessoa. Teresa deixará por escrito os frutos de suas experiências místicas: riqueza pessoal, mudança moral, crescimento no amor a Deus e aos outros, humildade, renúncia ao mal, etc. Ao lado deste panorama tão rico de graças e mercês, aparecem as provas, tentações e oposições, incompreensões e resistências. A perfeição não se alcança em breve, e o caminho que conduz a ela não é isento de dificuldades, internas e externas. Primeiramente a Santa pedirá que se preste atenção ao desalento que pode causar a própria debilidade: não há outra saída além de confiar no Senhor e ter paciência consigo mesmo; não se cansar, esperar no Senhor, perseverar em oração e fazer o que estiver ao alcance de cada um, até transformar os desejos em obras.

Seção IV. Deus não concede nada individualmente. Somos parte da comunidade humana inteira e somos parte da Igreja, colocada em meio dessa comunidade como luz que ilumina, como cidade no alto de um monte. Levedura e fermento para uma sociedade que corre o risco de se afastar de Deus. A experiência de Santa Teresa, que ela nos convida a fazer própria, é a de que todas as graças místicas recebidas são para os outros, para a humanidade e para a Igreja. Através de Teresa Deus põe sua mão na história como toque salvador, animando-a para a fundação do Mosteiro de São José. Do mesmo modo Deus põe sua mão sobre nós para convidar-nos a deixar de lado qualquer projeto pessoal e abraçar em seu nome aquilo que nos parece completamente incompreensível.

Seção V. Como comunidade, contemplamos com Santa Teresa as maravilhas realizadas por Deus que segue fazendo nascer espaços de oração, pobreza e fraternidade. Contemplamos nossa comunidade e tratamos de construí-la à imagem do sonho teresiano feito realidade em São José. Estamos chamados pela Madre a servir sua Majestade com ardor, para que se realizem em nós e por nós milagres semelhantes àqueles que por meio de Santa Teresa se realizaram, dos quais ela nos deixa testemunho neste livro de sua vida: “Assim vivo agora, senhor e padre meu [P. Garcia de Toledo]. Suplique vossa mercê a Deus que me leve para Si ou me mostre como servi-Lo” (V 40,23).



[1] FREI LUÍS DE LEÓN, Carta-prólogo a Los libros de la Madre Teresa de Jesús, Guillermo Foquel, Salamanca 1588 (o texto aparece na edição do Livro da Vida publicado por BAC, Madri 2001, 332, aos cuidados de S. ROS GARCÍA, OCD).