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quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

TERESA DE LISIEUX VIDA- DOUTRINA- AMBIENTE Direção: CONRAD DE MEESTER ocd

PARTE II
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O CARMELO DA FRANÇA: ORIGENS E ESPÍRITO

STEPHANE-MARIE MORGAIN ocd

No dia 15 de outubro de 1604, chegavam a Paris, provenientes de Espanha, seis carmelitas descalças (quatro espanholas: Ana de Jesus, — Lobera —, Ana de São Bartolomeu, — Garcia —, Isabel dos Anjos, — Marques Mexia —, Beatriz da Conceição; e duas .flamengas: Leonor de São Bernardo e Isabel de São Paulo, de Chavaira). Com a sua chegada atingia-se a difícil meta da primeira fundação do Carmelo teresiano na França e inaugurava-se uma extraordinária aventura.

A idéia de abrir na França um mosteiro reformado por Santa Teresa de Jesus não era nova. Ela surgiu casualmente em 1583, quando, no locutório do Carmelo de Sevilha, a Madre Maria de São José (Salazar) se encontrava com João de Quituanadueñas de Brétigny um jovem de Rutin, de descendência espanhola. O projeto, apoiado em outubro de 1585 por Nicolau de Jesus Maria (Dória), então Provincial dos Carmelitas Descalços, esbarrou com os conflitos internos na França. Esta, destroçada pelas guerras de religião, procurava com angústia um rei católico capaz de restabelecer a unidade do Reino e diligenciar novas relações com Espanha.

Antes de renunciar definitivamente ao seu propósito de fundar, João de Brétigny esperou pelo momento propício, traduzindo, entre 1601 e 1602, os escritos de Santa Teresa publicados em espanhol no ano de 1588. Sucessivamente foram aparecendo os três volumes: o Livro da Vida, o Caminho de Perfeição e Avisos, o Castelo Interior. Por fim, publicou em francês a Vida da Madre Teresa de Jesus, escrita por Francisco de Ribera em 1590. Adiantando-se às suas filhas, a Madre Teresa de Jesus ia conquistar o coração dos franceses. O efeito foi imediato.

Um grupo de católicos parisienses, simpatizante da União e hostil ao Edito de Nantes, unido pelas idéias, mas também frequentemente pelo sangue, esforçava-se por apoiar a renovação espiritual da França, já cansada de querelas religiosas. Barbe Avrillot, esposa de Pierre Acarie, era a alma deste impulso renovador. À sua volta, nos salões da sua mansão, na Rua dos Judeus, reunia homens e mulheres, aristocratas, parlamentares, eclesiásticos, doutores da Sorbonne e estudantes, todos animados pelo mesmo zelo reformador. Michel de Marillac encontrava-se ali com René Gaultier, André Duval, Philipe de Gamaches, François Tremblay, Dom Richard Beaucousin, Benoit de Canfled, Philippe de Bérulle.

Sensível à intuição de Santa Teresa, esse reduzido areópago, com a ajuda momentânea de Francisco de Sales, decidiu avançar para a fundação. Em Paris, a senhora Acarie encarregava-se de formar as candidatas que já se apressavam para entrar; simultaneamente, Catarina de Orleans, princesa de Longueville, procurava casa para o futuro convento. Na Espanha, João de Brétigny instava junto dos Carmelitas para que deixassem partir monjas que, tendo conhecido a Madre Teresa, estivessem em condições de implementar na França a Reforma começada além Pirineus. Em Roma, Denis de Santeuil obtinha a bula de ereção, inspirando-se na que regia o convento das Carmelitas de Roma, fundado em 1597. No dia 18 de Julho, Henrique VIII concedia o despacho real para a entrada das Carmelitas, e a 13 de novembro de 1603 expedia-se a bula pontifícia. Conforme à petição dos franceses, as Carmelitas de Paris seriam governadas por três superiores eclesiásticos — Jacques Gallemant, André Duval e Pierre de Bérulle, sendo seu Visitador o prior da Cartuxa, enquanto aguardavam a chegada dos Carmelitas. Esta combinação será alterada em 1606 e em 1614, data em que Pierre de Bérulle é nomeado, por Paulo V Visitador perpétuo das Carmelitas da França. Os Carmelitas da Congregação da Itália, chegados a Paris em 1611, não podiam, conforme as suas Constituições, encarregar-se do governo das monjas. Estava tudo preparado; só faltavam as Carmelitas. Depois de muitos adiamentos, dificuldades, artimanhas e impaciência, a ponto de ser necessária a intervenção direta de Pierre de Bérulle e os repetidos conselhos da senhora Acarie, chegaram finalmente a Paris, radiantes por estender o ideal carmelitano.

O choque entre mentalidades, costumes e espiritualidades foi brutal, sem chegar a ser violento. As carmelitas espanholas, convencidas de que iam morrer mártires nesta terra herética, ficaram admiradas pelo excelente acolhimento que lhes dispensaram. Além das Constituições de Alcalá de 1588, levavam consigo, como um viático, a sua piedade barroca, exuberante e cheia de cor. Descobriram a devoção austera, clássica, desprovida de espontaneidade, mas não de graça, dos franceses. A iconografia aristocrática da Escola francesa contrastava com as figuras surpreendentes de Cristos nu Nossa Senhora, cobertas de bordados e brocados.

Desde a expulsão dos jesuítas (1594), os franceses escolheram os capuchinhos para a direção espiritual. Laurent de Paris, Archange de Pembrocke, Honoré de Champigny, Joseph de Tremblay, mas sobretudo Benoit de Confled, marcaram profundamente este período, dando-lhe a sua orientação mística. Educaram as futuras carmelitas na «unidade experimental do espírito», na vontade essencial de Deus». Esta mística da essência, que depende principalmente da Teologia Mística de Harphius e dos escritos de Ruysbroec, não ajudava bem os franceses a prepararem-se para entrar na espiritualidade teresiana caracterizada pela Humanidade de Cristo, o “trato de amizade”, a relação simples e desprovida de ostentação entre a alma e Deus. Pierre de Bérulle, formado na mesma escola, mas com um espírito independente, impregnado da teologia da Patrística e dos escritos do pseudo Dionísio, também não estava preparado para compreender logo ao princípio o que as fundadoras espanholas lhe queriam transmitir. Contudo, Ana de São Bartolomeu, ajudada pelas demais carmelitas, conduzirá Pierre de Bérulle à contemplação do mistério do Verbo encarnado. Por sua vez, Pierre de Bérulle dará à Cristologia de Santa Teresa uma nova e elaborada interpretação.

As dificuldades espirituais podiam superar-se facilmente. Bérulle trabalhou pela expansão das monjas, e estas colaboraram alegremente com ele. Ana de São Bartolomeu e Madalena de São José (de Fontaines Marans) animaram o prelado a fundar uma Congregação de sacerdotes (1611) — o Oratório de Jesus e Maria — para se ocuparem das Carmelitas. Bérulle deu à sua Congregação uma missão diferente. O choque entre Bérulle e alguns mosteiros de Carmelitas chegou a ser violento devido a questões jurídicas. Os Carmelitas, presentes na França desde 1611, pensavam poder conseguir o governo das Irmãs, conforme o expresso no artigo primeiro das Constituições de Alcalá. Nesta reivindicação eram apoiados por certas prioras, desejosas de ver, neste assunto, a vontade de Santa Teresa, cumprida à letra. Mas as Constituições dos Padres, as Bulas, os Breves pontifícios, o Papa, o Geral da Ordem davam razão a Bérulle e confirmavam-no na sua fundação. A disputa passou, então, para um problema teológico.

No dia 5 de junho de 1615, Bérulle obrigava as Carmelitas de Chalon a fazer um voto de escravidão essencial a Nossa Senhora. Desconhecedoras de distinções teológicas e assustadas com a complexidade do formulário, as monjas alarmaram-se. Bérulle, convencido de introduzir na sua espiritualidade mariana as Irmãs a quem iria cuidar, quando reconheceu o seu erro já era tarde demais. O mandato foi anulado. Os Carmelitas aproveitaram-se deste documento defeituoso para o condenar; demonstrando deste modo a incapacidade de Bérulle para governar as Carmelitas. O assunto dividiu os conventos, perturbou o Rei, incomodou o Papa, que contava com os Oratorianos para reformar o clero, irritou os Bispos, zelosos da sua autoridade sobre os conventos de estrita clausura. A devoção difundiu-se então com bastante discrição. Bérulle, acabrunhado pelas calúnias, ganhou o pleito e os Carmelitas foram castigados.

Bérulle não podia contribuir para uma formação teresiana autêntica das Carmelitas. Conheceu a Madre Teresa demasiado tarde. Pelo contrário, favoreceu a implantação da Ordem na França e, apesar da crise, estimulou o seu dinamismo. Foi no convento que as Carmelitas aprenderam a conhecer a sua fundadora. O papel das Madres espanholas era insubstituível. Por outra parte, muito tempo depois, Teresa do Menino Jesus sonhou com Ana de Jesus e reconheceu-a perfeitamente.

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O CARMELO DE LISIEUX

GENEVIEVE DEVERGNIES OCD

A fundação do Carmelo de Lisieux poderia ter lugar no "Livro das fundações" de Santa Teresa: os seus começos foram tão épicos.

Duas jovens de Pont-Audemer, Atalia e Désirie Gosselin, aspirantes à vida religiosa carmelitana, decidem dedicar a sua fortuna, um tanto modesta, a construir um Camelo. O Sr Dancel, bispo de Bayeux, orienta-as para Lisieux, dando-lhes como futuro superior um sacerdote lexoviense, sulpiciano, Pierre Sauvage, vigário na igreja de São Tiago.

É assim como no dia 16 de março de 1838 a diligência deixa na pousada da pequena cidade as quatro noviças da Normandia e duas carmelitas professas de Poitiers: Irmã Isabel de São Luís que assumirá o priorado e a Irmã Genoveva de Santa Teresa, nomeada sub-priora e mestra de noviças. A madre Isabel morreu quatro anos depois. A Irmã Genoveva recebe então o cargo de priora, em 1842. Exercê-lo-á, exceto nos intervalos previstos pelas Constituições, até 1886. Deste modo, é considerada como a autêntica fundadora do Carmelo de Lisieux.

O Carmelo começa a construir-se. Nenhum problema para se instalar ali umas semanas antes. Debaixo de um aguaceiro, um carro coberto transporia as viajantes, ao lado do rio em Beuvillers, para a casa da Sra. Le Boucher, viúva acolhedora e generosa, que se oferece para alojá-las em sua casa.

No dia 24 de agosto de 1838, o novo bispo de Bayeux, o Sr Robin, benze a capela do Carmelo sob a invocação de "Maria concebida sem pecado". Mais tarde, terá, ainda, como titulares "o Sagrado Coração de Jesus" e... "Santa Teresa do Menino Jesus".

No dia 5 de setembro, o embrião da comunidade desloca-se para a rua de Livarot, numa casa antiga — que dará lugar ao Carmelo atual — um pouco grande. No dia 16 do mesmo mês, as duas irmãs Gosselin e Carolina Guéret professam. No dia 19 de março de1839, festa de São José, apresenta-se a primeira postulante.

A comunidade vive em autêntica pobreza, quase na miséria. As provações abatem-se sobre ela, mas o convento avança rapidamente na espiritualidade; a tal ponto que, a partir de 1861, a Irmã Filomena da Imaculada Conceição pode abandonar Lisieux, acompanhada por outras três irmãs da sua comunidade, para ir fundar em Saigon o primeiro Carmelo de missão no Extremo Oriente. Os laços entre os dois conventos foram sempre muito fortes. O abade Sauvage recolhe, por toda a França, os fundos necessários para a construção da capela do Carmelo. No dia 6 de setembro de 1852, o Sr bispo Robin benze este novo santuário. O padre Pierre Sauvage morre uns meses mais tarde, em abril de 1863. As carmelitas conseguem que o enterrem na sua capela, edificada com os seus desvelos, muito perto da grade do coro. Algum tempo depois, no tempo em que é pároco de São Tiago, o cônego Delatroette será também superior do Carmelo, de 1867 a 1895.

Até 1858 a madre Amada de Jesus — que substitui três anos a madre Genoveva à frente do Carmelo de Lisieux — não pôde construir a primeira grande ala do convento; e a madre Maria de Gonzaga—que sucederá à madre Genoveva de Santa Teresa — dedica-se desde 1876 a dar ao convento a sua forma definitiva.

Quando Teresa entra no Carmelo em 1888, faz onze anos que o convento está terminado. Foram necessários uns quarenta anos para edificá-lo completamente. Situado ao fundo de uma depressão, perto do Orbiquet, o convento que se levanta na rua de Livarot, no centro da velha Lisieux, apresenta um conjunto de construções geométricas com tijolos vermelho escuro. O quadrado conventual está construído ao lado da capela e do coro das irmãs; em ambos os lados estão edificadas duas alas de edifícios; o quarto lado arremata o conjunto com arcadas de canhão, de proporções harmoniosas, com um claustro de estilo o mais simples possível. Um calvário de granito — ereto em 1877 — domina o pátio. O jardim, limitado pelo curso do Orbiquet de águas lodosas e das propriedades vizinhas, é estreito. Uma bonita e pequena alameda de castanheiras estende-se ao longo de um pequeno "prado", plantado com algumas pereiras. A jovem carmelita gostará desta pequena paisagem familiar.

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AS DUAS TERESAS, MÃE E FILHA

TOMÁS ALVAREZ ocd

Perguntou-se mais de uma vez se as duas Teresas se parecem em algo mais que no nome e na vocação ao Carmelo.

Pergunta banal, à primeira vista. Como se estivesse formulada não sobre as duas pessoas e a sua história, mas sobre duas estampas justapostas: o retrato da Madre Teresa feito em Sevilha pelo leigo Frei João da Miséria, e as fotografias de Teresinha tiradas pela câmara de Celina. Efetivamente, a Teresa de 61 longos anos mal desenhada pelo pintor leigo, e a Teresinha de 23, em pose algo estática perante a grande máquina fotográfica, não coincidem no rosto, no olhar, nos modos, mas no hábito e no nome gravado ao pé da estampa.

E, no entanto, a pergunta não é superficial como parece. Nas vidas paralelas, segundo o esquema clássico do escritor grego, semelhanças e dessemelhanças contrapõem-se. Todos nos parecemos no essencial. E é no essencial onde mais nos diferenciamos, quer dizer, nesse núcleo secreto e profundo que decide a nossa personalidade e nos torna únicos e irrepetíveis. Deste misterioso centro partem as linhas radiais com que Deus configura a missão existencial e a história da salvação de cada um.

Encaradas a partir deste enfoque teologal, a pessoa e a história das duas Teresas convergem no mais profundo do seu ser e da sua missão. As duas, sob o impulso de uma misteriosa força interior, escreveram a própria história, descobriram e testemunharam a passagem de Deus pelas suas vidas e apresentaram-nas como um pentagrama de fundo para cantar as misericórdias de Deus. A autobiografia é o primeiro livro que uma e outra escrevem. E as duas coincidem em dar à sua vida força de profecia: não simples narração da própria aventura humana, mas palavra profética com forte mensagem frente a qualquer outra leitura ou releitura da própria vida, isto é, da nossa vida.

As duas na família

Não são duas famílias em paralelo o lar de Teresinha na bela Normandia e o de Teresa na austera meseta de Castela. Mas as coincidências e os contrastes abundam e entrecruzam-se.

"Muito queridas" as duas no lar. Sem lacunas afetivas na infância, apesar de que as duas passam pela amarga experiência da orfandade: Teresinha perde a sua mãe ainda muito criança; Teresa perde-a em plena adolescência, aos catorze anos. A uma e a outra cresce-lhes a figura do próprio pai, até chegar à transfiguração: para Teresa, dom Alonso é a imagem do homem perfeito; para Teresinha. Um reflexo do rosto de Deus. Muito a contrapeso da ascese circundante e de certa pseudo-mística da “fuga mundi". Tanto a Madre Teresa como a sua filha, a carmelita de Lisieux, mantêm profundo enraizamento familiar até ao fim da sua vida religiosa. Famílias numerosas as duas: a de Teresa de Ávila tem nove irmãos varões; a de Lisieux, quatro. Esta perde-os sem os ter conhecido, falecidos antes dela nascer. A de Ávila assiste de perto ao êxodo de todos eles, que vão abandonando o lar rumo às índias ocidentais, deixando ao lado de dom Afonso viúvo só as filhas, como no lar de Alençon-Lisieux.

Ainda um par de traços coincidentes nesse duplo quadro do lar. Na linha materna, emotiva e feminina, as duas crianças órfãs acolhem-se à maternidade da Virgem Maria. Pelo contrário, em linha paterna, às duas aproximam-se a sombra da guerra: Teresa nasce quando o seu pai regressa da guerra de Navarra: Teresinha, quando o senhor Martin sofreu no seu próprio lar a sombra prolongada da guerra franco-prussiana. As duas Teresas herdarão, não um espírito guerreiro, mas sim uma têmpera vigorosa, de fortaleza para a vida. Será Teresinha quem escreve, recordando uma máxima típica da Santa de Ávila: "Santa Teresa, que dizia às suas filhas: 'Quero que não sejais mulheres em nada, mas que em tudo vos igualeis a homens fortes”, Santa Teresa não teria querido reconhecer-me como sua filha se o Senhor não me tivesse revestido da sua força divina,- se Ele mesmo não me tivesse armado para a guerra" (Ct 201).

As duas no Carmelo

Para as duas Teresas o Carmelo é a família da alma. Aqui já não se trata de coincidências. Afinidades ou contrastes aproximativos, como no lar de sangue. Na família da alma tudo se passa a níveis profundos, de outra ordem e grandeza.

Embora por caminhos diversos, a opção vocacional pelo Carmelo foi em ambas as Teresas o desenlace de um pequeno drama íntimo: desapego do lar paterno e transferência para o lar do espírito, mas com toda a dramaticidade de uma transferência humana. Na Santa de Ávila, será a vida comunitária da Encarnação a definir e a decidir o sentido da sua vocação religiosa. Pelo contrário, a Santa de Lisieux ingressa no Carmelo com idéias claras e opção bem definida. Para esclarecer e tomar posições, serviu-lhe a aproximação à que vai ser a sua santa Madre Teresa: antes de ingressar; Teresinha lê profunda mente a sua biografia.

Um feixe de traços que caracterizam a personalidade da santa avilense impressionam a Teresinha, que rapidamente os incorpora ao seu talante humano e espiritual. Basta enumerá-los:

—Antes de tudo, altos ideais. "Altos pensamentos", dizia a Madre Teresa. E desejos: “tive sempre grandes desejos", escreve ela. Teresinha anotou numa das suas notas íntimas: "Não é presunção o desejo de praticar as virtudes em grau heróico, à imitação dos santos; nem tão-pouco o desejo do martírio". Versão de urna passagem do Livro da Vida (13, 4).

— Disposta a dar a vida pelos outros, como Cristo. Entre as suas notas íntimas, Teresinha conservava também este pensamento da sua santa Madre: "daria mil vidas para salvar uma só alma". Tomado do Caminho de perfeição (1, 2), mas repetido com toda a classe de matizes e variantes por Teresa, e igualmente por Teresinha, a quem também impressionou este outro dito da Santa de Ávila: "Santa Teresa dizia às suas filhas, quando estas queriam rezar para si mesmas: 'que me importa a mim estar até ao fim do mundo no purgatório, se com as minhas orações salvo uma só alma?'" (Também na Ct 221. Tomado do Caminho de perfeição 3, 6).

— Intenso sentido apostólico da vocação contemplativa: "Uma carmelita que não fosse apóstola se afastaria da sua vocação e deixaria de ser filha da seráfica Santa Teresa" (C 198). E com que alegria o confirmava no fim da sua vida: "Nunca me arrependerei de ter trabalhado unicamente para salvar almas. Como sou feliz por saber que a Nossa Madre Santa Teresa pensava o mesmo!" (UCR 4. 6.1).

— Sentido do amor A Santa de Ávila tinha insistido tanto em não confundir o amor com o sentimento. Teresinha aprofunda nesta linha: "Como compreendo bem as palavras de Nosso Senhor à nossa Madre Santa Teresa: 'Sabes, minha filha, quem são os que Me amam de verdade? São aqueles que reconhecem que tudo o que a Mim se não refere não passa de mentira" (UCR 22.6).

- Ser amigos do Crucificado: Teresinha recorda várias vezes um dos "fioretti" teresianos: "Santa Teresa tinha muita razão em dizer a Nosso Senhor que a sobrecarregava de cruzes quando ela empreendia por Ele grandes trabalhos: 'Ah! Senhor, não me admira que tenhais tão poucos amigos, os tratais tão mal!'" (Ct 178).

— O ideal contemplativo: só Deus! Entre as suas notas, Teresinha transcreve íntegro o poema da Santa: "Nada te perturbe... só Deus basta!". A níveis mais profundos, Teresinha e Teresa, ao historiar a própria vida, resumem-na em chave doxológica, como um canto às misericórdias do Senhor As duas centram todo o seu afã de santidade no amor esponsal a Cristo, apropriando-se do símbolo nupcial do Cântico dos Cânticos, e enamorando-se do seu Evangelho. As duas têm um fino sentido da Igreja. A própria Teresinha testemunha assim essa convergência das duas: "Quero, numa palavra, ser filha da Igreja como o era a nossa Madre Santa Teresa" (Ms C 33v). Por isso, pensa que "foi a Nossa Santa Madre Teresa que me enviou como ramalhete de festa... o meu primeiro irmãozinho missionário" (Ms C 31v).

As duas na Igreja

Nas últimas páginas da História de uma alma, Teresinha escreve, confrontando tacitamente a sua missão eclesial com a da sua santa Padroeira: "Como são diferentes os caminhos pelos quais o Senhor conduz as almas! Na vida dos Santos encontramos muitos que nada quiseram deixar deles para depois da morte, nem a mais pequena recordação, o mais pequeno escrito. Há outros, pelo contrário, como a Nossa Madre Santa Teresa, que enriqueceram a Igreja com as suas sublimes revelações, não temendo manifestar os segredos do Rei, para que seja mais conhecido, mais amado pelas almas. Qual destes dois gêneros de santos agrada mais a Deus? Parece-me... que ambos Lhe são igualmente agradáveis, uma vez que todos seguiram a moção do Espírito Santo, e que o Senhor disse: Dizei ao justo que tudo está bem. Sim, tudo está bem, quando não se procura senão a vontade de Jesus" (Ms C 2v).

Não pressagiava Teresinha — ou talvez sim! — que a sua missão na Igreja ia ter roteiros similares, quase paralelos, aos da sua Santa Madre. Que também ela tinha sido chamada misteriosamente a "manifestar os segredos do Rei". Que, como a Mãe dos Espirituais, também ela tinha sido chamada a exercer um magistério de incomparável alcance universal.

É certo, nunca sublinharemos bastante as diferenças. Teresa e Teresinha encarnam duas palavras irredutiveis a um comum denominador doutrinal. E isso, precisamente porque os seus ideários nascem de duas experiências humanas profundamente diversas, e em dois contextos culturais e eclesiais irredutíveis.

As distâncias encurtam-se — segundo a citada passagem de Teresinha—nessa única "moção do Espírito Santo", que faz eco ao texto de Paulo: "os carismas são diversos, mas um mesmo espírito" (1Cor 11,4). Assim, os dois carismas magistrais — o de Teresa e o de Teresinha — têm o seu ponto de partida no Espírito que anima o relato autobiográfico de ambas. As duas começaram a escrever a sua própria autobiografia. A captação do sentido profundo da vida vivida é algo assim como a fonte da sua mensagem doutrinal e do seu serviço eclesial. Não só enquanto as duas conseguem dar e expor a sua existência numa micro-história da salvação, mas porque a partir dela anunciam ao leitor o Evangelho de Jesus.

Isso explica, talvez, o grande impacto produzido por esse escrito das duas Teresas, a sua rápida difusão mais além das fronteiras eclesiais e dos confins da cultura ocidental. Obras das duas Santas traduzidas e lidas em línguas quase inatingíveis, sobretudo, a sobrevivência e atualidade do magistério espiritual das duas Teresas a contrapeso das mudanças religiosas e culturais e das outras rupturas de continuidade produzidas nos últimos decênios. Enquanto tantos autores espirituais sucumbiram sob a síndrome da caducidade das ideologias e mensagens, aí continuam os escritos e as doutrinas das duas Teresas, dialogando com leitores e culturas, dentro Obra da Igreja, em sintonia com as exigências da nova evangelização.

É esse, sem dúvida, o motivo de fundo, que reúne as duas Teresas no desempenho de um mesmo serviço da Igreja, o do seu doutoramento eclesial. A Santa de Ávila, proclamada "a primeira mulher doutora da Igreja" e Teresinha, a nova doutora da Igreja.

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TERESA E SÃO JOÃO DA CRUZ

FEDERICO RUIZ OCD

É notória e confessada por Santa Teresinha a dívida que tem com São João da Cruz desde a sua entrada no Carmelo: "Ah! quantas luzes não extraí das obras do Nosso Pai São João da Cruz! Na idade de 17 e 18 anos, não tinha outro alimento espiritual" (Ms A83v). Vem de antes e continua em crescendo até à sua morte. Quando no período da aridez concentra a sua oração no Evangelho, e deixa de lado todos os livros espirituais, João da Cruz é uma exceção, talvez a única. Continua a lê-lo e a citá-lo com o mesmo carinho e freqüência de antes. Nos últimos meses da sua vida, revive e repete insistentemente as palavras da Chama de amor viva. Há referências explícitas e constantes aos escritos do Santo em todas as suas páginas; e abundam os testemunhos diretos da sua contínua referência oral à pessoa e à doutrina do santo Doutor.

Contrastes de vida e cultura

Familiaridade surpreendente. Não era de esperar semelhante sintonia, dadas as diferenças de origem, família, época, vida, temperamento, educação. Teresinha: infância de carinho e abundância, temperamento sensível e emotivo, centro de atenção de toda a família, isolada da fricção com o mundo e o sofrimento. "Tudo me sorria na terra: encontrava flores sob cada um dos meus passos" (Ms A 12r). João da Cruz, pelo contrário: infância de sofrimento e privações, trabalhos duros e humildes, estudo e dedicação a doentes contagiosos. Dentro do Carmelo, a existência de um e de outra têm pouco de vidas paralelas. Teresinha escreve aos seus vinte anos, em estilo narrativo, autobiográfico, episódico. João, aos quarenta: linguagem depurada, essencial, simbólica.

Prevalece sobre os contrastes uma espécie de harmonia prefixada. Quando ela tem doze ou treze anos, o seu pai esconde-lhe as obras de João da Cruz, com medo que esses rigores a deformem. Precisamente, desses anos de adolescência conserva-se um autógrafo de Teresinha, que repete como exercido de caligrafia o lema forte de João da Cruz: "Senhor, padecer e ser desprezado por Vós".

Tipo de relação

Não se trata de simples devoção ou recordação de frases luminosas do seu pai e mestre carmelita. É identificação sistemática e convergência nos pontos nucleares da doutrina dele e dela. Comunhão profunda e espontânea com "a pessoa" mesma do Santo, e não somente com os "escritos". É "nosso santo pai": o pai espiritual da família do Carmelo Teresiano. Misturam-se atitudes e sentimentos de veneração, carinho, discipulado: é o santo, o pai, o mestre, o irmão de vocação, o amigo; admiração espontânea perante o homem maduro, testemunha de Deus, experiente e seguro, teólogo clarividente. Sente-se discípula, irmã, leitora, filha. Encontra nele o modelo espiritual, que a fortalece, corrobora, inspira, e lhe oferece mesmo a palavra exata para dizer a própria experiência.

Para os núcleos

Um instinto certeiro guia-a diretamente para o núcleo da experiência de São João da Cruz; amor, vocação de Igreja, fé obscura e segura, cruz, esperança, morte e glória. Acerta na dinâmica teologal do sistema sanjoanino, quando o estudo teológico-espiritual do Santo ainda não tinha chegado a semelhante precisão. Todas as suas citações e ressonâncias se cravam na vida teologal: união de amor, vivência intensiva e extensiva da união em fé, amor, esperança.

Essa relação tridimensional tem de princípio ao fim o mesmo eixo para os dois: o amor, a vida e a morte de amor. Sabemos que, entre os poucos livros que Teresa conserva no seu quarto para uso pessoal, encontram-se o Cântico espiritual e a Chama de amor viva, encadernados num só volume.

O amor é o seu centro, mas não o seu limite. Impulsionada pelo exercício e expansão do amor, Teresinha assume plenamente a exigência e a experiência do tudo-nada (Subida) e da noite da fé (Noite).

Amor

Por graça, vocação e temperamento, centra-se desde o principio no amor, e faz do Cântico Espiritual a sua obra preferida. Aí vê retratado a João da Cruz, "o Santo do amor por excelência", e vê-se retratada a si mesma nas mais íntimas aspirações. Para ela, as estrofes 25-29 formam o coração da obra: almas jovens enamoradas de Cristo, a interior adega, o amor de doação total, a vocação contemplativa, o serviço à Igreja. Amar: plenitude da vida cristã, eclesial, carmelita; contemplativos para amar. Já não tem nem quer outro oficio, só exercitar-se no amor: amar e ser amada.

Encontra o valor, supremo da Igreja e o sentido da própria vocação numa frase lapidar de frei João que a entusiasma: "É mais precioso diante de Deus e da alma um pouquinho deste puro amor e mais proveito faz à Igreja, embora pareça que não faz nada, que todas essas outras obras juntas" (Ms C 29, 2).

Tudo e nada

O amor, para Teresinha como para João da Cruz, não é um sentimento isolado, mas o dom total e efetivo da vida inteira, com a conseguinte renúncia a tudo o que não é amor a Deus. A experiência do amor vai-lhe descobrindo as exigências de uma vocação de totalidade. Entra assim no ritmo da Subida do Monte Carmelo: "Amar é despojar-se por amor de tudo o que não é Deus" (2 5 5, 7).

Já desde criança, quer "tudo", não as coisas pela metade. Na sua vocação de amor, essa postura afirma--se com cores acentuadamente sanjoaninas. "Tudo o criado, que não é nada, dá lugar ao incriado, que é a realidade". Insistia, diz-nos uma testemunha, Irmã Maria da Trindade, "que o seu pequeno caminho de humildade e de amor não era outra coisa que o de São João da Cruz: o nosso nada e o tudo de Deus". Não recusa as expressões mais duras do seu mestre: é necessário sofrer, sofrer muito, eu antes sofria, mas não amava o sofrimento...

Noite da fé

Advém inesperadamente a última descoberta, a da fé pura e escura. Realiza-a pressionada por uma esperança dolorosa, que a precipita no abismo e na treva. Entra no mundo do sofrimento, ao qual não parecia psicologicamente predisposta, e converte-o na forma suprema da união de amor Marca a sua vida interior e exterior nos últimos meses. A palavra fraterna de frei João é companhia espiritual e ajuda preciosa. Na desolação, tanto ela como as suas irmãs referem-se à experiência com os termos e os esquemas da "noite escura da fé", de São João da Cruz.

É problema total de vida e sentido. Fala com os mesmos termos e exemplos do mestre: tentações de blasfêmia, escrúpulos; e inclusive tomaria por alívio o morrer, E também os mesmos sintomas positivos: interpretação da experiência em chave de fé, confiança em Deus que nunca abandona, a solicitude para servir, pelo menos materialmente, com gestos que a ela lhe parecem banais.

Esperança e morte de amor

Há ressonâncias desta virtude que impregnam toda a sua vida e obra: grandes desejos e segurança do seu cumprimento. Baseada nos princípios do Santo: Deus, "quanto mais quer dar, tanto mais faz desejar" (Ct 15); "porque acerca de Deus, quanto mais a alma espera, tanto mais alcança" (3 S 7, 2). Deus não inspira desejos irrealizáveis.

Identifica-se com Chama de amor viva, especialmente no verso da primeira estrofe: "rompe a tela deste doce encontro": viver e morrer de amor "Com que anseio e consolação repeti, desde o começo da minha vida religiosa, estas palavras do N. P São João da Cruz: 'É da mais alta importância que a alma se exercite muito no Amor a fim de que, consumindo-se rapidamente, não se detenha cá na terra, mas chegue depressa a ver o seu Deus face a face’” (UCR 27.7.5). Durante os últimos meses da sua vida, a Santa e suas irmãs parecem estar a repetir ao vivo esta cena da Chama.

Adaptação pessoal e cultural

Teresinha faz um aproveitamento limitado do conjunto da obra sanjoanina, conforme o pede a sua simplicidade de vida e pensamento. Esta seleção não se guia por critérios de suavidade ou dureza, de amor ou renúncia. Assume sem reservas as expressões mais exultantes e também as mais austeras do mestre.

Advertem-se certos silêncios, pelo menos na referência explícita: deixa de lado as expressões da vida mística, graças e fenômenos, a oração de advertência amorosa, a purificação das mediações na fé e na caridade, a transcendência de Deus na Subida, as perspectivas trinitárias do Cântico e Chama.

Modifica muitas coisas do seu pai e mestre, levada pela experiência pessoal ou por influência de outras fontes: a) Amor: amplia e aprofunda a referência eclesial, na sua releitura de Cântico cc. 27-29; desenvolve as idéias de "abandono-vítima", palavras que João da Cruz nunca utiliza. b) Noite: introduz na vivência da noite escura sombras de "ateísmo" e de materialismo, impensáveis no tempo e ambiente de João da Cruz; vive a noite escura no fim, e não na fase prévia do caminho. Poder-se-iam acrescentar tantas outras variantes...

Conclusão

Todos nos beneficiamos deste parentesco e sintonia espiritual. O leitor da obra sanjoanina encontrará estímulos e orientações no estilo simples e profundo com que Teresinha relê os escritos de João da Cruz: 1) Confirma a previsão do Santo: Estas coisas entendem-se melhor por afinidade de experiência mística, do que pelos estudos de teologia escolástica. 2) Identifica desde o princípio os núcleos essenciais da doutrina sanjoanina, sem se perder em ninharias de estilo ou de contrastes. 3) Faz uma leitura autêntica, aberta à atualidade da graça e da existência pessoal; leitura fiel, dinâmica, original.

No fundo, Santa Teresinha não toma a palavra de frei João como livro ou doutrina, norma ou projeto. É experiência pessoal e biografia de uma graça em comum: isto viveu-o João da Cruz, e isso mesmo me está a acontecer agora a mim.

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CAPÍTULO 5

"O SOFRIMENTO ESTENDEU-ME OS SEUS BRAÇOS"

GENEVIÈVE DEVERGNIES OCD

O Postulantado é a primeira das grandes etapas que assinalam a progressiva adaptação à vida carmelitana. Desde o princípio, Teresa sente-se totalmente contente: "Tudo me parecia encantador.. Esta felicidade não era efêmera; não havia de se desvanecer com as 'ilusões dos primeiros dias (Ms A 69v).

Viverá no Carmelo até à sua morte, isto é, quinhentas semanas, menos de dez anos, sem nunca sair dele.

Os primeiros passos

A nova postulante sente-se plenamente ela mesma, consigo; o que outras chamariam"prisão", para ela é o lugar supremo da liberdade. Esta vida dura e austera encanta-a. Para comprovar o dito, basta vê-la percorrer os claustros silenciosos com passo invariável, firme e tranqüilo, sem precipitação.

Por outro lado, o comportamento de Teresa surpreende a sua comunidade que, advertindo a sua pouca idade, espera vê-la agir como uma criança. De modo algum! As Irmãs, na sua presença, estão como que intimidadas de respeito, apreciando a sua compostura digna e reservada, o seu delicado sorriso, o seu aspecto recolhido e decidido. Certamente, deve haver curiosidade da parte de algumas, também algumas idéias preconcebidas: como se vai comportar esta postulante precoce? Observemos a aprendiz em ação...

A mestra de noviças testemunhará mais tarde: "Desde que entrou, cumpriu todas as suas obrigações com uma graça encantadora". Efetivamente, desde Abril, Teresa tem pressa: "Para ela, o trabalho reduz-se às tarefas humildes: arranjos na rouparia, limpeza de um corredor, de uma escada e de um claustro, um pouco de jardinagem a modo de exercício psíquico" (PA 348). A postulante comprova que "a vida humilde nos trabalhos molestos e fáceis é obra de eleição que necessita de muito amor", como diz Paul Verlaine.

Chegam, no dia 22 — terça-feira de Pentecostes — "as radiosas festas do mês de Maio", em que Teresa é eleita para enfeitar com rosas a sua madrinha, Maria, que acaba de professar: "A mais velha da família, a quem a mais nova teve a alegria de coroar no dia das suas núpcias" (Ms A 71v). Dois dias depois, o Sr. Martin assiste à tomada de véu do seu "diamante", a sua filha preferida. Teresa transborda de alegria na ação de graças e, cumulada de felicidade, encontra aquele que seu pai chama "o diretor de toda a família", o reverendo Pe. Pichon.

É uma figura original e simpática este jesuíta normando, nascido de uma família de rendeiros de pastagens no dia 3 de fevereiro de 1843 em Sainte-Marguerite-de-Carrouges, perto de Alençon. Foi-lhe pedido que fizesse, no dia 23 de maio de 1888, o sermão com motivo da tomada de véu da Irmã Maria do Sagrado Coração. Nesta mesma cerimônia, comemorava-se o cinqüentenário da fundação do Carmelo de Lisieux.

Por esta ocasião, o pregador dá um retiro que termina na segunda-feira, dia 28. De forma espiritual e agradável, trata os seus temas favoritos: oração, humildade, amor de Deus, caridade fraterna e santificação pelas provações; é precisamente isto o que mais chama a atenção de Teresa: "A santidade é preciso conquistá-la à ponta de espada, é necessário sofrer, é necessário agonizar", dirá ela em breve, citando o P. Pichon.

O acontecimento principal destas jornadas é, para Teresa, a entrevista com o P. Pichon na qual lhe descobre, em confissão geral, a luta interior, o "martírio íntimo", que padece desde há cinco anos e que, por momentos, inclusive a angustia: "Não sei como descrever uma doença tão estranha. Agora estou persuadida de que era obra do demônio, mas, durante muito tempo depois da minha cura acreditei que eu me tinha feito doente de propósito (...) Deus, que, sem dúvida, me queria purificar e, sobretudo, humilhar, deixou-me neste martírio íntimo até à minha entrada para o Carmelo, onde o Pai das nossas almas me tirou todas as dúvidas, como que com a mão, e desde aí fiquei completamente tranqüila" (Ms A 28v).

O jesuíta escuta atentamente as confidências da postulante, o seu temor de ter cometido pecado mortal simulando estar doente, os seus sofrimentos, as suas aspirações, e, tendo-a tranqüilizado, diz-lhe estas palavras: "Na presença de Deus, da Ssma. Virgem e de todos os Santos, declaro que nunca cometestes um único pecado mortal... Que Nosso Senhor seja sempre o vosso Superior e o vosso Mestre de Noviciado". Foi-o, de fato, e também 'o meu Diretor espiritual' (Ms A 70r). Porque muito em breve o Pe. Pichon partiu para o Canadá e Teresa encontra-se espiritualmente.

As visitas do papai

O Sr. Martin e Celina vão de vem em quando ao locutório visitar as suas carmelitas. Um "locutório" típico deste tempo era o lugar onde a carmelita podia reencontrar-se com os membros da sua família, os seus amigos, a falar-lhes através de uma grade dupla. Para falar com as outras pessoas que não fossem familiares, punha-se uma cortina opaca diante da grade. Uma companheira, chamada "terceira", assistia à visita, sem tomar parte nela nem ser vista do locutório exterior. A duração da visita era de meia hora. Não se permitia ir ao locutório nas horas do ofício litúrgico e durante os tempos de Advento e Quaresma.

Mas, sobretudo a partir da entrada de Teresa no Carmelo, as mudanças nas visitas converter-se-ão no regalo familiar do Sr. Luís Martin; encontra-se com três das suas filhas e aprecia intensamente estas visitas, quase sempre espirituais. Sente-se monge entre as quatro paredes frias e desnudas do locutório, diante da grade dirigida como um desafio lançado ao mundo... Em todo o caso, a "mais nova", por entre os barrotes cruzados da grade, parece-lhe deslumbrante. Quando ela for agora ao locutório interior, para a jovenzinha, será sempre o mesmo: encontros breves, alguns instantes destinados apenas a confidências sem importância, a meia hora medida pelo relógio de areia passa depressa e as suas irmãs mais velhas têm tanto que partilhar com os que as visitam... Desde o seu Postulantado, quando o tempo designado acaba, é a mesma Teresa quem se despede, não querendo estar nem um segundo a mais, para obedecer.

Depois de entrar no Carmelo a primeira das suas filhas, o Sr. Martin dá provas de autêntica generosidade com as irmãs; dos Buissonnets abundam as ofertas. Quase não passa um dia em que o Sr. Martin não leve à portaria ofertas de toda a espécie. Com algo de comida melhorada remedeia a sobriedade habitual da comunidade: só para agradar à comunidade pesca lúcios em Saint-Martin-de-la-Lieue; apanha trutas em dois viveiros em Saint-Ouen-le-Pin; a corrente leva-o a pescar outros peixes não longe de Deauville, em Touques.

Em seu favor contam-se algumas capturas memoráveis: particularmente uma carpa de 0,59 m de comprimento, que a Irmã Inês descreve como de tamanho natural, e Teresa: "Se soubesses que alegria nos causou a tua carpa, o teu monstro! Atrasou-se o jantar cerca de meia hora, foi a Maria do Sagrado Coração que fez o molho, estava delicioso? (Ct 58).

Doravante, Teresa recebe, por sua vez, o encargo de agradecer "ao" benfeitor. Assim escreve a seu pai: "Tenho ainda uma doce missão a cumprir, a de te agradecer... uma enorme quantidade de pêras, cebolas, ameixas, maçãs que saíam da roda, como de um vaso de abundância" (Ct 63).

A doença do Sr Martin

O tempo dos nove meses do Postulantado de Teresa parece estar particularmente cheio de provações: abateu-se sobre ela uma autêntica superdose de contrariedades. Nada lhe causa dor, fora das dores que já constituem o seu patrimônio. "Os meus primeiros passos encontraram mais espinhos do que rosas... Jesus fez-me compreender que era pela cruz que Ele me queria dar almas" (Ms A 69v).

O espírito de estranha retidão desta "jovem" é que encontrou antecipadamente a vida religiosa tal como a tinha imaginado. "Nenhum sacrifício me espantou" (Ms A 69v). Teresa sabe que está no seu lugar, onde Cristo a quer: "Eis-me aqui, Senhor, para fazer a tua vontade" (Sl 39,8-9). No entanto, o coração humano não se vê privado de certas dores.

Em primeiro lugar, é a saúde do Sr. Martin que lhe vai causar grandes preocupações. No dia 1º de Maio de 1887 tinha tido já um acidente cerebral vascular bastante forte, embora se livrasse rapidamente de uma pequena paralisia em um lado do corpo. A princípios de 1888, a arteriosclerose causa-lhe estragos: tem momentos de grande esgotamento e de perda de memória. Toma consciência do seu estado subitamente, em um certo dia em que, por negligência anormal, deixa morrer de sede a sua cotovia favorita. Alguns dias mais tarde, no locutório do Carmelo, confiará a suas filhas a sua oração nesse momento: "Meu Deus, é demasiado! Sim, sou feliz demais, não é possível ir para o Céu assim, quero sofrer alguma coisa por Vós! E ofereci-me..." (Ct 261).

Dois acontecimentos familiares contribuem para perturbar o papai de Teresa. Por um lado, o problema de Leônia que, tendo entrado no dia 16 de julho de 1887 na Visitação de Caen, não se adaptou; de forma que se vê obrigado a levá-la para Lisieux no dia 6 de janeiro. Por outro lado, Celina, na qual se apóia totalmente, acaba de cumprir dezenove anos e precipita a sua decisão: no sábado, dia 16 de junho, informa o seu pai do seu desejo de ser religiosa. Este anúncio provoca no Sr. Martin um choque muito forte; está tão recente ainda a entrada no convento de Lisieux da sua "rainhazinha"... Pressente a solidão da sua velhice. Na manhã do dia 23 de junho, escapa-se furtivamente ao Deus dará, sem dizer nada a ninguém. Terrível desconcerto nos Buissonnets: quem o viu? quem sabe onde se encontra? Buscas infrutuosas. Que fuga mais angustiosa para as suas filhas que não têm nenhuma notícia! Noite de profunda ansiedade para todos. No dia 24 pela manhã, chega um telegrama do Sr. Martin no qual solicita dinheiro e pede resposta na "lista de correios". Permite encontrar a pista do fugitivo. Celina e o tio Isidoro deslocam-se imediatamente ao edifício dos correios do Havre e três dias mais tarde trazem para casa a Luís Martin. Este acontecimento traumatiza ainda mais que ao resto da família, a Teresa, ferida mortalmente no seu amor filial...

Período de calma durante alguns meses. Mas circulam reflexões humilhantes sobre a doença de seu pai: "Fora, muitas pessoas nos indicavam como responsáveis desta infelicidade, causada, afirmavam, pela dor excessiva, sobretudo pela entrada de Teresa" (Ct 81).

Adivinhamos o desassossego de Teresa, ferida no que ela mais ama. Inclusive a sua escrita acusa o golpe. Quando o seu pai mais necessitaria da sua "filha mais nova", ela não pode voar em sua ajuda! Não é a menor das renúncias no Carmelo o não poder ver diariamente a sua própria família. Tem-nos tão profundamente no coração... Teresa dirá mais tarde: "Não compreendo os santos que não amam a sua família" (UCR 21/26.5.1). Mas Teresa é forte. Deixa atônita a sua mestra de noviças que tinha ido consolá-la: Sofro muito, mas sei que posso suportar ainda maiores sofrimentos", diz-lhe Teresa (Ms A 73v).

Quando se apresenta a ocasião de estreitar os laços fraternos com a Irmã Inês de Jesus e a Irmã Maria do Sagrado Coração, Teresa responde com doçura a esta última que pretende retê-la a seu lado: "Agradeço-vos, seria muito feliz de ficar convosco, mas é preferível privar-me disso, pois não estamos em nossa casa!" (CG 367).

E mais, encontra força para dominar a sua ansiedade a fim de animar a Celina: "A vida é muitas vezes pesada, quanta amargura... mas quanta doçura! Sim a vida custa, é difícil começar um dia de trabalho (...) Se ao menos sentíssemos a Jesus (...) Oh! que enfadonha é a companhia quando Jesus está ausente. Mas que faz então o doce amigo, Ele não vê a nossa angústia, o peso que nos oprime?... Ai! Ele não está longe, está muito perto, olha-nos, pede-nos esta tristeza... Elevemo-nos acima daquilo que passa, conservemo-nos a distância da terra, mais alto o ar é puro. Jesus esconde-se mas nós adivinhamo-lo, derramando lágrimas enxugamos as d'Ele" (Ct 57).

Mais ainda: "Que grande graça quando de manhã nos sentimos sem nenhuma coragem, nenhuma força para praticar a virtude, é então o momento de pôr o machado na raiz da árvore (...) É verdade que às vezes deixamos durante alguns instantes de juntar os nossos tesouros, esse é o momento difícil, onde se é tentado a largar tudo, mas num ato de amor mesmo não sentido, tudo fica reparado e mais ainda (...) O amor pode fazer tudo. Jesus não olha tanto para a grandeza das ações nem mesmo para a dificuldade delas mas para o amor com que são praticadas" (Ct 65).

O caniço que se verga sem se quebrar

Não se entra na alegria de amar sem entrar antes no sofrimento de amar. À força de buscar com amor a verdade do que Deus quer para ela, Teresa vai chegar à verdade do amor.

A adaptação à vida comunitária está cheia de contradições. "O pequeno caniço" experimenta a sua debilidade, mas a sua generosidade não o deixa abater-se: "Sim, desejo essas angústias do coração, essas alfinetadas... Que importa ao pequeno caniço vergar-se. Não tem medo de se quebrar, pois foi plantado à beira das águas. É a sua debilidade que constitui toda a sua confiança» (Ct 55).

É a Madre Maria de Gonzaga quem especialmente lhe vai causar problemas. Durante os primeiros meses de Postulantado, Teresa terá que apoiar-se nela para não ceder a um afeto alienante. "Lembro-me de que, sendo postulante, tinha, por vezes, tão violentas tentações de entrar na vossa cela para me consolar e encontrar algumas gotas de alegria, que me via obrigada a passar rapidamente diante do ofício e de me agarrar ao corrimão da escada. Vinham-me ao espírito uma multidão de licenças a pedir... arranjava mil razões para contentar a minha natureza" (Ms C 22r).

No entanto, a "Nossa Madre" — como se chamava à priora — manifesta para com Teresa uma severidade inaudita. Teresa descobre uma Madre Maria de Gonzaga completamente diferente da dos locutórios, onde sempre era tão amável. Agora, por seu lado, frequentemente são humilhações ou uma indiferença fingida o que para a extrema sensibilidade de Teresa se revela extremamente esgotante. Contudo, a Madre Maria de Gonzaga não lhe tem rancor: "Vereis, minha Madre, no caderno que contém as recordações da minha infância, o que penso da educação forte e maternal que recebi de vós. Do mais profundo do coração vos agradeço não me terdes poupado" (Ms C 1v).

Ao mesmo tempo, com a proximidade do Inverno, a postulante experimentará na sua própria carne uma dura penitência: o frio. Nunca tinha passado um Inverno sem aquecimento, e é friorenta. Na sua cela entra uma umidade glacial. Tirita de frio. As noites são duras e, por vezes, passa-as a tremer até de manhã, sem ter qualquer aconchego. Obteria, facilmente, alguma solução, mas não a pede. Suportar este sofrimento é, para ela, ocasião de amor a Jesus. Somente no seu leito de morte, Teresa confidenciará à Madre Inês de Jesus: "Padeci frio no Carmelo até morrer". A interlocutora comenta: "Estranhei ouvi-la falar assim, porque no Inverno o seu comportamento não revelava nenhum sofrimento. Nunca, nos dias mais frios, a vi esfregar as mãos ou andar mais rápido, mais inclinada que de costume, como costumamos fazer tão naturalmente quando temos frio" (UCR 11.7.8).

Revelação de Teresa que mais tarde fará a mestra de noviças desolada: "Ah, se tivesse sabido, o que não teria feito por remediá-lo! Por isso, disse-me um dia: ‘Que virtude heróica a desta querida irmã! A sua mortificação resumia-se nesta palavra: sofrer tudo sem nunca se queixar, nem por roupa, nem por comida" (PO 2022).

Outra ocasião de mortificação para Teresa foi a comida. A Irmã Maria do Sagrado Coração, que era a "provisora" (quer dizer, a religiosa encarregada de ordenar as comidas e tudo o que se relaciona com a alimentação), referirá: "Nunca pude conseguir conhecer os seus gostos e, sem o querer, fiz-lhe praticar grandes mortificações. Por exemplo, nos dias em que a comida consistia em feijão, não sabendo que lhe faziam mal, enchia-lhe o prato e, como lhe tínhamos dito que comesse de tudo e ela queria obedecer, estava continuamente doente" (DE p. 535). É um fato que "vendo-a tão doce, sem nunca se queixar, dávamos-lhe todas as sobras a esta criança que deveria fortalecer-se; algumas vezes, não tinha no prato senão cabeças de arenque ou restos aquecidos de vários dias seguidos" (PO 272). Outra vez aquecidos de novo!

Teresa tratou superficialmente este assunto: "Foi-me dado também o amor pela mortificação, e foi tanto maior quanto nada me era permitido fazer para o contentar... As que me concediam, sem eu as pedir, consistiam em mortificar o meu amor-próprio, o que me fazia muito maior bem do que as penitências corporais" (Ms A 74v).

Se, por meio de tudo isto, a jovem postulante agüenta, é porque "o pequeno caniço continua a ser igualmente fiel ao sopro mais ligeiro da graça" (Ct 55): verga-se sem se quebrar, porque em Teresa "Deus mesmo é a paz" (Mq 5,4).

O martírio do papai e da filha

A comunidade decide admitir Teresa para a "vestição" ou "tomada de hábito". Normalmente, Teresa deveria tomar o hábito de carmelita em outubro de 1888, depois de seis meses de Postulantado. A veste já está preparada. O Sr. Martin vê-se obrigado a enviar, como recordação da mamãe falecida tão boa rendeira, uma porção de "rendas de Alençon". Quis, pois, para o traje da jovem postulante um vestido de veludo branco adornado com cisnes e... renda de Alençon.

Subitamente, uma recaída de Luís Martin obriga a atrasar a cerimônia. Efetivamente, no dia 31 de outubro, indo ao Havre para se despedir do Pe. Pichon, tem um segundo ataque em Honfleur. A recaída mental do seu pai faz viver as suas filhas um princípio de Novembro carregado de angústia. No dia 15 de novembro, Teresa escreveu a seu pai: "Como Deus é bom por ter-te curado! (...) O Carmelo inteiro estava em oração (...) Sobretudo trata-te bem" (Ct 66). O estado do doente melhora em Dezembro. Depois, a "cura" momentânea convida a fixar, por fim, a data da tomada de hábito. Terá lugar no dia 9 de janeiro de 1889, nove meses, dia após dia, depois da sua entrada no Carmelo, na festa da Anunciação. A postulante está radiante: é a Virgem Maria quem, durante nove meses, a tinha levado no seu coração como tinha levado Jesus no seu seio. Teresa vê com alegria o começo dos seus dezesseis anos, que celebrará no dia 2 de janeiro. Escreve à sua tia no dia 28 de dezembro: "Como a vida passa depressa! Há já dezesseis anos que estou na terra. Gosto muito desta frase dos Salmos: 'Mil anos aos olhos do Senhor são como o dia de ontem que passou' (Sl 89,4). Que rapidez! Oh, quero trabalhar enquanto ainda brilha a luz da vida, porque depois virá a noite em que nada poderei fazer (Jo 9,4)" (Ct 71).

No ano de 1888 acaba-se o ano de Postulantado. Na sua autobiografia, Teresa faz uma espécie de balanço: "Sim, o sofrimento estendeu-me os braços, e lancei-me neles com amor" (Ms A 69v). A postulante aspira a este sofrimento interior, para dar a seu Amado a prova do seu grande e único amor: "Queria amá-lO tanto!... Amá-lo como jamais foi amado!..." (Ct 74). E isto é o que vai tentar viver em plenitude, durante os seus nove anos no Carmelo, enquanto o relógio de areia da sua vida vai passando...

Pela primeira vez no Camelo, Teresa entra em retiro na tarde do dia 5 de janeiro de 1889, durante três dias inteiros segundo o costume de então; mas a postulante verá que a sua solicitude se prolonga por um dia, por um contratempo. Durante este tempo, a postulante só pode falar com a priora ou a mestra de noviças; com as outras, se comunica o menos possível, por escrito, em pedaços de papel... já escritos no reverso (por espírito de pobreza). Escreve assim à Irmã Inês de Jesus: "Não podeis imaginar quanto me custa o não poder falar-vos" (Ct 76) e confidencia-lhe: "Quando estou com a Nossa Madre, sou continuamente interrompida (pelas irmãs que vão falar com ela), e depois quando tenho um instante, não sei dizer-lhe o que se passa na minha alma, saio sem alegria, depois de também ter entrado sem ela!" (Ct 78).

Outra contrariedade causada pela contra ordem recebida no meio do retiro: as exéquias do abade Voisin, vigário geral honorário, presididas pelo bispo, estavam fixadas para a quarta-feira dia 9; o bispo Dom Hugonin avisa o Carmelo de Lisieux do atraso da tomada de hábito de Teresa para o dia 10 de janeiro. Teresa dá uma explicação sobrenatural à sua decepção: "Compreendeis alguma coisa da conduta de Jesus?... Achou sem dúvida que a data do dia 9 era demasiado maravilhosa" (Ct 76).

A secura experimentada desde há alguns meses acentua-se: "Hoje mais do que ontem, se é possível, fui privada de toda a consolação" (Ct 76), sobretudo durante as três ou quatro horas de oração diária: "Nada junto de Jesus, aridez!... Sono!... Mas ao menos há silêncio!" (Ct 74). Teresa "espera estar como Jesus quer; eis a sua alegria, porque de outra forma tudo é tristeza" (Ct 78).

Além disso, uma das Irmãs da comunidade, embora Teresa esteja em retiro, multiplica os comentários ofensivos contra ela, enquanto lhe prova as alpercatas (sandálias de tela grossa, com solas de esparto) cuja confecção lhe está confiada: "Esta manhã, afligi-me muito na presença da Irmã São Vicente de Paulo, retirei-me com o coração muito triste" (Ct 76). E Teresa conclui: "Creio que o trabalho de Jesus durante este retiro foi o de desapegar-me de tudo o que não é Ele" (Ct 78). "Pois bem, tudo será para Ele, tudo, mesmo quando eu não sentir nada para Lhe oferecer, então como esta noite dar-Lhe-ei esse nada!..." (Ct 76).

Tomada de hábito

Que radiante intervalo vai ser a cerimônia da tomada de hábito de Teresa no dia 10 de janeiro de 1889! O Sr. Martin, humilhado na sua lucidez ameaçada, encontra-se sereno e com força suficiente para participar nela.

A cerimônia, hoje em dia foi muito simplificada, mas na época revestia-se de uma grande solenidade: Teresa sai da clausura vestindo um traje de noiva de cauda comprida, com um véu de tipo judeu e uma coroa de açucenas (presente da sua tia) na cabeça, os seus caracóis ruivos flutuando sobre os seus ombros. Depois se reúne com a sua família no fundo da nave da Igreja. A seguir, como para um casamento, a jovem entra na capela pelo braço do seu pai: "Entramos solenemente na capela (...) Esse dia foi o seu triunfo, a sua última festa cá embaixo" (Ms A 72r). Toda a família, em cortejo, segue-os e assiste à missa. Depois de ter participado, na capela, na cerimônia externa, o desfile nupcial desfaz-se e dirige-se para a sacristia. Ali, Teresa abraça todos os seus, a seu pai "que nunca tinha estado mais belo, mais digno..:” (Ms A 72r). Por fim, atravessa definitivamente a porta do convento.

Precedida por todas as Irmãs que levam uma vela acesa, a heroína do dia é conduzida pela priora até o coro das religiosas, e aqui é onde se realizam os ritos chamados da vestidura, aos quais a família assiste pela grade. A Madre priora põe a Teresa o hábito de burel, o escapulário castanho — que liga com o hábito — e a capa branca do coro; depois a cobre com um pequeno véu branco que a noviça usará até à sua profissão. O celebrante, o Sr. Hugonin, bispo de Bayeux e Lisieux, pronuncia as fórmulas litúrgicas. Ela recebe oficialmente o nome de religião: Irmã Teresa do Menino Jesus da Santa Face.

Conforme o costume, no fim da cerimônia, Teresa prostra-se no tapete cor de terra, adornado com açucenas artificiais, disposto no coro das Irmãs, durante o canto do Te Deum. Em seguida, reúnem-se no locutório... Por detrás da grade, Teresa saúda pela última vez o seu pai, radiante de alegria. De fato, só voltará a ver as suas filhas carmelitas uma vez mais: a seu tempo.

Ao entrar na clausura, "a primeira coisa que vi no claustro foi 'o meu Menino Jesus cor-de-rosa', sorrindo-me no meio de flores e luzes" (Ms A 72v), o Menino Jesus pintado cor-de-rosa o qual Teresa se encarregará de adornar até à sua morte. Ela mesma salientará que a cerimônia foi uma autêntica festa na qual não faltou nada, nem sequer a neve, que a temperatura suave pela estação não permitia prever. "Que bela festa!... Nada lhe faltou... Nada, nem sequer a neve... Não sei se já vos falei do meu amor pela neve (...) Sempre desejara que no dia da minha Tomada de Hábito a natureza estivesse como eu, vestida de branco" (Ms A 72r).

Pela tarde, Teresa oferece uma estampa como recordação à Irmã Marta de Jesus: "Pedi a Jesus que me faça uma grande santa, pedirei a mesma graça para a minha querida companheira!" (Ct 80).

Teresa do Menino Jesus da Santa Face

A "Irmã Teresa do Menino Jesus", dirão sempre em comunidade. Na realidade, a partir de janeiro de 1889, Teresa acrescentará ao seu nome o termo "da Santa Face". Desde os dez anos, preocupou-se inclusive do nome de religião que ia ter. A Madre Maria de Gonzaga, a quem vê no locutório, utiliza para ela o diminutivo "Teresinha", por alusão à sobrinha de Santa Teresa de Ávila, que tinha entrado muito nova no convento. Por seu lado, Teresa pensa: "Perguntava-me a mim mesma que nome iria ter no Carmelo. De repente pensei no Menino Jesus, que tanto amava, e disse comigo: 'Oh, como ficaria contente, se me chamasse Teresa do Menino Jesus! Não disse nada no locutório do sonho que tinha tido bem acordada" (Ms A 31v). Qual não seria a sua alegria quando a priora mesma lho propunha!

Desde a sua mais tenra infância, Teresa tinha-se acostumado a venerar a Santa Face de Jesus, tal e como está reproduzida no véu da Verônica, em Roma, na basílica de São Pedro. Descobrirá que no coro do Carmelo brilha, dia e noite uma lâmpada diante da reprodução do ícone. Desde o dia 26 de abril de 1885, a adolescente ficou inscrita no registro da arquiconfraria da Santa Face de Tours, devoção divulgada a partir das revelações que teve a carmelita turonense, Irmã Maria de São Pedro, graça que também tinha recebido o "santo homem de Tours", o Sr. Dupont, que consagrou o resto da sua vida a estender, com o mesmo espírito, o culto da Santa Face.

Teresa contempla nela o amor de Jesus pelos homens; não é precisamente o aspecto "reparador" o que lhe atrai. Considera, antes, o amor: "Contempla Jesus na sua Face... Aí verás como Ele nos ama" (Ct 87), todas as humilhações sofridas pelo nosso Salvador: "Ah, como o de Jesus, eu queria que no meu rosto ficasse verdadeiramente escondido" (Ms A 71r).

"Até então eu não tinha sondado a profundidade dos tesouros escondidos na Santa Face" (Ms A 71r). A Irmã Teresa do Menino Jesus da Santa Face foi a primeira, no Carmelo de Lisieux, que escolheu esse nome. "Compreendi o que era a verdadeira glória: como o de Jesus, eu queria que o meu rosto ficasse verdadeiramente escondido; que ninguém na terra me reconhecesse (Is53, 3). Tinha sede de sofrer e de ser esquecida..." (Ms A 71r). Teresa afirma também: "A glória do meu Jesus, eis tudo; a minha, eu abandono a ele" (Ct 103).

É a cruel jornada do dia 12 de fevereiro de 1889. O estado de saúde de Luís Martin deteriora-se de repente: perde a memória, imagina um montão de episódios dramáticos e as suas alucinações tomam um rumo inquietante para os seus familiares. No dia 18 de fevereiro de 1889, Celina escreve a uma amiga, Paulina Romet: "É muito triste que a paralisia se tenha fixado no cérebro; se não fosse assim, o teríamos ainda em casa o nosso tão querido pai. É de uma bondade incrível; com o seu revólver não queria de modo algum causar-nos mal, pelo contrário, queria defender-nos; na sua imaginação, via coisas espantosas, matanças, batalhas; ouvia o canhão e o tambor. Eu desenganava-o inutilmente; uma tentativa de roubo na cidade não fez senão confirmar as suas idéias; por isso, tomou o revólver e queria levá-lo consigo em caso de perigo, porque — dizia ele — eu não causaria dano nem a um gato. Efetivamente, não creio que o tivesse usado, era uma idéia que passava pela sua mente e desaparecia. Talvez devêssemos esperar e tentar, antes de tomar quaisquer decisões, todos os meios para que ficasse".

Mas o Sr. Guérin não opinava assim, pois temia pela vida das suas sobrinhas ou da criada, Maria Cosseron. Recorreu rapidamente ao seu amigo comum, homem alto e vigoroso, para desarmar o doente. O tio Guérin decide fazê-lo internar no asilo do Bom Salvador de Caen. Foi confiado aos bons cuidados da Irmã Costard, responsável por uma parte do estabelecimento; quinhentos homens doentes estão sob o seu governo. O Sr. Martin permanecerá ali durante três anos. Uns dias depois, Leônia e Celina instalam-se perto, na casa das Irmãs de São Vicente de Paulo e, do dia 16 de fevereiro ao dia 5 de maio de 1889, vão todos os dias pedir notícias, pois não podem visitá-lo senão uma vez por semana.

A família Martin está aterrada, desorientada, dolorosamente transtornada. Teresa escreve regularmente a Celina para Caen, e, no Carmelo, refugia-se num silêncio alimentado pela Palavra de Deus. "Não sabia que a 12 de fevereiro, um mês depois da minha Tomada de Hábito, o nosso querido pai iria beber pela mais amarga, pela mais humilhante de todas as taças. Ah! nesse dia não disse que podia sofrer ainda mais! As palavras não podem exprimir as nossas angústias, por isso não vou tentar descrevê-las. Um dia, no Céu, gostaremos de falar das nossas gloriosas provações. Não nos sentimos já felizes por as termos suportado?... Sim, os três anos do martírio do Papai parecem-me os mais amáveis, os mais frutuosos de toda a nossa vida. Não os trocaria por todos os êxtases e revelações dos Santos. O meu coração transborda de reconhecimento ao pensar nesse tesouro inestimável!" (Ms A 72 v-73r).

Os mexericos aumentam ainda mais a aflição da família: "O santo patriarca" vive entre os loucos! Não é isto uma prova que se estenderá a todos os seus?

Como vai reagir Teresa a esta privação que a afeta no mais íntimo dela mesma? Contemplando mais do que nunca a Santa Face de Jesus. Todo o período do noviciado viverá o peso desta desgraça.

Mas o olhar de dor do papai transforma-se docemente no véu da Verônica. "Como a Face Adorável de Jesus que foi vendada durante a sua Paixão, assim a face do seu fiel servidor devia ser vendada nos dias das suas dores..." (Ms A 20v). Através das lágrimas, Teresa descobre, por detrás do olhar do seu pai humilhado, os traços do Salvador sofre- dor: "Não tinha aparência nem beleza; era desprezado, homem de dores" (Is 53,2-3). No fim da sua vida, Teresa confessará: "Estas palavras de Isaías constituíram o fundamento da minha devoção à Sagrada Face, ou para melhor dizer, o fundamento de toda a minha piedade. Também eu desejava estar sem beleza, pisar as uvas sozinha no lagar, desconhecida de todas as criaturas..." (UCR 5.8.9).

E Jesus ensinar-lhe-á que "a verdadeira sabedoria consiste em querer ser ignorado e tido em nada, em pôr a sua alegria no desprezo de si mesmo" (Imitação, 3,49). Teresa escreverá à Irmã Maria do Sagrado Coração: "Rezai para que a vossa filhinha seja sempre um grãozinho de areia muito obscuro, muito escondido de todos os olhares, que só Jesus possa vê-lo; que se tome cada vez mais pequeno, que seja reduzido a nada" (Ct 49).

E à Irmã Inês de Jesus: "Rezai pelo pobre grãozinho de areia para que o grão de areia permaneça sempre no seu lugar, quer dizer debaixo dos pés de todos, que ninguém pense nele, que a sua existência seja por assim dizer ignorada, o grão de areia só deseja ser humilhado, isto é ainda glorioso demais visto que seriam obrigados a ocupar-se dele, e ele só deseja uma coisa, ser esquecido, ser tido em nada! (...) Que ao menos a face ensangüentada de Jesus se volte para ele... Não deseja senão um olhar, um só olhar!... Se fosse possível a um grão de areia consolar Jesus, enxugar-Lhe as lágrimas, como há um que o queria fazer... Que Jesus tome o pobre grão de areia e que o esconda na sua Face adorável... aí o pobre átomo não terá mais nada a recear, estará certo de não pecar mais" (Ct 95).

“No silêncio e na esperança estará a vossa fortaleza (Is 30,15)

Com a tomada de hábito começa o ano canônico do noviciado de Teresa. De fato, o seu noviciado durará vinte meses. Ao fim de um ano poderia ter emitido os votos perpétuos (então não havia profissão temporal). Em janeiro de 1890 terá exatamente os dezessete anos requeridos pelas Constituições para o seu compromisso de toda a vida. Mas, considerando a sua juventude, os "superiores", o Capelão Delatroëtte e a Madre Maria de Gonzaga, julgam preferível atrasar o prazo. Tem de esperar novamente, como para a tomada de hábito. Teresa afirma: "Ao princípio foi-me bem difícil aceitar esse grande sacrifício..." (Ms A 73v).

Durante o noviciado, a carmelita continua a receber formação em todos os aspectos, mas não participa ainda no capítulo das religiosas. Além do mais, Teresa nunca participará, não votará, pois continuará sempre no noviciado: "Além disso, ela não poderia gozar dos seus direitos de capitular (voz ativa e passiva), devido à presença das suas duas irmãs mais velhas no capítulo conventual" (CG 725). É o tempo da autêntica aprendizagem "religiosa": do amadurecimento interior, da iniciação na vida de oração e na partilha fraterna. Teresa exercita-se em tomar a sua parte no trabalho comunitário, com as dificuldades e alegria inerentes.

Há pouco a realçar neste período: "Aplicava-me sobretudo a praticar as pequenas virtudes, não tendo facilidade para praticar as grandes. Assim, gostava de dobrar as capas esquecidas pelas Irmãs, e de lhes prestar todos os pequenos serviços que pudesse" (Ms A 74v).

"Trabalho unicamente para Lhe agradar" (UCR 16.7.6)

A noviça forma-se cada vez mais no seu ambiente. A Irmã Maria do Sagrado Coração, "anjo" de Teresa, inicia-a nos costumes do Carmelo. No ofício coral, a mais nova entoa as antífonas, recita os versículos, lê as lições do ofício noturno (Matinas), tudo em latim. Na sua vez, faz por uma semana os serviços de hebdomadária: toque da sineta, serviço e leitura durante as refeições.

Por outro lado, os trabalhos domésticos fazem parte da vida das carmelitas. Alguns são feitos pelo conjunto da comunidade, como a lavagem da roupa. Durante a lavagem da roupa fazem turnos na lavanderia para lavar a roupa ou no lavadouro para bater a roupa de linho. Teresa entrega-se ao trabalho com ardor, mas não esquece o essencial: "O teu ofício nesta vida / deve ser unicamente: 'O amor!"' (PN 13).

Na autobiografia de Teresa fala-se frequentemente de "ofícios". Esta palavra designa ao mesmo tempo uma função ("ofício") ou um lugar. O emprego confia-se a duas irmãs ("oficiais"): uma "primeira oficial", responsável, e uma "segunda oficial", frequentemente uma noviça ou uma jovem professa. A Irmã Teresa do Menino Jesus foi toda a sua vida "segunda oficial".

O lugar é onde se realiza a função: alfaiataria, rouparia, fabricação das hóstias, roda, pintura... Quando Teresa estava a agonizar na cama da enfermaria, numa das suas últimas conversas, a madre Inês de Jesus pediu-lhe que explicitasse os seus ofícios no Carmelo: "Desde a minha entrada no Carmelo, fui destinada à rouparia com a Madre Sub-priora (Irmã Maria dos Anjos): tinha, além disso, de varrer a escada e o corredor... Lembro-me que me custava muito pedir à Nossa Mestra permissão para fazer mortificação no refeitório, mas nunca cedi à minha repugnância, parecia-me que o crucifixo do claustro, que eu via pela janela da rouparia, se voltava para mim para me pedir este sacrifício. Era nesta época que eu ia apanhar erva às 4:30 h., o que descontentava a Nossa Madre. Depois da minha tomada de hábito, fui destinada ao refeitório até à idade de dezoito anos; varria-o e punha a água e a cerveja. Nas Quarenta Horas de 1891, puseram-me na sacristia com a Irmã Santo Estanislau. A partir do mês de Junho do ano seguinte, fiquei dois meses sem ofício, quer dizer que, durante esse tempo, pintei os anjos do oratório e servia de terceira à depositária. Depois desses dois meses, fui destinada à roda com a Irmã São Rafael, sem deixar a pintura. Tive estes dois ofícios até às eleições de 1896, quando pedi para ajudar a Irmã Maria de São José na rouparia, nas circunstâncias que já sabe..."

A madre Inês acrescenta: "Contou-me depois como a achavam vagarosa, pouco dedicada nos ofícios, coisa que eu própria acreditei; e de fato lembramo-nos as duas como a repreendi com severidade por causa de uma toalha do refeitório que tinha guardado durante muito tempo no cesto, sem a arranjar. Acusava-a de negligência e enganava-me, pois foi o tempo que lhe faltou. Desta vez, sem nada a desculpar, chorara muito, ao ver-me triste e muito descontente... Como é possível! Disse-me ainda o que tinha sofrido no refeitório comigo (eu era nessa altura a sua primeira de ofício), por não poder dizer-me os seus pequenos segredos como outrora, porque não tinha licença para isso, e por outras razões... Tanto que a madre chegou a ponto de já não me conhecer, acrescentou ela. Falou-me da violência que fazia sobre si mesma para tirar as teias de aranha do vão escuro de Santo Aleixo, debaixo da escada (tinha horror às aranhas), e mil outros pormenores que me provavam como ela tinha sido fiel em tudo e o que tinha sofrido sem ninguém se dar conta" (UCR 13.7.18).

Há outra tarefa que espera a Teresa

"Ah! como ficaria contente, se soubesse pintar... Com grande admiração das Irmãs, mandaram-me pintar, e Deus permitiu que eu soubesse aproveitar das lições que me dava a minha querida Madre Inês" (Ms A81 r-v).

Pouco a pouco, depois da eleição da sua irmã para o priorado, Teresa dedica-se ao ofício de pintar. Continuará, na sombra, iluminando, pintando imagens religiosas, ornamentos da Igreja. Durante o Verão de 1893, Teresa pintou um afresco na parede do oratório das doentes. Este afresco rodeia o tabernáculo onde o capelão, nos dias de adoração, expõe a custódia.

Quando no dia 20 de fevereiro de 1893 a Irmã Inês de Jesus é eleita priora, não há problemas para que Teresa organize as festas, sobretudo porque as principais relacionam-se com a prioresa. A madre Inês cede o mando à sua Irmã Teresa. "Deus quis que conseguisse fazer poesias, compondo trechos que acharam bonitos" (Ms A 81v). Na opinião dos críticos mais exigentes, a jovem religiosa tem autêntico dom poético, embora não tivesse tido nenhuma formação literária profunda. Ela explicá-lo-á: "O nosso Amado não necessita das nossas belas idéias, das nossas obras maravilhosas. Não é o espírito nem os talentos o que Jesus veio buscar aqui embaixo". Efetivamente, Teresa oferece-se a si mesma, toda, a Deus. A santidade? É esta a sua obra mestra!

Assim, Teresa vai seguir uma tradição do Carmelo: a de transcrever sob forma poética os sentimentos da alma, os profundos movimentos da vida interior. Teresa de Ávila e João da Cruz, nas suas "glosas" espirituais, foram os primeiros a dar o exemplo. Neste espírito Teresa é requerida para escrever poesias para solenizar as festas da Igreja, os aniversários, as profissões.

A serviço da liturgia

"A irmãzinha Amém-, como lhe chama a Irmã Santo Estanislau, a sua "primeira oficial" na sacristia, trabalha neste ofício desde fevereiro de 1891 até fevereiro de 1893. Voltará a este ofício com a sua prima Maria Guérin, já carmelita, em março de 1896.

Teresa é feliz com este trabalho que a associa o mais de perto possível com o ministério sacerdotal: ei-la sacerdote, sem o ser, ela que invejava a sua vocação! "Sinto em mim a vocação de sacerdote. Com que amor, ó Jesus, te seguraria nas minhas mãos quando, à minha voz, descesses do Céu... Com que amor te daria às almas!... mas, ai de mim! Desejando ser Sacerdote, admiro e invejo a humildade de São Francisco de Assis, e sinto a vocação de o imitar, recusando a sublime dignidade do Sacerdócio" (Ms B 2v).

Gosta muito de preparar as hóstias e encher o cálice. "Sentia-me muito feliz por tocar nos vasos sagrados e por preparar os corporais destinados a receber Jesus. Dava-me conta de que precisava ser muito fervorosa, e lembrava-me muitas vezes desta frase dirigida a um santo diácono: 'Sede santos, vós que tocais nos vasos do Senhor' (Is 52,11)" (Ms A 97v). Onze dias antes da sua morte, Teresa pede ainda para poder olhar no fundo do cálice, depois da missa: "Porque vejo a minha imagem refletida nele. Na sacristia gostava de fazer isto. Ficava contente por dizer a mim mesma: Os meus traços refletiram-se no ponto em que repousou o sangue de Jesus e onde voltará a descer" (UCR 19,9).

No dia a seguir ao Natal de 1891, a epidemia da gripe que assolava a Europa (cerca de 70.000 vítimas), abateu-se sobre a comunidade. Em oito dias, levou três religiosas das mais velhas: a mais velha de oitenta e três anos, Irmã São José de Jesus, no dia 2 de janeiro de 1892; no dia 4, a Irmã Febrônia, a sub-priora; no dia 7, Teresa encontra morta na sua cela a Irmã Madalena, a mais velha das irmãs conversas.

A maior parte das carmelitas caem de cama. Ficaram de pé apenas Teresa, a Irmã Maria do Sagrado Coração e uma conversa, a Irmã Marta. "Nessa altura estava eu sozinha com o cargo da sacristia, por estar gravemente doente a primeira do ofício. Era eu que tinha de preparar os funerais, abrir as grades do coro para a missa, etc." (Ms A 79r). Teresa trabalha ativa e tranquilamente; amortalha as mortas, cuida das doentes. A vida comum está completamente desorganizada não há toques de sinos, não há ofícios, não há refeições em comum no refeitório. Ao superior, que tempos antes era contrário à vocação da "irmãzinha Amém", não lhe resta mais remédio senão constatar a fortaleza de ânimo com a qual Teresa enfrenta a situação: "Ela é — diz — doravante uma grande esperança para a comunidade" (CG 649).

Como estas circunstâncias não são para ir incomodar ininterruptamente a priora para lhe pedir licenças, Teresa aproveita para realizar um dos seus desejos mais queridos: "Durante todo o tempo em que a Comunidade assim foi provada, puder ter a inefável consolação de receber todos os dias a Sagrada Comunhão" (Ms A 79v).

Teresa não se verá privada de "festas" no Carmelo: celebram-se tantas..., litúrgicas e comunitárias, incluídas no quotidiano: "As festas... Gostava tanto delas" (Ms A 17r).

As festas litúrgicas escalonam todo o ano. Já Santa Teresa se Ávila punha a liturgia no cume da vida de oração. Dava um lugar importantíssimo à Eucaristia, ao ritmo das Horas canônicas. No Carmelo, procura-se tomar em oração as grandes intenções da humanidade, e interceder por elas. Além disso, oração silenciosa durante todo o dia: "Tratar de amizade, estando muitas vezes tratando a sós com quem sabemos que nos ama", dizia a Santa de Ávila (V 8,5). Pela manhã e pela tarde, durante a hora de oração, é o momento da escuta silenciosa do “Amigo verdadeiro".

As grandes festas litúrgicas do Natal, da Páscoa, do Pentecostes, de Nossa Senhora do Monte Carmelo... celebram-se no convento com alegria e, habitualmente, seguidas de dias de "licença" (em Natal, três), nos quais as irmãs podem falar livremente. Quanto às festas comunitárias — tomadas de hábito, profissões, bodas de ouro —, celebram-se na clausura de um modo mais íntimo e fraterno. Interesse especial merece a festa da priora: não só dura dois dias, mas as irmãs representam alguma pequena peça de teatro cuidadosamente preparada. Teresa coloca em cena, no dia 21 de janeiro de1894, "A missão de Joana d'Arc" (RP 1), em honra da Donzela de Orleans. No ano seguinte, na mesma festa, apresenta "Joana d'Arc cumprindo a sua missão" (RP 3).

Para os recreios "ordinários", as irmãs reúnem-se no Inverno na única sala com aquecimento e conversam ao mesmo tempo em que se ocupam livremente de algum pequeno trabalho; no Verão, o jardim oferece-lhes um ambiente agradável. Quando chega a época de recolher o feno, todas as sãs se dedicam a isso com prazer.

"Eu sou para o meu amado, o meu amado é para mim" (Ct 6, 3)

Chega o tempo de Teresa fazer a sua consagração definitiva pelos votos religiosos, que selam a entrega total do ser ao Deus de Amor, pelo caminho cotidiano da fidelidade. Consagrada já a Deus pelo batismo, a noviça deseja tornar mais profunda esta aliança. Para isso, escolhe viver uma vida de pobreza, de castidade e de obediência, entregando-se ao Espírito Santo, para que, com Cristo, a sua própria vida seja oferecida ao Pai pela Igreja e por toda a humanidade.

Em relação à observância dos votos, na prática, Teresa tinha, num alto grau, o espírito do normal e da renúncia. Algumas citações sobre o particular confirmam-no suficientemente. "Uma noite, depois de Completas, procurei em vão a nossa lamparina nas prateleiras onde as deixávamos. Como estávamos no silêncio rigoroso, era impossível reclamá-la... Compreendi que alguma Irmã, pensando levar a dela, tinha pegado a nossa, da qual eu tinha grande necessidade. Em vez de sentir desgosto por me ver privada dela, fiquei muito feliz, sentindo que a pobreza consiste em se ver privada, não somente das coisas agradáveis, mas mesmo das coisas indispensáveis" (Ms A 74v). A propósito da pobreza espiritual: "Regozijei-me por ser pobre, desejei sê-lo cada vez mais" (Ct 176). "Não temas, quanto mais pobre fores, mais Jesus te amará" (Ct 211). Quanto ao voto de castidade, dirá: "O coração do meu Esposo é só meu como o meu é só d'Ele" (Ct 122).

Para Teresa, o voto de obediência anda a par com a liberdade interior: "De quantas inquietações nos livramos ao fazer o voto de obediência!... Mas quando se deixa de olhar para a bússola infalível... depressa a alma se transvia nos caminhos áridos..:” (Ms C 11r). "Enfim, não escrevo para compor uma obra literária, mas por obediência. Se vos aborreço, pelo menos vereis que a vossa filha deu provas de boa vontade" (Ms C 6r). "Estou a obedecer-vos... Não julgueis que procuro saber que utilidade poderá ter o meu pobre trabalho; como o faço por obediência, isso me basta, e não sentiria nenhum desgosto se o queimásseis na minha frente, sem o terdes lido" (Ms C 33r).

Teresa está a ponto de emitir os seus votos. Ao estar fixada a cerimônia da profissão para o dia 8 de setembro de 1890, o retiro de preparação começa a 29 de agosto. A partir do dia 30, escreve à Irmã Inês: "É preciso que a solitariazinha vos diga o itinerário da sua viagem, ei-lo. Antes de partir, o seu Amado perguntou-lhe para que país queria ela viajar, que caminho desejava seguir, etc., etc. A noivazinha respondeu que tinha somente um desejo, o de chegar ao cimo montanha do Amor. Então Jesus pegou-me pela mão, e fez-me entrar num subterrâneo onde não está frio nem calor, onde não brilha o sol e que nem a chuva nem o vento visitam, um subterrâneo no qual nada vejo a não ser uma claridade semi-velada, a claridade que espalham à sua volta os olhos baixos da face do meu Prometido C..) A senda que sigo não é de consolação alguma para mim e todavia traz-me todas as consolações visto que foi Jesus que a escolheu, e que eu só a Ele desejo consolar, só a Ele!" (Ct 110). No mesmo dia confidencia à Irmã Maria do Sagrado Coração: "Ela está feliz por seguir o Noivo por amor a Ele só e não por causa dos seus dons... Só Ele é tão belo, tão encantador! Mesmo quando se cala... mesmo quando se esconde" (Ct 111).

No exame canônico de 2 de setembro, Teresa responde ao superior, o Sr. Delatroëtte: "O que vinha fazer no Carmelo, declarei-o aos pés de Jesus-Hóstia, no exame que precedeu a minha profissão: 'Vim para salvar as almas e, especialmente para rezar pelos sacerdotes” (Ms A 69v).

Na véspera da profissão, uma tempestade repentina sacode Teresa no seu retiro: "As minhas trevas eram tão grandes, que não via nem compreendia senão uma coisa: Eu não tinha vocação!... Fui chamar a minha Mestra e, cheia de confusão, manifestei-lhe o estado da minha alma... Felizmente, ela viu mais claro do que eu, e tranquilizou-me completamente" (Ms A 76v).

Na manhã do dia 8 de Setembro, na sala capitular, Teresa faz a profissão na presença de toda a comunidade reunida: "Senti-me inundada por um rio de paz. E foi nessa paz superior a todo o conhecimento, que pronunciei os meus Santos Votos. Ofereci-me a Jesus, para que Ele cumpra perfeitamente em mim a sua vontade, sem que as criaturas jamais se oponham" (Ms A 76v).

No dia 24 de setembro de 1890 teve lugar a cerimônia da Tomada do véu de Teresa: da mudança do véu branco de noviça pelo véu negro de professa: "Foi um dia inteiramente cheio de lágrimas. O Papai não estava lá... O Padre [Pichon] estava no Canadá. O Senhor Bispo que devia vir e jantar em casa do meu Tio, estava doente também, e não veio. Enfim, tudo foi tristeza e amargura... Não obstante, a paz, sempre a paz, encontrava-se no fundo do cálice. Nesse dia Jesus permitiu que não conseguisse reter as lágrimas, e o meu pranto não foi compreendido" (Ms A 77r). A madre Inês escreverá, na sua declaração nos Processos: "Em vez de a consolar, disse-lhe: 'Não compreendo que choreis"'.

Doravante, a Irmã Teresa do Menino Jesus é carmelita de pleno direito. Que é para ela o Carmelo? Um lugar de vida austera, rigorosa, esgotante, mas que por dentro irradia a presença do Deus de Amor a quem Teresa espera não Lhe negar nada.

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AS VINTE E QUATRO HORAS NO CARMELO

GENEV1EVE DEVERGNIES OCD

Como se apresenta, nos tempos de "irmãzinha Teresa", um dia no convento de Lisieux? Apesar de uma ligeira diferença entre o horário de Verão, desde a Páscoa até 14 de Setembro, e o de Inverno, desde o dia 14 de Setembro até à Páscoa, a jornada ordinária é quase sempre idêntica. Eis o desenvolvimento, conforme as notas da Irmã Genoveva:

4:45h Levantar

5:00h Oração

6:00h Horas menores do ofício

(Prima, Tércia, Sexta e Noa)

7:00h Missa e ação de graças

(nos domingos, às 8:00 h)

8:00h Pequeno-almoço: sopa

(nada nos dias de jejum)

Trabalho

9:50h Exame de consciência

10:00h Almoço

11:00 Recreio (lavar os pratos na cozinha, para as irmãs encarregadas: cerca de meia hora)

12:00h Silêncio (sesta, tempo livre)

13:00h Trabalho

14:00h Vésperas

14:30h Leitura espiritual (ou reunião das noviças no noviciado)

15:00h Trabalho

17:00h Oração

18:00h Ceia

18:45h Recreio (lavar os pratos)

19:40h Completas

20:00h "Silêncio" (tempo livre, como ao meio-dia)

21:00h Matinas e Laudas (duração: uma hora e um quarto, uma hora e quarenta minutos, conforme as festas)

Exame de consciência (dez minutos)

Leitura do ponto de oração do dia seguinte

22:30h/23:00h Descanso.

No dia 14 de setembro, horário de Inverno: atrasa-se em uma hora a hora de se levantar, bem como todas as atividades da manhã inclusive o recreio. A sesta suprimia-se; a partir das 13:00h, volta-se ao mesmo horário do Verão.

O tempo fica dividido: seis horas e meia para a oração (duas horas de oração mental e quatro horas e meia para a missa e o ofício coral); meia hora de leitura espiritual; cerca de cinco horas para o trabalho; duas horas de recreio comunitário; quarenta e cinco e trinta minutos para as refeições em comum, em silêncio (Acompanhadas de leitura em voz alta); uma hora de tempo livre ("o silêncio rigoroso"), antes de Matinas; seis horas para dormir no Verão (completadas com sesta facultativa de uma hora); sete horas contínuas no Inverno.

Regime alimentar do Carmelo

Algumas notas sobre o regime alimentar do Carmelo de Lisieux, em tempos de Teresa:

A Regra do Carmelo prescreve a abstinência perpétua de carne, mas autoriza-a em caso de doença ou de debilidade. O pão constitui a base da alimentação, que se completa também com muito leite e féculas. As refeições são assim distribuídas:

a) Regime de Verão, sem jejum:

- Depois da missa (pelas 8:00 h): sopa grossa, que se tomava de pé, no seu próprio lugar, pelo lado exterior da mesa.

-Ao meio-dia (de fato, às 10:00 h): peixe ou ovos, legumes (ração abundante), sobremesa (queijo ou fruta); as rações eram preparadas antes em pratos de barro.

- Pela tarde (às 8:00 h): sopa, legumes, sobremesa.

Nada entre as comidas; havia licença para beber às 15:00h e depois de matinas.

Algumas Irmãs achavam mais penoso que o jejum esse regime de duas comidas pela manhã, com um intervalo de duas horas.

b) Jejum da Ordem:

- Pela manhã, nada.

- Almoço, às 11:00h: sopa, e o resto como de costume.

- Ceia, às 18:00h: pão pesado (de meia a sete onças, ou seja, cerca de 215 gramas), manteiga ou queijo, frutas, às vezes marmelada. Nem caldo nem sopa: nada quente.

c) Jejum da Igreja [Quaresma, Quatro têmporas e vigílias]:

- Pela manhã, nada.

- Almoço, às 11:30h: como no pequeno-almoço da Ordem, mas são proibidos os ovos e os produtos lácteos; sopa ou com água ou com azeite.

- Refeição, às 18:00h: seis onças de pão, nada de marmelada, frutos naturais ou secos (maçãs, figos, ameixas, nozes, etc.).

Teresa não jejuou antes dos vinte e um anos (Janeiro de 1894), mas esteve submetida à abstinência de carne, exceto quando dispensada por doença.

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AS LEITURAS DE TERESA

GENEVIEVE DEVERGNIES OCD

A educação espiritual familiar recebida, ajuda Teresa a realizar poderosamente a sua unidade interior. A sua formação continua a aperfeiçoar-se no Carmelo, por meio de leituras pessoais ou escutadas em comunidade.

Desde o Postulantado, Teresa tem para uso pessoal o Manual do cristão, que contém os Salmos e o Novo Testamento, a Regra e as Constituições, um livro de Direção espiritual, Notas de conduta, levado para França pelas nossas Madres espanholas, obra que servia de base para a formação das noviças, do tempo de Teresa; este livro continha todas as regras em ordem a "compostura exterior" que a carmelita devia adquirir. Também um Saltério traduzido por Glaire e um Pequeno Breviário do Sagrado Coração.

Entre os livros mais usados por Teresa encontram-se certamente: a Imitação de Jesus Cristo, que a mais nova das filhas Martin sabia praticamente de memória; e a obra que comenta com autoridade a doutrina da renúncia: Os fundamentos da vida espiritual do Pe. Surin, As nossas grandezas em Jesus Cristo, bem como A piedade e a vida interior do Sr Bispo de Segur, um ou outro volume do Pe. Faber, especialmente Ao pé da cruz, do qual Teresa se servirá para a sua recreação piedosa "A fuga para o Egito" (RP 6).

Alguns livros eram postos à disposição das noviças, outros eram colocados no antecoro, para uso das religiosas que os podiam levar ou consultar ali. Teresa conheceu o livro de Henrique Suso, Avisos espirituais; gostava, igualmente, dos comentários de alguns versículos de Isaías do P. Luís d'Argentan, e, desde há muito tempo, apreciava, nas conferências do abade Arminjon, um verdadeiro tratado dos novíssimos.

Esta lista não é exaustiva... Contudo, é importante indicar que a jovem religiosa se dedica especialmente às obras de fundo dos reformadores do Carmelo. Em Lisieux, o conhecimento e a influência de Teresa de Ávila leva vantagem em muito a João da Cruz. Teresa não leu as obras completas da Madre; apesar disso, por sua vez, gostará de se chamar "filha da Igreja", afirmará que "só Deus basta", escreverá na sua própria língua "Daria mil vidas para salvar uma só alma".

Por outro lado, a influência de São João da Cruz é profunda na jovem: "Ah! quantas luzes não extraí das obras do Nosso Pai São João da Cruz! Na idade de 17 e 18 anos, não tinha outro alimento espiritual" (Ms Ab83r). Dele recebe principalmente e docilmente as lições sobre a renúncia interior, vivendo por seu lado "sem apoio e, no entanto, apoiada..."

Para falar verdade, o "doutor místico" era pouco conhecido na França, e menos ainda estudado. A biblioteca do convento da rua de Livarot não possuía em 1888 mais que três tomos da sua vida e das suas obras, referidas por um autor anônimo. Além disso, quando o Carmelo da avenida de Messina em 1876, por instâncias de uma priora de origem andaluza — madre Teresa de Jesus —, traduz e edita as obras de João da Cruz, não será um carmelita, mas um dominicano, o mui reverendo P Chocarne, quem pedirá para fazer a introdução. Antes da Irmã Teresa do Menino Jesus, não se sabe se há algum dado de que utilizassem de forma metódica os escritos do Carmelo espanhol. Não havia nenhuma revista para os contentar ou divulgar. A cultura religiosa, bastante rudimentar, não convidava a penetrar nos segredos de uma doutrina que se considerava reservada a poucos iniciados. Até a ponto de que São João da Cruz, nos finais do século XIX passava inclusive como um autor desconhecido; era pouco lido e nunca se via citar a sua autoridade.

Teresa chegará a afirmar: "Mas é sobretudo o Evangelho, que me vale durante as minhas orações. Nele encontro tudo o que é necessário à minha pobre alminha" (Ms A 83v).

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TERESA NOS FALA:

"Como crianças pequenas"

"Compreendi o que era a verdadeira glória. Aquele, cujo reino não é deste mundo (Jo 18,36), mostrou-me que a verdadeira sabedoria consiste em«querer ser ignorada e tida por nada, — a «pôr a sua alegria no desprezo de si mesma»... Ah! como o de Jesus, eu queria que «o meu rosto ficasse verdadeiramente escondido; que ninguém na terra me reconhecesse» (Is 53,3). Tinha sede de sofrer e de ser esquecida...

Como é misericordioso o caminho pelo qual Deus sempre me conduziu! Nunca me fez desejar nada sem mo dar. Por isso, o seu cálice amargo tornou-se delicioso..." (Ms A 70r).

"Verdadeiramente, estou longe de ser uma santa. Só isso é já uma prova. Em vez de me alegrar com a minha aridez, devia atribuí-la ao meu pouco fervor e à minha pouca fidelidade; deveria desolar-me por dormir (desde há sete anos) durante a oração e a ação de graças. Ora, eu não fico desolada... Penso que as criancinhas tanto agradam aos pais quando dormem, como quando estão acordadas; penso que para fazerem operações, os médicos adormecem os doentes. Enfim, penso que: «O Senhor vê a nossa fragilidade e lembra-Se de que apenas somos pó» (Sl 102,14).

O meu retiro da Profissão foi, portanto, como todos os que se lhe seguiram, um retiro de grande aridez. Contudo, Deus mostrava-me claramente, sem que disso me apercebesse, a maneira de Lhe agradar e de praticar as mais sublimes virtudes. Dei-me muitas vezes conta de que Jesus não me quer dar provisões, alimenta-me a cada instante com um manjar completamente novo, e encontro-O em mim sem saber como lá está... Creio muito simplesmente que é o próprio Jesus, escondido no íntimo do meu coraçãozinho, que me dá a graça de agir em mim, e me faz pensar em tudo o que Ele quer que eu faça no momento presente" (Ms A 75v-76r).

"O triunfo do meu rei"

"A festa [da tomada de hábito] foi encantadora; e a desejos da sua pequena noiva, dava-lhe neve... (...) mais bela, a mais encantadora flor foi o meu querido Rei. Nunca tinha estado mais belo, mais digno... Foi a admiração de toda a gente. Esse dia foi o seu triunfo, a sua última festa cá em baixo. Tinha dado todas as suas filhas a Deus, pois tendo-lhe a Celina confiado a sua vocação, ele tinha chorado de alegria e tinha ido com ela agradecer Àquele que «lhe dava a honra de levar todas as suas filhas» (...) Depois de ter beijado pela última vez o meu querido Rei, voltei para a clausura. A primeira coisa que vi no claustro foi «o meu menino Jesus cor-de-rosa», sorrindo-me no meio de flores e luzes. Logo a seguir, o meu olhar se deparou com flocos de neve... O claustro estava branco como eu! Que delicadeza de Jesus! Indo ao encontro dos desejos da sua pequena noiva, dava-lhe neve... (...) Esse fato fez evidenciar mais ainda a incompreensível condescendência do Esposo das virgens..., d'Aquele que tanto gosta dos Lírios brancos como a NEVE!..." (Ms A 72r-v)

"Como acabo de dizer, o dia 10 de Janeiro foi o triunfo do meu Rei. Comparo-o à entrada de Jesus em Jerusalém no dia de Ramos. Como a do nosso divino Mestre, a sua glória de um dia foi seguida duma paixão dolorosa, e essa paixão não foi só para ele. Assim como as dores de Jesus trespassaram com uma espada o coração da sua divina Mãe, assim os nossos corações sentiram os sofrimentos daquele a quem mais ternamente amávamos sobre a terra..." (Ms A 73r).

"Não conheço outro meio senão o amor"

"Minha querida Maria, por mim não conheço outro meio para chegar à perfeição senão «o amor»... Amar, como o nosso coração está bem feito para isso!... Às vezes procuro uma outra palavra para exprimir o amor, mas na terra do exílio as palavras são impotentes para exprimirem todas as vibrações da alma, por isso temos de limitar-nos a esta única palavra: «Amar!...»

Mas a quem o dispensará o nosso pobre coração faminto de Amor? Ah! quem será suficientemente grande para isso... um ser humano poderá compreendê-lo... e sobretudo retribuí-lo?... Maria, só há um ser que pode compreender a profundidade desta palavra: Amar!... Só o nosso Jesus sabe retribuir-nos infinitamente mais do que nós Lhe damos..." (Ct 109, a Maria Guérin, julho de 1890)

CAPÍTULO 6

A DESCOBERTA DO "PEQUENO CAMINHO"

CONRAD DE MEESTER ocd

Nos capítulos precedentes seguimos a jovem Teresa na sua aprendizagem da vida carmelitana. Situação nova, frequentemente dura, mas que ela desejou de todo o seu coração. Sabia que Jesus a chamava ao "deserto", e estava disposta a segui-1o por todas as partes por onde Ele a guiasse. Nenhum nome ressoa tão profundamente nela como o de "Jesus".

Assim como seria um erro grave pensar que Teresa nascera santa, equivocar-nos-íamos se imaginássemos que a jovem carmelita não tinha senão de seguir maquinalmente um caminho claramente traçado, uniforme. Dentro do Carmelo, Teresa teve que descobrir o seu próprio caminho, "um pequeno caminho completamente novo" (Ms C 2v), do qual ela será a figura de proa. Lançando-se a toda a pressa, Teresa teve que passar mais de sete anos antes de compreender que amar profundamente, como ela entendia, não era possível realizá-lo com as suas próprias forças. Só Jesus a devia dar a Jesus.

Teresa teve que viver no Carmelo uma singular aventura espiritual. Só por meio de muitas reflexões e exames, de tomadas de consciência e decisões, também da escuta suplicante ao Senhor, foi como Teresa encontrou o seu modo particular de realizar a sua vocação cristã e contemplativa na Igreja. Teresa conheceu a obscuridade e a angústia. O seu caminho passava por vezes pela noite. Sofreu exteriormente, mas ainda mais interiormente. Sentiu o peso da sua "pobre natureza", o nosso "instrumento de trabalho" (Ct 89). "Com uma natureza como a minha (...) talvez me tivesse perdido" (Ms A 8v). Também no momento atual, o caminho de Teresa pelo deserto em busca de uma fonte escondida e guiada pela confiança em Deus continua a ser profético tanto para o cristão individual como para toda a Igreja.

Numa época de marcado sabor jansenista, na qual o acento se punha em Deus justo Juiz e no esforço pessoal para garantir a salvação por meio das boas obras, temendo o pecado que espreitava por todos os lados, Teresa preferiu olhar livremente para o amor misericordioso de Deus. Mas, não deve o cristão descobrir e amar ininterruptamente a este Deus de amor? Acabaremos alguma vez de "crer no Amor" (1Jo 4,16) e, como Teresa, entregar-nos a Ele?

É este o convite da Santa de Lisieux. O cardeal Pacelli, futuro papa Pio XII, dizia: "É o próprio Evangelho, o coração do Evangelho que Teresa encontrou, mas com que encanto e frescura". E João Paulo II, ao visitar Lisieux: "Podemos dizer convictamente de Teresa que o Espírito de Deus permitiu ao seu coração revelar aos homens do nosso tempo o mistério fundamental, a realidade do Evangelho: o fato de ter recebido realmente um espírito de filhos adotivos que nos faz gritar “Abbá, Pai!” (Rom 8,15).

Amar, único ideal e único caminho

Quando Teresa ultrapassa o umbral do Carmelo, leva consigo poucas coisas. A sua riqueza está dentro, é a chama no seu coração. Na véspera da sua entrada, acaba de afirmar: "Quero dar-me toda inteira a Ele, já não quero viver senão para Ele" (Ct 43 B).

Numa palavra, amará a Jesus conforme os seus sonhos ilimitados. É por isso que o "deserto" do Carmelo a fascina. Devolve-a ao Essencial. Esconde uma Presença. O seu vazio é esperança. E, para Teresa, a generosa, cada sacrifício converter-se-á numa palavra de amor, num sorriso, numa flor a dar.

Há muito pouco tempo; enquanto vivia no mundo, tinha-se proposto dar a Jesus "mil provas de amor" (Ms A 47v).

Sabemos que "o sofrimento lhe estendeu os braços" (Ms A 69v). Confessou à Irmã Teresa de Santo Agostinho: "Posso-vos assegurar que travei muitos combates e que não passei nem um só dia sem sofrimentos, nem um só" (PA 337). Tanto melhor pensa a jovem noviça: "o sofrimento é uma mina de ouro a explorar, iremos perder a ocasião?" (Ct 82).

Teresa abordou a sua vida de carmelita com a firme resolução de realizar, custe o que custar, o seu ideal de santidade. "Quero ser santa (...), quero sê-lo" (Ct 45). "Chegar a ser uma grande santa" é o leitmotiv (Ct 52,80). O seu Senhor não "quer pôr limites à (sua) santidade" (Ct 83). O preço nunca será demasiado alto: "Jesus pede-te tudo, tudo, tudo, tanto quanto pode pedir aos maiores Santos" — e sublinha a palavra"tudo", respectivamente, duas, três e cinco vezes (Ct 57).

Teresa queria bater o record mundial do amor a Deus! "Queria atuá-1o tanto... Amá-1o como jamais foi amado!..." (Ct 74).

Amá-lo "até à loucura" (Ct 93, 96), "com paixão" (Ct 94), "até ao infinito" (Ct 127). Fala de si mesma quando escreve a Celina: "O amor de Jesus a Celina não pode ser compreendido senão por Jesus!... Jesus fez loucuras por Celina... Que Celina faça loucuras por Jesus" (Ct 85). Teresa começará"com toda a sua capacidade de amar" (Ct 104). No dia da sua profissão pede "o amor, o amor infinito, sem outro limite que não sejas Tu, o amor que já não seja eu, mas Tu, meu Jesus" (Or 2).

Como realizar este ideal de amor perfeito?

Para Teresa, nestes primeiros anos no Carmelo, não há dúvida: pelo amor, pelo meu amor, muito, muito, muito generoso, como resposta às loucuras do amor de Jesus! porque "o amor só com amor se paga", diz Teresa, seguindo o seu grande mestre espiritual São João da Cruz (Ct 85).

Teresa está certa de o conseguir algum dia. "O amor pode fazer tudo, as coisas mais impossíveis não lhe parecem difíceis" (Ct 65). Não conhece outro caminho: "Por mim não conheço outro meio para chegar à perfeição senão 'O amor'... Amar, o nosso coração foi feito para isso!... Às vezes procuro uma outra palavra para exprimir o amor, mas na terra do exílio as palavras são impotentes para exprimirem todas as vibrações da alma, por isso temos de limitar-nos a esta única palavra: "Amar!..."(Ct 109).

Conclusão prática? "Aproveitemos, aproveitemos os mais breves instantes, façamos como os avarentos, sejamos ciosas das mais pequenas coisas para o bem-Amado!" (Ct 101).

O sofrimento aureolado

É certo que o sofrimento, nestes anos, corrigiu muitas vezes o seu percurso. O sofrimento está presente. Em abundância. Continuamente. Em numerosos e variados terrenos.

Não falamos da austeridade externa que a situação monástica traz à jovem Martin, nascida numa família acomodada e rodeada do conforto do seu tempo. Trata-se do que ela quis, do que ela abraça com uma generosidade imensa e com impaciência: todas estas privações na alimentação, no descanso, no espaço, na higiene, na habitação, na temperatura desta casa sem aquecimento. Esta é a arena onde levará a cabo o seu combate pela santidade, pelo amor sem fim e sem limites.

A solidão afetiva é maior ainda. Paulina e Maria, que a precederam no Carmelo, não quiseram recriar o clima familiar dos Buissonnets, que deliberadamente tinham abandonado. Depois está a prioresa, a madre Maria de Gonzaga, da qual Teresa descobre muito rapidamente este lado receoso e susceptível que acalma de modo repentino e imprevisível a influência e o calor do seu coração maternal. E a comunidade, Teresa descobre logo o lado cansativo que descreverá mais tarde: "estes tristes sentimentos da natureza" (Ms C 19r), estes "combates" e "fracassos" e "debilidades" (Ms C 23v) que descobre nela mesma e nas outras, "essas doenças morais que (são) crônicas": " a falta de bom senso, de educação, da susceptibilidade de certos caracteres, todas as coisas que não tornam a vida muito agradável" (Ms C 28r).

Mais purificadoras ainda, a aridez, o sono e as distrações nas duas horas de oração diárias e nos retiros anuais. Reconhecê-lo atormenta-a. Ao lembrar o inqualificável sofrimento pela doença humilhante do seu pai (da qual falaremos a seguir), Teresa escreve: "A minha alma partilhou as torturas do meu coração. A aridez era o meu pão cotidiano. E mesmo privada de toda a consolação, eu era a mais feliz das criaturas, pois todos os meus desejos estavam satisfeitos" (Ms A 73v).

Teresa escreve isto à distância de anos. Certamente que no próprio momento o sofrimento foi normalmente puro... sofrimento, desconcertante, diante do qual ela reagia pobremente, humildemente, "debilmente","sem alegria, sem valor, sem fortaleza" (Ct 82), sabendo-se "fraca e bem fraca, todo os dias tem disso uma nova experiência" (Ct 109).

A generosidade de Teresa, sacudida sem interrupção, não se quebra. É essa cana — o distintivo que leva nos seus vestidos de carmelita — que se verga, mas que não quebra (Ct 55). Num segundo momento, o sofrimento não faz senão avivar a generosidade. Teresa quer transformar toda a debilidade e toda a adversidade em amor a Jesus: amando-o exclusivamente, com mais humildade, com maior pureza, com mais insistência, levantando-se depois de cada queda para recomeçar sempre. Seguindo as comparações que neste tempo lhe são queridas, Teresa entregar-se-á ao capricho de Jesus como "uma bolinha" nas suas mãos, humilde e pequena como "um grão de areia", "desconhecida" e "esquecida" (Ct 103), "ignorada" e "debaixo dos pés de todos", mas "vista por Jesus" (Ct 95).

Todo o sofrimento lhe é proveitoso. É a moeda com que se paga a santidade. O sofri mento, neste tempo, leva como que uma auréola. Teresa repete convictamente as palavras do P. Pichon: "A santidade! É preciso conquistá-la na ponta da espada, é preciso sofrer... é preciso agonizar!..." (Ct 89).

Cristo, espelho do Pai

Teresa é realista. Não se perde em sofrimentos sonhados, mas aceita o presente — e que presente! —. Mais do que por qualquer outra prova, Teresa será provada pela doença do seu pai. De preocupante e angustiante, durante os primeiros meses de Teresa no Carmelo, a doença do pai converter-se-á em sofrimento dilacerante e humilhante.

No dia 12 de fevereiro de 1889, em que o papai infinitamente querido por Teresa, em conseqüência da arteriosclerose que se lhe fixou na cabeça, é internado num hospital psiquiátrico nas circunstâncias mais dramáticas, Teresa é realmente pisada por todos. À distância dos anos, escreve: "Lembro-me de que no mês de junho de 1888, na altura das nossas primeiras provações, eu dizia: 'Sofro muito, mas sei que posso suportar ainda maiores sofrimentos'. Não imaginava então os que me estavam reservados... Não sabia que a 12 de fevereiro, um mês depois da minha Tomada de Hábito, o nosso querido pai iria beber pela mais amarga, pela mais humilhante de todas as taças... Ah! nesse dia não disse que podia sofrer ainda mais!!!" (Ms A 73r). O Sr. Martin estará mais de três anos no Bom Salvador de Caen. O coração de Teresa, encenado no seu Carmelo — pois seu pai estava no que se chamava normalmente a "casa dos loucos" —, sangrará abundantemente, por muito tempo. Teresa oferece todo o seu sangue a Jesus.

Durante a doença do seu pai, a fé da filha sofre uma intensa purificação. Recordemos que Teresa tem apenas dezesseis anos. Para ela, tão jovem ainda, o seu papai, tão bom, prudente e piedoso, foi até ali, quase naturalmente, um espelho de Deus Pai. Mas eis que, de repente, o seu papá começa a fazer coisas extravagantes, incoerentes, perigosas. O espelho quebra-se em mil pedaços.

Perante o sofrimento, Teresa agüenta com fortaleza. Quer dar tudo, absolutamente tudo! Mas entre linhas, julgamos pressentir que está silenciosamente enfrentada com o mistério de Deus. Não pediu tanto para que isto não sucedesse? E eis o fiasco aparente da sua oração. Necessariamente as perguntas vêem à luz num humilde pensador como Teresa, ainda quando não as admita de modo nenhum e refazê-las imediatamente. Mesmo quando lhes responda afirmando a sua vontade de sofrer por ele e pelas almas, imitando a Jesus.

Porque permite Deus semelhante provação a quem sempre O serviu com fidelidade? Certamente, diz-se — e Teresa repete-o —que o sofrimento é um privilégio reservado aos amigos de Deus e que no céu tudo terá a sua recompensa. Mas, existe o céu? Teresa, que na sua autobiografia cala de propósito muitas coisas, refere de passagem esta afirmação: "Tinha então grandes provações interiores de todas as espécies até me interrogar, por vezes, se haveria Céu" (Ms A 80v). É a pergunta sobre o mais além, que no fim da sua vida virá ao de cima com tanta crueldade e à qual Teresa respondeu, em Jesus, com uma fé e um amor magníficos.

Durante este tempo, e em parte sob esta pressão, a jovem religiosa de dezesseis, dezessete anos aproximar-se-á de Cristo de um modo novo. Descobre a "Santa Face" de Jesus agonizante, o seu rosto ensangüentado, humilhado, coberto de feridas e lágrimas. Teresa contempla como o Ressuscitado sofreu antes. Deus não impediu o sofrimento e a morte, inclusive para o seu amado Filho. Por isso, para Teresa, o mistério incompreensível do sofrimento não é totalmente absurdo nem está em contradição com a bondade do Pai. E vê como Jesus assumiu a sua morte com um amor que oferece, perdoa se abandona a Deus com uma confiança redentora.

De uma fé um tanto tradicional, Teresa passa a uma fé assumida pessoalmente e responsável. A sua fé torna-se fundamentalmente "cristã". Jesus converte-se no seu grande argumento e certeza, não quer senão conhecê-lo. No seu Oferecimento ao Amor misericordioso evocará com alegria a "Face" de Jesus, bem como "o crisol do sofrimento pelo qual passou" (Or 6).

A beleza de Jesus

E o seu Cristo brilha na noite. Entre os dezesseis e os vinte anos, Teresa descobre cada vez mais a profundidade do Evangelho e a inefável beleza de Jesus, valor superior a qualquer valor. "Só Jesus é; tudo o mais não é ... amemo-lo pois apaixonadamente" (Ct 96). "Só Ele é deslumbrante em toda a força do termo (...) a própria Beleza" (Ct 76). É o "belo Lírio das nossas almas" (Ct 105).

Quem poderá dizer "as belezas escondi das de Jesus"? Apenas as vê na fé. "Sim, a Face de Jesus é luminosa, mas se no meio das feridas e das lágrimas é já tão bela, que será então quando a virmos no Céu? Oh! O Céu... Sim, para ver um dia a Face de Jesus, para contemplar eternamente a maravilhosa beleza de Jesus, o pobre grão de areia deseja ser desprezado na terra!..." (Ct 95). Mesmo na noite percebe-se "uma claridade semi-velada, a claridade que espalham à sua volta os olhos baixos da face do meu Prometido" (Ct 110).

A beleza de Jesus, Verbo eterno, é também a beleza do seu amor pelos homens... Ama-nos inefavelmente: "Jesus arde de amor por nós... Contempla a sua face adorável!... Vê esses olhos apagados e baixos!... Vê essas feridas... Contempla Jesus na sua Face... Aí verás como Ele nos ama" (Ct 87).

“A tua Face é a minha única Pátria, ela é o meu Reino de amor" (PN 20).

O abandono à ação de Deus nela

Depois dos "três anos de martírio" (Ms A 73r), no dia 10 de maio de 1892, o Sr. Martin, doravante paralítico das pernas e inofensivo, volta ao seio da família. Passou, para Teresa, "a provação tão dolorosa de Caen" (Ct 137). Mais ainda, no dia 20 de fevereiro de 1893, a Irmã Inês, a sua "segunda mamãe" dos Buissonnets, é eleita priora.

Começa, psicologicamente, para Teresa uma nova etapa. Passaram os "cinco anos" de sofrimento (Ms A 70r); agora, "com o amor, não só avança, mas voa" (Ms A 80v).

Entra também espiritualmente numa nova etapa. Já em outubro de 1892, durante o seu retiro anual, compreendeu que, uma vez que "o exterior" foi aniquilado pela provação de Caen, agora Jesus convida-a a trabalhar mais intensamente no desapego "interior": tem que "descer" a tudo o que pudesse engrandecê-la ainda aos seus próprios olhos (Ct 137).

Numa carta de 6 de julho de 1893 (Ct 142), utiliza, pela primeira vez nos seus escritos — se tivermos em conta a sua ordem cronológica —, o substantivo "abandono", resumo da sua nova atitude. O sofrimento e o esforço próprio perderam a sua primordial importância para ceder o lugar à amorosa adesão, não só à vontade do Senhor, mas, antes de tudo, à sua mesma Ação divina em Teresa.

A nossa carmelita afirma nesta carta que "o mérito não consiste em dar muito, mas em receber muito". Não quer de modo nenhum "amontoar tesouros para o céu" (Ct 91), mas abandona agora o seu "negócio" espiritual no Senhor. "A tua Teresa — confessa a Celina — não se encontra neste momento nas alturas, mas Jesus ensina-lhe 'a tirar proveito de tudo, do bem e do mal que encontra em si' [São João da Cruz]. Ensina-lhe a jogar à banca do amor ou antes, joga Ele por ela sem lhe dizer como se faz porque isso é assunto d'Ele e não de Teresa, o que ela tem de fazer é abandonar-se, entregar-se sem nada reservar para si, nem mesmo a alegria de saber quanto lhe rende o banco (...) Jesus não me ensina a contar os meus atos; ensina-me a fazer tudo por amor (...), mas isto faz-se na paz, no abandono, é Jesus que faz tudo e eu não faço nada" (Ct 142).

Teresa, filha de comerciantes, tem gosto no uso da linguagem econômica e financeira para falar do seu progresso espiritual; é-lhe familiar, tal como a linguagem guerreira.

Combativa e apaixonada, gostava de rever o seu trabalho, recolher os ganhos espirituais, desejosa de se ver chegar em breve "ao cimo da montanha do amor" (Ct 112). Enquanto caminha, compreenderá que nunca lhe será possível amar como lhe pede o coração, a não ser que o Senhor ame nela. Aprenderá sem se dar conta a ceder e a não querer nunca conquistar a Deus à força de braços, a não aproveitar-se e fazer cálculos, mas a abrir as suas mãos para receber a Deus de Deus.

A fraqueza irremediável

Desde há tempo que quis pagar amor com amor, igualando. tanto quanto possível, o amor infinito de Deus, fazendo "loucuras de amor" por Jesus, que fez "loucuras de amor" por nós (Ct 85), amando a Deus "como nunca foi amado" (Ct 74). Depois de seis anos de vida religiosa, confessa: "Nunca poderemos fazer por Ele as loucuras que fez por nós, e as nossas ações não merecem este nome, porque são apenas atos muito razoáveis e muito abaixo daquilo que o nosso amor queria realizar" (Ct 169).

Ficará inevitavelmente sem chegar ao amor sonhado. Na tarde da sua breve vida, Teresa pronunciar-se-á sobre as verdadeiras dimensões dos dois amores: "O vosso amor precedeu-me desde a minha infância, cresceu comigo, e agora é um abismo, cuja profundidade não consigo sondar. O amor atrai o amor; por isso, meu Jesus, o meu lança-se para Vós, e quereria encher o abismo que o atrai, mas, pobre de mim! Nem chega a ser uma gota de orvalho perdida no oceano!... Para Vos amar como Vós me amais, preciso de me servir do vosso próprio amor; só então encontro repouso" (Ms C 35r).

Teresa reconhecerá sempre a sua "fraqueza", as suas "faltas" e "infidelidades", certamente pequenas, por assim dizer, invisíveis aos olhos dos outros, mas reais e perceptíveis para ela que tem "olhos e o coração" da águia (Ms B 4v). Inclusive debilidade irremediável, da qual sem duvidar dirá mais tarde: "Todas as nossas justiças têm manchas" (Or 6), "nenhuma vida humana está isenta de pecados" (Ct 226), as almas"mais santas não serão perfeitas senão no Céu" (Ms C 28r). Teresa conheceu no Carmelo também escrúpulos e angústias em relação às suas faltas e ao seu estado de graça, e era sensível ao amor perfeito que Deus merece. Chegou a estar "numa noite tal, que até duvidava se Deus me amava" (Ms A 78r). O encontro com o Pe. Prou, em outubro de 1891, libertá-la-á neste assunto; o padre explica-lhe que há "faltas que não contristam a Deus" (Ms A 80v). Um ano antes, já Teresa o tinha pressentido: há faltas que não ofendem a Deus, mas que só humilham e tornam mais forte o amor" (Ct 114).

A carmelita observou com finura esta lenta purgação da sua miséria, numa das passagens mais profundas e mais humanas que escreveu: "Quando me recordo do tempo do meu noviciado, vejo bem quanto era imperfeita... Sofria por pouco, que agora rio-me disso. Ah! como o Senhor é bom por ter feito crescer a minha alma, por lhe ter dado asas (...) Mais tarde, sem dúvida, o tempo em que estou vai-me parecer ainda cheio de imperfeições, mas agora já não me admiro de nada, não tenho desgosto por ver que sou a própria fraqueza, pelo contrário, é nela que me glorio, e conto descobrir em mim todos os dias novas imperfeições" (Ms C 15r).

Teresa acabará com a sua fraqueza congênita e com a necessidade profunda da graça de Deus, único remanso de salvação. É o que explorará a seguir: a assombrosa misericórdia do amor de Deus.

Quando o caminho não é ainda claro

A sua fraqueza irremediável e a grandeza do amor de Deus levaram Teresa a adotar a sua atitude de abandono, característica durante o período de 1893-1894, isto é, depois de cinco ou seis anos de vida religiosa.

É isto já o seu famoso "pequeno caminho"? Teresa não espera de si mesma méritos e progressos, mas de Deus. É profunda a consciência da sua incapacidade. A partir de agora, procura mais deixar agir o Senhor do que transformar por si mesma a sua fraqueza em amor. Dá-se conta da prioridade do amor de Deus, que não só está na origem dos nossos atos de amor, mas também os aperfeiçoa. Tudo isto, não é já o caminho da infância espiritual?

Certamente, tudo isto já é viver como um filho do Pai. No entanto, não é ainda a plenitude do "pequeno caminho" de Teresa. Há que tomar a sério a Santa quando afirma que num momento determinado — e isto acontecera durante o Outono de 1894 — descobriu um "pequeno caminho completamente novo".

Digamo-lo com a terminologia da sua carta de 6 de julho de 1893: Teresa dava-se conta então do "jogo" divino no seu caminho para a santidade, mas não compreendia ainda "como Jesus a tomava" para "lhe dar" o seu amor. Quando Teresa descobre o seu "pequeno caminho", o Senhor revelar-lhe-á precisamente como a toma para fazê-la avançar. Então Teresa poderá adaptar-se perfeitamente ao jogo de Deus. Verá diante de si um caminho perfeitamente claro. Anteriormente, caminhava por bom caminho, mas na obscuridade, como um cego, com dúvidas, atrasos, erros. Com quanta rapidez e segurança vai correr agora por um caminho iluminado!

Conforme o que Teresa nos explicou sobre o seu "pequeno caminho completamente novo", é de Deus de quem fez a sua grande descoberta, que se referirá à misericórdia divina precisamente enquanto misericórdia. Certamente que já antes Teresa tinha consciência da bondade de Deus e da sua compaixão. Mas agora aprende a reconhecer que o amor de Deus não só é real, primeiro e fiel, mas é um amor que desce ao pequeno, que busca o pequeno porque é pequeno, e que Ele é grande para com o pequeno. A pequenez, em vez de ser principalmente humildade, será a partir de agora principalmente confiança.

Desejosa de ser pequena e de chegar a sê-lo cada vez mais, Teresa ambicionará antes de tudo uma confiança completamente filial. "O que agrada a Deus na minha pequena alma — escreverá mais tarde — é ver-me amar a minha pequenez e a minha pobreza, é a esperança cega que tenho na sua misericórdia... Só a confiança e nada mais do que a confiança tem de conduzir-nos ao Amor" (Ct 197). Com plena consciência e vontade confiar-se-á à obra da Graça nela, colaborará com ela e a ela se entregará.

A descoberta do "pequeno caminho"

Só no manuscrito autobiográfico C, escrito três meses antes de morrer, é que Teresa se referiu à descoberta do seu "pequeno caminho muito direito, muito curto, um pequeno caminho completamente novo" (cf. Ms C 2r-v). Tendo comprovado, ao comparar-se com os santos, por um lado que é como um grão de areia aos pés de uma montanha e, por outro, que "fazer-se crescer a si mesma é impossível" (quer dizer, que ela se faça crescer a si mesma, mas isto não exclui que Deus a faça crescer), Teresa põe-se a procurar nos "Livros Sagrados" uma solução: uma espécie de "ascensor", que a elevasse ao cimo da montanha da santidade.

Convém saber aqui que no dia 14 de setembro de 1894, um mês e meio depois da morte do Sr. Martin, Celina se tinha consagrado também ao Senhor no Carmelo de Lisieux. Quando entrou levava consigo um pequeno caderno onde tinha copiado as passagens mais belas do Antigo Testamento. Como então não era permitido às carmelitas jovens ler o Antigo Testamento na sua totalidade, Teresa, ávida da Palavra de Deus, tinha mergulhado no pequeno caderno de Celina. Foi assim como num dia de Outono de 1894 viveu o seu eureka tão importante.

Ao princípio, ficou impressionada com uma primeira frase: "Se alguém for pequenino, venha a mim" (Pr 9,4). Sentiu-se aqui pessoalmente retratada: não era a pequenez o seu especial problema no seu caminhar para chegar a ser uma grande santa? Ei-la aqui convidada a aproximar-se de Deus como "pequena", a ver-se "toda pequena".

Guiada pelo Espírito, prossegue na sua procura, com uma exegese totalmente pessoal e penetrante. Ei-la desconcertada ao ler a promessa de Deus: "Como uma mãe acaricia o seu filho, assim Eu vos consolarei; levar-vos-ei ao colo e embalar-vos-ei nos meus joelhos" (Is 66,13.12).

Detenhamo-nos um instante. Teresa cita duas vezes esta passagem, e duas vezes deixa transparecer a emoção que provoca nela. Eis o que sobre isto diz: "Ah! Nunca palavras tão ternas e tão melodiosas me vieram alegrar a alma!" (Ms C 3r). Mais ainda: "Depois de semelhante linguagem, nada mais resta senão calar-nos, chorar de gratidão e de amor" (Ms B 1r).

Porquê uma emoção tão profunda? Porque, Teresa lê aqui na Bíblia, pela primeira vez na sua vida, que Deus é como uma mãe para o seu filho. E Teresa é hipersensível ao amor de uma mãe! Não tinha perdido, na idade de quatro anos e oito meses, a sua "incomparável" mãe, que morreu de câncer? (Ms A 4v). Esta perda brutal, na idade em que a filha tinha tanta necessidade do amor maternal para estruturar a sua personalidade, causou em Teresa um profundo traumatismo do qual não sairá até aos catorze anos, com a "graça do Natal". Imediatamente, depois da morte da sua mamãe. Teresa afeiçoou-se com todas as suas forças à sua Irmã Inês, a sua "segunda mamãe", que em breve partiria para o Carmelo. Nova ruptura quando a outra irmã, Maria, terceira mamãe por assim dizer, vai também ela para o convento...

E Teresa, a órfã, lê que Deus é como uma mamãe para com o seu filho pequeno! Então, conclui: "É preciso que eu permaneça pequena, e que me torne cada vez mais pequena" — até ser o "pequenino" a quem Deus cumula com o seu amor de mãe.

A sua conclusão é evidente: este "pequeno caminho muito direito, muito curto" que conduz ao cume do amor e da santidade, este "ascensor" que Teresa procura, "são os vossos braços, ó Jesus!" (Ms C 3r).

TERESA NOS FALA:

"Jesus não quer fazer nada sem nós"

"E este Bem-amado ensina a minha alma, fala-lhe no silêncio, nas trevas... Ultimamente veio-me um pensamento que tenho de dizer à minha Celina. Foi num dia em que pensava no que podia fazer para salvar as almas, uma passagem do Evangelho deu-me uma viva luz. Uma vez Jesus dizia aos seus discípulos, mostrando-lhes os campos de trigo maduro: 'Levantai os olhos e vede como os campos já estão bem loiros para serem ceifados' e um pouco mais tarde: 'Na verdade a messe é grande, mas os operários são poucos; rogai, pois, ao Senhor da messe que mande operários' (Mt 9,37-38). Que mistério!... Não é Jesus onipotente? Não pertencem as criaturas a quem as fez? Então porque diz Jesus: 'Rogai ao Senhor da messe que envie operários'? Porquê?... Ah! é que Jesus tem por nós um amor tão incompreensível que quer que tenhamos parte com Ele na salvação das almas. Não quer fazer nada sem nós" (Ct 135).

"Alimentar o amor"

“Santa Teresa diz que é preciso alimentar o amor”. A lenha não se encontra ao nosso alcance quando estamos nas trevas, na aridez, mas não estaremos ao menos obrigadas a lançar nele algumas palhinhas?

Jesus é suficientemente poderoso para conservar sozinho o fogo, todavia fica contente por nos ver alimentá-lo, é uma delicadeza que Lhe agrada e então lança Ele no fogo muita lenha, nós não O vemos, mas sentimos a força do calor do amor. Tenho feito disto a experiência, quando não sinto nada, quando sou INCAPAZ de rezar, ou de praticar a virtude, é então o momento de procurar pequenas ocasiões, nadas que dão gosto, mais gosto a Jesus do que o império do mundo ou mesmo do que o martírio sofrido generosamente, por exemplo, um sorriso, uma palavra amável quando teria vontade de não dizer nada ou de mostrar um ar aborrecido, etc., etc.

Minha querida Celina, compreendes? Isto não é para preparar a minha coroa, para ganhar méritos, é para dar gosto a Jesus... Quando não tenho ocasiões quero ao menos dizer-Lhe muitas vezes que O amo, não é difícil e mantém o fogo, mesmo quando me parece que estava apagado, esse fogo de amor, quereria lançar nele alguma coisa e então Jesus saberia muito bem reacendê-lo" (Ct 143).

CAPÍTULO 7

O OFERECIMENTO AO AMOR MISERICORDIOSO

CONRAD DE MEESTER OCD

Seguimos, nos capítulos precedentes, Teresa até aos últimos meses de 1894, em que descobriu o seu "pequeno caminho" (mais tarde chamado pela Madre Inês de Jesus "o caminho da infância espiritual"). Vejamos agora como é guiada a fazer o oferecimento de si mesma ao Amor misericordioso de Deus.

Sob a luz da "Misericórdia"

A partir da descoberta do seu "pequeno caminho", a "misericórdia" torna-se para a jovem carmelita no sol da sua vida. Se a expressão estava até agora, por assim dizer, ausente do seu vocabulário, a partir de agora emerge espontaneamente e em abundância. Quando lhe é pedido a Teresa em janeiro de1895 — uns meses apenas depois da descoberta do seu "pequeno caminho" — que escreva as suas recordações da infância (o Manuscrito autobiográfico A), encontrará no instante o tema central: "As Misericórdias do Senhor". Os três sinais de exclamação que aparecem no manuscrito de Teresa, bem como os dez pontos suspensivos, sugerem quanto estas palavras dizem ao seu coração...

No prólogo deste manuscrito autobiográfico, Teresa descreve a livre condescendência do Senhor como "o mistério da minha vocação, da minha vida inteira e, sobretudo, o mistério dos privilégios de Jesus para com a minha alma", a explicação das "delicadezas absolutamente gratuitas de Jesus", das "preferências" "só da sua misericórdia". "O próprio do amor é abaixar-se", escreve Teresa, demonstrando com isto quanto pensa num amor de misericórdia. Deus "não desceria tão baixo", se não se ocupasse intensamente do mais pequeno. "Descendo, assim, Deus mostra a sua grandeza infinita", "assim como o sol ilumina ao mesmo tempo os cedros e cada uma das pequeninas flores como se fosse única sobre a terra..:” (Ms A 2r-3v).

A palavra "misericórdia" teria aparecido muitas mais vezes nos seus escritos se Teresa não tivesse compreendido, alguns meses mais tarde, que o amor de Deus é sempre e tão essencialmente "misericordioso" que não se pode limitar unicamente à palavra "Amor?': acrescentar "misericordioso" seria como um pleonasmo, dizer com duas palavras o que se pode dizer com uma. E quando Teresa, no fim do Manuscrito A, alude ao seu "oferecimento ao Amor misericordioso" (do qual falaremos a seguir), o fará apenas como "oferecimento ao Amor".

Uma longa meditação escrita

A partir de janeiro de 1895 até finais do ano, Teresa vai escrever alguns aspectos do seu passado. As suas "recordações de infância"? Certamente! Mas, na realidade, fala em primeiro lugar do papel do seu misericordioso Amado na sua existência. Por todos os lados vai correr agora o fio de ouro da sua Misericórdia pelo tecido da sua vida.

Agora vê, compreende. Tudo está iluminado. Escrever é orar, ver em profundidade, cantar as Misericórdias, em ação de graças. O seu trabalho redatorial é uma longa meditação que se incorpora no interior dela mesma. E, não duvidemos, em parte sob o efeito desta longa meditação escrita no dia 9 de junho de 1895, na manhã da festa da Santíssima Trindade. Teresa recebe "a graça de compreender mais do que nunca o quanto Jesus deseja ser amado" (Ms A 84r). A forma passiva, ser amado, coincide na realidade com a ativa, amar: Jesus quer amar-nos misericordiosamente, inundar-nos com as "ondas de infinita ternura". E Teresa oferecer-se-á a Ele. Totalmente. Antes de entrar nos pormenores do seu "oferecimento", detenhamo-nos ainda uns instantes no papel que pôde jogar a imagem do seu papai, Luís Martin, nesta visão nova.

Conhecemos os laços inquebrantáveis que uniam o pai e a filha. Teresa chamava-lhe o seu "rei', e ele chamava-lhe a sua "rainha". Aludimos à dor imensa quando Teresa viu que o seu rei mergulhava na doença mental, que, em 1889, o separará da família, ingressando num hospital psiquiátrico. A morte do Sr. Martin, em 1894, é para Teresa o fim duma prolongada pena.

Três semanas depois da morte do seu pai, no dia 29 de julho de 1894, Teresa confessa a Celina: "Como estas pequenas delicadezas nos fazem sentir que o nosso Pai querido está perto de nós! Depois de uma morte de cinco anos que alegria reencontrá-lo sempre o mesmo, procurando como antigamente os meios de nos dar prazer" (Ct 169).

E, no dia seguinte, a sua irmã Leônia, que voltara a entrar no convento da Visitação: "A morte do papai não me dá a idéia de uma morte, mas de uma verdadeira vida. Volto a encontrá-lo depois de seis anos de ausência, sinto-o à minha volta a olhar para mim e a proteger-me (...) Estamos mais unidas agora que olhamos para os Céus para aí descobrirmos um Pai e uma Mãe que nos ofereceram a Jesus... Em breve os desejos deles serão realizados e todos os filhos que Deus lhes deu vão estar unidos a Ele para sempre..." (Ct 170). A esta visão da vida futura — papai e mamãe com todos os seus filhos reunidos em breve para sempre no céu — volta a referir-se Teresa no princípio da sua autobiografia (Ms A 3r-3v).

Além disso, desde a primeira linha, o papai está presente nesta "história primaveril de uma florzinha branca": este apelativo de "florzinha branca", que Teresa recebeu do seu pai na tarde do Pentecostes de 1887, quando a autorizava a entrar no Carmelo, florzinha branca que levava então — gesto simbólico e que sugestivo! — na sua Imitação de Cristo, no capítulo: "Da necessidade de amar a Jesus sobre todas as coisas" (Ms A 50v).

Ao longo destas "recordações de infância", os "pais sem igual" (Ms A 4r) estão presentes. Além disso, Teresa reavivou as suas recordações pessoais ao reler a correspondência (impressionante) da sua mamãe. Enquanto escrevia, Teresa contempla o coração do seu papá, morto recentemente e que agora "a olha e protege", este "coração tão terno do papai [que, depois da morte da senhora Martin, tinha] unido ao amor que já de si possuía um amor verdadeiramente maternal" (Ms A 13r).

Teresa realça ininterruptamente a alegre presença do seu pai no lar paterno ou durante os longos passeios: "o seu belo rosto dizia-me tantas coisas!" (Ms A 17v); sentada "sobre os joelhos do papai", ouvindo a "sua bela voz" quando cantava ou recitava poesias ou rezava, Teresa não tinha "senão que olhar para ele para saber como rezam os santos" (Ms A 18r). Recorda vivamente como o papai, no dia de Pentecostes de 1887, "pegando-me na cabeça, encostou-a contra o seu coração", depois caminhou lentamente, mantendo a minha cabeça encostada ao seu coração" (Ms A 50r). Tais gestos faziam Teresa pensar espontaneamente "nas carícias que Deus há de ter por bem prodigalizar-lhe" um dia no céu (Ms A 73 r; B 2r).

Neste contexto existencial depois da morte do Sr. Martin, que se tinha reunido — com a sua esposa no céu e que velava sobre Teresa, compreende-se melhor porquê a carmelita esteve profundamente afetada no momento de descobrir o seu "pequeno caminho" na passagem de Isaías que compara Deus a uma mãe que senta o seu filho sobre os joelhos e o cumula de carícias.

Do mesmo modo, compreende-se melhor que, em parte sob a influência da recordação do seu pai, no dia 9 de junho seguinte, Teresa recebe "a graça de compreender melhor do que nunca" como o "coração" de Jesus é rico em "ondas de infinitas ternuras" e deseja "prodigalizá-las" àqueles que se atrevem a "lançarem-se nos seus braços e aceitarem o seu Amor infinito" (Ms A 84r). Por laços inexplicáveis e com medidas que não se podem definir exatamente, a graça e a luz de Deus passaram pela recordação de todos os benefícios recebidos durante a sua vida, não menos que por meio dos seus pais que para ela foram a imagem da bondade divina.

A vida póstuma do Sr. Martin foi contada muitas vezes nos últimos anos da sua filha! Como o seu papai tinha sido para a sua filha Teresa uma imagem de Deus; como, mais tarde, o olhar humilhado de seu pai se parecia com o da Santa Face de Jesus, servo sofredor de Javé, assim o olhar e a recordação do papai que tinha entrado já na glória de Deus converteram-se para Teresa, mais do que antes, num espelho em que o olhar resplandecente e o coração maravilhoso de Jesus recebiam uma cor ainda mais humana e concreta.

Na sua poesia Só Jesus, Teresa escreverá em 1896 palavras que vibram ainda com doçura pela experiência feliz e vital que teve do seu próprio pai: "Tu que soubeste criar o coração das mães / encontro em Ti o mais terno dos Pais! / Meu único Amor, Jesus, Verbo Eterno / Para mim o teu coração é mais que maternal" (PN 36). Quinze dias depois do seu oferecimento ao Amor misericordioso, Teresa tinha reconhecido já — na sua poesia Ao Sagrado Coração de Jesus —, mostrando-se maravilhosamente humana na sua fé no Verbo encarnado: "Preciso de um coração ardente de ternura, / Que me dê a sua força sem reserva, / Que ame tudo em mim, mesmo a minha fraqueza, / Que nunca me abandone nem de dia nem de noite. / Não pude encontrar nenhuma criatura / Que sempre me amasse, sem nunca morrer. / Preciso de um Deus que se revista da mesma natureza, / Que se torne meu irmão e possa sofrer!" (PN 23,4).

Quanto Jesus nos deseja amar...

Assim pois, Teresa nunca sondou melhor o amor de Cristo do que nesta manhã primaveril do dia 9 de junho de 1895, cume de luz. Nas primeiras horas do dia (durante a hora de oração silenciosa ou durante a eucaristia?) — não o sabemos), foi repentinamente transportada pela realidade e a beleza do Amor misericordioso da Trindade, das Três Pessoas divinas, que, em Jesus, querem se comunicar conosco, até inundar o nosso ser profundo e a nossa existência diária (Ms A 83 r-84r).

"Já que Vós me amastes até me dardes o vosso Filho único para ser o meu salvador e o meu Esposo..." (Or 6), canta jubilosa, deslumbrada pela luz que se derrama do cume do amor que é Jesus. Na festa da Santíssima Trindade, o coração de Teresa sonda o coração de Deus e sente-se completamente renovada. Teresa experimentará a graça que recebe como um privilégio, uma eleição divina. "O Amor escolheu-me como holocausto, a mim, fraca e imperfeita criatura": "é a minha própria fraqueza que me dá a audácia para me oferecer como vítima ao teu Amor, ó Jesus!" (Ms B 3v).

Contempla, pois, o seu Cristo, que busca os pobres e os pecadores, devorado de amor por todos. E que vê? Quanta indiferença da parte dos homens! O amor de Jesus é "desconhecido em todos os lados", "recusado", "desprezado". Mendigos da "felicidade", os seres humanos voltam-se para as criaturas, quando há um "Amor infinito", que "necessita prodigalizar-se" e "derramar" uma torrente de graça.

E o coração de Teresa, coração de esposa, terno e fiel, sente uma dor dilacerante diante da solidão de Jesus, forçado — por não lhe abrir as portas — a "reprimir as ondas de infinita ternura que há Nele", quando bastaria, para as derramar, "lançar-se nos seus braços e aceitar o seu Amor infinito..."

Porém, mais do que dor, Teresa sente uma "santa indignação" diante de Jesus que "ficaria contente" de encontrar, por fim, um coração entregue sem reservas e sem restrições. E a jovem religiosa de vinte e dois anos grita: "ó meu Jesus! Que seja eu essa feliz vítima! Consumi o vosso holocausto com o fogo do vosso Divino Amor!..."

O oferecimento

Teresa entregar-se-á totalmente como "oferenda", como "vítima", diz. Numa primeira reflexão, o seu espírito dirige-se para uma forma — que conhece — de se oferecer como vítima especialmente à "Justiça" de Deus. Acontecia, na Igreja e também no Carmelo, que as almas ofereciam-se a esta Justiça. Não se tinha recebido no mesmo convento de Teresa, na véspera do dia 9 de junho, a nota necrológica de uma carmelita francesa que morreu com terríveis sofrimentos e angústias, depois de se ter oferecido à Justiça de Deus?

Nos tempos de Teresa, os cristãos estavam certamente marcados pelo temor do Deus Juiz justo, a cujo olhar nada escapava, que recompensava ou castigava conforme os méritos ou deméritos, a quem se pagava o preço do céu com a pequena moeda das boas obras, sacrifícios e orações. Do mesmo modo, para pagar o resgate dos outros, algumas almas — ouçamos Teresa — "ofereciam-se como vítimas à Justiça de Deus, a fim de desviarem e atraírem sobre elas os castigos reservados aos culpados".

Teresa aprecia sinceramente este oferecimento. Parecia-lhe "belo e generoso". "Belo", porque não procurava senão a grandeza e a santidade de Deus, recordando tudo o que seu Filho tinha sofrido por nós. "Generoso", porque se expunha a assumir e expiar as conseqüências do pecado.

Teresa aprecia-o, mas mantém as distâncias perante este oferecimento: "Estava longe de me sentir impelida a fazê-lo". Como levar tais cargas sobre os seus frágeis ombros? Ela tão fraca e pequena, que "sente a sua impotência", esta impotência que não deixou de experimentar e de lhe calar fundo no Carmelo desde há mais de sete anos?

Mas não são considerações negativas as que intervêm em primeiro lugar. Nesta manhã primaveril da festa da Santíssima Trindade, a luz é completamente positiva.

Trata-se de "compreender o quanto Jesus deseja ser amado", não temido. E a sua infinita misericórdia, não a sua justiça exata e severa, que deve ser exaltada. Não é a justiça divina que necessita de compreensão e resposta, mas a "infinita ternura" de Deus, o seu "Amor misericordioso". Não se trata "de atrair sobre ela" castigos, mas de nos deixarmos atrair pela ternura divina. Jesus não queria "descarregar" a sua justiça, mas de “abrasar-nos" com o fogo do seu Amor.

Há oito meses que Teresa descobriu o seu "pequeno caminho", do qual recorda, no princípio da sua oração de oferecimento, os eixos principais: o ideal da santidade ("numa palavra, desejo ser santa"), a realidade da sua própria impotência ("mas conheço a minha impotência"), a reconciliação do ideal e da impotência no abandono que confia na obra santificadora de Deus nela ("e peço-Vos, ó meu Deus, que sejais Vós mesmo a minha Santidade"). Pois bem, nesta manhã, Teresa "compreende melhor do que nunca" com quanto empenho o Amor misericordioso do Senhor está à sua procura, à nossa, no coração da nossa pequenez. O Oferecimento ao Amor misericordioso situa-se, historicamente e pela sua mesma natureza, nas perspectivas que este "pequeno caminho" abre. O oferecimento é a conseqüência lógica, a expressão orante e a consagração definitiva. A tese do desejo de santidade e a antítese da impotência ficam reconciliadas na síntese do abandono que confia na obra do Deus três vezes santo, Amor misericordioso.

Teresa fala imediatamente a seguir dos fundamentos da sua confiança: 1) Por nosso amor, o Pai deu-nos o seu Filho: "os seus méritos são meus, Vos ofereço com alegria". Com um mesmo gesto, Teresa oferece "o amor e os méritos" de Maria, dos anjos e dos santos. 2) A promessa de Jesus se cumprirá (Jo 16,23). 3) A presença nela de grandes desejos, sinal com o qual um dia será cumulada.

Depois, volta a formular a sua súplica inicial de santidade. "Peço-Vos que venhais tomar posse da minha alma". Posse completa, como uma "pequena hóstia" parecida à hóstia eucarística que se converte no corpo de Cristo. Pequena hóstia, cuja "fraqueza" e "imperfeições" serão "consumidas" e "transformadas" pelo fogo do amor divino.

Teresa apresenta-se, pois, ao Amor "misericordioso". A jovem carmelita explicou que há "diferentes famílias" de almas, mas que a sua vocação própria, a sua vocação particular, consiste "em honrar de maneira especial" a misericórdia de Deus e em "contemplar e adorar através dela as demais perfeições divinas", que "todas se lhe apresentam resplandecentes de amor".

Oh, não, Teresa não quer de modo nenhum apoiar-se nos seus próprios "méritos": evitará a menor aparência de arrogância farisaica diante de Deus e dependerá unicamente da pura bondade divina, da qual será louvor por toda a eternidade. A sua "única meta" não é "acumular méritos", mas "trabalhar só por amor" de Deus, permitindo-lhe que "deixe transbordar para a sua alma as ondas da sua ternura infinita". O seu objetivo é aliviar o coração de Deus e fazer da sua própria vida um louvor da misericórdia de Deus, que, ela, deseja ser o centro da nossa santificação — todo o Novo Testamento o testemunha. Deste modo, será o Amor misericordioso quem realizará nela o seu sonho de amor! Teresa "aceitará" o Amor, "receberá do Amor" a sua própria justiça" e o seu "céu".

Teresa qualifica esta tomada de posição diante da misericórdia como um "oferecimento". Que respeito nesta oblação! Que dependência total da benevolência de Jesus à qual, no entanto, se confia com total segurança, pois entreviu no seu coração o desejo impetuoso de se comunicar! Por nada do mundo Teresa obrigaria Jesus a aceitá-la, se não soubesse que é o desejo mesmo de Deus que ela se ofereça.

E, a partir deste momento, o oferecimento torna-se num autêntico dom de si, numa entrega total. Teresa põe à disposição de Jesus toda esta fidelidade que desde há muito tempo se acostumou a viver, procurando cumprir todos os seus desejos mais pequenos. Mas esta generosidade não será mais, como noutro tempo, a moeda para comprar a santidade, mas a expressão viva da sua abertura à vida de Jesus nela.

O que muda exteriormente na generosidade de Teresa depois da descoberta do seu "pequeno caminho" e depois do seu "oferecimento" ao Amor misericordioso? Nada e tudo! Nada, porque continuará como há tempo a ser muito fiel a "lançar flores", a "aproveitar todas as mais pequenas coisas", a semear os seus nadas de amor (cf. Ms B 3v-4r). E tudo, porque o faz apenas por delicadeza para com o Deus de amor, como expressão da sua abertura incessante à sua Graça, a esta "imensidade de amor que Vos dignastes prodigalizar-me gratuitamente sem nenhum mérito da minha parte" (Ms C 35r).

Assim pois, Teresa "suplica" com ardor ser "consumida" e 'transformada" pelo fogo do Amor misericordioso. Quer decididamente lançar-se ao fogo, para receber tudo do fogo. Sim, além disso, dirá. Amar é tudo dar e dar-se a si mesmo" (PN 54). Desde a festa da Trindade 1895 compreendeu, melhor do que nunca, que o dom de si é antes de tudo o fruto de uma ação divina gratuita e cumulante: amar é receber tudo e receber-se a si mesmo da misericórdia à qual nos abrimos e nos oferecemos.

Martírio de amor

Teresa pronuncia então uma espécie de voto de pobreza espiritual. "Na noite desta vida, aparecerei diante de Vós com as mãos vazias, pois não Vos peço, Senhor, que conteis as minhas obras". Há uns anos descobriu que todo o nosso esmero é imperfeito e tem "manchas": motivos bons e motivos mais egoístas misturam-se facilmente... Mas, Teresa é, sobretudo, empurrada pelo desejo, certamente pela vontade firme ("quero"... "não quero"), de prestar homenagem total ao Amor redentor de Cristo. Não é ela que construirá o seu trono, nem fabricará a sua coroa: só Jesus será o seu "Trono" e a sua única "Coroa". Todo o louvor será dirigido a "Vós, ó meu Bem-amado!..."

Teresa oferecer-se-á como vítima. O vocábulo alude geralmente a uma situação na qual se sofre injustamente uma força maior e um sofrimento não querido. Não o podendo dizer melhor, a jovem contemplativa utiliza este termo da sua época, mas num sentido místico e de amor. Contudo, "força não querida"? Oh, como Teresa a chama com todo o seu ser e lhe abre toda a sua liberdade, para que o Amor venha "tomar posse da sua alma"! Disponível como Maria e a seu exemplo (é a Maria a quem Teresa "entrega o seu oferecimento, pedindo-lhe que o apresente" ao seu Filho), oferece-se para ser inundada das "ondas de ternura infinita" e ser mártir da ação do Amor nela, ao qual oferecerá cada movimento do seu ser.

Se há injustiça, só é possível pela desproporção entre a nossa "impotência", a nossa "fraqueza" e, por outro lado, a magnificência do perdão e da ação de Deus. Semelhante injustiça, e eleição como "vítima" é para Teresa o objeto de todos os seus desejos: "ó meu Jesus! Que seja eu essa feliz vítima...”

Teresa chega assim ao momento crucial do seu oferecimento. Penetra na infinita ternura que realizará o seu sonho de santidade: "A fim de viver num ato de perfeito Amor, ofereço-me..." "Perfeito Amor", Teresa sonha apenas nisto: "cumprir plenamente a vossa vontade", a "santidade". E isto "num ato..." Num só! Contínuo! De manhã à tarde, e da tarde à manhã, passando pela noite. "Viver de amor!" (PN 17). Eu não durmo, mas o meu coração vigia! Porque Teresa encarrega o seu coração para que "renove este oferecimento em cada palpitação". O seu coração será o seu delegado. Deste modo, permanecerá vigilante em todo o momento, unida ao coração de Jesus, que deseja, oh, "quanto"! Amar-nos. Este será o seu "martírio de amor".

O fogo do Espírito de Amor

Teresa qualifica a sua disponibilidade como a de uma vítima "de holocausto". A palavra contém a imagem do fogo que com some. A carmelita conhecia os sacrifícios pelo fogo do Antigo Testamento, mas aqui dirige-se ao "Fogo" do Pentecostes (no seu tempo, na festa da Santíssima Trindade terminava a oitava do Pentecostes), o fogo espiritual, o do Amor divino, pelo qual deseja ardentemente ser "consumida sem cessar" até ser "transformada no (fogo) mesmo". Alguns meses antes, na sua poesia Viver de amor (PN 17), Teresa tinha evocado expressamente esta ação do Espírito nela: "O Espírito de Amor abrasa-me com o seu fogo".

Ao oferecer-se ao Amor misericordioso, Teresa entrega-se novamente ao fogo do Espírito, mergulha nas ondas do amor da Santíssima Trindade que a inundaram no dia do seu batismo. É revelador que a Santa, de modo totalmente excepcional, assine o seu Oferecimento fazendo preceder o seu nome religioso dos nomes do batismo "Maria Francisca Teresa". Mergulhar conscientemente no fogo do Espírito de Amor, abrir-se sem reserva à Vida de Cristo em nós, é a última conseqüência do seu batismo e do nosso.

Outro gesto eloqüente: doravante trará sempre sobre o seu coração o Evangelho, a fórmula dos votos religiosos e o texto do seu oferecimento (o autógrafo está gasto e remendado): batismo do cristão, profissão religiosa e oferecimento ao Amor estão aqui simbolicamente unidos.

"Vítima", deseja encontrar-se sem defesa diante do fogo do espírito de Amor e diante desta irrupção divina à qual ninguém deve parar. Teresa oferece-se rogando ao Senhor que a "consuma sem cessar", que "deixe transbordar as ondas de ternura infinitas que estão encenadas n'Ele". Como uma torrente. Um oceano, que inunda uma concha, a enche, a leva ao infinito.

Os frutos

Na sexta-feira seguinte, dia 14 de junho de 1895, quando fazia a via-sacra, a carmelita experimentou uma "verdadeira chama que ardia". Como se, de modo excepcional, o Amor acusasse recibo deste oferecimento que, pela fé, sabemos lhe é tão agradável. A madre Inês transcreveu o relato como segue: "Estava a começar a Via-Sacra, e de repente, fui tomada por um tão intenso amor a Deus que não o posso explicar senão dizendo que era como se me tivessem mergulhado completamente no fogo. Oh! Que fogo e que suavidade ao mesmo tempo! Ardia em amor e sentia que um minuto, um segundo a mais, não teria podido agüentar este ardor sem morrer. Compreendi então o que dizem os santos destes estados que tantas vezes experimentaram. Quanto a mim, só o senti uma vez, e por um breve instante, depois voltei a cair imediatamente na minha aridez habitual" (UCR 7.7.2).

Mas se uma experiência extraordinária deste tipo foi não habitual, Teresa, de modo difuso, experimentou os três grandes benefícios do seu oferecimento. Seis meses depois, fala do impacto maravilhoso na sua vida. "Ah! Desde esse feliz dia, parece-me que o Amor me penetra e me envolve. Parece-me que a cada instante este Amor Misericordioso me renova, purifica a minha alma e não deixa nela nenhum vestígio de pecado" (Ms A 84r). Agora se sente "inundada de luzes" (Ms A 32r). "Sinto que Jesus está em mim. Ele guia-me e inspira-me a cada instante o que devo dizer ou fazer" (Ms A 83v). E nós sabemos como Teresa chegou a ser luminosa e incandescente para com os seus próximos, lâmpada ardente em toda a Igreja.

Sem dúvida alguma, a partir da Páscoa de1896, quando, depois da sua primeira hemoptise, Teresa está certa de morrer em breve, entra numa misteriosa noite sobre o mais além. Se a luz simples e abundante desapareceu, como é que Teresa se sente, todavia, levada pelo Amor misericordioso ao qual se ofereceu? A sua fé permanece inquebrantável. Jesus está muito perto: "Em cada nova ocasião de combate, quando o meu inimigo me vem provocar, porto-me com bravura. Sabendo que é covardia bater-se em duelo, volto às costas ao adversário, sem me dignar olhá-lo de frente, mas corro para o meu Jesus... Nunca experimentei tão bem como o Senhor é bom e misericordioso. Ele não me enviou este sofrimento senão no momento em que tive a força para o suportar" (Ms C 7 r-7v).

Agora a ação misericordiosa do Senhor impregna todos os sectores da sua vida. As suas virtudes, alegria, liberdade interior, verdade humilde, paciência? Teresa tem a impressão que as recebe da mão de Deus. Felicitam-na pela sua paciência, ela responde: "Ainda não tive um minuto de paciência. Esta paciência não é minha. Enganam-se sempre!" (UCR 18.8.4).

A sua oração? Desde há tempo era mais uma maravilhosa relação de um "eu" com um "Tu". Agora é antes uma relação, não menos maravilhosa, de um Tu com um "eu" que confia totalmente. Teresa deixa que Jesus viva nela: "Eis a minha oração. Peço a Jesus que me atraia para as chamas do seu amor, que me una tão estreitamente a Ele, que viva e atue em mim" (Ms C 36r).

A sua caridade fraterna, da qual não deixará de "penetrar as misteriosas profundidades" (Ms C 18v). "Sim, eu sinto que quando sou caridosa, é só Jesus que age em mim; quanto mais estiver unida a Ele, tanto mais amo também as minhas Irmãs" (Ms C 12v). Basta recorrer a Ele!

O seu apostolado? "Compreendi que a única coisa necessária era unir-me cada vez mais a Jesus e que o resto me seria dado por acréscimo. Com efeito, nunca a minha esperança foi iludida; Deus dignou-se encher a minha mãozinha tantas vezes quantas as necessárias" (Ms C 22v).

As suas inevitáveis faltas? "Ainda que eu tivesse cometido todos os crimes possíveis, mesmo assim teria sempre a mesma confiança: sinto que toda essa multidão de ofensas seria como uma gota de água lançada num braseiro ardente" (UCR 11.7.6).

Agarra-se à sua misericórdia: "Quero, ó meu Bem-amado, a cada palpitação do meu coração, renovar-Vos este oferecimento um número infinito de vezes" (Or 6). "Muitas vezes, sempre que posso, repito o meu oferecimento ao Amor", diz na sua última doença (UCR 29.7.9).

No dia 30 de setembro de 1897, último dia da sua vida, pela tarde, Teresa dirá: "Não me arrependo de me ter entregue ao Amor... Oh! não, não, não me arrependo, pelo contrário! (UCR 30.9).

Eis, até ao último momento, a sua fidelidade ao Senhor do Amor misericordioso, que realizou o seu sonho de santidade de outrora. De modo diferente ao que tinha projetado na sua juventude, mas melhor. Pela ação do Deus três vezes santo, ao qual radicalmente se tinha oferecido.

TERESA NOS FALA:

"Viver de Amor"

Na tarde de Amor, falando sem parábola

Jesus dizia: «Se alguém quiser amar-Me

«Por toda a sua vida, guarde a minha Palavra

«O meu Pai e Eu viremos visitá-lo.

«E do seu coração fazendo a nossa morada

«Unido a Ele, o amaremos sempre!...

«Cheio de paz, queremos que Ele permaneça

«No nosso Amor!...»

Viver de Amor, é guardar-Te a Ti mesmo

Verbo incriado, Palavra do meu Deus,

Ah! Tu sabes, Divino Jesus, eu amo-Te

O Espírito de Amor abrasa-me com o seu fogo

Amando-Te eu atraio o Pai

O meu pobre coração guarda-O para sempre.

Ó Trindade! Tu és a prisioneira

Do meu Amor!...

Viver de Amor, é viver da tua vida,

Rei glorioso, delícia dos eleitos.

Tu vives por mim, escondido numa hóstia

Quero esconder-me por Ti, ó Jesus!

A solidão é necessária aos amantes

Um abrir o coração que dure noite e dia,

Basta o teu olhar para me fazer feliz

Vivo de Amor!...

Viver de Amor, não é sobre a terra

Instalar a sua tenda no cimo do Tabor.

Com Jesus, é subir ao Calvário,

É contemplar a Cruz como um tesouro!...

No Céu a minha vida será de gozo

A provação terá acabado para sempre

Mas exilada quero no sofrimento

Viver de Amor.

Viver de Amor, é dar sem medida

Sem reclamar salário aqui na terra

Ah! sem contar eu dou-me bem segura

De que, quando se ama, não se conta!...

Ao Coração Divino, transbordante de ternura

Dei tudo... Ligeiramente eu corro

Nada tenho senão a minha única riqueza

Viver de Amor.

Viver de Amor é dissipar o medo,

Afastar a lembrança das faltas do passado.

Dos meus pecados não encontro vestígios,

Num breve instante o amor queimou tudo

Chama divina, ó dulcíssima Fornalha!

No teu centro fixo a minha morada

E. no teu fogo que eu canto alegremente:

«Vivo de Amor!...»

Viver de Amor, é guardar em si mesma

Um grande tesouro num vaso mortal

Meu Bem-amado, a minha fraqueza é extrema

Ah! estou longe de ser um anjo do Céu!...

Mas se caio em cada hora que passa

Tornando a erguer-me vens em meu auxilio,

Em cada instante me dás a tua graça

Vivo de Amor.

Viver de Amor, é navegar sem tréguas

Semeando a paz, a alegria nos corações

Piloto Amado, a Caridade incita-me

Pois vejo-Te nas almas minhas irmãs.

A Caridade, eis a minha única estrela

À sua luz navego sem desvio

Tenho a minha divisa escrita na vela:

«Viver de Amor».

Viver de Amor, quando Jesus dormita

É o repouso sobre vagas alterosas

Oh! não receies, Senhor, que Te desperte

Eu espero em paz a margem dos céus...

A Fé em breve rasgará o seu véu

A minha Esperança é ver-Te um dia

A Caridade enche e impele a minha vela

Vivo de Amor!...

Viver de Amor, é, Divino Mestre,

Suplicar-Te que derrames o teu Fogo

Na alma santa e sagrada do Sacerdote

Que ele seja mais puro do que um serafim dos céus!...

Ah! glorifica a tua Igreja Imortal

Aos meus anseios, Jesus, não fiques surdo

Eu, sua filha, imolo-me por ela

Vivo de Amor.

Viver de Amor, é enxugar-Te a Face

É alcançar o perdão dos pecadores

Ó Deus de Amor! que eles voltem à tua graça

E que para sempre bendigam o teu Nome

Até ao coração me chega a blasfêmia

Para apagá-la quero sempre cantar:

«O teu Nome Sagrado, eu O adoro e Amo

Vivo de Amor!...»

Viver de Amor, é imitar Maria,

Ao banhar de lágrimas, de perfumes preciosos,

Os teus divinos pés, que beija deslumbrada

Enxugando-os com os seus longos cabelos...

Depois levantando-se, quebra o vaso

O teu Doce Rosto ela também perfuma.

Por mim, o perfume que derramo no teu Rosto

É o meu Amor!...

«Viver de Amor, que estranha loucura!» Diz-me o mundo, «Ah! cessa de cantar,

«Não percas os teus perfumes, a tua vida,

«Aprende a empregá-la utilmente!...»

Amar-Te, Jesus, que perda fecunda!...

Todos os meus perfumes são teus para sempre,

Quero cantar ao sair deste mundo:

«Morro de Amor!»

Morrer de Amor, é dulcíssimo martírio

É aquele que eu desejaria sofrer.

Ó Querubins, afinai a vossa lira,

Porque sinto que o meu exílio vai terminar!...

Chama de Amor, consome-me sem tréguas

Vida de um instante, pesa-me o teu fardo!

Divino Jesus, realiza o meu sonho:

Morrer de Amor!...

Morrer de Amor, eis a minha esperança

Quando vir quebrarem-se os meus laços

O Meu Deus será a minha Grande Recompensa

Não anseio possuir outros bens.

Quero ser abrasada pelo seu Amor

Quero vê-l'O, unir-me a Ele para sempre

Eis o meu Céu... eis o meu destino:

Viver de Amor!!' ...

CAPÍTULO 8

TERESA, À ESCUTA DA PALAVRA

ROBERTO FORNARA Ocd

"Se tivesse sido sacerdote (...), teria estudado hebreu e grego para poder ler a Palavra de Deus na mesma linguagem humana com que Ele se quis exprimir" (Conselhos e Lembranças, pp. 93-94).

Esta confidência que Celina — a Irmã Genoveva — recolheu dos lábios de Teresa introduz-nos no seu amor pela Palavra de Deus e no seu desejo de a aprofundar, embora carecendo de muitos meios que o leitor moderno tem à sua disposição. Para Teresa — é outra vez Celina quem nos descobre os seus segredos —, a Escritura representa no Carmelo "o seu melhor tesouro". Cita frequentemente a Escritura nos seus escritos com uma originalidade que é fruto da leitura e da meditação, e não do que ouve aos pregadores; abre-a ao acaso — em clima de oração — para procurar resposta para as suas dúvidas ou para as suas buscas; faz dela o fundamento da sua oração e o meio privilegiado do encontro com Deus.

Teresa descobre a Bíblia

Teresa chega gradualmente à descoberta da Escritura como fonte privilegiada da vida espiritual. Por meio de muitas leituras que a ajudam e formam, como a Imitação de Cristo — ponto firme no seu crescimento espiritual —, ou as obras de São João da Cruz, consegue descobrir que só a Palavra de Deus — e o Evangelho em particular — lhe pode oferecer o alimento que necessita.

Por volta dos dezessete ou dezoito anos, já no Carmelo, será sobretudo São João da Cruz quem a apaixone e a acompanhe no seu caminho, introduzindo-a, ao mesmo tempo, na meditação e na compreensão de algumas passagens da Bíblia, sobretudo do Antigo Testamento.

A Escritura torna-se para ela no único ponto de referência seguro, a única necessidade fundamental: "É sobretudo o Evangelho que me vale durante as minhas orações. Nele encontro tudo o que é necessário à minha pobre alminha Nele descubro sempre novas luzes, sentidos escondidos e misteriosos" (Ms A 83v). Busca-o continuamente, chega a Ele pela oração, familiariza-se de tal modo com a Palavra de Deus que, mesmo ao falar com as Irmãs, vêm-lhe frequentemente citações bíblicas: a Irmã Maria da Trindade dirá que as suas conversas pareciam comentários à Escritura (cf. PO 1462).

Conhece de memória diversas passagens e leva sempre consigo uma cópia dos quatro evangelhos; fala ao P. Roulland, em carta de julho de 1896, do "livro dos evangelhos que trago sempre comigo" (Ct 193).

Contudo, não era fácil, numa época e num ambiente como os de Teresa, aproximar-se da Palavra de Deus e aprofundá-la. Hoje podemos contar com uma série de traduções, de instrumentos e publicações que não existiam no fim do século passado. Na própria pregação e na vida espiritual a Escritura não era o verdadeiro centro e o eixo fundamental no qual girava tudo o resto. O amor e a paixão teresiana pela Bíblia são, pois, verdadeiramente extraordinários.

Antes de entrar no Carmelo, é evidente que a adolescente Teresa não tinha lido diretamente a Escritura. Embora a família Guérin possuísse pelo menos dois exemplares da Bíblia, é improvável que Teresa, então de menor idade, pudesse ter acesso a eles.

Um primeiro contato com a Palavra de Deus, embora esporádico, foi-lhe possibilitado por meio do Ano litúrgico de Dom Guéranger; a familiaridade com os textos bíblicos cresce, ainda, através de várias obras edificantes que constituem a sua bagagem de leituras neste tempo: vidas de santos, vidas de Jesus, catecismos e a própria Imitação de Cristo.

No convento não é possível — pelo menos às irmãs mais novas — consultar a Bíblia, a não ser com licença da prioresa; uma segunda cópia (na tradução do Maistre de Sacy) está à disposição, e Teresa efetivamente consultou-a, como aparece nos seus escritos. Cada religiosa dispõe ainda do Manual do cristão, que contém — além do Ordinário da missa e das horas principais do ofício divino — o saltério, o Novo Testamento e a Imitação de Cristo. A partir de setembro de 1894 conta com uma nova fonte, embora limitada. A Irmã Celina, ao entrar no Carmelo leva consigo um pequeno caderno manuscrito no qual tinha copiado, quando ainda estava com a sua família, diversas passagens do Antigo Testamento; como ela própria o afirma, quando na vida religiosa já é Irmã Genoveva: "Santa Teresa do Menino Jesus serviu-se deste pequeno caderno com entusiasmo e não podia separar-se dele, uma vez que a Irmã Maria da Eucaristia começou a transcrevê-lo para ela". Igualmente, na vida litúrgica da comunidade a jovem carmelita pôde beneficiar abundantemente da riqueza da Palavra, e as leituras pessoais e comunitárias contribuem para a ajudar neste sentido. Será especialmente São João da Cruz quem lhe inspire amor pelo Cântico dos Cânticos, do qual tinha desejado fazer um comentário.

Teresa ensina a ler a Bíblia

Ao escrever a Celina no dia 7 de julho de 1894, Teresa sublinha as palavras de Jesus: "Se alguém Me ama, guardará a minha palavra e Nós viremos a ele e faremos nele a nossa morada" (Jo 14,23). E comenta: "Guardar a palavra de Jesus, eis a única condição para a nossa felicidade, a prova do nosso amor por Ele. Mas o que é afinal esta palavra?... Parece-me que a palavra de Jesus, é Ele mesmo... Ele Jesus, o Verbo, a Palavra de Deus!" (Ct 165). A palavra de Jesus é o próprio Jesus: é a chave para compreender a leitura teresiana da Bíblia. Em sintonia com a tradição patrística, Teresa procura em cada página o rosto de Cristo. A sua leitura da Palavra de Deus não tem outra finalidade que favorecer o encontro com Ele, estabelecer um contato pessoal com Ele.

Escreverá ainda nos últimos dias da sua vida, ao terminar o terceiro dos cadernos autobiográficos: "Uma vez que Jesus subiu de novo ao Céu, não posso segui-1o senão pelos vestígios que deixou. Mas como esses vestígios são luminosos! Como são perfumados! Basta-me lançar o olhar para o santo Evangelho, e logo respiro os perfumes da vida de Jesus, e sei para que lado correr. Não é para o primeiro lugar, mas para o último que eu corro. Em vez de avançar como o fariseu, repito, cheia de confiança, a humilde oração do publicano. Imito, sobretudo, a conduta da Madalena; a sua surpreendente, ou melhor, a sua amorosa audácia" (Ms C 36v).

A atenção ao Evangelho e, consequentemente a busca de Jesus, é encontro com Ele, e a Escritura é o meio que torna possível este encontro. Para Teresa, no entanto, encontrar-se diante da palavra não representa tanto o primeiro contacto com Jesus, a sua descoberta, quanto, sobretudo, a confirmação ou verificação do que está a viver. Nos momentos de dificuldade, de crise, de provação, bem como nos momentos de crescimento e de novas descobertas, a Bíblia torna-se para ela em ponto de referência, porque representa a confirmação de quanto o Mestre lhe ensinou no seu interior. Ler a Bíblia agora não corresponde à curiosidade de conhecer algo novo na sua relação com Deus, mas permite reconhecer a verdade que já está a viver ou experimentar. A Palavra de Deus vem frequentemente ao seu encontro para a dirigir, consolar, confirmar. O encontro com Jesus — Palavra do Pai — permite-lhe dizer, em relação a quanto está a viver: "é verdadeiro, é assim, estou certa".

Deus já se lhe revelou, habita nela, e o recurso à Palavra permite-lhe simplesmente escutar melhor uma voz que já a adverte dentro de si. Não há separação ou ruptura entre a vida de oração, a meditação da Palavra de Deus, por um lado, e a vida cotidiana, por outro. Tudo é reconduzido à unidade em virtude desta Presença interior: Teresa sabe que o Reino de Deus está dentro dela (cf. Lc 17,21) como Presença que a guia e ilumina. De fato, confessa: "precisamente no momento em que delas tenho necessidade, descubro luzes que ainda não tinha visto. Não é durante a oração que elas se me manifestam mais; a maior parte das vezes é no meio das ocupações do dia" (Ms A 83v).

Este sentido da Presença interior de Jesus e do seu Espírito leva-a à descoberta e à compreensão das Escrituras, descoberta que não é fruto de uma conquista e do esforço humano, mas dom gratuito revelado aos pequenos, que cresce sem nós nos darmos conta disso: "Dei-me muitas vezes conta de que Jesus não me quer dar provisões. Alimenta-me a cada instante com um manjar completamente novo. Encontro-O em mim sem saber como lá está" (Ms A 76r). Trata-se de uma verdadeira e própria "ciência de amor": compreende a Bíblia na medida em que a vive e se deixa assimilar a Cristo. Trata-se sempre de uma experiência pessoal da Escritura: é Palavra "para ela", para o momento que está a viver, para os problemas que é chamada a enfrentar. Parece exagerado a este respeito o juízo drástico de Hans Urs von Balthasar, que apelida de subjetivismo a leitura que Teresa faz da Escritura: "Teresa leu com paixão a Escritura, aprendendo-a em parte, inclusive, de memória, mas deixou que ela atuasse em si quase exclusivamente à luz da sua vida e da sua missão pessoal. Por mais desconcertante que possa parecer, não se pode dizer que Teresa tenha conhecido uma verdadeira contemplação da Sagrada Escritura (...) Na verdadeira e própria contemplação, a Palavra de Deus deve ressoar tal como é, e não como eu desejaria senti-la ou como imagino que seja para mim" (Irmãs no espírito, p. 77). Se é verdade que Teresa não dispõe de instrumentos apropriados para aprofundar o estudo da Bíblia, é também verdade que a sua aproximação à Palavra de Deus não é a de quem escuta o que "desejaria ouvir". É, sobretudo, o desejo humilde e constante de encontrar a Cristo, intuindo que tal encontro implica e transforma toda a vida.

A poesia Por que te amo, ó Maria (PN 54), composta poucos meses antes da sua morte, testemunha, por exemplo, que o seu modo de contemplar a Virgem é muito mais objetivo e conforme aos evangelhos que o de tantos pregadores do seu tempo, todos eles dispostos a cantar com retórica exagerada os privilégios e as graças particulares da Virgem, embelezando a vida dela com particularidades inúteis e aborrecidas. Teresa, fundando-se no dado bíblico, sente-se, pelo contrário, como apanhada pela pobreza, pela simplicidade, pela peregrinação na fé de Maria. Apesar das limitações pessoais e das do seu tempo, Teresa continua a ser mestra na leitura da Palavra de Deus.

O Cântico dos Cânticos, caminho para o encontro

Se é natural que a atenção de Teresa esteja dirigida especialmente para os textos evangélicos, a importância do fundamento bíblico da sua doutrina e da sua espiritualidade sobressai especialmente pelo seu recurso constante ao Antigo Testamento. Dentre os livros do Antigo Testamento, cita frequentemente o saltério, que tem continuamente entre mãos em virtude da oração litúrgica e dos livros de meditação. O leitor fica surpreendido, no entanto, pelo fato de que o segundo livro do Antigo Testamento mais citado nos escritos teresianos seja o Cântico dos Cânticos. As citações não se referem simplesmente a este ou àquela passagem do livro, mas são tomadas de todos os capítulos, sinal evidente de que Teresa leu e meditou longamente todo o Cântico. Nisto ajudam-na distintas passagens do livro, transcritas no pequeno caderno de Celina, embora já anteriormente Teresa tenha lido muito o Cântico, como o demonstram as cartas escritas antes da entrada de Celina no Carmelo.

As referências teresianas ao Cântico dos Cânticos podem ilustrar perfeitamente o seu modo de se aproximar da Escritura e fazer dela o veículo privilegiado do encontro com Deus. Discípula fiel de São João da Cruz, a santa de Lisieux vive o caminho da oração como um encontro esponsal com o Amado; do místico espanhol recebe provavelmente o amor pelo Cântico dos Cânticos como expressão e fonte deste caminho de união. As citações do poema bíblico, disseminadas sobretudo nas suas cartas, estão orientadas para descrever o amor cioso de Deus pela sua criatura. À sua irmã Leônia escreve em Maio de 1894: "És feliz... por Jesus ser tão cioso do teu coração. Ele diz-te como à esposa do Cântico dos Cânticos: 'Feriste o meu coração, minha irmã, minha esposa, com um só dos teus olhares e com um só dos teus cabelos a esvoaçar no teu pescoço (Ct 4,9)" (Ct 164).

Para a alma encaminhada na busca do Amado, movida por um desejo sempre crescente de O encontrar, ressoa constantemente o seu convite, expressão de um amor e de um desejo infinitamente superior. "Abre-Me, minha irmã, minha esposa, porque o meu rosto está cheio de orvalho e os meus cabelos das gotas da noite", escreve a Celina (Ct 108), tomando emprestadas as palavras de Cant 5,2. O Amado é quem está à porta e convida constantemente a que se abra, impaciente por partilhar momentos de comunhão (cf. Ct 2,10-13 e 8,1 em Ct 158).

O caminho da união não está isento de dificuldades. O Cântico serve também a Teresa para descobrir esta realidade. O Esposo às vezes esconde-se e, por muito tempo, não deixa que se ouça a sua voz e que se goze da sua presença; comunica-se exclusivamente espiando "através das grades": é a expressão que Teresa toma de Ct 2,9 para descrever a sua situação à madre Inês de Jesus (Ct 230). Ao falar de provação da secura, a Santa inspira-se novamente numa passagem do Cântico dos Cânticos porque "exprime perfeitamente o estado de uma alma mergulhada na secura e a quem nada pode alegrar nem consolar": "Desci ao pomar das nogueiras, para ver os frutos dos vales, para ver os rebentos da vinha; e se as romãs tinham nascido... não soube mais onde estava... a minha alma ficou toda perturbada por causa dos carros de Aminadab" (Ct 6,11-12; Ct 165).

Na mesma carta serve-se ainda das palavras de Ct 7,1 ("volta, volta, minha Sulamita, volta, volta, a fim de que nós te consideremos") para indicar a condição da alma que, apesar da experiência da própria pobreza, sente sobre si o olhar benéfico e misericordioso do Senhor: "Que chamamento o do nosso Esposo!... O quê! Já não ousávamos sequer olhar-nos, de tal maneira pensávamos estar sem brilho e sem enfeites, e Jesus chama-nos". O Cântico dos Cânticos, como toda a Escritura, é, consequentemente, para Teresa um caminho para o encontro com Deus. A Palavra lida e meditada não faz outra coisa que repetir-lhe incessantemente o mistério de uma pertença nascida pela iniciativa do amor de Deus: "Não temas, que eu te resgatei, chamei-te pelo teu nome. Tu és meu... pois és precioso aos meus olhos, és estimado e eu amo-te... Não temas, que eu estou contigo" (Is 43,1.4-5). Por isto é que Teresa pode aplicar a si mesma e à sua própria experiência as palavras de Ez 16,8-13: "Passando a meu lado, Jesus viu que tinha chegado para mim o tempo de ser amada; Ele fez aliança comigo, e tornei-me sua...; estendeu sobre mim o seu manto, lavou-me em perfumes preciosos, revestiu-me com vestes bordadas, dando-me colares e adornos sem preço...; alimentou-me com a mais pura farinha, com mel e azeite em abundância... Com isto, tornei-me bela a seus olhos, e fez de mim uma poderosa rainha!" (Ms A 47r). Cada uma das palavras do profeta ressoam nela, feitas carne da sua vida, e o comentário final de Teresa é eloqüente a este propósito: "Sim, Jesus fez tudo isso por mim. Eu poderia retomar cada palavra que acabo de escrever e provar que ela se realizou em mim"(ibid.).

O caminho traçado pela Palavra de Deus não é, pois, algo puramente íntimo e pessoal Teresa, jovem esposa de Cristo, leva consigo toda a Igreja. Comentando o verso "Atraí-me, correremos!" (Ct 1,3), escreverá: "Senhor, eu compreendo. Quando uma alma se deixou cativar pelo odor inebriante dos vossos perfumes, não seria capaz de correr sozinha: todas as almas que ama são arrastadas atrás dela. Isto faz-se sem constrangimento, sem esforço; é uma conseqüência natural da sua atração para Vós" (Ms C 34r).

Fundamentos bíblicos do "pequeno caminho"

Teresa extraía da leitura da Palavra de Deus os princípios e a confirmação necessários para a sua vida espiritual; o seu "pequeno caminho" apresenta-se impregnado de sabor profundamente bíblico. Não se pode afirmar certamente que a santa de Lisieux elaborasse uma doutrina teológica sistemática a partir do estudo da Escritura, mas os seus escritos deixam transparecer um conhecimento obtido pela meditação contínua da Palavra de Deus. Entre os temas que Teresa assimilou especialmente, consideramos particularmente a humildade-pobreza, a misericórdia de Deus e a espiritualidade do abandono.

Consciência da própria pobreza

Um dos textos bíblicos que aparecem mais vezes nos escritos de Teresa é a oração de louvor de Jesus ao Pai: "Bendigo-te, Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondestes estas coisas aos sábios e aos inteligentes, e as revelastes aos pequeninos. Sim, Pai, porque assim foi do teu agrado" (Lc 10,21). Teresa leu e meditou, igualmente, as palavras do apóstolo Paulo aos Coríntios: "Considerai, pois, irmãos, a vossa vocação: humanamente falando, não há entre vós muitos sábios, nem muitos poderosos, nem muitos nobres. Mas o que há de louco no mundo é que Deus escolheu para confundir os sábios; e o que há de fraco no mundo é que Deus escolheu para confundir o que é forte. O que o mundo considera vil e desprezível é que Deus escolheu; escolheu os que nada são, para reduzir a nada aqueles que são alguma coisa. Assim, ninguém se pode vangloriar diante de Deus" (1Cor 1,26-29).

A descoberta fundamental que guia Teresa no seu caminho é certamente o conhecimento da própria pobreza: não se aproxima de Deus com os seus próprios esforços e méritos, mas aceitando e oferecendo o próprio nada. Teresa entra no grupo dos anawin, dos "pobres de Yahvé", que constituem o resto fiel ao longo da história de Israel, e que culmina em Maria, a filha de Sião que canta e reconhece a próprio nada diante de Deus. "Que é o homem para que vos lembreis dele, o filho do homem para lhe dar poder?", cantava assombrado o autor do salmo 8, e Maria engrandece e exalta o Senhor porque "olhou para a humildade da sua serva" (cf. Lc 1,48). O termo grego tapeinosis, que traduzimos por "humildade", significa precisamente "pobreza, miséria extrema, indigência": Maria reconhece diante de Deus o seu próprio nada; tudo o que tem é dom da graça, é a "cheia de graça" (cf. Lc 1,28).

A espiritualidade teresiana corta pela raiz a tentação farisaica de alegar méritos diante de Deus e aceita serenamente a sua pobreza. Em julho de 1890 a Santa escreve a Maria Guérin: "Tu me parece uma pequena aldeã que um rei poderoso viesse pedir em casamento e que não ousasse aceitar com o pretexto de não ser suficientemente rica nem educada nos usos e costumas da corte, sem refletir que o seu noivo real conhece a pobreza e a fraqueza dela muito melhor do que ela mesma (...) Também não deves desejar ver o fruto dos teus esforços". E passando a falar de si mesma, acrescenta: "Te enganas (...) se julgas que a tua Teresinha caminha sempre com ardor no caminho da virtude, ela é fraca e bem fraca, todos os dias faz disso uma nova experiência, mas, Maria, Jesus compraz-se em ensinar-lhe como a São Paulo a ciência de gloriar-se nas suas fraquezas, o que é uma grande graça e peço a Jesus que te ensine, porque só desta forma se encontra a paz e o descanso do coração, quando nos vemos tão miseráveis já não queremos preocupar-nos conosco e só olhamos o único Bem-amado!" (Ct 109).

A experiência da misericórdia de Deus

O conhecimento da própria pobreza não é para Teresa fonte de desalento, porque na descoberta do amor misericordioso de Deus caminha com passo firme. No processo de beatificação, a Irmã Genoveva testemunha que Teresa do Menino Jesus perscrutava a Escritura "para conhecer o caráter de Deus" (PO 1275). Deus revela-se precisamente como Amor e Misericórdia. Citando o começo do salmo 118, que louva o Senhor "porque é eterna a sua misericórdia", a Santa acolhe a misericórdia como o atributo fundamental e característico de Deus: "através dela" — escreve —, contemplo e adoro as demais perfeições divinas" (Ms A 83v). Em sintonia com o Antigo Testamento, compreende que a justiça de Deus coincide com a sua misericórdia: precisamente porque é justo, o Senhor tem ternura e piedade dos seus filhos, segundo a expressão do salmo 103: "Coroa-te de amor e de ternura... Faz obras de justiça e outorga o direito aos oprimidos... Clemente e compassivo é o Senhor, lento para a ira e cheio de misericórdia.

Porque conhece a nossa fragilidade, lembra-Se de que não somos senão pó. Como um pai sente ternura pelos seus filhos, assim o Senhor tem compaixão de nós" (vv. 4.6.8.23-24; cf. Ct 226). Recordando talvez a expressão de Paulo no hino cristológico da carta aos Filipenses (2,6-11), Teresa acolhe o dom desta misericórdia sobretudo em Jesus, chegando a apelidar de "loucura" o Filho de Deus que, por amor, renuncia às prerrogativas da sua natureza divina em busca da humanidade perdida (cf. 169).

Entre as imagens do Antigo Testamento que a impressionam há duas particularmente significativas. A primeira é a do pastor de Is 40,11, que "reunirá os pequenos cordeiros, e os apertará contra o seu peito e trata com cuidado as mães". A outra são as palavras de consolação de Is 66,12-13: "Como uma mãe acaricia o seu filho, assim eu vos consolarei; levar-vos-ei ao colo e acariciar-vos-ei sobre os meus joelhos". Comentando estes textos, Teresa escreve cheia de admiração: "Depois de semelhante linguagem, nada mais resta senão calar-nos, chorar de gratidão e de amor" (Ms B 15-v).

Além da parábola do filho pródigo, a imagem evangélica da misericórdia divina é para Teresa a pecadora que recebe o perdão de Jesus e lhe mostra a sua gratidão e amor com gestos de afeto e de ternura (cf. Lc 7,36-50); Teresa imita-a e sente-a próxima, porque o "seu coração compreendeu os abismos de amor e de misericórdia do Coração de Jesus" (Ct 247).

A experiência da misericórdia de Deus tem também para Teresa a dimensão da gratuidade. É significativo que os manuscritos autobiográficos começam por citar o chamamento dos doze apóstolos segundo o relato de Marcos: Jesus "tendo subido a um monte, chamou os que Ele quis; e foram ter com Ele" (Mc 3,13). Teresa comenta: "Eis todo o mistério da minha vocação, da minha vida inteira e, sobretudo, o mistério dos privilégios de Jesus para com a minha alma. Jesus não chama aqueles que são dignos, mas aqueles que Ele quer" (Ms A 2r). Aprofundando a Palavra de Deus, Teresa descobre o mistério deste desígnio eterno e livre do Pai que "n'Ele nos escolheu antes da criação do mundo... predestinou-nos para sermos seus filhos adotivos por meio de Jesus Cristo... para fazer resplandecer a sua graça, pela qual nos tornou agradáveis em seu amado Filho" (Ef 1,4-6). A vida do homem não depende dos seus esforços ou da sua vontade, mas de Deus e do seu amor misericordioso: "Pois Deus disse a Moisés: 'serei misericordioso com quem o for; condoer-Me-ei de quem Me condoer'. Logo, não depende daquele que quer nem daquele que corre, mas de Deus que usa de misericórdia" (Rom 9,15-16).

Teresa descobre e penetra nesta realidade, até reconhecer que o caminho pelo qual o Senhor a guiou esteve sempre tecido de misericórdia (cf. Ms A 71r). Se não cometeu pecados mortais, sabe que o deve à "inefável previsão" de Deus que, tirando do seu caminho as ocasiões de queda, "perdoou-lhe antecipadamente, impedindo-a de cair". Teresa sabe que foi "preservada apenas pela grande misericórdia de Deus" (cf. Ms A 38v); não lhe foi perdoado muito, mas tudo; em conseqüência, amará a este "Pai que não enviou o seu Verbo para resgatar os justos, mas os pecadores" (Ms A 39r).

Confiança, abandono, esperança

A Irmã Genoveva testemunha quanto Teresa ficou afetada com uma imagem que representava uma criança sentada sobre os joelhos de Jesus, em atitude de lhe beijar o rosto. É a atitude constante da Santa: o conhecimento da própria pequenez e pobreza e a experiência da misericórdia divina desembocam necessariamente no abandono confiante da criança que se sente segura nos braços do pai ou da mãe: "Jesus compraz-se em mostrar-me o caminho que conduz a essa fornalha divina; o caminho é o abandono da criancinha que adormece sem medo nos braços do seu pai" (Ms B 1r). Embora Teresa não aluda a citação explícita, faz suas as palavras confiadas do salmo 131: "Senhor, o meu coração não se orgulha, nem os meus olhos são altivos; não vou atrás das grandezas nem de prodígios que me excedem. Ao contrário, aquieto e sossego a minha alma, como uma criança saciada no colo de sua mãe. Como uma criança saciada, assim está a minha alma" (vv 1-2)

Os escritos teresianos inspiram-se em dois textos da literatura sapiencial. O primeiro é tomado de Provérbios 9,4: "Se alguém for pequenino, venha a mim"; o outro de Sabedoria 6,7: "A misericórdia é concedida aos pequenos". Estes textos, juntamente com as passagens já citadas de Isaías 40 e 66, encontravam-se no pequeno caderno de Celina, e Teresa, por conseguinte, possuía-os. Nestes simples textos fundamenta-se toda a doutrina da infância espiritual; não se trata, pois, de uma teologia elaborada com famosos textos do Evangelho que falam da infância espiritual (cf. Mt 11,25-27; Mc 9,35-37; 10,13-16). As frases de Provérbios 9,4 e de Sabedoria 6,7 são, além disso, citações ocasionais: Teresa não respeita o seu sentido literal nem o contexto no qual se inserem, mas reconhece nestas passagens que falam de pequenez um reflexo da experiência que vai amadurecendo graças à vida de oração.

No entanto, se de algum modo parece arriscada a apropriação que Teresa faz de alguns textos, é conveniente recordar que está a traduzir para uma linguagem totalmente pessoal algumas afirmações teológicas fundamentais do Novo Testamento. Quando São Paulo fala da adoção filial, está a descrever uma condição que corresponde ao cristão por puro dom gratuito de Deus. "Quando chegou a plenitude dos tempos — escreve aos Gálatas — Deus enviou o seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei, para que recebêssemos a adoção filial" (Gl 4,4-5). A presença interior do Espírito Santo é garantia e fonte do dinamismo desta vida filial: "E porque somos filhos, Deus enviou aos nossos corações o Espírito do seu Filho, que grita Abbá, Pai! De modo que já não és servo, mas filho; e se és filho, és também herdeiro pela graça de Deus" (vv. 6-7).

Teresa vive dia a dia as conseqüências práticas desta condição filial. O dinamismo paulino da moral cristã (descobre o que és, a saber, filho de Deus por graça; vive, em conseqüência, como filho) encontra no "pequeno caminho" a sua aplicação lógica e concreta. Descobrir-se filha leva-a a perceber a própria dependência vital de Deus e a percorrer o caminho da confiança e do abandono. É o caminho da esperança teologal. É a pobreza de espírito que é para Jesus a primeira das bem-aventuranças (cf. Mt 5,3). No mesmo contexto do sermão da montanha, Jesus ensina aos discípulos a orar a Deus chamando-lhe "Pai" (cf. Mt 6,9): o Espírito Santo, presente em nós, modela-nos cada vez mais como filhos de Deus. Teresa confessa que a recitação lenta e meditada do "Pai-nosso" recolhe-a e ajuda-a a alimentar a sua alma: pela oração e intimidade com Deus, torna-se cada vez mais filha, à imagem do Filho, que vive nela (cf. Gl 2,20): Teresinha, apenas com onze anos, repete amiúde estas palavras de São Paulo, aplicando-as a si numa das primeiras vezes em que se aproxima da Eucaristia (cf. Ms A 36r).

O caminho do abandono confiante — que culmina com o ato de oferecimento ao Amor misericordioso de junho de 1895 — é a prova mais certa de que Teresa está a viver como filha no Filho. A vida de fé, para Teresa, como para os "pobres" e os "humildes" da Escritura, consiste simplesmente em confiar-se a quem é digno de confiança. Abandonar-se significa crer até o mais profundo no amor de Deus por nós, e crer que só este amor pode salvar: "Sabendo que o homem não é justificado pelas obras da Lei, mas pela fé em Jesus Cristo, também nós acreditamos em Jesus Cristo, para sermos justificados pela fé em Cristo e não pelas obras da Lei... Estou crucificado com Cristo. Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim; e a vida que agora vivo na carne, vivo-a na fé do Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim" (Gl 2,16-20).

Quando é confiada à jovem religiosa a responsabilidade das noviças (encargo que terá até à morte), sente profundamente o seu peso, mas não desespera nem confia exclusivamente nas próprias forças. Confia simplesmente, consciente igualmente das suas limitações, sabendo que o resto "lhe será dado por acréscimo" (cf. Mt 6,33). Deste modo, comprova que nela vive uma presença que age e fala nela; frequentemente adverte que diz palavras que não vêm dela. Numa ocasião adivinha um profundo sofrimento de uma noviça: "A sua estupefação era tão grande, que se apoderou de mim por um instante, e fiquei tomada de um pavor sobrenatural. Tinha a certeza de não ter o dom de ler nas almas, e fiquei verdadeiramente admirada por ter acertado em cheio. Senti claramente que Deus estava muito próximo, e que, sem me dar conta, tinha dito, como uma criança, palavras que não vinham de mim, mas d'Ele" (Ms C 26r).

O mandamento novo

Para terminar, um último olhar à prática teresiana da caridade fraterna. Também neste caso, a Santa compreende a sua importância e o seu significado "meditando as palavras de Jesus" e os seus testemunhos (cf. Ms C 12r). Entre os textos bíblicos importantes para Teresa, merecem particular atenção os capítulos 12 e 13 de primeira carta aos Coríntios: o apóstolo Paulo ajuda-a a descobrir na caridade a essência da sua vocação e o seu lugar na Igreja. Todo o Manuscrito C pode ser considerado um comentário pormenorizado ao tema da caridade, não comentário exegético às várias passagens bíblicas citadas (Teresa não tinha nem a intenção nem a preparação adequada para o fazer), mas uma tentativa de concretizar no contexto da sua comunidade religiosa o mandamento proposto a todos os cristãos.

A atenção de Teresa tem a sua origem no mandamento de Jesus: "Dou-vos um mandamento novo, que vos ameis uns aos outros, e que assim como Eu vos amei, vós também vos ameis uns aos outros" (Jo 13,34). A sua atenção recai na comparação nova e vinculativa: Jesus exige que nos amemos como Ele nos amou. É esta para Teresa a verdadeira novidade do mandamento. Significa que o Senhor não lhe deu uma lei externa, mas pede-lhe para ser Ele a amar nela: "Não fala já de amar o próximo como a si mesmo, mas de o amar como Ele, Jesus, o amou, como o amará até à consumação dos séculos... Senhor, sei que não mandais nada que seja impossível... sabeis que nunca poderia amar as minhas irmãs como Vós as amais, se vós mesmo, ó meu Jesus, não as amásseis também em mim... Oh, quanto amo o vosso mandamento, já que me dá a certeza de que a vossa vontade é amardes em mim todos aqueles a quem me mandais amar!" (Ms C 12v).

O profeta Jeremias tinha preanunciado a nova aliança nestes mesmos termos: "Porei a minha lei no seu interior, gravá-la-ei no seu coração... Todos me conhecerão... pois a todos perdoarei as suas faltas, e não me lembrarei mais dos seus pecados" (Jr 31,33-34). E a nova aliança realizou-se com o dom do Espírito, esta presença divina no homem perdoando-lhe, tornando-o filho e capacitando-o para amar com o próprio amor de Deus, porque "o amor de Deus foi derramado nos nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado" (Rm 5,5). Sem profundos conhecimentos teológicos explícitos, Teresa penetra na doutrina paulina da justificação, sublinhando não só o aspecto negativo do perdão e da libertação, mas sobretudo, o aspecto positivo: compreende que o próprio Deus dá gratuitamente ao homem o que exige que ele faça por meio do mandamento. O maior amor consiste em "dar a vida pelos seus amigos" (Jo 15,13). Para Teresa significa, na vida concreta da sua experiência conventual, levar à prática o desejo do martírio na vida cotidiana, na luta contra cada uma das imperfeições, na paciência, na estima e no acolhimento mútuo (cf. Ms C 12r). A caridade tem que tomar-se disponibilidade total, abertura a todos, indistintamente, capacidade de tomar iniciativa e de dar o primeiro passo. O mandamento novo é apelo a "dar a própria capa" (cf. Lc 6,29): "Deixar a capa é, parece-me, renunciar aos seus últimos direitos, é considerar-se como a serva, como a escrava dos outros. Quando se deixa a capa é mais fácil andar, correr" (Ms C 16v).

Por detrás das delicadezas evangélicas da caridade, Teresa fixa-se particularmente na dimensão da gratuidade: "Se amais aqueles que vos amam... se fazeis bem aos que vos fazem bem... se emprestais àqueles de quem esperais receber, que mérito tereis?... Pelo contrário, amai os vossos inimigos fazei bem e emprestai sem esperar nada em troca, e será grande a vossa recompensa e sereis filhos do Altíssimo, porque Ele é bondoso para com os ingratos e os maus" (Lc 6,32-35). Esta gratuidade é o sinal distintivo da presença do amor de Deus em nós, a característica fundamental dos filhos de Deus. Porque este é o convite que simboliza a conclusão da experiência teresiana: "Sede misericordiosos, corno o vosso Pai é misericordioso" (Lc 6,36). A misericórdia pela qual Teresa se sente envolvida, inundada, salva, converte-se em presença viva que a transforma, a impele e a convida continuamente a ser sinal e testemunha. Para Teresa, a característica da caridade é, de fato, que não permaneça escondida, mas resplandeça: "Compreendi, sobretudo, que a caridade não deve ficar encerrada no fundo do coração. Ninguém, disse Jesus, acende uma candeia para a colocar debaixo do alqueire, mas coloca-a sobre o candelabro para alumiar todos os que estão em casa' (Mt 5,14-16). Creio que essa luz representa a caridade, que deve iluminar e alegrar, não só os que são mais queridos, mas todos aqueles que estão em casa, sem excetuar ninguém" (Ms C 12r).

Sob a guia da Palavra, encontro com o Cristo vivo que ama nela, a vocação de Teresa — como a de qualquer cristão e, mais ainda, a do contemplativo — torna-se, deste modo, resplendor e luz. Não importa o ambiente em que se vive: o importante é ser luz! Se a Palavra de Deus é lâmpada para os nossos passos, luz no nosso caminhar (cf.Sl 119,105), é-o na medida em que nos deixamos iluminar, encher do seu calor. Não se pode transmitir a Palavra de Deus friamente, com desinteresse, sem deixar "queimar as mãos" por este dom, como afirma uma personagem de Bernanos. A Palavra é chamada a ser, como para Jeremias, "um fogo abrasador, encenado dentro dos meus ossos", diante do qual o profeta reconhece: "esforcei-me por contê-lo, o mas não pude" (Jer 20, 9). Teresa ensina-nos a aproximar-nos assim da Palavra de Deus: não como um objeto de estudo, mas como encontro de conversão no amor.

TERESA NOS FALA:

"Nos braços de Deus"

"Aqui tendes, meu irmão, o que penso sobre a justiça de Deus, o meu caminho é todo de confiança e de amor, não compreendo as almas que têm medo de um Amigo tão terno. Às vezes quando leio certos tratados espirituais em que a perfeição é apresentada através de inúmeras dificuldades, rodeada por uma quantidade de ilusões, a minha pobre inteligência cansa-se muito depressa, fecho o sábio livro que me quebra a cabeça e me seca o coração e pego na Sagrada Escritura. Então tudo me parece luminoso, uma só palavra revela à minha alma horizontes infinitos, a perfeição parece-me fácil, vejo que basta reconhecer o próprio nada e abandonar-se como uma criança nos braços de Deus.

Deixando às almas grandes, às grandes inteligências, os belos livros que não posso compreender, e ainda menos pôr em prática, regozijo-me por ser pequenina visto que só as crianças e 'os que se assemelharem a elas serão admitidas ao banquete celestial' (Mt 19,14). Sinto-me muito feliz por haver várias moradas no reino de Deus, porque se houvesse apenas aquela cuja descrição e caminho me parecem incompreensíveis, não poderia lá entrar" (Ct 226).