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segunda-feira, 2 de março de 2009

III-ASCENSÃO PARA A VERDADE

THOMAS MERTON

Este é um livro de meditação sobre a obra de São João da Cruz, traduzido por D. Timóteo Amoroso Anastácio, do original em inglês The Ascent to Truth, e publicado pela Editora Itatiaia, em 1958 (hoje dificilmente encontrado).



I-A RAZÃO NA VIDA CONTEMPLATIVA
 

São João da Cruz começa a Subida do Monte Carmelo afirmando que a alma não poderá chegar à união com Deus sem entrar nas "trevas" com respeito a tudo que possa ser conhecido e desejado tanto pelos sentidos como pela inteligência e a vontade. Quer isto dizer que em certo sentido a  e a contemplação "escurecem" e "cegam" a razão. Nenhum conceito claro e inteligível de Deus pode delimitar o seu Ser como Ele é realmente em si mesmo. A , levando o homem a um nível que está além da sua inteligência finita é "escura", mas S. João da Cruz admite que ela não é jamais contrária à razão.

Mas, infelizmente, muitos leitores dos místicos procedem dessas premissas, à falsa conclusão de que a razão não tem lugar na vida mística. Basear nesta posição anti-racional uma doutrina ascética, é um verdadeiro suicídio espiritual. É verdade que a razão sozinha não pode fazer a ninguém santo, e que as virtudes cristãs devem operar em nível mais elevado do que as virtudes naturalmente adquiridas de um filósofo pagão. O santo é aquele que nasceu não do sangue nem na carne, nem da vontade do homem, mas de Deus. (Jo. 1,13). Entretanto, Cristo, a Luz do mundo, que ilumina cada homem, dá-nos uma participação natural na Luz Divina: a razão humana. Não é sem motivo que Deus nos deu a razão. Ela tem um papel a desempenhar na vida sobrenatural. Deus ordenou de tal modo as coisas, que não podemos normalmente chegar à santidade sem fazer uso dela. Este é o ensino de S. João da Cruz.

Para o carmelita espanhol é lei fundamental da vida espiritual que Deus, suposta a ajuda da graça, quer que nos santifiquemos pelo uso de nossas faculdades naturais postas ao seu serviço. A graça não destrói a natureza, mas a eleva e consagra a Deus. Os homens não se tornam santos deixando de ser homens. Não se atinge a união mística através de uma separação entre a alma e o corpo, na vã tentativa de viver comoanjos. É, aliás, óbvio que o nosso teólogo jamais usou o aforismo "a graça constrói sobre a natureza", para defender uma espiritualidade fácil e materialística. A razão deve servir-nos na luta pela perfeição. Só que não pode lutar com as suas próprias normas. Ela não chefia, ela está alistada ao serviço da . Temos de refletir nas conseqüências morais da , temos de usar a mente para conhecer e guardar os mandamentos e conselhos de Deus.

Sublinhando a importância da razão na vida mística, o santo Carmelita estabelece, em alguns capítulos da Subida do Monte Carmelo , os contrastes entre duas espécies de mística. De um lado há o caminho estreito da União Transformante, o caminho da "Noite", do nada, que é pura. Genuína mística cristã, que é desenvolvimento direto da vida da graça santificante, das virtudes teologais e dos dons do Espírito Santo. de outro lado, há uma espécie de mística que não é exatamente falsa, pois abunda em experiências que podem ser autenticamente sobrenaturais, mas que é um desvio do reto caminhe para a santidade e a união divina. Essa mística floresce em visões e revelações, em epifanias e sinais extraordinários. S. João não nega que Deus muitas vezes se comunica desta maneira com os seus santos. Mas ele insiste em que essas experiências incomuns não devem ser procuradas nem desejadas, já que não estão em conexão essencial com a santidade nem podem manifestar-nos Deus como Ele é. Ha, mesmo, naquele apetite de visões o grande perigo de perder o caminho que leva a Deus, a  perfeita.

É aqui que aparece a razão. Sua função principal na vida contemplativa, segundo S. João da Cruz, é resguardar o contemplativo de sair da estrada real da divina união, o caminho da . Um dos característicos mais notáveis da ascética joanina é que ela exige o constante crivo das experiências espirituais e a rejeição de inspirações situadas fora do reino da pura . O instrumento desta ascese interior não é outro senão a inata luz da razão. A razão, agindo ao serviço da , deve inquirir, pesar e julgar as nossas aspirações mas íntimas e espirituais. Ela deve examinar com inexorável objetividade tudo que se nos apresenta como um impulso sobrenatural. Deve provar cada voz interior, mergulhar as nossas "luzes" mais puras no negro oceano da . O grande paradoxo desta doutrina é que o ascetismo da "noite" não pode ser posto em práticasem a luz da razão. É pela luz da razão que navegamos através da noite da .

Pode-se comparar a jornada da alma para a união mística, pela estrada da pura , à viagem de um carro numa estrada sem luzes. O único recurso do condutor para guardar a estrada é usar os seus faróis. É esta a função da razão na vida mística. O caminho da  é necessariamente escuro e nós viajamos de noite. Nossa razão, todavia, penetra nas trevas o bastante para mostrar-nos um pouco da estrada em frente. É pela luzda razão que interpretamos a sinalização ao longo do caminho.

Os que não compreendem bem a S. João imaginam que a via do Nada é guiar de noite, sem faróis. Isto é uma perigosa incompreensão. S. João critica severamente os que persistem em querer de Deus sinais do gênero de visões, ou outras experiências extraordinárias. E ele explica o motivo:

"Embora Deus possa responder, este método não é bom nem agradável a Deus. É feito mais para desagradar-Lhe... A razão é que não é lícito « nenhuma criatura passar os limites que Deus ordenou por seu governo na ordem da natureza. No governo do homem, Ele pôs limites racionais e naturais e por este motivo é ilícito desejar ultrapassá-los". Em outro lugar, ele repete a mesma coisa com maior clareza:

"Com respeito a divinas visões, revelações e locuções, Deus não costuma revelá-los, porque Ele é sempre desejoso de que os homens façam tanto quanto possível o uso da sua razão".

Em outras palavras, os obstáculos encontrados no caminho da contemplação e da santidade devem ser removidos não por milagre mas pelo senso comum guiado pela luz da  e animado pelo poder da graça divina.

Com a sua ascética só aspira S. João a ordenar em paz o ser inteiro do homem, de modo que os sentidos se submetam à razão e esta, com tudo que há no homem, se consagre a Deus pela  sobrenatural. A perfeição dessa ordem culmina quando o homem é capaz de amar a Deus, "de todo o coração, de toda a mente, e com toda a força", em plena realização do primeiro mandamento. Corresponde isto à descrição que faz da santidade S. Tomás, ao afirmar que o homem alcança a relativa perfeição, quando nenhum obstáculo resta a impedi-lo de amar a Deus de todo o seu ser: ut ab affectu hominis exclitdatur omne illud quod impedit ne affectus mentis in Deum dirigatur". Segundo o Doutor Angélico, deve o homem procurar amar a Deus com todo o seu poder (ex totó posse suo) e chegar a um estado em que tudo nele é ordenado para o amor de Deus. S. João da Cruz diz a mesma coisa: "A alma perfeita é totalmente amor. . . todas as suas ações são amor, e ela emprega as suas faculdades e poderes a amar".

O místico carmelita atesta que é o resumo de toda a sua doutrina: "Nisto se acha tudo que o homem espiritual deve fazer e tudo que eu tenho a ensinar-lhe, a fim de poder atingir a Deus através da união da vontade. (Ele está falando o primeiro mandamento, amar a Deus de todo ocoração). Com isto o homem é mandado empregar todas as faculdades, desejos e afetos de sua alma em Deus". É perfeitamente claro que S. João só concebe a perfeição na união mística, para a qual a alma é preparada pela "noite escura" da purificação passiva.

Não há simples exercício ascético que possa dar à alma um tão completo império sobre todas as faculdades, a ponto de recolhê-las à vontade, consagrando-as ao amor de Deus, e abolindo até os primeiros e instintivos movimentos de amor por outros bens. É Deus mesmo que deve tomar a alma para Si num estado de "recolhimento passivo", antes que ela possa "amar com grande força e com todos os seus desejos e poderes do espírito e dos sentidos que não poderiam assim ser, se estivessem dispersos na fruição de qualquer outra coisa. . . (Portanto) Deus guarda no recolhimento todas as energias, faculdades e desejos da alma tanto do espírito como dos sentidos, de modo que toda esta harmonia pode empregar as suas energias e virtudes neste amor e assim atinge ao verdadeiro cumprimento do primeiro mandamento".

Entretanto, faz-se aqui necessária uma palavra de advertência.

Separar tal proposição do conjunto doutrinário de S. João levaria a sérios erros. É verdade que a perfeição final da alma, a completa união com Deus, é produzida passivamente por Deus. Este trabalho é realizado pela "noite" mística do espírito e não pela noite ativa da ascese. Esta é, no entanto, a preparação ordinária e normal para as graças da oração mística e para as purificações passivas.

Ponhamos em tudo isso um pouco de clareza. Primeiro de tudo, que é a ascese? É a purificação ativa pela qual a alma, inspirada e fortificada pela graça, se toma em mãos e se submete a um rigoroso exercício de renúncia e de virtude. É vim estado em que Deus nos deixa a iniciativa, limitando-se a sugerir e a inspirar, enquanto nos resta aceitar ou recusar.

purificação mística ou passiva não vem de nossa iniciativa. O nosso consentimento não tem nela um papel essencial. Não se vá, entretanto, pensar que toda provação vinda de agentes exteriores, a doença por exemplo, seja necessariamente purificação passiva. Pode, no entanto, acompanhá-la. A purificação passiva uma obra feita só por Deus na alma a emergir do seu próprio interior, exatamente como as graças daoração passiva, que sobem das profundezas mesmas da alma para ser-lhe infusas.

Nossas definições estão agora estabelecidas. Os autores, às vezes, descrevem a vida interior como se fosse uma nítida sucessão de dois estados distintos. O primeiro seria o "ascético", em que somos ativos: o segundo, "místico", em que somos passivos. Fica a impressão que na vida interior o homem vai-se exercitando por anos na prática laboriosa da virtude, e, de repente, um dia se vê a mancar. Daí em diante ele passa a vida como a flutuar e recebe misteriosas iluminações. Outros autores há que chegam a sustentar a existência de duas estradas distintas para a perfeição: uma, puramente ascética; a outra, mística. Não é aqui o lugar para discutir esta opinião.

Na prática, a vida interior jamais entra num estado em que o homem é completamente passivo em cada instante. Um certo grau de passividade existirá também em toda vida interior autêntica. A fronteira da vida mística, entretanto, só é cruzada quando a alma é habitualmente guiada por Deus, tanto na oração como na prática da virtude. Nem sempre é clara esta passividade. Geralmente falando, há sempre necessidade de cooperação ativa à graça, o que funda a exigência da ascese, sem a qual não se pode praticamente pensar em vida mística. Mas a ascese não precisa de exprimir-se em enérgicos exercícios de mortificação, e muito menos em macerações extraordinárias. Pelo contrário, a verdadeira senda da ascese é um caminho de obscuridade e simplicidade, e não há verdadeira abnegação cristã que não comece com uma cordial aceitação e prática dos deveres ordinários de estado. Cada um guiado pela graça desejará espontaneamente a juntar alguma coisa aos sacrifícios exigidos pela Providência e pelo estado de vicia. Mas o melhor destas mortificações só Deus o vê, e não atrai a atenção dos outros nem agrada à própriavaidade. Na prática é sempre mau ceder à rivalidade ascética, que só leva ao egoísmo, estreita a visão, e priva da liberdade interior que é absolutamente necessária ao progresso nos caminhos da oração.

A conclusão que decorre de tudo isso é que a ascese, retamente entendida e praticada, é absolutamente necessária à perfeição cristã e à vida contemplativa. Pode-se, com efeito, dizer que a vida mística, embora essencialmente independente dos nossos esforços é, em geral, posta em correspondência com a nossa generosidade em face do sacrifício.

Há para isto duas razões. A primeira é que Deus não concederá as inspirações especiais da oração e da purificação passiva a uma alma que não deu provas de fidelidade e de cooperação à graça ordinária. A segunda é que as purificações passivas exigem da alma uma coragem maior do que a mortificação ativa. No início da purificação passiva, a alma ainda é largamente ativa. Deus não a submerge imediatamente na sua açãodivina. Muita virtude ativa se lhe pede para que suporte o sofrimento que Deus passivamente leva às suas profundezas. Mas Ele aí a ajuda com graças especiais.



O papel da ascese é resumido por S. João da Cruz nesta fórmula: "dirigindo toda a força da alma para Deus".

Qual é a força da alma? Suas faculdades, suas paixões, seus desejos. Quando tudo isso é ordenado a Deus pela vontade, instala-se aquela perfeição limitada, que o esforço ascético é capaz de conquistar e nos dispõe à oração mística. Mas a vontade é cega. Reduzida a si mesma, ela não pode encaminhar a Deus toda a força da alma. Em todos os seus movimentos de desejo, a vontade deve formar com a razão. E assim é que, bem o declara S. João da Cruz, "quando estas paixões são dominadas pela razão com respeito a Deus, de modo que a alma não se contente senão com o que é só para glória de Deus. . . é claro que a força e a capacidade da alma são dirigidas a Deus e guardadas para Ele."

Falando de paixões, diz ele outra vez. "Destes afetos, quando são incontidos, desembocam na alma todos os vícios e imperfeições que ela possui, como também, se são ordenados e compostos, todas as suas virtudes. E deve-se saber que se uma destas (paixões) se tornar ordenada e regida pela razão, o resto também o será". . . "Onde quer que esteja uma destas paixões, ali estará igualmente toda a alma- com a vontade e todas as outras faculdades. . ." Se ã razão, pelo perfeito domínio de uma paixão, pode dirigir todas as faculdades da alma para o fim próprio do homem, aalma estará em paz. E S. João deixa claro que esta paz e silêncio interior. resultante da ascese, cria a única atmosfera em que as graças daoração mística podem florescer. "A tranqüilidade, a paz (em que não reinam as paixões) são necessárias à sabedoria que por meios naturais ou sobrenaturais a alma é capaz de receber".

A conclusão é rigorosa. A oração mística é um dom de Deus a uma alma purificada ao menos em parte pela disciplina ascética, o que só se consuma quando as paixões e as faculdades são regidas pela razão. A oração mística depende, per accidens, da reta ordenação da alma pela razão. Neste sentido, pois, a razão é a chave da vida mística! A explicação psicológica encontra-se nas palavras de Cristo escolhidas pela Igreja no Evangelho da Missa própria de S. João da Cruz, segundo o missal carmelita: "A luz do teu corpo são teus olhos. Se teu olho é simples (isto é, se ele vê claramente, sem confusão nem duplicidade) todo o teu corpo será luminoso, mas se ele é mau, todo o teu corpo será tenebroso. Cuida, pois, que a luz que existe em ti não seja em trevas".

luz em nós é a razão, ou a inteligência. Ela não é apenas aquilo que nos faz ver e compreender o mundo criado em sua realidade, mas é, sobretudo, o "olho" que recebe a luz infusa da  e da contemplação. A verdadeira contemplação é um "conhecimento (gnosis) amoroso de Deus", e de fato exige a ação coordenada do conhecimento (gnosis) e do amor sobrenatural. Ela é, porém, situada formalmente na inteligência, como pensam S. João da Cruz e S. Tomás. Vimos em que sentido se toma esta imagem: guadar claro o "olho" da inteligência. O que obscurece o espírito são os seus muitos apegos. Há uma cegueira espiritual que é fruto da emoção, da paixão, do desejo desordenado. Esta passagem de S. João da Cruz no-lo recordará: "Por menos que se beba desse vinho (o gosto pelas coisas criadas) ele sobe logo ao coração e o embriaga, e acaba escurecendo a razão... de modo que se não se toma depressa um antídoto para expelir sem demora o veneno, a vida da alma fica ameaçada".

O antídoto de S. João é a "crise", a separação dis-criminativa dos verdadeiros e falsos valores que discutimos no início deste livro. É precisamente através do trabalho da razão que esta crise acontece.

Seria, contudo, um erro fatal supor que a purificação da alma, em que a razão tem papel tão importante, se opera inteiramente ao nível davirtude natural. Dizendo que todos os poderes da alma devem ser ordenados pela razão, S. João não diz que eles devam conformar-se a um ideal racional e ¦natural. Não se trata aqui de uma purificação ética ou moral. S. João não considera o nível de perfeição segundo o qual os homens deixam de enganar uns aos outros nos negócios, ir à missa aos domingos, dar esmolas aos pobres, emprestar a cortadeira de grama ao vizinho sem praguejar mesmo baixinho. Quando ele fala que "os poderes da alma devem ser dominados pela razão", fala da perfeição sobrenatural consumada sob o impulso da graça, segundo os princípios revelados pela . Uma perfeição puramente ética é aquela em que a razão dirige todos os poderes da alma para Deus, considerado como o Autor da natureza e último fim das aspirações naturais do homem. Mas todo teólogo sabe que os homens vivem sob uma ordem sobrenatural em que são dirigidos por Deus a um fim sobrenatural, e se eles malogram na consecução deste fim, não podem substituí-lo por um outro, de nível natural. A vida de virtude deve, ao menos implícito ser de algum modo ordenada a um fim sobrenatural e dirigida pela graça, sob pena de acabar numa perda.

A razão deve dirigir a alma para Deus segundo o plano sobrenatural que Èle nos revelou e que só podemos conhecer pela . Mas será suficiente? S. João é ainda mais preciso. Deixêmo-lo falar num caso concreto. Importa não esquecer o fim que ele tem em vista: toda a força da alma deve ser inteiramente consagrada ao amor de Deus. Or"a, vem uma ocasião em que a alma se vê a tirar das coisas criadas um prazer sensível, e esteprazer é conexo com o amor de Deus. É um prazer bom para a alma? Como sabê-lo? Devemos tirar a limpo de que é que gostamos, de Deus ou do prazer. O fim, ou os meios. A resposta deve ser encontrada na intenção da verdade. Em que é que ela realmente repousa? Em que procura ela a sua maior satisfação? Se é em Deus, então o prazer encontrado nas coisas é só um meio. Esse prazer é bem ordenado, ajuda a louvar a Deus, santifica a alma. Aqui estão as palavras de S. João da Cruz:

"Quando o prazer que a vontade encontra no que ela ouve, vê e faz, serve para elevá-la até Deus, dando-lhe para tal motivo a força, isto é muito bom. Nesse caso, não só é preciso evitar aqueles movimentos de prazer, que causam devoção e oração, mas pode, e até deve aproveitar-se deles. . . Porque há almas que são fortemente movidas por objetos sensíveis a procurar a Deus".

Quando, no entanto, as coisas criadas nos causam um grande prazer, é fácil iludir-nos sobre a pureza de intenção. Um prazer humano, mesmo procurado de boa  como motivo de oração, pode levar a um apego, em que o desejo do prazer depressa se fará mais imperioso do que o daoração. Isso facilmente acontece, por exemplo, no caso de uma amizade sentimental.

Para determinar a natureza da invenção no uso das coisas criadas, muitos teólogos se contentam em prescrever um "ato de pureza de intenção", que não precisa de ser formal e explícito, e exprimirá o desejo de dar em tudo glória e honra a Deus. S. João da Cruz, em companhia de todos os teólogos, reconhece o valor sobrenatural da intenção pura. Mas também nos adverte do risco de ilusão em nossas boas intenções, dada a cegueira da alma. A sinceridade assegurará a orientação da vontade de Deus, na ordem da intenção. Mas como nos iludimos, acabamos por procurar mais o prazer do que a Deus. Diremos que nossa vontade é agradar a Deus, o que é, talvez, sincero; mas, como nos deixamos enganar pelo amor do prazer, inconscientemente é a nós mesmos que procuramos agradar. Não será bem uma hipocrisia, mas um amor própriodisfarçado, que não constitui jamais pecado formal, mas que não pode deixar de ter efeitos prejudiciais na vida espiritual. S. João assevera que psicologicamente esses atos enfraquecem a alma e a confirmam no mau hábito. Isso é evidente a quem considera que as leis da psicologia humana não são suspensas por atos de mera formalidade. Diz o santo:

"Grande cautela devemos ter aqui (no prazer tirado de criaturas sob o pretexto de glorificar a Deus por elas) e convém considerar os seus efeitos. Porque, muitas vezes, bom número de espirituais se entrega a recreios dos sentidos sob o pretexto de oferecer oração e devoção a Deus. E fazem isto dum modo que merece mais o nome de recreio do que de oração, pois lhes dá mais prazer a eles do que a Deus. E embora sua intenção seja por Deus, o que fazem é uma recreação dos sentidos, onde encontram mais fraqueza e imperfeição do que renovação da vontade e adesão a Deus.

S. João da Cruz assevera que um espiritual pode dizer, por experiência, com que intenção ele usa as criaturas. O sinal seguro é uma certa liberdade de espírito, que confere ao indivíduo a consciência de não estar cativo do prazer. Este fica indiferente e neutro, dentro do olhar perdido em Deus. Só Deus importa, só Ele está na pupila da alma, enquanto o resto, confundido num borrão indistinto, desaparece do campo visual.

Quando experimentamos esta liberdade interior, podemos confiar plenamente em nossa pura intenção ao usar das criaturas. Mas o místico carmelita declara, e isto é o mais importante, que quando esta liberdade não é experimentada, não podemos confiar só na razão para guiar-nos em nossa escolha de meios. Agora vemos que há limitações na razão, mesmo quando dirigida pelos princípios da . Sobre isto diz S. João:

"Aquele que não sente esta liberdade de espírito em face das coisas e prazeres sensíveis, nos quais sua vontade descansa e se refaz, recebe delas muito prejuízo e deve desviar daí a sua vontade. Pois, embora a razão possa desejar o seu emprego para ir a Deus, como, entretanto, oapetite que despertam corresponde ao sentido (desordenado), é certo que aquele encontra aí mais obstáculo do que ajuda e mais prejuízo do que proveito".

Mas nenhuma destas palavras modifica a essência do problema. A razão continua a chave da aseese de S. João da Cruz, enquanto é o único instrumento com que cooperamos à graça e pomos em prática os ensinos da . O que nos santifica é renegar-nos com toda a energia, pela Cruz do Cristo, pelo amor de Deus. Este o ensinamento da . Como pô-lo em prática? Voltemos ao começo da Subida do Monte Carmelo. Devemos ter um "desejo habitual de imitar o Cristo" em tudo quê fazemos. Para conformar nossa vida là do Cristo, é preciso meditar na sua vida, afim de "podermos conhecer como imitá-lo". E para fazê-lo bem, temos de renunciar "a cada prazer que não fôr para a honra e a glória de Deus". Nosso motivo em tudo isso é o "amor de Jesus Cristo".

 nos dá os princípios, mostra-nos o fim sobrenatural e os meios para ele. Dá-nos um motivo sobrenatural. Mas a êxito ou ou malogro da pratica aplicação desses princípios depende de podermos decidir quais os nossos atos que são e quais não são para, a honra e a glória de Deus. Deus é sempre livre de iluminar-nos por uma luz infusa que segundo um modo superior ao modo natural de julgamento prático, nos ajudará a fazer tal decisão. Esta luz é um bem que, estritamente falando, não podemos merecer. Por conseguinte, na medida em que está em jogo a nossa cooperação ativa com Deus, as decisões práticas dependem da clareza e eficiência de nossa razão e vontade, guiada pela graça ordinária e. iluminada pelas virtudes teológicas infusas. Ora, esta clareza e eficácia dependem, por sua vez, da nossa generosidade em renunciar a nós mesmos, a qual é proporcional ao amor. A  nos manda procurar a Deus antes de todo prazer criado. Mas na via da ascese é nossa razão que deve julgar da pureza da intenção e dizer-nos qual é, de fato, o sentido da nossa vontade, se tende para Deus ou fica nas coisas.

A mais simples solução do problema encontra-se nos severos conselhos que o santo dá no início da Subida:

"Se se apresenta ao homem o prazer de ouvir coisas que não tendem ao serviço e à honra de Deus, guarde-se de desejar tal prazer, guarde-se de ouvi-las".

Em outras palavras, a razão deve submeter todos os movimentos de desejo a um minucioso escrutínio sobrenatural, e recusar à vontade a liberdade de amar o que não é para a glória de Deus. O que se requer da vontade é obedecer às ordens da razão guiada pela  e a graça. Mas sem perder em tudo o senso das proporções. Somos ainda humanos! As nossas paixões podem ainda ser fortemente presas ao prazer que elas naturalmente desejam. Podem mesmo sentir alguma coisa deste prazer, a despeito de resistência da vontade. Neste caso, diz o santo:

"Basta que ele não deseje ter este prazer, apesar de estarem as coisas presentes aos seus sentidos, E desse modo ele será capaz de mortificar as sensaçõss desta prazer e deixá-las como se estivessem nas trevas".

Note-se a diferença das duas instâncias citadas pelo santo: uma em que a vontade descansa no prazer sensível, outra em que os sentidos descansam no prazer mas contra os ordens da vontade. No primeiro caso, a razão fica desamparada. Está cega pelo apego da vontade a umprazer desordenado, e pode com as suas mais especiosas decisões levar a alma a um extremo perigo.

No outro caso, o prazer é sentido, mas não desejado. A vontade é livre. A razão, portanto, continua clara. Suas decisões são seguras e verdadeiras. Podemos avançar com confiança, embora com extremo cuidado. Nossas intenções não talvez tão puras como pensamos que sejam. Graças à lealdade da razão ao serviço da graça, os atos são sobrenaturais em seu objeto, seu fim e suas circunstâncias.

A conclusão prática de tudo isso é importante. S. João da Cruz sustenta que, na prática deste ascetismo de que, de fato, depende normalmente o nosso progresso espiritual, nunca devemos formalmente conceder à nossa vontade que procure qualquer prazer pelo prazer mesmo. Não basta ser moderado e lícito segundo as normas da razão natural. Se é procurado por si mesmo, e a vontade, em vez de passar por ele afim de descanáar em Deus, repousa nele, o ato poderá não ser necessària.-mente pecaminoso, mas terá conseqüências danosas para a alma. Fará que esta descanse no prazer criado, cega à luz sobrenatural que nos levaria, pelo caminho da cruz, à união com Deus.

Se, contudo, a vontade não fica no prazer criado mas vai até Deus por uma intenção sobrenatural verdadeiramente pura (mesmo que seja só virtual), então o prazer não só deixa de causar dano à alma, mas pode mesmo constituir uma considerável contribuição ao seu bem espiritual.

São princípios abstratos a aplicar com moderação e bom senso. Muitas almas poderiam ser grandemente prejudicadas por uma compreensão errônea destes princípios. Os escrupulosos poderiam ter um efeito exatamente oposto ao que S. João da Cruz pretende, roubados da sua liberdade espiritual e incapazes de devotar-se inteiramente ao amor de Deus.

A NOITE ESCURA



(São João da Cruz)

"Em uma noite escura
De amor em vivas ânsias inflamada
Oh! Ditosa ventura!
Saí sem ser notada,
'stando já minha casa sossegada.
 
Na escuridão, segura,
Pela secreta escada, disfarçada,
Oh! Ditosa ventura!
Na escuridão, velada,
'stando já minha casa sossegada.
 
Em noite tão ditosa,
E num segredo em que ninguém me via,
Nem eu olhava coisa alguma,
Sem outra luz nem guia
Além da que no coração me ardia.
 
Essa luz me guiava,
Com mais clareza que a do meio-dia
Aonde me esperava
Quem eu bem conhecia,
Em lugar onde ninguém aparecia.
 
Oh! noite, que me guiaste,
Oh! noite, amável mais do que a alvorada
Oh! noite, que juntaste
Amado com amada,
Amada no amado transformada!
 
Em meu peito florido
Que, inteiro, para ele só guardava,
Quedou-se adormecido,
E eu, terna o regalava,
E dos cedros o leque o refrescava.
 
Da ameia a brisa amena,
Quando eu os seus cabelos afagava,
Com sua mão serena
Em meu colo soprava,
E meus sentidos todos transportava.
 
Esquecida, quedei-me,
O rosto reclinado sobre o Amado;
Tudo cessou. Deixei-me,
Largando meu cuidado
Por entre as açucenas olvidado".

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Ditos de Luz e Amor

Ditos de Luz e Amor


São João da Cruz — Ditos de Luz e Amor

(retirado do livro "Obras Completas S. João da Cruz")

PRÓLOGO

Ó Meu Deus e meu enlevo, também foi por amor a Vós que a minha alma se quis aplicar nestes vossos ditos de luz e amor. Embora tenha o seu dizer, falta-me a sua obra e virtude, que é, meu Senhor, o que neles Vos agrada mais do que palavras e sabedoria. Talvez outras pessoas, animadas por eles, possam aproveitar no vosso serviço e amor, em que eu falto, e a minha alma se console por ter sido ocasião para encontrardes noutros o que falta nela.

Vós, Senhor, amais a discrição, a luz e o amor mais do que outras operações da alma. Por isso, estes ditos servirão de discrição para o caminhar, de luz para o caminho e de amor no caminhar.

Arrede-se, pois a retórica do mundo! Ponhamos de lado o palavreado e a eloquência oca da sabedoria humana, débil e engenhosa, que nunca Vos agrada. Ao contrário, dirijamos ao coração palavras banhadas de doçura e amor, que muito Vos agradam. Talvez, assim, retiremos pequenas ofensas e dificuldades em que muitas almas tropeçam por ignorância; e, não sabendo, continuarão a errar, pensando que acertam no seguimento do vosso dulcíssimo Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, por se verem semelhantes a Ele na vida, circunstâncias e virtudes, ou na forma de desnudez e pureza de espírito. Sede Vós, porém, Pai das misericórdias, a dá-la, porque sem Vós, Senhor, nada se fará.



1

1. O Senhor sempre revelou aos mortais os tesouros da Sua sabedoria e do Seu espírito; mas agora, que a malícia vai mostrando cada vez mais o seu rosto, revela-os ainda mais.

2. Ó Senhor, meu Deus, quem Vos procurará com amor puro e singelo sem que Vos encontre ao seu gosto e vontade, sabendo que Vós sois o primeiro a mostrar-vos e a vir ao encontro daqueles que Vos desejam?

3. Ainda que o caminho seja plano e suave para os homens de boa vontade, contudo o caminhante andará pouco e a muito custo se nisso mesmo não se empenhar com boas pernas, coragem e audaz porfia.

4. Mais vale estar carregado junto do forte do que aliviado junto do fraco. Quando estás carregado estás junto de Deus, que é a tua fortaleza, pois Ele está perto dos atribulados. Quando estás aliviado estás junto de ti, que és a tua própria fraqueza. A virtude e a fortaleza da alma crescem e confirmam-se com trabalhos e paciência.

5. Quem quiser estar sozinho, sem ajuda de mestre ou guia, assemelha-se à árvore do campo, sozinha e sem dono: por muito fruto que dê, os caminhantes sempre a colherão antes do tempo.

6. A árvore cultivada e resguardada pelo seu dono dá o fruto no tempo que dela se espera.

7. A alma virtuosa, sozinha e sem mestre, é como o carvão aceso que fica só: mais se vai esfriando que acendendo.

8. Quem cai sozinho, sozinho fica no chão, e pouco apreço tem pela sua alma, pois só a escora em si.

9. Se não temes cair sozinho, como presumes em levantar-te sozinho? Olha que podem mais dois juntos do que um sozinho.

10. Quem cai carregado, dificilmente se levantará.

11. Quem cai cego, não se levantará sozinho. E, se se levantar, encaminhar-se-á por onde não convém.

12. Deus antes quer de ti o mais pequeno grau de pureza de consciência do que todas as obras que possas fazer.

13. Deus antes quer de ti o mais pequeno grau de obediência e humildade do que todos esses serviços que Lhe pensas oferecer.

14. Deus estima mais em ti a disposição para a aridez e o sofrimento por Seu amor do que todas as consolações, visões espirituais e meditações que possas ter.

15. Nega os teus desejos e encontrarás o que o teu coração deseja. Sabes, por acaso, se o teu apetite é do agrado de Deus?

16. Ó dulcíssimo amor de Deus, tão mal conhecido! Descansado fica quem encontrou a sua fonte.

17. Se hás-de receber redobrada amargura por fazeres a tua vontade, então não a faças, apesar de te amargurares.

18. A alma que se encaminha para Deus, se tiver em si o mais pequeno apetite por qualquer coisa do mundo, vai mais desonesta e impura do que se carregasse todas as indecorosas e molestas tentações e trevas que se possam imaginar, desde que a vontade racional não as aceite. Nessa ocasião até se pode aproximar com mais confiança de Deus, porque está a fazer a vontade de Sua Majestade que diz: Vinde a Mim todos os que estais cansados e oprimidos, que Eu vos aliviarei (Mt 11,28).

19. Agrada mais a Deus a alma que, na aridez e provações, se sujeita à razão do que aquela que, sem dela fazer caso, tudo faz a seu bel-prazer.

20. Uma obra feita às escondidas e sem querer que se saiba, por pequena que seja, agrada mais a Deus do que mil feitas com vontade de que os homens as vejam. Quem faz as coisas por Deus no amor mais puro, pouco se importa que os homens as vejam, pois nem as faz para que o próprio Deus as conheça. E ainda que Ele nunca as viesse a conhecer, não deixaria de Lhe prestar os mesmos serviços com a mesma alegria e pureza de amor.

21. A obra feita por Deus em total pureza, transforma o coração puro em reino inteiro para o seu senhor.

22. Duplo trabalho tem o pássaro que poisou no visco: soltar-se e limpar-se. Também de duas maneiras pena quem satisfaz o seu apetite: em primeiro lugar libertar-se dele e, depois, limpar-se do se lhe apegou.

23. Quem não se deixa levar pelos apetites, voará ligeiro no espírito, como acontece à ave que tem penas.

24. A mosca que poisa no mel interrompe o seu voo. A alma que queira manter-se atida ao sabor do espírito interrompe a sua liberdade e contemplação.

25. Se quiseres guardar a imagem pura e simples do rosto de Deus na tua alma, não te mistures com as criaturas; ao contrário, esvazia e afasta muito delas o teu espírito e andarás na luz divina, porque Deus não se parece com elas.

26. Oração da ala enamorada

Senhor Deus, Amado da minha alma!

* Se ainda Vos recordais dos meus pecados para não me fazeres o que Vos tenho andado a pedir, fazei meles, meu Deus, a Vossa vontade, pois é o que eu mais quero; fazei sentir a Vossa bondade e misericórdia e neles sereis conhecido.

* E se estais à espera das minhas obras para atenderdes o meu pedido, dai-mas Vós e realizai-as por mim, bem como as penas que quiserdes aceitar, e faça-se.

* Mas se pelas minhas obras não esperais, então porque esperais, meu clementíssimo Senhor? Porque tardais?

* E já que, enfim, há-de ser graça e misericórdia o que em vosso Filho Vos peço, recebei o meu nada, já que o quereis, e concedei-me este bem, que também é o que quereis.

* Quem se poderá livrar destes modos e baixos termos se não sois Vós, meu Deus, a erguê-lo para Vós, em pureza de amor? Como se elevará até Vós o homem gerado e criado em baixezas, se não sois Vós, Senhor, a deitar-lhe a mão com que o fizestes?

* Meu Deus, não me ireis roubar o que me destes um dia no vosso único Filho, Jesus Cristo, no qual me destes tudo quanto quero; por isso, espero e confio em que não tardarás.

* E porquê tanta demora, se já podes a Deus no teu coração?

* Os céus são meus e a terra é minha. Os povos são meus; meus são os justos e os pecadores. Os anjos são meus, a Mãe de Deus é minha, e minhas são todas as coisas. O próprio Deus é meu e para mim, porque Cristo é meu e todo para mim. Então, que pedes e procuras alma minha? Tudo isto é teu e para ti. Não te rebaixes nem olhes às migalhas que caem da mesa do teu Pai.

* Sai para fora e gloria-te na tua glória; esconde-te nela e goza, pois alcançarás o que o teu coração deseja.

27. O espírito bem purificado não se mistura com estranhas advertências nem respeitos humanos, mas apenas se comunica interiormente com Deus, na solidão de todas as formas, em ameno sossego, porque o seu conhecimento é em silêncio divino.

28. A alma enamorada é suave, mansa, humilde e paciente.

29. A alma rude endurece-se no seu amor-próprio.

30. Se Vós, ó bom Jesus, não suavizais a alma no Vosso amor, ela continuará sempre na sua rudeza natural.

31. Quem perde a ocasião é como quem deixou fugir o pássaro da mão: não o voltará a apanhar.

32. Eu não Vos conhecia, meu Senhor, porque desejava ainda conhecer e saborear coisas.

33. Senhor Deus, que tudo mude em boa hora para repousarmos em Vós.

34. Um só pensamento do homem vale mais que o mundo inteiro. Portanto, só Deus é digno dele.

35. O que não sentes é insensível; o que sentes é sensível; o pensamento é espírito de Deus.

36. Olha que o teu anjo da guarda nem sempre move o apetite a agir, se bem que ilumine sempre a razão. Portanto, não estejas à espera do gosto para praticar a virtude, pois basta a razão e o entendimento.

37. Quando o apetite está posto noutra coisa, não dá lugar a que o anjo o mova.

38. O meu espírito secou, porque se esqueceu de apascentar-se em Vós.

39. O que pretendes e o que mais desejas não o encontrarás no caminho que levas, nem na alta contemplação, mas só com muita humildade e docilidade de coração.

40. Não te canses, pois não gozarás da suavidade do espírito se não te entregares à mortificação de tudo quanto desejas.

41. Lembra-te que a flor mais delicada é a que murcha mais depressa e perde o seu perfume; livra-te, portanto, de caminhar pelo espírito do sabor, pois serás inconstante; procura antes um espírito robusto, desapegado de tudo, e encontrarás suavidade e paz em abundância, porque a fruta mais saborosa e duradoira apanha-se nas terras frias e secas.

42. Pensa que a tua carne é fraca e que nenhuma coisa deste mundo pode trazer fortaleza e consolação ao teu espírito, porque o que nasce do mundo é do mundo, e o bom espírito só nasce do espírito de Deus, que não se comunica nem pelo mundo nem pela carne (cf. Jo 3,6).

43. Presta atenção à razão para fazeres o que ela te indicar no caminho para Deus. Valer-te-á mais isso diante de Deus do que todas as obras feitas sem essa atenção e todos os gostos espirituais que desejas.

44. Feliz aquele que, tendo posto de lado o seu gosto e afeição, vê as coisas na razão e na justiça para as fazer.

45. Quem se guia pela razão é como quem se nutre de substancia; quem se guia pelo gosto da sua vontade é como quem come fruta mole.

46. Senhor, com alegria e amor, levantais de novo quem Vos ofende, enquanto que eu não volto a levantar nem honrar a quem me aborrece.

47. Ó Senhor todo-poderoso, se uma centelha do império da Vossa justiça tem tanta influência no príncipe mortal que governa e guia as nações, o que não fará a Vossa omnipotente justiça no justo e no pecador?

48. Se purificares a tua alma dos estranhos gozos e apetites, entenderás as coisas em espírito; e, se nelas negares o apetite, gozarás da sua verdade, entendendo nelas o que é certo.

49. Senhor, meu Deus, Vós não sois estranho a quem não se esquiva de Vós. Porque dizem, então, que Vós vos ausentais?

50. Verdadeiramente venceu todas as coisas aquele a quem nem o gosto delas o move ao prazer nem a sua insipidez lhe causa tristeza.

51. Se quiseres chegar ao santo recolhimento, mais do que consentindo hás-de ir negando.

52. Meu Deus, indo convosco, seja para onde for, em toda a parte me há-de acontecer aquilo que para Vós desejo.

53. Não poderá chegar à perfeição quem não procura satisfazer-se com tão pouco, de modo que a concupiscência natural e espiritual estejam satisfeitas mesmo sem nada; aliás, é o que se pede para gozar da suma tranquilidade e paz de espírito. É assim que o amor de Deus, na alma pura e simples, está quase permanente em acto.

54. Lembra-te que Deus é inacessível e, por isso, não te deves concentrar no que as tuas potências podem compreender e os teus sentidos sentir, a fim de não te satisfazeres com o mais inferior nem a tua alma perder a necessária ligeireza no caminho para Ele.

55. Como quem puxa um carro encosta acima, assim caminha para Deus a alma que não se liberta de cuidados nem apaga o apetite.

56. Não é da vontade de Deus que a alma se perturbe com coisa alguma nem que sofra amarguras; e se as sofre com as contrariedades do mundo, isso deve-se à sua pouca virtude, porque a alma perfeita alegra-se naquilo em que a imperfeita se atormenta.

57. O caminho da vida é de muito pouco barulho e pretensão, e requer mais mortificação da vontade do que muito saber. Quem menos se agarrar às coisas e aos gostos, mais avançará por ele.

58. Não penses que trabalhar muito agrada mais a Deus do que fazê-lo com boa vontade, sem apegos e respeitos humanos.

59. No entardecer examinar-te-ão no amor. Aprende a amar como Deus quer ser amado e não olhes à tua condição.

60. Procura não te misturares em coisas alheias, nem sequer te lembres delas, porque quiçá não poderás cumprir o que tens a fazer.

61. Não julgues que, por não luzirem no outro as virtudes que tu pensas, não será ele precioso aos olhos de Deus pelo que tu não pensas.

62. O homem não sabe alegrar-se nem condoer-se muito bem, porque desconhece a distância entre o bem e o mal.

63. Procura não te entristeceres tão depressa com as contrariedades do mundo, pois não sabes o bem que acarretam consigo, nem como está ordenado nos juízos de Deus para a alegria sempiterna dos eleitos.

64. Não te delicies com as riquezas temporais, pois não sabes ao certo se elas te asseguram a vida eterna.

65. Na tribulação recorre imediatamente a Deus com toda a confiança e serás fortalecido, iluminado e ensinado.

66. Na consolação e na alegria recorre imediatamente a Deus com temor e verdade, e não serás enganado nem envolvido pela vaidade.

67. Considera a Deus como o esposo e o amigo que te acompanha sempre, e, assim, não pecarás, saberás amar, e conhecerás a prosperidade das coisas que necessitas.

68. Conquistarás as pessoas sem grande esforço e as coisas ser-te-ão servidas, se delas e de ti mesmo te esqueceres.

69. Tranquiliza-te, evitando freimas e não te preocupando com o que acontece; assim servirás a Deus a seu gosto e n’Ele gozarás.

70. Lembra-te que Deus só reina numa alma pacífica e livre.

71. Podes fazer muitas coisas, mas se não aprendes a negar a tua vontade e a dominar-te, não te preocupando contigo e com as tuas coisas, não avançarás na perfeição.

72. Que adianta dares a Deus uma coisa se Ele te pede outra? Pensa no que Deus poderá querer e fá-lo, porque assim satisfarás melhor o teu coração do que com aquilo que gostas.

73. Como te atreves a folgar sem nenhum temor, se tens de comparecer diante de Deus para prestar contas da mais pequena palavra e pensamento?

74. Lembra-te que são muitos os chamados e poucos os escolhidos (Mt 22,14). Se não cuidares de ti, é mais certa a tua condenação do que a tua salvação, sobretudo sendo tão estreita a via que conduz à vida eterna (Mt 7,14).

75. Não te alegres inutilmente, pois tu sabes quantos pecados cometestes, mas não sabes como Deus se comporta contigo. É melhor temeres com confiança.

76. Se na hora de prestar contas a Deus te hás-de lamentar por não teres utilizado este tempo ao seu serviço, porque não o ordenas e empregas já como gostarias de o ter feito quando estiveres para morrer?

77. Se queres que no teu espírito nasça a devoção, e que o amor de Deus e o gosto pelas coisas divinas aumente, purifica a alma de todos os apetites, apegos e pretensões de modo a não te inquietares com nada de nada. Tal como o doente, que passada a má disposição, se sente logo bem de saúde e com vontade de comer, assim também te convalescerás em Deus, se disto te curares; caso contrário, por muito que faças, de nada te aproveitará.

78. Se desejas encontrar a paz e a consolação da tua alma e servir deveras a Deus, não te contentes com o que deixaste, porque, com isso em que de novo andas metido, talvez estejas tão atado ou mais do que antes. Abandona tudo o que ainda te falta e volta-te para a única coisa que tudo traz consigo; a santa solidão, acompanhada da oração e da santa e divina leitura, e aí persevera no esquecimento de todas as coisas, porque, se a obediência não te mandar, agradarás mais a Deus em saber-te guardar e aperfeiçoar a ti mesmo do que em conquistá-las todas juntas. Afinal, que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro se deixa perder a sua alma (Mt 16,26).

2

Pontos de amor

79. Modere muito a língua e o pensamento, e traga continuamente o afecto em Deus; assim, o espírito abrasar-se-á divinamente.

80. Não apascente o espírito senão em Deus. Despreze o cuidado das coisas e viva na paz e no recolhimento do coração.

81. Viva na tranquilidade de espírito com amorosa atenção a Deus; e, quando for preciso falar, faça-o com a mesma paz e sossego.

82. Lembre-se frequentemente da vida eterna, e que os mais humilhados, pobres e abatidos são os que hão-de gozar em Deus do mais alto senhorio e glória.

83. Alegre-se sempre em Deus, seu Salvador (Lc 1,47), e saiba que qualquer sofrimento por quem é bom traz benefícios.

84. Vejam quão necessário é serem inimigas de vós mesmas e como hão-de caminhar para a perfeição pelo santo rigor; considerem que Deus leva em conta cada palavra que tiverem dito sem ser por obediência.

85. Tenha um profundo desejo de que Deus lhe dê o que Sua Majestade sabe que lhe falta para Sua honra.

86. Interior e exteriormente crucificada com Cristo, a sua alma, pela sua constância, viverá nesta vida em abundância e consolação (Lc 21,19).

87. Traga uma amorosa atenção a Deus, e não queira sentir ou entender nada a Seu respeito.

88. Traga sempre uma permanente confiança em Deus, apreciando em si e nas Irmãs o que Deus mais estima: os bens espirituais.

89. Entre dentro de si e trabalhe na presença do Esposo, que sempre está presente e lhe quer bem.

90. Seja inimiga de admitir em sua alma coisas sem substancia espiritual, para que não lhe façam perder o gosto à devoção e ao recolhimento.

91. Cristo crucificado basta-lhe; pene e descanse n’Ele, aniquilando-se em todas as coisas exteriores e interiores.

92. Procure sempre que as coisas sejam para si como nada, e nada seja para elas. Olvidada de tudo, viva no seu recolhimento com o Esposo.

93. Ame muito o sofrimento, mas não lhe dê grande importância a fim de cair em graça ao Esposo, que não hesitou em morrer por si.

94. Tenha um coração firme contra tudo o que a mover para o que não é Deus. Seja afeiçoada à paixão de Cristo.

95. Viva interiormente desapegada de todas as criaturas e não ponha o gosto nas coisas temporais; assim acomodará a sua alma para bens que não conhece.

96. A alma que caminha no amor, não cansa nem se cansa.

97. Ao pobre que está nu hão-de vestir; e à alma que se despe dos seus apetites, quereres e não-quereres, vesti-la-á Deus com a Sua pureza, gosto e vontade.

98. Há almas que rebolam na lama como os animais que nela se enchafurdam; mas, há outras, as que voam como as aves, que se purificam e limpam no ar.

99. Uma palavra falou o Pai, que foi o seu Filho, e di-la sempre em eterno silêncio, e em silêncio a há-de ouvir a alma.

100. Havemos de nos medir pelos trabalhos, e não medir os trabalhos por nós.

101. Quem não procura a cruz de Cristo não procura a glória de Cristo.

102. Deus, para se enamorar da alma, não olha à sua grandeza, mas à grandeza da sua humildade.

103. Aquele que me negar diante dos homens, também o hei-de negar diante do meu Pai que está no Céu, diz o Senhor (Mt 10,33).

104. O cabelo frequentemente penteado torna-se liso e não é difícil penteá-lo quantas vezes quisermos. A alma que examinar frequentemente os seus pensamentos, palavras e obras – que são os seus cabelos – fazendo todas as coisas por amor de Deus, ficará com o cabelo muito liso; o Esposo, ao contemplar-lhe o rosto, ficará preso e ferido num dos olhos, que é a pureza de intenção com que faz todas as coisas. Se quisermos alisar o cabelo, começamos a penteá-lo no cimo da cabeça; se quisermos que todas as nossas obras sejam puras e límpidas, hão-de começar a ser feitas no mais alto amor de Deus.

105. O céu é firme e não está sujeito a geração. As almas que são de natureza celestial são firmes, não estão sujeitas a gerar apetites ou qualquer outra coisa, porque na sua maneira parecem-se a Deus, que nunca muda.

106. Não comer em pastos vedados, como são os desta vida, porque bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados (Mt 5,6). O que Deus pretende é fazer-nos deuses por participação, sendo-o Ele por natureza, como o fogo que tudo converte em fogo.

107. A bondade que temos é emprestada, enquanto que Deus a tem por obra própria. Deus é Ele e a sua obra.

108. A sabedoria entra pelo amor, pelo silêncio e pela mortificação. Grande sabedoria é saber calar e não fazer caso de ditos, casos e vidas alheias.

109. Tudo para mim e nada para ti.

110. Tudo para ti e nada para mim.

111. Deixa-te ensinar, deixa-te mandar, deixa-te humilhar e desprezar, e serás perfeita.

112. Qualquer apetite causa na alma cinco danos: primeiro, inquieta-a; segundo, perturba-a; terceiro, suja-a; quarto, enfraquece-a; quinto, obscurece-a.

113. A perfeição não está nas virtudes que a alma descobre em si, mas naquelas que nosso Senhor nela vê, pois é uma carta fechada. Assim, a alma não tem porque se orgulhar de si mesma, mas antes prostrar-se por terra.

114. O amor não consiste em sentir grandes coisas, mas viver com grande simplicidade e sofrer pelo Amado.

115. O mundo inteiro não é digno de um único pensamento do homem, porque só a Deus é devido; deste modo, qualquer pensamento que não se tiver em Deus é-Lhe roubado.

116. As potências e os sentidos não se devem ocupar totalmente das coisas, mas só o que não pode ser escusado, ficando o resto livre para Deus.

117. Não reparar nos defeitos alheios, manter o silêncio e uma relação contínua com Deus arrancará da alma muitas imperfeições, tornando-a senhora de grandes virtudes.

118. Os sinais do recolhimento interior são três: primeiro, se a alma não gostar das coisas transitórias; segundo, se gostar da solidão e do silêncio e se sentir impelida para o mais perfeito; terceiro, se as coisas que antes a costumavam ajudar, por exemplo reflexões, meditações e actos, agora a estorvam, não encontrando outro apoio na oração senão a fé, a esperança e a caridade.

119. Se uma alma for mais paciente no sofrer e mais tolerante com a carência de gostos é sinal de que tem crescido na virtude.

120. As propriedades do pássaro solitário são cinco. Primeira, voa para a parte mais alta; segunda, não tolera nenhuma companhia, nem mesmo da sua natureza; terceira, vira o bico para o ar; quarta, não tem cor determinada; quinta, canta suavemente. Estas mesmas qualidades há-de ter a alma contemplativa; colocar-se acima das coisas passageiras, fazendo tanto caso delas como se não existissem; ser muito amiga da solidão e do silêncio de modo a não tolerar companhia de outra criatura; voltar o bico para a brisa do Espírito Santo, correspondendo às suas inspirações, a fim de se tornar mais digna da Sua companhia; não ter cor determinada, ou seja, não ter tomado outra determinação, a não ser naquilo que é vontade de Deus; cantar suavemente na contemplação e no amor do seu Esposo.

121. Os hábitos das imperfeições voluntárias que nunca se acabam por vencer, - por exemplo, o costume de falar muito, uma pequena afeição não vencida em relação a qualquer pessoa, roupa, cela ou livro, tal género de comida, certas conversas e prazer em querer saborear coisas, em saber, em ouvir, e outras semelhantes -, não só impedem a divina união como não deixam chegar a perfeição.

122. Se te queres gloriar e não pareceres néscio e louco, retira de ti o que não te pertence, e receberás glória do que sobrar. Mas, se retirares todas as coisas que não te pertencem, certamente ficarás reduzido a nada; portanto, não te deves gloriar de nada a fim de não te envaideceres. Mas desçamos agora de um modo especial aos dons daquelas graças que tornam os homens atraentes e agradáveis aos olhos de Deus; de certeza que desses dons não te deves gloriar, pois ainda não sabes se os tens.

123. Oh! Quão doce será para mim a Vossa presença, Vós que sois o sumo Bem! Aproximar-me-ei de Vós em silêncio e descobrir-vos-ei os pés a fim de que permitais unir-me convosco em matrimónio, pois não descansarei enquanto não me vir nos vossos braços (Rt 3,4-9). E agora, Senhor, peço-vos que nunca me abandoneis no meu recolhimento, para que a minha alma não se dissipe.

124. Desatada do exterior, desapossada do interior, desapropriada das coisas de Deus, nem a propriedade a detêm nem a adversidade a estorva.

125. Como ao próprio Deus, assim teme o demónio a alma que está unida a Deus.

126. O mais puro padecer traz e acarreta consigo um mais puro entender.

127. A alma desejosa de que Deus se lhe entregue totalmente, também totalmente se lhe há-de entregar, sem nada reservar para si.

128. A alma que vive na união de amor, nem sequer os primeiros movimentos lhe pertencem.

129. Os velhos amigos de Deus dificilmente pecam contra Deus, porque estão acima de tudo quanto os possa levar a pecar.

130. Ó meu Amado, tudo o que for áspero e trabalhoso eu quero para mim, e para Vós tudo quanto for suave e saboroso!

131. A maior necessidade que temos para progredir diante deste grande Deus é calar o apetite e a língua, pois a linguagem que Ele mais ouve é só a do amor.

132. É às escuras que se procura a Deus. A luz acende-se no exterior para não cair, mas nas coisas de Deus é ao contrário. Portanto, é melhor a alma não ver, e assim vai mais segura.

133. Com os bens de Deus ganha-se mais durante uma hora do que com os nossos a vida inteira.

134. Alegra-te por nem tu nem os outros te conhecerem. Nunca reparar nos bens e males alheios.

135. Viver a sós com Deus; entretanto, ir trabalhando por esconder os bens de Deus.

136. Perder e querer que todos nos ganhem é próprio de espíritos arrojados, de almas generosas. Dar em vez de receber, é próprio de corações generosos que se entregam, e pertencer-se a si mesmos é para eles um grande fardo, por isso, preferem dar-se aos outros e esquecerem-se de si mesmos. De facto, pertencemos mais a esse Bem infinito do que a nós próprios.

137. Ter mais olhos para os bens de Deus do que para o próprio Deus é um grande erro. Oração e desprendimento.

138. Repare naquele infinito saber e aquele segredo escondido! Que paz, que amor, que silêncio o daquele divino peito! E que ciência tão elevada é a que Deus ali ensina! A isto chamamos actos anagógicos, que tanto incendeiam o coração.

139. Muito perde e apouca o segredo da consciência todas as vezes que alguém fala aos homens dos seus frutos, porque já recebeu como galardão o fruto da fama transitória.

140. Fale pouco e não se meta em coisas que não lhe perguntem.

141. Procure andar sempre na presença de Deus e conservar em si a pureza que Ele lhe ensina.

142. Não se desculpe nem se recuse a ser corrigido por todos. Oiça com calma todas as correcções. Pense que é Deus quem lhas está a dizer.

143. Viva neste mundo como se apenas vivesse com Deus, para que o seu coração não se prenda a nada humano.

144. Se alguma vez lhe disseram alguma palavra boa, tenha-a como misericórdia de Deus, pois não merece nenhuma.

145. Nunca deixe extravasar o seu coração, nem que seja pelo espaço de um Credo.

146. Nunca oiça as fraquezas dos outros. E, se alguma lhe vier fazer queixa de outra, com humildade poderá dizer-lhe que não quer ouvir nada.

147. Não se queixe de ninguém. Não pergunte nada; se tiver de o fazer, faça-o com poucas palavras.

148. Não rejeite o trabalho, mesmo que julgue não o poder fazer. Que todos encontrem compaixão em si.

149. Não contradiga; e de forma alguma diga palavras indecorosas.

150. Fale de modo a não ofender ninguém; fale de coisas que todos possam vir a saber, sem disso se arrepender.

151. Não recuse nada do que é seu, ainda que lhe faça falta.

152. Não fale daquilo que Deus lhe dá, e lembre-se daquelas palavras da Esposa: O meu segredo é para mim (Is 24,16).

153. Procure manter o seu coração em paz. Que nenhum acontecimento deste mundo o perturbe. Lembre-se que tudo acabará.

154. Não faça caso algum de quem é por si ou contra si. Procure agradar sempre a Deus. Peça-lhe que se faça em si a Sua vontade. Ame-O muito, como é seu dever.

155. Doze estrelas para chegar à máxima perfeição: amar a Deus, amar o próximo, obediência, castidade, pobreza, ir ao coro, penitência, humildade, mortificação, oração, silencio, paz.

156. Por muito santo que seja, nunca tomes o homem por modelo no que tiveres a fazer, porque o demónio acabará por te mostrar as suas imperfeições. Imita antes a Cristo, sumamente perfeito e santo, e nunca te enganarás.

157. Procurai lendo e encontrareis meditando. Chamai orando e abrir-se-vos-á contemplando.

3
(Recolhidos pela Irmã Madalena do Espírito Santo, 
carmelita descalça de Beas)

158. Aquele que trabalha por Deus com puro amor, não se importa que os homens o saibam, nem o faz para que o próprio Deus o saiba. E mesmo que Deus nunca o viesse a saber, n ao deixaria de realizar esses trabalhos com a mesma alegria e amor.

159. Outro aviso para vencer os apetites: Trazer um constante desejo de imitar a Jesus Cristo em todas as suas obras, conformando-se à Sua vida, a qual deve meditar para saber imitar, e fazer tudo como Ele faria (1S 13,3).

160. Para isto, é necessário renunciar a qualquer apetite ou gosto que não seja só para honra e glória de Deus, e ficar sem nada por amor d’Aquele que, durante esta vida, não teve nem quis fazer senão a vontade de seu Pai, à qual chamava sua comida e alimento.

161. Para mortificar as quatro paixões naturais — gozo, tristeza, temor e esperança — muito lhe pode ajudar o seguinte:

Procurar inclinar-se sempre não ao mais fácil, mas ao mais difícil.
Não ao mais saboroso, mas ao mais desabrido.
Não ao mais gostoso, mas ao que não dá gosto.
Não se inclinar ao que é descanso, mas ao mais trabalhoso.
Não ao consolo, mas ao desconsolo.
Não ao mais, mas ao menos.
Não ao mais alto e precioso, mais ao mais baixo e desprezível.
Não ao desejar algo, mas ao não querer nada.
Não procurar o melhor das coisas, mas o pior.
E, por amor a Jesus Cristo, viver na desnudez, no nada e na pobreza de tudo
quanto há no mundo.

162. Para a concupiscência:

Procurar agir com simplicidade e desejar que os outros o façam.
Procurar falar em desprezo próprio e desejar que todos o façam.
Procurar pensar mal de si mesmo e desejar que os outros o façam.

163. Tenha o coração firme contra tudo o que não a mover para Deus, e seja amiga de padecer por Cristo.

164. Prontidão na obediência, alegria no sofrimento, mortificação na vista, não querer saber nada, silêncio e esperança.

165. Modere muito a língua e o pensamento, ande frequentemente com o afecto em Deus, e o espírito divino muito o abrasará. Leia isto muitas vezes.

4

(Recordados por Maria de Jesus)

166. Vencer-se a si mesma, e não se apoiar em criatura alguma.

167. Estar voltada contra si mesma, arreliada, mas nunca parada.

168. Tirar o pensamento das criaturas, fechando-lhes a porta.

169. Purificado de todas as afeições, pensamentos e imagens, sussurra o doce canto com compunção e lágrimas.

5

Outros avisos

170. Quanto mais te apartas das coisas terrenas, tanto mais te aproximas das celestes e mais te unes a Deus.

171. Quem souber morrer a tudo, encontrará vida em tudo.

172. Foge do mal. Faz o bem. Procura a paz.

173. Quem se queixa ou murmura não é perfeito nem sequer bom cristão.

174. Humilde é quem se esconde no seu próprio nada e sabe abandonar-se a Deus.

175. Manso é quem sabe suportar o próximo e a si mesmo.

176. Se quiseres ser perfeito, vende a tua vontade, dá-a aos pobres de espírito, aproxima-te de Cristo, com mansidão e humildade, segue-O até ao Calvário e ao sepulcro.

177. Quem se fia de si próprio é pior que o demónio.

178. Quem não ama o seu próximo, aborrece a Deus.

179. Quem age com tibieza está perto da queda.

180. Quem foge da oração, de todo o bem foge.

181. É melhor vencer-se na língua do que jejuar a pão e água.

182. É melhor sofrer por Deus que fazer milagres.

183. Oh, que bens não gozaremos quem a visão da Santíssima Trindade!

184. Não penses mal do teu irmão, pois perderás a pureza do coração.

185. Trabalhos, quantos mais melhor.

186. O que é que sabe quem não sabe sofrer por Cristo?