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segunda-feira, 18 de novembro de 2013

LECTIO DIVINA- FERNANDO ALCICI

                        





Deus de baixo

Benjamin Gonzáles Buelta, Jesuita

Tu e eu
os dois
uma só folha
de papel.
Eu sou
a página de cima
ao sol e ao ar
e a todo o que queira
ler uma palavra,
ouvir-te e encontrar-te.
Tu és
a página de baixo
que me sustenta,
obscuro,
invisível,
colado à madeira.

Em tua busca
não posso dar a volta,
nem sair de meu ser,
nem debruçar-me
do outro lado de mim mesmo,
nem surpreender-te
em um giro repentino
para ver-te
em teu mistério.
Somente posso
ficar suspenso
no silêncio
de tua graça,
e sentir como flui 
a vida exata
até mim,
desde meu fundo
onde me recebo
inesgotável,
desde ti.

 Depois,
em minha tarefa cotidiana,
sais em mim
até a rua,
abraças
com meus braços,
e apareces
em meu olhar.
Não te envergonha
meu limite,
nem se restringe
meu vocabulário.
Em mim te vais fazendo
verdadeiro servidor
sem obras perfeitas.
Juntos ensaiamos
teu Reino,
em minhas tentativas
de aprendiz eterno
nesta terra

de futuros.

Deus de baixo,
silenciosa consistência,
não posso rasgar-me
sem ferir-te,
nem posso ser
tua página aberta
se Tu não és
minha página calada.

Nem eu sem ti
nem Tu sem mim
podemos ser hoje
uma palavra tua
que abrace e olhe
em carne humana
neste mundo.




  LECTIO DIVINA
Ler e ouvir a palavra de Deus
  Thelma Hall
O primeiro passo da Lectio Divina é a lectio, ou lei-tura. Não é uma leitura comum, nem em matéria nem em maneira. A matéria é a "Palavra Divina", ou Escri-tura', e a maneira de ler é,   mais precisamente, um "es-cutar" e um "ouvir", sintonizados com a palavra inspi- rada e atentos ao Falante.
Hoje, temos um entendimento mais expandido que em tempos antigos do que significa falar da Escritura como "a palavra inspirada de Deus". A expressão era antes compreendida num sentido restrito: de que os autores da Escritura haviam sido diretamente inspirados pelo Espírito para transmitir a palavra de Deus uma espécie de "ditado divino". Mas o Espírito que Jesus pro-meteu que seria enviado pelo Pai em seu nome para Text Box: LECTIO DIVINAmorar dentro de nós é o mesmo Espírito que vivifica a palavra da Escritura2. É minha ativa nesse Espírito, presente no mundo e em mim, que, quando trazida à leitura e audição da Escritura, "in-spira" ou "respira dentro" dela' a realidade viva do Falante.
Portanto, eu me preparo para essa leitura sagrada devotando um tempo a aquietar corpo e mente, para começar a concentrar todo o meu ser num único foco. Quanto a meu corpo: em toda disciplina de oração, orien­tal e ocidental, o único princípio comum consistente é que a espinha deve estar ereta, mas não tensa. Sentado no chão ou sobre uma almofada, com as pernas cruzadas ou dobradas, ou numa cadeira de encosto reto, a idéia básica é não atrapalhar a circulação ou a respiração, ao mesmo tempo em que a pessoa se mantém totalmente atenta e alerta. Todos esses preliminares são meios de me ajudar a chegar a uma consciência e convicção de fé de que estou prestes a ouvir a palavra viva de Deus, intimamente presente para mim. Nessa disposição, esco­lho um texto — de preferência curto e leio-o devagar, ouvindo-o interiormente com plena atenção. Este já é o início de minha resposta a uma pessoa que me chama a abrir minha mente e coração para ela. Às vezes, o texto que me atrai pode ser algo que já está presente, rondan­do meu coração; talvez tenha sido sugerido por uma li­turgia recente. Ou eu posso fazer uso da seção "Temas da Escritura" deste livro, oferecida especificamente com  essa finalidade, numa forma destinada a ressoar com um sentido do chamado presente de Deus. De maneira geral, minha meta é personalizar as palavras, real-izá-las, como Deus falando comigo, agora.
Como exemplo, vamos supor que um texto (Is 65,1-2) dos Temas da Escritura sobre "Contrição e Misericór­dia"' tenha atraído minha atenção. Depois das prepara­ções sugeridas, começo a lectio, ou leitura. "Escuto" o Senhor me dizendo:
Fiz-me achar por aqueles que não me procuravam; eu dis­se: "Aqui estou"... Estendi as minhas mãos, durante o dia todo, para um povo rebelde (Is 65,1-2).
É possível que mesmo um texto tão curto como esse possa ter um significado ou importância diferente para mim cada vez que eu deparar com ele, quando eu o es­cutar em fé, porque o Senhor falará comigo onde estou. Por exemplo, o que pode me impressionar é a constatação de que ele se faz achar, mesmo que minha procura seja prejudicada por egoísmo, e isso subitamente desperta em mim uma sensação de não-merecimento e gratidão. Ou as duas palavras, "Aqui estou", podem ressoar com uma proximidade inesperada e uma nova constatação da cons­tância de sua presença para mim.
Quando, ao "ouvir" a Escritura, somos receptivos a Ele que fala em nós, o que ouvimos pode ser mais do que aquilo que as palavras em si transmitem. O Espírito que lhes dá vida é ele próprio o significado, expresso por intermédio das palavras mais do que nelas, assim como um amante pode transmitir uma infinidade numa frase que seria mera convenção quando dita por outro. Obser­vei isso repetidas vezes na condução de retiros, quando o mesmo texto é ouvido por cada indivíduo de uma maneira completamente única, com muita freqüência de uma maneira que eu nunca esperei ou imaginei.
Há inúmeros potenciais nesse texto, por exemplo, que a graça pode revelar. Também é verdade que, por isso ser gratuito e não produto de minha própria dedu­ção lógica, as palavras podem me "deixar frio'. Nesse caso, eu poderia apenas deixar tranqüilamente que uma única expressão — como "Aqui estou" se repetisse várias vezes em minha consciência, e acolhê-la na fé. Assim, simplesmente "estar com" o Senhor numa dispo­sição de amor e confiança será suficiente, em especial quando constatamos que, por nós mesmos, não podemos fazer nada mais. Na verdade, essa constatação pode, muito possivelmente, ser o fruto real dessa sessão de oração. Porém, se (como sugerido a princípio) tivermos sido atraí­dos por uma expressão específica, e estiver começando a refletir sobre seu significado para mim, então terei ini­ciado minha entrada no passo seguinte, Meditatio.
Meditatio: Refletir sobre a Palavra
Anteriormente, a Lectio Divina foi descrita como "o aprofundamento de uma relação interpessoal". Nesse processo, o papel da Lectio descrito acima é análogo ao ato de ir ao encontro de outra pessoa com a intenção de compartilhar algum tempo juntos e sozinhos. Foi por essa razão que abri espaço em minha vida e voltei-me para Deus, antecipando uma troca entre nós que será um aprofundamento de nossa crescente relação.
Agora, na Meditatio a que esse desejo me levou, quero conhecer mais sobre ele, acolhê-lo em minha vida e abrir-me para ele, em maior confiança e segurança — quero aprender quem ele realmente é para mim e o que deseja me revelar. Uma analogia pode ser útil aqui, com referência a essa revelação.
Suponhamos que eu estivesse numa livraria e, por acaso, abrisse um livro escrito em grego, ou em japo­nês, ou em hebraico. Eu não só não conheceria o alfa­beto ou a língua como sequer saberia se o texto deveria ser lido de trás para a frente, de baixo para cima ou da esquerda para a direita. Ele seria, em outras palavras, um "livro fechado" para mim, por mais que eu quisesse entendê-lo. Porém, se um funcionário passasse naquele momento e, sentindo meu dilema, informasse que o mesmo livro também se encontrava disponível numa tradução para o inglês e apresentasse-o a mim, eu po­deria me conectar imediatamente com o sentido trans­mitido em cada página.
Da mesma forma, Deus, em si próprio, é "outra lín­gua" para nós, pois ele é incompreensível, em sua pleni­tude, para nosso intelecto e compreensão humanos finitos. Porém, ele se traduziu para nossa humanidade em Jesus. Nesse homem, que viveu e experimentou até as maiores profundidades possíveis a vida humana que comparti‑ lhamos, Deus revela-se a mim em carne e sangue. Jesus é a revelação de Deus, numa língua que posso entender e numa pessoa que posso conhecer e amar, não só como alguém que viveu e morreu na história, mas como al-guém que vive agora, no meu mundo, em meu coração, e para sempre. E, por meio do dom prometido do Espí-rito, que foi dado, ele de fato fala a mim
Sugiro que, antes de continuar sua leitura aqui, você faça uma pausa para refletir em oração por alguns mo-mentos sobre as seguintes passagens notáveis do capítu-lo 14 do Evangelho de João e tentar ouvi-las como se fosse a primeira vez, diri;gidas a você. Para enfatizar essa personalização, você pode inserir seu próprio nome nos locais marcados pelos asteriscos.
(Jesus lhe diz:)
"Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vai ao Pai a não ser por mim. Se me conhecêsseis, (*), conheceríeis também meu Pai.
Desde agora o conheceis e o vistes (vv. 6-7). Quanto a mim, eu rogarei ao Pai,
e ele vos dará outro Paráclito, que permanecerá convosco para sempre. É ele o Espírito da verdade, aquele que o mundo é incapaz de acolher, porque não o vê e não o conhece.
Quanto a vós, (*), vós o conheceis, pois ele permanece junto de vós e está em vós (vv. 16-17).
O Paráclito, o Espírito Santo que o Pai enviará em meu nome, vos ensinará todas as coisas e vos fará recordar tudo o que eu vos disse (v. 26) s.
Antes de começar esta (ou qualquer) oração, é de fundamental importância dedicar um tempo a se cons-cientizar da dimensão de fé em que se está entrando. Quando Moisés se aproximou da sarça ardente, "Deus falou: 'Não te aproximes! Tira as sandálias dos pés, porque o lugar onde estás é uma terra santa. Eu sou o Deus de teu pai..? (e) Moisés cobriu o rosto" (Ex 3,5-6). De uma forma comparável, interior ou exterior, nós tam-bém precisamos reconhecer a santidade do Deus de que nos aproximamos, perceber a maravilha e mistério do dom de fé que nos possibilita vir diante dele consciente-mente em oração. Quando refletimos sobre isso, parece surpreendente que possamos com freqüência, de modo tão informal, pressupor que "claro" que é possível comu-nicar-se com Deus! E importante, portanto, desde o iní-cio, perceber tornar real a verdade de que a oração é sempre urna resposta dada à iniciativa amorosa do Espírito Santo. E, como toda oração é dom dele, é apro-priado que peçamos o que desejamos. No trecho do Evangelho de João citado acima, poderíamos retomar a promessa de Jesus, pedindo ao Espírito Santo que nos ensine como abrir mente e coração para ouvir e com-preender o que Jesus está nos dizendo.
A relação de oração de cada pessoa com  o Senhor é única. Uma razão para isso é que há diversos dons pes­soais. Em algumas pessoas, a faculdade da imaginação é mais desenvolvida e ativa, e para essas o uso de imagens pode ser muito útil para dar vida à sua meditação. Nessa abordagem, chamada de "contemplação" nos Exercícios Espirituais de santo Inácio (mas com um sentido dife­rente do sentido clássico que estamos usando), entra-se, por meio da imaginação, numa cena do Evangelho, ven­do e ouvindo as pessoas, imaginando as sensações e cheiros do ambiente etc. Eu poderia me identificar com alguma pessoa da cena, ou estar presente nela eu mes­mo, observando, escutando, experimentando o que acon­tece. Por exemplo, no trecho do Evangelho de João que acabamos de citar, minha imaginação poderia ser usada para recriar a cena — neste caso, a reunião de Jesus com seus amigos na Última Ceia. E, assim, ouço essas pala­vras de Jesus dirigidas a mim, e recebo seu olhar com meus próprios olhos. O que eu vejo nesses olhos enquanto ele fala comigo? E como devo responder?
Aqueles cuja imaginação não é tão ativa ou tão bem desenvolvida, mas que talvez sejam mais intuitivos, podem ganhar mais saboreando a verdade ou insight inerentes à passagem, interiorizando profundamente o que Jesus diz, permitindo que suas palavras se repitam devagar diversas vezes, nas profundezas do coração, até que este seja totalmente penetrado com o amor reconfortante de Jesus e, espontaneamente, responda da mesma maneira.
Qualquer que seja nossa abordagem para a oração, sempre se aplica um princípio básico que é resumido por Dom Chapman, famoso orientador espiritual beneditino ão início do século XX: "Ore como você pode, e não como você não pode!". Pois as mais simples das palavras, quan­do genuínas e sinceras ou mesmo nenhuma palavra quando o coração estiver muito cheio —, são certamente mais eloqüentes que a mais lírica retórica quando fabri­::ada ou tomada emprestada. E, mais óbvio ainda, mas talvez por essa razão facilmente negligenciado: muitas vezes preciso pedir que o Espírito me ensine a rezar.
Estou deixando a Meditatio neste ponto sem desen­volvê-la mais porque seria enganoso dar a impressão de Dferecer um manual detalhado de "como fazer", referente ao que é essencialmente um movimento interior cuja autenticidade depende de sermos espontâneos e reais. Em última análise, apenas o Espírito Santo pode nos ensinar
rezar, e o que quer que outra pessoa possa oferecer só ;erá útil para ajudar a nos dispormos para receber esse ensinamento na experiência. Voltando à nossa analogia )riginal de "estar apaixonado", é o amor que nos ensina
amar, e ele não segue nenhum método objetivo.
É quando esse amor de Deus toca nosso coração que tomos levados ao nível seguinte: oratio, ou oração. Tudo mais foram preliminares, pois este é o verdadeiro iní­~io da oração.
Oratio: A Palavra toca o coração
A meditação, tema da seção anterior, tem um papel importante a desempenhar em nossa formação como cristãos. Ela nos ajuda a crescer em nosso conhecimento da constante obra de amor de Deus em toda a criação, e em nossa própria vida individual; aumenta e enriquece nossa familiaridade com a vida e os ensinamentos de Jesus e nosso amor por ele; e leva-nos a refletir sobre como devemos responder a seu chamado em amor e serviço. Tudo isso não só tem valor em si, como também nos ajuda a estabelecer as fundações essenciais de fé e convicção para nossa vida cristã.
Porém, a meditação é, em grande medida, uma ati-vidade de nosso intelecto e imaginação sobre Deus e, se permanecer num nível intelectual, não chegará à oração genuína. Pois a meta da oração não são pensamentos ou conceitos ou conhecimento sobre Deus, por mais subli-mes que esses sejam, mas o próprio Deus como ele é, misteriosamente escondido em meu eu verdadeiro mais profundo. Na linguagem dos místicos, "Deus é meu eu"6.
Esse centro mais profundo é o reino da contempla-ção, e a oratio, ou "oração do coração", que iremos agora examinar, é o início do caminho que leva a ela. Como esse início não é predeterminado por nossa própria programa-ção, o que se segue não é uma "instrução" algo para fazer que levará à próxima coisa a ser feita, como uma escada ascendente; simplesmente começa a descrever o que acaba por se tomar um movimento espontâneo do coração, quando responsivo à condução do Espírito.
Poucas citações dos santos são mais universalmente conhecidas que a de santo Agostinho: "Oh! Deus, nosso coração é feito para ti, e ficará inquieto até repousar em ti!". Isso parece ser geralmente reconhecido como uni truísmo e ressoa com um anseio interior que não se encontra muito abaixo de nossa consciência superficial. É esse anseio intrínseco despertado na oração quando nos permitimos ser vulneráveis e, deixando de lado de-fesas e máscaras, postamo-nos diante de Deus em nossa nua necessidade e crua natureza de criaturas. Chega o momento em que percebemos que esse anseio é, ele pró-prio, a presença do anseio de Deus em nós. Enquanto isso, a oratio é o esforço ativo que fazemos para manter nosso coração aberto para ele e nos colocar à disposição de seu Espírito, preparando o caminho para que a ação de Deus sobreponha-se à nossa.
Por um longo período de tempo, podemos ficar nos movendo entre a meditação e essa oração do coração, mas por fim uma simplificação gradual começa a ocor-rer. Há cada vez menos raciocínio e especulação com o intelecto, conforme o coração toma as rédeas num sim-ples despejar de amor e desejo, que pode assumir a for-ma de um diálogo íntimo interior. Sentindo que Deus está "tão perto e no entanto tão longe", o anseio de nosso coração chama-o espontaneamente ou, consciente de sua própria infidelidade e falta de mérito, implora cura e misericórdia. Todas as promessas bobas de um apaixonado podem ser feitas e tornam-se o segredo da pessoa com Deus.
Nessa oração, nosso coração está aberto para ele e por ele, para que sua luz possa entrar. Como ele nos arna demais para nos deixar em nossas ilusões, que são obstáculos para sua graça, mais cedo ou mais tarde elas come-çarão a nos ser reveladas como o que realmente são: as pretensões conscientes e inconscientes do falso eu por autonomia, auto-suficiência, controle, orgulho, interpreta-ção de papéis ou limites para nossa generosidade. A lista é diferente para cada pessoa, mas seu efeito é o mesmo: impedir a vida de graça e os dons do Espírito Santo den-tro de nós. Aqui, uma vez mais, o caminho para Deus parece paradoxal, pois, embora esse processo de "desilu-são" que agora começa seja necessariamente doloroso para nós, ele é uma grande graça do amor de Deus, uma vez que, contando com nossa cooperação, desfará o domínio do falso eu e nos centralizará no verdadeiro eu, "a ima-gem e semelhança de Deus" dentro de nós. Se não tomar-mos nenhuma atitude em relação ao que ele está nos re-velando ou nos pedindo, nossa oração será, nesse sentido, infrutífera. Isso não significa que seja necessária uma resposta perfeita a ele, desde que nossa intenção e tenta-tiva de responder sejam sinceras. Nas palavras de confor-to e incentivo de 'The Cloud of Unknowing,
Não é o que você é nem o que você foi que Deus vê com seus olhos misericordiosos, mas o que você deseja ser. (O autor prossegue dizendo:) São Gregário declara que "todos os desejos virtuosos aumentam em intensidade com a de-mora de sua realização, e o desejo que desaparece com a demora nunca foi de fato um desejo virtuoso"7.
Esse aumento do "desejo virtuoso" é um dos efeitos da Oratio. Por meio dela, Deus cria em nós uma capacida de maior para ele mesmo, não só por nosso anseio, mas às vezes pela própria frustração e impotência que experimen-tamos quando o procuramos c,egamente. É como se esti-véssemos sendo atraídos por uma força magnética em nossas próprias entranhas, na direção de Deus como nos-so centro de gravidade, onde esse centro coincide com nosso verdadeiro eu. A atração será experimentada de forma mais poderosa quanto mais consentirmos com a derruba-da das ilusões que prejudicam o processo de conversão contínua: um voltar-se mais totalmente para Deus como nosso verdadeiro centro, viver para ele. Essa é uma obra que não só ocorre na oração, como também emana dela para os particulares concretos da vida cotidiana em nossas reações e respostas aos outros e aos acontecimentos.
A dinâmica de tal conversão é descrita no imperati-vo de João Batista: "É preciso que ele cresça e eu dimi-nua". O lado positivo desse princípio do Evangelho é esclarecido ao se lembrar a interpretação do verdadeiro eu/falso eu oferecida no Capítulo Dois. Nesse contexto, poderíamos parafrasear: "É preciso que meu verdadeiro eu cresça e meu falso eu diminua". A arena, ou campo de luta, é tanto interior como exterior. No primeiro caso, a luta é para se entregar à ação de Deus em oração e, no último, para agir, concretizar essa entrega na vida coti-diana dois lados da mesma moeda.
Na oratio, até aprendermos a estar à vontade com a paciente esperar Deus que a oração acabará nos en-sinando, pode ser útil voltar vez por outra à lectio com algumas palavras simples da Escritura, como o versículo inicial do Salmo 42: Como uma corça anela pelas torrentes d'água, minh'alma anela por ti, meu Deus.
Porém, precisamos ter cuidado para não substituir a oração pela leitura, pois, neste estágio da oratio, seremos gradualmente levados a uma consciência mais sutil e in­tuitiva de Deus que surge aos poucos, e não deve ser obscurecida por nossa busca impaciente da luz menor de nossas limitadas faculdades intelectuais. Teresa d'Ávila oferece um exemplo útil neste ponto. Ela nos diz que, quando um pequeno fogo tiver sido acesso (em nossa oração), para mantê-lo queimando poderemos, de tempos em tempos, acrescentar a ele um ou dois gravetos (p. ex., algumas palavras da Escritura), mas, acautela-nos, não deveremos lançar galhos sobre ele (longas leituras ou ati­vidades da mente), porque isso extinguirá a chama.
É difícil dar um exemplo dessa prece da oratio, por­que ela é a voz única e espontânea do coração que é tocado por Deus e procura-o em amor ardente. Aqui, estamos no terceiro dos quatro níveis da Lectio Divina, poeticamente descrita por Dom Marmion (monge bene­ditino francês de uma era anterior) como se segue:
Lemos (lectio)
sob o olho de Deus (meditatio)
até que o coração seja tocado (oratio) e salte em chamas. (contemplatio)
De acordo com a analogia usada anteriormente — desenvolvimento contínuo de uma relação humana ínti ma profundamente apaixonada —, agora não só amamos (a Deus), como estamos começando a "cair de amor"; isto é, ele está se tornando o centro realizado de nossa vida, e começamos a experimentar o anseio de união dos aman­tes: o desejo de ser totalmente dado e totalmente recebido.
Aqui, uma vez mais, nossa vida cotidiana deve se­guir paralela à nossa oração para que esta seja autêntica. O dom pessoal para o qual somos chamados em oração deve ter sua co-extensão em nossos relacionamentos diá­rios. Por mais imperfeitos que possam ser, nosso desejo e esforço precisam ser sinceros.
A transição para a contemplação
Até aqui, nos três níveis sucessivos da lectio, meditatio e oratio, embora nos movendo no sentido de uma maior profundidade, ainda estamos num reino em que nossa atividade continuava sendo um fator dominante. A tran­sição para a contemplatio, ou contemplação, final (que não é um término, mas um novo e crucial início) é muito diferente do que talvez se tenha esperado. Pois, embora estejamos nos movendo para Deus, que é Luz, nossa experiência parece contradizer isso quando uma espécie de escuridão ou "noite" desce sobre nós e nosso cami­nho torna-se obscuro.
O que acontece é que Deus está tomando conta cada vez mais, "fechando" nossas faculdades naturais de ra­ciocínio e imaginação e eliminando os sentimentos afe­tivos de satisfação e fervor. O resultado é uma notável incapacidade de pensar e raciocinar sobre Deus, aliada a uma espécie de embotamento da devoção e do sentimen­to. O deserto começou e, na sua borda, uma orientação segura é fundamental para que possamos compreender como prosseguir e não ser tentados a abandonar tudo, sem perceber que estamos no limiar de uma grande, porém não reconhecida, promessa.
O mestre reconhecido dessa viagem pela noite até um novo amanhecer é são João da Cruz. Seus escritos sobre o assunto, porém, são detalhados e bastante convolutos, e reaparecem em variadas formas em Subida do Monte Carmelo, Noite escura e Chama viva de amor. Portanto, tentarei resumir brevemente e reunir alguns pontos que são relevantes aqui.
Os três "sinais" de João da Cruz
Primeiro, ele dá três sinais para discernir se a escu­ridão e a aridez experimentadas são indicações válidas da intervenção direta do Espírito ou se são meramente resultado de alguma outra causa, como falta de firmeza ou má disposição da própria pessoa.
1.   Constatação de que não se pode mais fazer meditação discursiva ou receber satisfação ou consolo dela como antes. (Nota: Enquanto for possível, a meditação não deverá ser abandonada.)
Falta de inclinação a fixar a imaginação ou as facul­dades dos sentidos em outros particulares referentes a Deus; ou seja, não há mais nenhuma em idéias de Deus, pois a distinção entre o próprio Deus e conceitos acerca dele é agora percebida. Nesse ponto, não sentimos afeto por nenhuma imagem mental ou conceito de Deus, e todo o consolo sen­sível que estava associado à presença dele evaporou. Uma grande angústia é experimentada, juntamente com o medo de que tenhamos regredido ou perdido o caminho e de que sejamos incapazes de orar. O que sentimos agora, inexplicavelmente, é apenas uma aversão pelas coisas de Deus. Isso é perturbador e tomado por "indiferença", mas, como é evidente para qualquer orientador espiritual experiente, essa pró­pria angústia trai uma preocupação genuína, pois se a pessoa estivesse realmente indiferente tal preocu­pação não existiria.
O terceiro e mais seguro sinal é decisivo, porque o primeiro e o segundo podem ser experimentados de­vido a depressão, intemperança ou simples falta de seriedade. Mas, quando os três sinais estão presen­tes juntos, João assegura que é possível ter certeza de que eles procedem de Deus. Este sinal é que, apesar da incapacidade de meditar, e da falta de satisfação com qualquer outra coisa, mesmo assim mantém-se uma atração para permanecer sozinho numa simples consciência amorosa de Deus, em paz interior e em quietude e repouso, sem nenhum co­nhecimento ou entendimento específico, ou atos do intelecto, memória e vontade, e prefere-se ficar ape­nas na consciência e conhecimento amorosos gerais
Como proceder
São João dá, então, conselhos específicos referentes a como devemos nos conduzir uma vez tendo recebido a indicação dessa transição a partir de nossa atividade na oração. Ele observa como é fácil atrapalhar equivocada-mente o trabalho de Deus com nossos próprios esforços, e diz que tentar é ser como alguém que, tendo chegado ao fim de sua jornada, continua a andar para chegar ao fim, acrescentando: "Ele necessariamente se afastará desse fim, além de estar fazendo algo ridículo".
Em vez disso, diz ele, devemos nos permitir ficar em silêncio, mesmo que pareçamos não estar "fazendo nada" e perdendo tempo, e mesmo que nos sintamos um pouco confusos com isso. Devemos nos satisfazer simplesmen-te com uma atenção amorosa e pacífica a Deus, sem a preocupação, o esforço e o desejo de experimentá-lo ou senti-lo, pois esses desejos nos inquietam e nos distraem do que nos está sendo secretamente comunicado pela ação direta de Deus. Chegou o momento de receber, de uma "passividade receptiva" que está longe da ociosida-de, por mais que possa assim nos parecer. Um pouco da sabedoria Zen se aplica aqui:
Sentar-se quieto,
sem fazer nada.
A primavera vem
e a grama cresce por si mesma.
Embora pareçamos estar inativos, a graça está se-guindo seu curso e a obra do Espírito está se realizando sem nosso conhecimento distinto.
São João deixa claro, então, que aqueles que come-çam a ter esse conhecimento amoroso geral nem sempre são incapazes de algum retorno à meditação, pois a tran-sição não é imediata ou total, mas geralmente ocorre ao longo de um período de tempo considerável, até que a contemplação se torne habitual isto é, quando toda vez que pretendermos meditar notarmos imediatamente esse conhecimento e paz, assim como nossa falta de ca-pacidade ou desejo de meditar. Então, acautela ele, se persistirmos em tentar considerar e entender coisas es-pecíficas, obstruiremos a luz simples do Espírito e inter-feriremos com nossos pensamentos nebulosos.
O tempo que isso demora não pode ser previsto, pois Deus lida de forma única com cada pessoa, mas pouco a pouco, assegura-nos ele, "a calma e a paz divi-nas, com um conhecimento maravilhoso e sublime de Deus, envolto em amor divino, serão infundidas na alma", pois "essa contemplação está ativa enquanto a alma se encontra em inatividade e despreocupação. É corno o ar que escapa quando se tenta pegá-lo com a mão". "Nesse momento, os próprios esforços da pessoa não têm ne-nhuma serventia, mas se tornam obstáculos para a paz interior e para a obra que Deus está produzindo no es-pírito por meio desse embotamento dos sentidos."
Um resumo rápido dos pontos principais pode ser útil aqui:
Os três sinais
2. 1. Incapacidade de meditar como antes Falta de interesse em idéias de Deus, geralmente acom­panhada do medo de perder o caminho ou de regredir. Aridez dos sentidos.
3. (Decisivo quando presente com 1 e 2) Atração para a oração solitária atenta, geral e amorosa, porém obscura; "atenção passiva".
O que fazer
·   Receber e não colocar nenhum obstáculo ao Espírito Santo.
·   Seguir a atração para o silêncio interior e permanecer em atenção amorosa.
·   Abandonar toda atividade e deixar-se ser atraído para a escuridão do amor de Deus, esquecido do próprio eu.
·   Quando se tornar possível meditar outra vez, fazer isso, até que, e a menos que, o silêncio interior se torne habitual.
Concentrei-me de forma mais detalhada na transi­ção da "oração do coração" para a contemplação por duas razões importantes. Primeiro porque, sem um en­tendimento claro do que está acontecendo, nossas me­lhores intenções podem ser mal direcionadas e se opor à atração do Espírito na oração, em vez de segui-la. São João é veemente em sua condenação dos orientadores espirituais que, "como um ferreiro, não fazem nada além de martelar e socar as faculdades" (da razão e imaginação etc.) e assim contradizem o movimento despercebido do Espírito. "Esses orientadores devem refletir que não são eles o principal agente, guia e movimentador de almas nessa questão, mas que o guia principal é o Espírito Santo."
Segundo, essa área de transição da oratio para a contemplatio foi o "ponto de corte" da espiritualidade da oração que passou a ser ensinada a partir do século XVI, conforme mencionado no início deste livro. Seu resulta­do foi isolar a contemplação do que era considerado a oração normal e separá-la numa categoria restrita ape­nas a raras "almas escolhidas".
Embora tal atitude institucional ou imposição exte­rior da Igreja não prevaleçam hoje, há outra possibilida­de real de que a contemplação possa encontrar resistên­cia ou ser excluída da oração dos cristãos, como um efei­to da atitude mental de nossa sociedade ocidental con­temporânea. Esta era tecnológica e todas as suas realiza­ções do intelecto pragmático têm seu preço. O domínio de boa parte do mundo material é ganho muitas vezes à custa do desenvolvimento das faculdades intuitivas, di­retamente envolvidas na contemplação. Como resultado, muitas pessoas são propensas a inibir e/ou retardar o desenvolvimento espontâneo da contemplação por uma tendência adquirida e teimosa a constantemente intelec­tualizar, analisar, julgar e, de forma geral, estar "no con­trole" durante a oração. Isso está em oposição direta ao movimento interior da contemplação, que exige que se abandone qualquer tentativa de controle. A receptivida­de passiva que ela pede, embora seja de fato criativa e responsiva, parece, à visão prática, uma pura perda de tempo. Portanto, há necessidade de um entendimento claro do que será experimentado e exigido de nós, parText Box: O CHAMADO À CONTEMPLAÇAOText Box: LECTIO DIVINAticularmente nesse ponto de transição da oração do co-ração para a contemplação.
A "oração centrante", que é uma eficiente adapta-ção moderna do ensinamento de The Cloud of, destina-se basicamente a superar essa tendência intelec-tual dominante que estorva o que deveria ser um movi-mento fluido espontâneo: da leitura e reflexão à oração do coração e ao silêncio interior da contemplação. Qual-quer um que experimente alguma dificuldade particular no que se refere a essa intelectualização da oração acha-rá o livro de Thomas Keating, Open Mind, Open Heart (citado anteriormente) extremamente útil como orienta-ção contínua. O autor é o fundador do movimento da oração centrante e o aprimora com uma rica tradição contemplativa.
4. Contemplatio: Entrada no silêncio "profundo "
A contemplação é uma nova terra estranha, onde tudo o que é natural para nós parece estar virado de cabeça para baixo onde aprendemos uma nova lingua (silên-cio), uma nova maneira de ser (não de fazer, mas simples-mente de ser), onde nossos pensamentos e conceitos, nossa imaginação, sentidos e sentimentos são abandonados pela fé no que não é visto e não é sentido, onde a aparente ausência de Deus (para nossos sentidos) é sua presença, e seu silêncio (para nossa percepção comum) é sua fala. É entrar no desconhecido, abandonar todas as coisas familiares às quais nos agarraríamos por segurança e descobrir que em ser "miserável, digno de lástima, pobre, cego e nu" (Ap 3,17) (que a graça nos revela e que tememos reconhe-cer muito menos aceitar em nós mesmos) se encon-tra o potencial para toda a nossa esperança e alegria, porque conhecer nosso verdadeiro eu é saber que somos amados por Deus além de toda medida.
Pois o eu superficial é uma ilusão e deve ser abando-nado nessa jornada. Ele é o falso eu, que luta para possuir e segurar a sensação da presença de Deus, a qual jamais pode ser "agarrada", porque é um dom, a ser recebido com rnãos abertas; é impossível pegá-la. É o eu que quer saber o que não pode ser sabido, exceto no "desconheci-mento" do amor intuitivo; o eu que luta para preservar sua falsa existência defendendo as ilusões que se clisfar-çam de realidade: autonomia, controle, ser o centro de seu próprio significado. Assim, é o propósito compassivo de Deus por meio da escuridão que experimentamos no começo da contemplação (e intermitentemente ao longo de nossa jornada para a Luz) libertar-nos dessas ilu-sões, que só podem trazer decepção e dor.
Talvez o mais simples e básico que possa ser dito sobre a oração contemplativa é que ela é a aceitação do convite de Deus não só para confiar nele em tudo isso, mas para nos confiarmos a ele, de modo que ele possa nos levar para além de nós mesmos, isto é, para além de nossa consciência do ego superficial, que não pode en-trar nessa jornada misteriosa para seu amor.
Um testemunho raro e belo da forma da oração con-templativa é dado na seguinte citação de uma carta de Thomas Merton, escrita em resposta a um amigo sufi
que havia lhe perguntado simplesmente como ele rezava:
Você me pergunta sobre o meu método de meditação. Estritamente falando, tenho um modo muito simples de rezar. Ele é centrado inteiramente na atenção à presença de Deus e à sua vontade e seu amor. Isso quer dizer que é centrado na fé, o único meio pelo qual podemos conhe­cer a presença de Deus. Poderíamos dizer que isso dá à minha (oração) o caráter descrito pelo profeta como "estar diante de Deus como se você o visse". No entanto, não significa imaginar alguma coisa ou conceber uma imagem precisa de Deus, pois, na minha idéia, isso seria uma es­pécie de idolatria. Ao contrário, é uma questão de adorá-lo como tudo... Há em meu coração essa grande sede de reconhecer totalmente o nada de tudo o que não é Deus. Minha oração é, então, uma espécie de louvor que se eleva do centro do Nada e do Silêncio. Se "eu mesmo" ainda estou presente, reconheço isso como um obstáculo. Se ele quiser, poderá fazer do Nada uma total claridade. Se não quiser, o Nada parecerá um objeto e permanecerá um obstáculo. Esse é meu modo normal de oração, ou medita­ção. Não é "pensar sobre" alguma coisa, mas é uma busca direta da face do invisível, que não pode ser encontrado a menos que nos percamos naquele que é invisível'.
A contemplação, escreve João da Cruz, "não é nada mais que um secreto, pacífico e amoroso fluxo interno de Deus, que, se não for impedido, inflamará a alma no espírito do amor". Mas ele acrescenta: "O fogo do amor normalmente não é sentido no princípio... porque a alma, por falta de entendimento, não criou dentro de si um lugar pacífico para ele"9. Se continuarmos a exercer e utilizar a intermediação de nossos próprios poderes de reflexão ou vontade, apenas bloquearemos esse fluxo interior. Tudo o que se pede de nós é que "descansemos junto ao Senhor, esperemos nele" (Si 37,7).
Aqui, as palavras de Jesus para os apóstolos no Getsêmani poderiam muito bem ser aplicadas, tiradas do contexto: "Sentem-se aqui, enquanto eu oro". Merton nos oferece uma expressão única desse conceito, dizendo:
É uma coisa arriscada orar, e o perigo é que nossas pró­prias orações se intrometam entre Deus e nós. O bom na oração não é orar, mas ir diretamente a Deus. Se dizer suas orações for um obstáculo à oração, elimine isso! Deixe Jesus orar. Agradeça a Deus por Jesus estar orando. Es­queça de si mesmo. Entre na oração de Jesus. Deixe que ele ore em você... A melhor maneira de orar é parar! Deixe que a oração ore dentro de você, quer você tenha conhe­cimento ou não. Isso significa uma profunda consciência de nossa verdadeira identidade interior... (que) pela graça nós somos Cristo. Nossa relação com Deus é a de Cristo com o Pai no Espírito10.
Essa obliteração do eu, para que o Espírito de Jesus possa orar em nós e amar em nós, não é confinada apenas aos momentos de oração. Como disse Julian Green, "Não se tem um coração para seres humanos e outro para Deus. Aí está o problema". Aprender gradualmente os bloqueios que erguemos a seu amor, e amar o suficiente para remo-vê-los (ou para permitir que sejam removidos), confiar no amor de Deus e se entregar a esse amor tudo isso deve encontrar paralelos em nossa vida diária, onde lentamen-te aprendemos a escolher, repetidas vezes, nos dar para os outros em vez de pegar para nós mesmos.
Citando Merton novamente, "A contemplação está fora. de questão para os que não tentam cultivar a com-paixão pelos outros". Essa compaixão deve se estender até mesmo e especialmente a nós mesmos quando nossa escuridão nos é revelada, pois negá-la ou irritar-se com ela é, uma vez mais, a reação autoperpetuadora do falso eu.
Em livros escritos a respeito de santos  e místicos, a contemplação tem sido associada com tanta freqüência a fenômenos extraordinários e, às vezes, mesmo bizarros, que provavelmente nem temos idéia de quantos contem-plativos verdadeiros encontramos à nossa volta, escondi-dos até deles mesmos. O estereótipo do contemplativo como uma pessoa passiva, retraída, sonhadora e às vezes reprimida é também uma caricatura, pois a contempla-ção exige uma capacidade de sentir paixão, além de um amor ardente pela vida. Escrever sobre a contemplação, com sua terminologia por vezes estranha (as "noites escuras", a aridez dos sentidos, abandono, graças místi cas etc.), envoive o risco de que ela pareça não estar relacionada à vida comum e às pessoas comuns. Mas Deus é "comum!" Ele entrou em nossa humanidade e pode ser encontrado nela, como a encarnação revela, e nós e todas as coisas criadas subsistimos nele. Escreve Elizabeth Barrett Browning:
A terra está cheia de céu,
E cada moita comum está inflamada de Deus;
E apenas aquele que vê tira seus sapatos;
Os demais sentam-se em torno dela e põem-se a arrancar amoras".
Além disso, a contemplação não é dependente de uma clausura física (que de forma alguma é garantia de produção de contemplativos), mas de uma "clausura do coração" que, sem ser removido das relações amorosas e de um papel ativo no mundo, torna-se o "lar" de Deus, como Jesus prometeu:
Se alguém me ama, observará minha palavra. e meu Pai o amará; nós viremos a ele e estabeleceremos  nossa morada .
 Ser contemplativo, portanto, não se limita a nenhum  estilo de vida específico, como o monástico ou o religio-;o, mas tem tudo a ver com escutar o chamado de Deus 9ara se tornar amor, em qualquer estado de vida em que nos encontremos. Pois a contemplação não nos deixará menos interessados pelo mundo em que vivemos; ao con-trário, aumentará nosso interesse por ele.
Menos interessados pelo mundo em que vivemos; ao con-trário, aumentará nosso interesse por ele. De qualquer maneira, para crescer nessa (e em qual  quer) oração e para aprofundar nossa relação com Deus, é essencial que encontremos, a c,ada dia, uma quantidade substancial de tempo para a quietude e silêncio interiores em oração e que permaneçamos fiéis a isso como uma verdadeira prioridade. Alguma flexibilidade será necessá ria, mas ela deve ter como princípio e centro nossa relação de amor com Deus. Os enamorados não agendam um tempo para estar juntos — eles o fazem acontecer, sabendo que nenhuma relação profunda é possível ou pode durar e crescer sem isso. Pois "o Deus imanente pode ser descoberto, mas o Deus transcendente precisa revelar-se"'2. Por meio de tal compromisso sério com a oração,aprenderemos que uma "espera apaixonada", com nosso coração desperto e atento Àquele que amamos, em fidelidade e constância, é da maior importância, estejamos nós na luz ou na escuridão. E saberemos, como são Bernardo nos assegura, que "apenas ele é Deus, que jamais é buscado em vão, mesmo quando não pode ser encontrado"'3. Então, como orou são Paulo, o próprio Deus, por meio de seu Espírito, nos possibilitará crescer em nos  so eu interior, de forma que Cristo possa viver em nosso coração pela fé, e, arraigados no amor e fundados no amor, teremos a força para compreender a largura e o comprimento, a altura e a profundidade de que conhecendo  amor de Cristo, que está além do conhecimento, poderemos ser cumulados de toda a plenitude de Deus (Ef 3,16-19). Ele conclui:
Glória àquele que pode, por seu poder que age em nós, fazer além, infinitamente além do que nós podemos pedir e conceber (v. 20).
Também fora dos momentos de oração, podemos aprender a "meditar" sobre a vida, vivendo de forma refletida e não na superfície das coisas: "ouvindo a vida" e reconhecendo como Deus está lá, como ele está em toda a criação, pessoas e acontecimentos de nossa vida cotidiana comum.
Para aumentar essa percepção, uma prática muito útil é dedicar algum tempo antes do final de cada dia a refletir e discernir em oração como Deus está presente e atuante, talvez disfarçado em coisas comuns, em momentos que passaram por nós ou em circunstâncias que pareceram escondê-lo em vez de revelá-lo. Pois a verdade é que estamos imersos em Deus, recebendo dele vida e ser e amor a cada momento, tão constantemente quanto o ar que respiramos durante toda a vida. O que falta é abrir nosso olho interior e ver o que já está lá, crescer em nossa consciência dessa realidade mais profunda, "pois é nele que temos a vida, o movimento e o ser" (At 17,28). Nas palavras bem-hurnoradas de Meister Eckhart, "Deus está sempre em casa. Nós é que às vezes saímos para um passeio". A contemplação desenvolverá essa consciência ao desenvolver o dom da fé, que é nossa participação na visão de realidade de Deus.
Mesmo em pequenas coisas, há muito que podemos fazer para cultivar e nutrir uma vida interior. Como isso exige um mínimo de silêncio interior, podemos, por exem­plo, eliminar o barulho constante a que nos submetemos com rádios do carro, TV etc.; podemos evitar distrações e agitações desnecessárias e criar para nós ilhas vivifi­cantes de quietude e paz. Tudo isso irá contribuir não só para a qualidade de nossa oração, mas para a qualidade de nossos relacionamentos com família e amigos e todos os nossos contatos com os outros.
Poucos de nós precisam olhar muito longe para en­contrar oportunidades que desafiem nossa orientação autocentrada, esse arquiinimigo do crescimento espiritual, pois elas são abundantes em qualquer vida familiar ou de grupo. Na verdade, nosso"guru" pode vir a ser a própria situação que estamos vivendo, em que Deus nos pede para que consintamos em  entregar nossa vida aos outros. Muitas oportunidades de morrer para o falso eu, a fim de que a vida amorosa de Cristo possa crescer em nós, às vezes passam despercebidas quando procuramos ou espe­ramos por elas apenas em ocasiões dramáticas ou herói­cas. Teresa de Lisieux disse: "Claro que gostaríamos de sofrer nobremente, em grande estilo... Que ilusão! Sofrer pobremente, isso é sofrimento! ". "Sofrer" significa subme­ter-se, suportar, agüentar. Nesse sentido, há ocasiões em que não precisamos fazer mais do que agüentar e suportar a nós mesmos, com paciência e compaixão. Pois sentir pena ou raiva de nós mesmos e de nossas imperfeições e falhas é apenas outra faceta da não-aceitação da verdade pelo falso eu e de sua ilusão de uma possível perfeição. Uma vez mais, o elemento de paradoxo está presente nes sas observações, pois toda oportunidade e ocasião de ocasiões em que não precisamos fazer mais do que agüentar e suportar a nós mesmos, com paciência e compaixão. Pois sentir pena ou raiva de nós mesmos e de nossas imperfeições e falhas é apenas outra faceta da
não-aceitação da verdade pelo falso eu e de sua ilusão de uma possível perfeição nas observações, pois toda oportunidade e ocasião de negar o falso eu é o outro lado da moeda da liberdade e alegria. Esse é o modo de Jesus, e essa é sua promessa. Assim, a contemplação é, em última instância, um movimento pela escuridão para a luz. Um conto rabínico ilustra algumas implicações disso com grande sensibilidade .
Um antigo rabino certa vez perguntou a seus alunos como eles poderiam saber quando a noite havia acabado e o dia estava retornando. "Poderia ser", perguntou um dos alu­nos, "quando se pode ver um animal à distância e saber se ele é um carneiro ou uni cachorro?" "Não", respondeu o rabino. "Poderia ser", sugeriu outro, "quando se olha para uma árvore à distância e pode-se saber se é uma figueira ou um pessegueiro?" "Não", disse o rabino. "Bem, então como é?", indagaram os alunos. "É quando se olha no rosto de qualquer mulher ou homem e se vê que ela ou ele é sua irmã ou irmão. Porque, se você não puder fazer isso, não importa que hora seja, ainda é noite".
Ver cada mulher ou cada homem como irmã e irmão é participar da visão de fé do místico, cuja intuição cen­tral é a unidade e unicidade de TUDO, em Deus. É um efeito, pleno de graça, da contemplação, que gradual­mente transforma nosso modo de ver a realidade. Essa visão mística está longe de um sonho esotérico ou "ne­buloso", pois certamente a sobrevivência de nosso plane­ta depende de unia percepção universal dessa unidade e da interligação de todos os povos e de todo o universo no Amor único que é Deus.

Na expressão profunda de Karl Rahner, "O cristão do futuro será um místico, ou então não será um cristão"