Deus de baixo
Benjamin
Gonzáles Buelta, Jesuita
Tu e eu
os dois
uma só folha
de papel.
Eu sou
a página de cima
ao sol e ao ar
e a todo o que queira
ler uma palavra,
ouvir-te e encontrar-te.
Tu és
a página de baixo
que me sustenta,
obscuro,
invisível,
colado à madeira.
Em tua busca
não posso dar a volta,
nem sair de meu ser,
nem debruçar-me
do outro lado de mim mesmo,
nem surpreender-te
em um giro repentino
para ver-te
em teu mistério.
Somente posso
ficar suspenso
no silêncio
de tua graça,
e sentir como flui
a vida exata
até mim,
desde meu fundo
onde me recebo
inesgotável,
desde ti.
em minha tarefa cotidiana,
sais em mim
até a rua,
abraças
com meus braços,
e apareces
em meu olhar.
Não te envergonha
meu limite,
nem se restringe
meu vocabulário.
Em mim te vais fazendo
verdadeiro servidor
sem obras perfeitas.
Juntos ensaiamos
teu Reino,
em minhas tentativas
de aprendiz eterno
nesta terra
de futuros.
Deus de baixo,
silenciosa consistência,
não posso rasgar-me
sem ferir-te,
nem posso ser
tua página aberta
se Tu não és
minha página calada.
Nem eu sem ti
nem Tu sem mim
podemos ser hoje
uma palavra tua
que abrace e olhe
em carne humana
neste mundo.
LECTIO DIVINA
Ler e ouvir a palavra de Deus
Thelma
Hall
O primeiro
passo da Lectio Divina é a lectio, ou
lei-tura. Não é uma leitura
comum, nem em matéria nem em maneira. A matéria é a "Palavra Divina", ou Escri-tura', e a
maneira de ler é, mais precisamente, um
"es-cutar" e um "ouvir", sintonizados com a palavra inspi- rada e atentos ao Falante.
Hoje, temos
um entendimento mais expandido que em tempos
antigos do que significa falar da Escritura como "a palavra inspirada de
Deus". A expressão era antes
compreendida num sentido restrito: de que os autores da Escritura haviam sido diretamente inspirados pelo
Espírito para transmitir a palavra de Deus — uma espécie de
"ditado divino". Mas o Espírito que Jesus pro-meteu que seria enviado pelo Pai em seu nome para morar
dentro de nós é o mesmo Espírito que vivifica a palavra da
Escritura2. É minha fé ativa nesse Espírito, presente no
mundo e em mim, que, quando trazida à leitura e audição da Escritura,
"in-spira" ou "respira dentro" dela' a realidade viva do
Falante.
Portanto, eu
me preparo para essa leitura sagrada devotando um tempo a aquietar
corpo e mente, para começar a concentrar todo o meu ser num único foco.
Quanto a meu corpo: em toda disciplina de oração, oriental e ocidental,
o único princípio comum consistente é que a espinha deve estar ereta, mas não
tensa. Sentado no chão ou sobre uma almofada, com as pernas
cruzadas ou dobradas, ou numa cadeira de encosto reto, a idéia básica é não atrapalhar a circulação ou a
respiração, ao mesmo tempo em que a pessoa se mantém totalmente atenta e alerta. Todos esses preliminares são meios
de me ajudar a chegar a uma
consciência e convicção de fé de que
estou prestes a ouvir a palavra viva de Deus, intimamente presente para mim. Nessa disposição,
escolho um texto — de preferência
curto — e leio-o devagar, ouvindo-o interiormente com plena atenção. Este já
é o início de minha resposta a uma pessoa que me chama a abrir minha mente e coração para ela. Às vezes, o
texto que me atrai pode ser algo que já está presente, rondando meu coração; talvez tenha sido sugerido por uma
liturgia recente. Ou eu posso fazer
uso da seção "Temas da
Escritura" deste livro, oferecida especificamente com essa finalidade, numa forma destinada a ressoar com
um sentido do chamado
presente de Deus. De maneira geral, minha meta é personalizar as palavras, real-izá-las, como Deus falando comigo, agora.
Como
exemplo, vamos supor que um texto (Is 65,1-2) dos Temas da Escritura sobre
"Contrição e Misericórdia"' tenha atraído minha atenção. Depois das
preparações sugeridas, começo a lectio, ou leitura. "Escuto"
o Senhor me dizendo:
Fiz-me achar
por aqueles que não me procuravam; eu disse: "Aqui estou"... Estendi
as minhas mãos, durante o dia todo, para um povo rebelde (Is 65,1-2).
É possível
que mesmo um texto tão curto como esse possa ter um significado ou
importância diferente para mim cada vez que
eu deparar com ele, quando eu o escutar em fé, porque o Senhor falará comigo
onde estou. Por exemplo, o que pode
me impressionar é a constatação de
que ele se faz achar, mesmo que minha procura seja prejudicada por egoísmo, e isso subitamente
desperta em mim uma sensação de não-merecimento e gratidão. Ou as duas palavras, "Aqui estou", podem
ressoar com uma proximidade inesperada
e uma nova constatação da constância de sua presença para mim.
Quando,
ao "ouvir" a Escritura, somos receptivos a Ele que fala em nós, o que ouvimos pode ser mais do que aquilo que as palavras em si transmitem. O
Espírito que lhes dá vida é ele próprio
o significado, expresso por intermédio das palavras mais do que
nelas, assim como um
amante pode transmitir uma infinidade numa frase que seria mera convenção quando dita por outro. Observei isso repetidas vezes na condução de retiros,
quando o mesmo texto é ouvido por cada
indivíduo de uma maneira
completamente única, com muita freqüência de uma maneira que eu nunca esperei ou imaginei.
Há inúmeros potenciais nesse texto, por exemplo, que a
graça pode revelar. Também é verdade que, por isso ser gratuito e não produto de minha própria
dedução lógica, as palavras podem me "deixar frio'. Nesse caso, eu poderia apenas deixar tranqüilamente que
uma única expressão — como "Aqui
estou" — se repetisse várias
vezes em minha consciência, e acolhê-la na fé. Assim, simplesmente "estar com" o Senhor numa disposição de amor e confiança será suficiente, em
especial quando constatamos que, por
nós mesmos, não podemos fazer nada
mais. Na verdade, essa constatação pode, muito possivelmente, ser o fruto real dessa sessão de oração. Porém, se (como sugerido a princípio) tivermos
sido atraídos por uma expressão
específica, e estiver começando a refletir
sobre seu significado para mim, então terei iniciado minha entrada no passo seguinte, Meditatio.
Meditatio: Refletir
sobre a Palavra
Anteriormente,
a Lectio Divina foi descrita como "o aprofundamento de uma
relação interpessoal". Nesse processo, o papel da Lectio
descrito acima é análogo ao ato de ir ao encontro de outra pessoa com a intenção
de compartilhar
algum tempo juntos e sozinhos. Foi por essa razão que abri espaço em minha vida e
voltei-me para Deus, antecipando uma troca
entre nós que será um aprofundamento
de nossa crescente relação.
Agora, na Meditatio
a que esse desejo me levou, quero
conhecer mais sobre ele, acolhê-lo em minha vida e abrir-me para ele, em maior confiança e segurança — quero aprender quem ele
realmente é para mim e o que deseja me revelar. Uma analogia pode ser útil aqui, com referência a essa revelação.
Suponhamos que eu estivesse numa livraria e, por acaso, abrisse um livro escrito em grego, ou em
japonês, ou em hebraico. Eu não só não conheceria o
alfabeto ou a língua como sequer saberia
se o texto deveria ser lido de trás
para a frente, de baixo para cima ou da esquerda para a direita. Ele seria, em outras palavras, um "livro fechado" para mim, por mais
que eu quisesse entendê-lo. Porém,
se um funcionário passasse naquele momento e, sentindo meu dilema, informasse que o mesmo livro também se encontrava disponível numa tradução
para o inglês e apresentasse-o a mim, eu poderia
me conectar imediatamente com o sentido transmitido em cada página.
Da mesma forma, Deus, em si próprio, é "outra língua" para nós, pois ele é
incompreensível, em sua plenitude, para nosso intelecto e compreensão humanos finitos. Porém, ele se traduziu para nossa
humanidade em Jesus. Nesse homem, que viveu e experimentou até as maiores profundidades possíveis a vida
humana que comparti‑ lhamos, Deus revela-se a
mim em carne e sangue. Jesus é a revelação de Deus, numa língua que posso
entender e numa pessoa que posso conhecer e
amar, não só como alguém que viveu e morreu na história, mas como
al-guém que vive agora, no meu mundo, em meu coração, e para sempre. E, por meio do dom prometido do Espí-rito, que foi dado, ele de fato fala a mim
Sugiro que, antes de continuar sua leitura aqui, você
faça uma pausa para refletir em oração por alguns mo-mentos sobre as seguintes
passagens notáveis do capítu-lo 14 do Evangelho de João
e tentar ouvi-las como se fosse a primeira vez, diri;gidas a você. Para enfatizar essa personalização, você pode
inserir seu próprio nome nos locais marcados pelos asteriscos.
(Jesus lhe diz:)
"Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vai ao Pai a não ser
por mim. Se me conhecêsseis, (*), conheceríeis também meu
Pai.
Desde agora o conheceis e o
vistes (vv. 6-7). Quanto a mim, eu rogarei ao
Pai,
e ele vos dará outro Paráclito, que permanecerá convosco para
sempre. É ele o
Espírito da verdade, aquele
que o mundo é incapaz de acolher, porque não o vê e não o conhece.
Quanto a vós, (*), vós o
conheceis, pois ele permanece junto de vós e está em vós (vv. 16-17).
O Paráclito, o Espírito
Santo que o Pai enviará em meu nome, vos ensinará todas as coisas e vos fará recordar tudo o que eu vos disse (v. 26) s.
Antes de começar esta (ou qualquer) oração, é de fundamental importância
dedicar um tempo a se cons-cientizar da dimensão de fé em
que se está entrando. Quando Moisés se
aproximou da sarça ardente, "Deus falou:
'Não te aproximes! Tira as sandálias dos pés, porque o lugar onde estás
é uma terra santa. Eu sou o Deus de teu
pai..? (e) Moisés cobriu o rosto" (Ex 3,5-6). De uma forma comparável, interior ou exterior, nós tam-bém precisamos reconhecer
a santidade do Deus de que nos
aproximamos, perceber a maravilha e mistério do dom de fé que nos possibilita vir diante dele consciente-mente em
oração. Quando refletimos sobre isso, parece surpreendente que possamos
com freqüência, de modo tão informal,
pressupor que "claro" que é possível comu-nicar-se com Deus! E importante, portanto,
desde o iní-cio, perceber — tornar real —
a verdade de
que a oração é
sempre urna resposta dada à
iniciativa amorosa do Espírito Santo. E, como toda oração é dom dele, é apro-priado que peçamos o que
desejamos. No trecho do Evangelho de João citado acima, poderíamos retomar a promessa de Jesus, pedindo
ao Espírito Santo que nos ensine como abrir mente e coração para ouvir e com-preender o que Jesus está
nos dizendo.
A relação de oração de cada pessoa com o Senhor é única. Uma razão para isso
é que há diversos dons pessoais. Em algumas pessoas, a faculdade da imaginação é
mais desenvolvida e ativa, e para essas o uso de imagens pode ser muito útil
para dar vida à sua meditação. Nessa abordagem, chamada de
"contemplação" nos Exercícios Espirituais de santo Inácio (mas com um
sentido diferente do sentido clássico que estamos usando), entra-se, por meio da
imaginação, numa cena do Evangelho, vendo e ouvindo as pessoas,
imaginando as sensações e cheiros do ambiente etc. Eu poderia me identificar com
alguma
pessoa da cena, ou estar presente nela eu mesmo, observando, escutando,
experimentando o que acontece. Por exemplo, no trecho do Evangelho de João que acabamos de citar, minha
imaginação poderia ser usada para recriar a cena — neste caso, a reunião de Jesus
com seus
amigos na Última Ceia. E, assim, ouço essas palavras de Jesus dirigidas a
mim, e recebo seu olhar com meus próprios olhos. O que eu vejo nesses olhos
enquanto ele fala
comigo? E como devo responder?
Aqueles cuja imaginação não é tão ativa ou tão bem desenvolvida,
mas que talvez sejam mais intuitivos, podem
ganhar mais saboreando a verdade ou insight inerentes à passagem,
interiorizando profundamente o que Jesus diz, permitindo que suas palavras se repitam devagar diversas vezes, nas profundezas do coração, até que
este seja totalmente penetrado com o
amor reconfortante de Jesus e,
espontaneamente, responda da mesma maneira.
Qualquer que seja nossa abordagem para a oração, sempre se aplica um princípio básico que é resumido por Dom Chapman, famoso orientador espiritual beneditino ão início do século XX: "Ore como você pode, e não como você não pode!". Pois as mais simples das palavras, quando genuínas e sinceras — ou mesmo nenhuma palavra quando o coração estiver muito cheio —, são certamente mais eloqüentes que a mais lírica retórica quando fabri::ada ou tomada emprestada. E, mais óbvio ainda, mas talvez por essa razão facilmente negligenciado: muitas vezes preciso pedir que o Espírito me ensine a rezar.
Qualquer que seja nossa abordagem para a oração, sempre se aplica um princípio básico que é resumido por Dom Chapman, famoso orientador espiritual beneditino ão início do século XX: "Ore como você pode, e não como você não pode!". Pois as mais simples das palavras, quando genuínas e sinceras — ou mesmo nenhuma palavra quando o coração estiver muito cheio —, são certamente mais eloqüentes que a mais lírica retórica quando fabri::ada ou tomada emprestada. E, mais óbvio ainda, mas talvez por essa razão facilmente negligenciado: muitas vezes preciso pedir que o Espírito me ensine a rezar.
Estou deixando a Meditatio neste ponto sem
desenvolvê-la
mais porque seria enganoso dar a impressão de Dferecer um manual detalhado de
"como fazer", referente ao que é essencialmente um movimento interior cuja autenticidade depende de sermos espontâneos e reais. Em última análise, apenas o Espírito Santo pode nos
ensinar
rezar, e o que quer que outra pessoa possa oferecer só
;erá
útil para ajudar a nos dispormos para receber esse ensinamento na
experiência. Voltando à nossa analogia )riginal de "estar
apaixonado", é o amor que nos ensina
amar,
e ele não segue nenhum método objetivo.
É quando esse amor de Deus toca nosso coração que tomos levados ao nível
seguinte: oratio, ou oração. Tudo mais foram preliminares,
pois este é o verdadeiro iní~io da oração.
Oratio: A Palavra toca o coração
A meditação, tema da seção anterior, tem um papel importante a desempenhar em
nossa formação como cristãos. Ela nos ajuda a crescer em nosso
conhecimento da constante obra de amor de Deus em toda a
criação, e em nossa própria vida individual; aumenta e
enriquece nossa familiaridade com a vida e os ensinamentos de
Jesus e nosso
amor por ele; e leva-nos a refletir sobre como devemos responder a seu chamado em amor e serviço. Tudo isso não só tem valor em si, como
também nos ajuda a estabelecer as
fundações essenciais de fé e convicção para nossa vida cristã.
Porém, a
meditação é, em grande medida, uma ati-vidade de nosso intelecto e
imaginação sobre Deus e, se permanecer num nível intelectual, não chegará à
oração genuína. Pois a meta da oração não são pensamentos ou conceitos ou
conhecimento sobre Deus, por mais subli-mes que
esses sejam, mas o próprio Deus como ele é, misteriosamente
escondido em meu eu verdadeiro mais profundo. Na linguagem dos místicos,
"Deus é meu eu"6.
Esse centro
mais profundo é o reino da contempla-ção, e a oratio, ou
"oração do coração", que iremos agora examinar, é
o início do caminho que leva a ela. Como esse início não é
predeterminado por nossa própria programa-ção, o que
se segue não é uma "instrução" — algo para fazer que levará à próxima coisa a
ser feita, como uma escada ascendente; simplesmente começa a descrever o
que acaba por se tomar um movimento espontâneo do coração,
quando responsivo à condução
do Espírito.
Poucas citações dos santos são mais universalmente conhecidas que a de santo Agostinho: "Oh!
Deus, nosso coração é feito para ti, e ficará
inquieto até repousar em ti!". Isso parece ser geralmente reconhecido como
uni truísmo e ressoa com
um anseio interior que não se encontra muito abaixo de nossa consciência
superficial. É esse anseio intrínseco despertado na oração quando nos permitimos ser vulneráveis e, deixando de
lado de-fesas e máscaras, postamo-nos diante de
Deus em nossa nua necessidade e crua natureza de criaturas. Chega
o momento em que percebemos que esse anseio é, ele pró-prio, a presença do anseio de
Deus em nós. Enquanto isso, a oratio é o esforço
ativo que fazemos para manter nosso coração aberto para ele e nos colocar à
disposição de seu Espírito, preparando o caminho para que a ação de Deus sobreponha-se
à nossa.
Por um longo período
de tempo, podemos ficar nos movendo entre a meditação e essa oração do coração, mas por fim uma simplificação gradual começa a ocor-rer. Há cada vez menos raciocínio e especulação
com o intelecto, conforme o coração
toma as rédeas num sim-ples despejar de amor e desejo, que pode assumir a for-ma de um diálogo íntimo interior. Sentindo que
Deus está "tão perto e no entanto
tão longe", o anseio de nosso coração chama-o espontaneamente ou,
consciente de sua própria infidelidade
e falta de mérito, implora cura e
misericórdia. Todas as promessas bobas de um apaixonado podem ser feitas e tornam-se o segredo da pessoa com
Deus.
Nessa oração, nosso
coração está aberto para ele e por ele,
para que sua luz possa entrar. Como ele nos arna demais para
nos deixar em nossas ilusões, que são obstáculos para sua
graça, mais cedo ou mais tarde elas come-çarão a nos
ser reveladas como o que realmente são: as pretensões
conscientes e inconscientes do falso eu por autonomia,
auto-suficiência, controle, orgulho, interpreta-ção de
papéis ou limites para nossa generosidade. A lista é diferente
para cada pessoa, mas seu efeito é o mesmo: impedir a
vida de graça e os dons do Espírito Santo den-tro de nós. Aqui,
uma vez mais, o caminho para Deus parece paradoxal, pois, embora
esse processo de "desilu-são" que agora começa seja necessariamente
doloroso para nós, ele é uma grande graça do amor de Deus, uma
vez que, contando com nossa cooperação, desfará o domínio do falso eu
e nos centralizará no verdadeiro eu, "a ima-gem e
semelhança de Deus" dentro de nós. Se não tomar-mos nenhuma
atitude em relação ao que ele está nos re-velando ou
nos pedindo, nossa oração será, nesse sentido, infrutífera.
Isso não significa que seja necessária uma resposta
perfeita a ele, desde que nossa intenção e tenta-tiva de responder sejam
sinceras. Nas palavras de confor-to e incentivo de 'The Cloud of Unknowing,
Não é o que você é nem o que você
foi que Deus vê com seus olhos misericordiosos, mas o que você deseja
ser. (O autor prossegue dizendo:) São
Gregário declara que "todos os desejos virtuosos aumentam em intensidade
com a de-mora de sua realização, e o desejo que desaparece com a demora
nunca foi de fato um desejo virtuoso"7.
Esse aumento do "desejo virtuoso" é um
dos efeitos da Oratio. Por meio dela, Deus cria em nós uma capacida de maior para ele mesmo, não só por nosso anseio, mas às vezes pela
própria frustração e impotência que experimen-tamos quando
o procuramos c,egamente.
É como se esti-véssemos sendo atraídos por uma força magnética em nossas
próprias entranhas, na direção de Deus como nos-so centro de
gravidade, onde esse centro coincide com nosso verdadeiro eu. A atração será
experimentada de forma mais poderosa quanto
mais consentirmos com a derruba-da
das ilusões que prejudicam o processo de conversão contínua: um voltar-se mais
totalmente para Deus como nosso
verdadeiro centro, viver para ele. Essa é uma obra que não só ocorre na oração, como também emana
dela para os particulares concretos
da vida cotidiana em nossas reações e respostas
aos outros e aos acontecimentos.
A dinâmica de tal conversão é
descrita no imperati-vo de João Batista: "É preciso que ele cresça
e eu dimi-nua". O lado positivo desse princípio do Evangelho é esclarecido ao se lembrar a interpretação do
verdadeiro eu/falso eu
oferecida no Capítulo Dois. Nesse contexto, poderíamos
parafrasear: "É preciso que meu verdadeiro eu cresça e meu falso eu
diminua". A arena, ou campo de luta, é
tanto interior como exterior. No primeiro caso, a luta é para se entregar à ação de Deus em oração e, no último, para agir, concretizar essa entrega na
vida coti-diana — dois lados da mesma moeda.
Na oratio, até
aprendermos a estar à vontade com a paciente esperar Deus que a
oração acabará nos en-sinando, pode ser útil voltar vez por outra à lectio com algumas palavras simples da Escritura, como o
versículo inicial do Salmo 42: Como uma corça anela pelas
torrentes d'água, minh'alma anela por ti, meu
Deus.
Porém, precisamos ter cuidado para não substituir a
oração pela leitura, pois, neste estágio da oratio, seremos gradualmente
levados a uma consciência mais sutil e intuitiva de
Deus que surge aos poucos, e não deve ser obscurecida
por nossa busca impaciente da luz menor de nossas
limitadas faculdades intelectuais. Teresa d'Ávila oferece um
exemplo útil neste ponto. Ela nos diz que, quando um
pequeno fogo tiver sido acesso (em nossa oração),
para mantê-lo queimando poderemos, de tempos em tempos,
acrescentar a ele um ou dois gravetos (p. ex., algumas palavras da
Escritura), mas, acautela-nos, não deveremos lançar galhos sobre ele (longas
leituras ou atividades da mente), porque isso extinguirá
a chama.
É difícil dar um exemplo dessa prece da oratio, porque ela é a voz única e
espontânea do coração que é tocado por Deus
e procura-o em amor ardente. Aqui, estamos
no terceiro dos quatro níveis da Lectio Divina, poeticamente descrita
por Dom Marmion (monge beneditino
francês de uma era anterior) como se segue:
Lemos (lectio)
sob o olho
de Deus (meditatio)
até que o
coração seja tocado (oratio) e salte em chamas. (contemplatio)
De acordo com a analogia usada
anteriormente — desenvolvimento contínuo de uma
relação humana ínti ma profundamente apaixonada —, agora não só amamos (a Deus), como estamos
começando a "cair de amor"; isto é, ele está se tornando o centro realizado de nossa
vida, e começamos a experimentar o anseio de
união dos amantes: o desejo de ser
totalmente dado e totalmente recebido.
Aqui, uma vez mais, nossa vida cotidiana deve seguir
paralela à nossa oração para que esta seja autêntica. O dom pessoal para o qual somos
chamados em oração deve ter sua co-extensão em nossos relacionamentos diários. Por mais imperfeitos que possam ser, nosso
desejo e esforço precisam ser sinceros.
A transição
para a contemplação
Até aqui, nos três níveis sucessivos da lectio,
meditatio e oratio, embora nos movendo no sentido de uma maior profundidade, ainda estamos
num reino em que nossa atividade continuava sendo um fator dominante. A transição para a contemplatio, ou
contemplação, final (que não é um término, mas um novo e crucial início) é
muito diferente do que talvez se tenha esperado. Pois, embora estejamos nos movendo para Deus, que é Luz, nossa experiência parece contradizer isso quando uma espécie de escuridão ou
"noite" desce sobre nós e nosso caminho torna-se obscuro.
O que acontece é que Deus está tomando conta cada vez mais,
"fechando" nossas faculdades naturais de raciocínio e imaginação e eliminando os sentimentos
afetivos de satisfação e fervor. O resultado é uma
notável incapacidade de pensar e raciocinar sobre Deus, aliada a uma espécie de
embotamento da devoção e do sentimento. O deserto começou e, na sua borda, uma
orientação segura é fundamental para que possamos compreender como prosseguir e não ser
tentados a abandonar tudo, sem perceber que
estamos no limiar de uma grande, porém não reconhecida, promessa.
O mestre reconhecido dessa viagem pela noite até um novo amanhecer é são João da Cruz. Seus escritos sobre o assunto, porém, são detalhados e bastante convolutos, e reaparecem em variadas formas em Subida
do Monte Carmelo, Noite
escura e Chama viva de amor. Portanto,
tentarei resumir brevemente e reunir alguns pontos que são relevantes
aqui.
Os três "sinais" de João da Cruz
Primeiro, ele dá três sinais para
discernir se a escuridão e a aridez experimentadas são indicações válidas da intervenção direta do Espírito ou se são
meramente resultado de alguma outra
causa, como falta de firmeza ou má
disposição da própria pessoa.
1.
Constatação de que não se pode
mais fazer meditação discursiva ou receber satisfação ou consolo dela
como antes. (Nota: Enquanto for possível, a meditação não deverá ser abandonada.)
Falta de inclinação a fixar a imaginação ou as
faculdades dos sentidos em outros particulares referentes a Deus; ou
seja, não há mais nenhuma em idéias de Deus, pois a distinção entre o
próprio Deus e conceitos acerca dele é agora percebida.
Nesse ponto, não sentimos afeto por nenhuma imagem mental ou
conceito de Deus, e todo o consolo sensível que
estava associado à presença dele evaporou. Uma grande
angústia é experimentada, juntamente com o medo de que tenhamos
regredido ou perdido o caminho e de que sejamos incapazes de orar. O que sentimos agora, inexplicavelmente, é apenas uma aversão pelas coisas de Deus. Isso é perturbador
e tomado por "indiferença",
mas, como é evidente para qualquer
orientador espiritual experiente, essa própria angústia trai uma preocupação genuína, pois se a pessoa estivesse realmente indiferente tal
preocupação não existiria.
O terceiro e mais seguro
sinal é decisivo, porque o primeiro e o segundo podem
ser experimentados devido a depressão, intemperança ou
simples falta de seriedade. Mas, quando os três
sinais estão presentes juntos, João assegura que é possível ter certeza de que eles procedem de Deus. Este sinal é que,
apesar da incapacidade de meditar, e da falta de satisfação com qualquer outra coisa, mesmo assim mantém-se uma atração para permanecer sozinho numa simples consciência amorosa de Deus, em paz interior e em quietude e repouso, sem nenhum conhecimento ou entendimento específico, ou atos do
intelecto, memória e vontade, e
prefere-se ficar apenas na
consciência e conhecimento amorosos gerais
Como proceder
São João dá, então, conselhos específicos referentes a como devemos nos conduzir
uma vez tendo recebido a indicação dessa transição a partir de nossa atividade
na oração. Ele observa como é fácil atrapalhar equivocada-mente o trabalho de Deus
com nossos próprios esforços, e diz que tentar é ser como alguém que, tendo chegado ao fim de sua jornada, continua a andar para
chegar ao fim, acrescentando: "Ele necessariamente se afastará
desse fim, além de estar fazendo algo ridículo".
Em vez disso, diz ele, devemos nos permitir ficar em silêncio, mesmo que
pareçamos não estar "fazendo nada" e perdendo tempo, e mesmo
que nos sintamos um pouco confusos
com
isso. Devemos nos satisfazer simplesmen-te com uma atenção amorosa
e pacífica a Deus, sem a preocupação, o esforço e o desejo de experimentá-lo ou senti-lo, pois esses desejos nos
inquietam e nos distraem do que nos está sendo secretamente comunicado pela ação direta de Deus. Chegou o momento
de receber, de uma "passividade receptiva" que está longe da ociosida-de, por mais que possa
assim nos parecer. Um pouco da sabedoria Zen se aplica aqui:
Sentar-se quieto,
sem
fazer nada.
A primavera vem
e a grama cresce por si
mesma.
Embora pareçamos estar inativos, a graça está se-guindo seu curso e a obra
do Espírito está se realizando sem nosso conhecimento distinto.
São João deixa claro, então, que aqueles que come-çam a ter esse conhecimento amoroso geral nem sempre são incapazes de algum retorno à meditação, pois a tran-sição não é imediata ou total, mas geralmente ocorre ao longo de um período de tempo considerável, até que a contemplação se
torne habitual — isto é, quando toda vez que pretendermos meditar notarmos imediatamente esse conhecimento e paz, assim como nossa falta
de ca-pacidade ou desejo de meditar.
Então, acautela ele, se persistirmos
em tentar considerar e entender coisas es-pecíficas, obstruiremos a luz simples do Espírito e inter-feriremos com nossos pensamentos nebulosos.
O tempo que isso demora não
pode ser previsto, pois Deus lida de forma única com cada pessoa, mas pouco a pouco, assegura-nos ele, "a calma e a paz divi-nas, com um conhecimento
maravilhoso e sublime de Deus, envolto em amor
divino, serão infundidas na alma", pois "essa contemplação está ativa enquanto a alma se encontra em inatividade e despreocupação. É corno o ar que escapa quando se tenta pegá-lo com a mão". "Nesse momento, os próprios
esforços da pessoa não têm ne-nhuma serventia, mas se
tornam obstáculos para a paz interior e para a obra que
Deus está produzindo no es-pírito por meio desse embotamento dos
sentidos."
Um
resumo rápido dos pontos principais pode ser útil
aqui:
Os três sinais
2. 1. Incapacidade de meditar como antes Falta de
interesse em idéias de Deus, geralmente acompanhada do medo de perder o
caminho ou de regredir. Aridez dos sentidos.
3. (Decisivo
quando presente com 1 e 2) Atração para a oração
solitária — atenta, geral e amorosa, porém obscura;
"atenção passiva".
O que fazer
·
Receber e não
colocar nenhum obstáculo ao Espírito Santo.
·
Seguir a atração para o silêncio interior e permanecer
em atenção
amorosa.
·
Abandonar toda atividade e
deixar-se ser atraído para a escuridão do amor de Deus, esquecido do próprio eu.
·
Quando se tornar possível meditar outra vez, fazer isso, até que, e a menos que, o
silêncio interior se torne habitual.
Concentrei-me de forma mais
detalhada na transição da "oração do
coração" para a contemplação por duas
razões importantes. Primeiro porque, sem um entendimento claro do que está acontecendo, nossas melhores intenções podem ser mal direcionadas e se
opor à atração do Espírito na
oração, em vez de segui-la. São João
é veemente em sua condenação dos orientadores espirituais que, "como um ferreiro, não fazem nada além de martelar e socar as faculdades" (da razão
e imaginação etc.) e assim
contradizem o movimento despercebido do Espírito. "Esses orientadores devem refletir que não são eles o principal agente, guia e movimentador de
almas nessa questão, mas que o guia
principal é o Espírito Santo."
Segundo, essa área de transição da oratio para
a contemplatio foi o "ponto de corte" da espiritualidade
da oração que passou a ser ensinada a partir do século XVI, conforme mencionado no início deste livro. Seu
resultado foi isolar a contemplação do que era considerado a oração normal e separá-la numa
categoria restrita apenas a raras "almas escolhidas".
Embora tal atitude institucional
ou imposição exterior da Igreja não prevaleçam hoje, há outra possibilidade real de
que a contemplação possa encontrar resistência ou ser
excluída da oração dos cristãos, como um efeito da atitude mental de
nossa sociedade ocidental contemporânea. Esta era tecnológica e todas as suas
realizações do intelecto pragmático têm seu preço. O
domínio de boa parte do mundo material é ganho muitas vezes
à custa do desenvolvimento das faculdades intuitivas, diretamente
envolvidas na contemplação. Como resultado, muitas pessoas são propensas a
inibir e/ou retardar o desenvolvimento
espontâneo da contemplação por uma tendência adquirida e teimosa a
constantemente intelectualizar,
analisar, julgar e, de forma geral, estar "no controle" durante a oração. Isso está em
oposição direta ao movimento
interior da contemplação, que exige que se abandone
qualquer tentativa de controle. A receptividade passiva
que ela pede, embora seja de fato criativa e responsiva,
parece, à visão prática, uma pura perda de tempo. Portanto, há necessidade
de um entendimento claro do que será experimentado e exigido de nós, particularmente nesse ponto de transição da
oração do co-ração para a contemplação.
A "oração centrante", que é uma eficiente adapta-ção moderna do ensinamento de The Cloud of, destina-se basicamente a superar essa
tendência intelec-tual dominante que estorva o que deveria ser um movi-mento fluido espontâneo:
da leitura e reflexão à oração do coração e ao silêncio interior da contemplação.
Qual-quer
um que experimente alguma dificuldade particular no que se refere a essa
intelectualização da oração acha-rá o livro de Thomas Keating, Open Mind, Open Heart (citado anteriormente)
extremamente útil como orienta-ção contínua. O autor é o fundador do movimento da oração centrante e o aprimora com uma rica tradição contemplativa.
4. Contemplatio: Entrada no silêncio
"profundo "
A contemplação é uma nova
terra estranha, onde tudo o que é natural para nós parece estar virado de cabeça para baixo — onde aprendemos uma nova lingua (silên-cio), uma nova maneira de
ser (não de fazer, mas simples-mente de ser), onde nossos pensamentos e
conceitos, nossa imaginação, sentidos e sentimentos são abandonados pela fé no que não é visto e não
é sentido, onde a aparente ausência de Deus (para nossos sentidos) é sua
presença, e seu silêncio (para nossa percepção comum) é sua fala. É entrar no desconhecido,
abandonar todas as coisas familiares às quais nos
agarraríamos por segurança e descobrir que em ser "miserável, digno de lástima,
pobre, cego e nu" (Ap 3,17) (que a graça nos revela e
que tememos reconhe-cer — muito menos aceitar — em nós mesmos) se encon-tra o potencial para toda a nossa
esperança e alegria, porque conhecer nosso verdadeiro eu é saber que somos amados por Deus além de toda medida.
Pois o eu superficial é uma
ilusão e deve ser abando-nado nessa jornada. Ele é o falso eu, que luta para
possuir e segurar a sensação da presença de Deus, a qual jamais pode ser "agarrada", porque é um dom, a
ser recebido com rnãos abertas; é impossível pegá-la. É o eu que quer saber o que não pode ser sabido, exceto no "desconheci-mento" do amor intuitivo; o eu que luta para
preservar sua falsa existência defendendo
as ilusões que se clisfar-çam de realidade: autonomia, controle, ser o centro de seu
próprio
significado. Assim, é o propósito compassivo de Deus — por meio da escuridão que experimentamos no começo da contemplação (e
intermitentemente ao longo de nossa jornada para a Luz) — libertar-nos dessas ilu-sões, que só podem trazer
decepção e dor.
Talvez o mais simples e básico que possa ser dito sobre a oração contemplativa é que ela é a aceitação do convite de Deus não só para confiar nele em tudo
isso, mas para nos confiarmos a
ele, de modo que ele possa nos levar
para além de nós mesmos, isto é, para além de nossa consciência do ego superficial, que não pode en-trar nessa jornada misteriosa para seu amor.
Um
testemunho raro e belo da forma da oração con-templativa é dado na seguinte citação de uma carta de Thomas Merton, escrita em
resposta a um amigo sufi
que havia lhe perguntado simplesmente como ele rezava:
que havia lhe perguntado simplesmente como ele rezava:
Você me pergunta sobre o meu método de meditação. Estritamente falando,
tenho um modo muito simples de rezar. Ele é centrado inteiramente na atenção à
presença de Deus e à sua vontade e seu amor. Isso quer dizer que é centrado na fé, o único
meio pelo qual podemos conhecer a presença de Deus. Poderíamos dizer que isso dá à
minha
(oração) o caráter descrito pelo profeta como "estar diante de Deus como se você
o visse". No entanto, não significa imaginar alguma coisa ou conceber uma imagem
precisa
de Deus, pois, na minha idéia, isso seria uma espécie de idolatria. Ao
contrário, é uma questão de adorá-lo como tudo... Há em meu coração essa grande sede de
reconhecer totalmente o nada de tudo o que não é Deus. Minha oração é, então, uma
espécie de louvor que se eleva do centro do Nada e do Silêncio. Se "eu
mesmo" ainda estou presente, reconheço isso como um obstáculo. Se ele quiser, poderá fazer do
Nada uma total claridade. Se não quiser, o Nada parecerá um objeto e permanecerá um obstáculo. Esse é meu modo
normal de oração, ou meditação. Não é "pensar sobre" alguma coisa,
mas é uma busca direta da face do invisível, que não pode ser encontrado a menos que nos percamos
naquele que é invisível'.
A contemplação, escreve
João da Cruz, "não é nada mais que um secreto, pacífico e amoroso fluxo
interno de Deus, que, se não for impedido,
inflamará a alma no espírito do
amor". Mas ele acrescenta: "O fogo do amor normalmente não é sentido no princípio... porque
a alma, por falta de entendimento,
não criou dentro de si um lugar
pacífico para ele"9. Se continuarmos a exercer e utilizar a intermediação de nossos próprios
poderes de reflexão ou vontade, apenas bloquearemos esse fluxo interior. Tudo o que se pede de nós é que
"descansemos junto ao Senhor,
esperemos nele" (Si 37,7).
Aqui, as palavras de Jesus para os apóstolos no Getsêmani poderiam muito
bem ser aplicadas, tiradas do contexto: "Sentem-se aqui, enquanto eu oro".
Merton nos oferece
uma expressão única desse conceito, dizendo:
É uma coisa arriscada orar, e o perigo é que nossas
próprias
orações se intrometam entre Deus e nós. O bom na oração não é orar, mas ir
diretamente a Deus. Se dizer suas orações for um
obstáculo à oração, elimine isso! Deixe Jesus orar. Agradeça a
Deus por Jesus estar orando. Esqueça de si mesmo. Entre na oração de Jesus. Deixe que
ele
ore em você... A melhor maneira de orar é parar! Deixe que a oração ore dentro de
você, quer você tenha conhecimento ou não. Isso significa uma profunda
consciência de nossa verdadeira identidade interior... (que) pela graça nós somos
Cristo. Nossa relação com Deus é a de Cristo com o Pai no Espírito10.
Essa obliteração
do eu, para que o Espírito de Jesus possa orar em nós e amar em nós,
não é confinada apenas aos momentos de oração. Como disse Julian Green, "Não
se tem um coração para seres humanos e outro para Deus. Aí está o
problema". Aprender gradualmente os bloqueios que erguemos
a seu amor, e amar o suficiente para remo-vê-los (ou para
permitir que sejam removidos), confiar no amor de Deus
e se entregar a esse amor — tudo isso deve encontrar
paralelos em nossa vida diária, onde lentamen-te
aprendemos a escolher, repetidas vezes, nos dar para os outros em vez de pegar para nós
mesmos.
Citando Merton novamente,
"A contemplação está fora. de questão para os que não tentam cultivar a
com-paixão pelos outros". Essa compaixão deve se estender até mesmo — e especialmente — a nós mesmos quando nossa
escuridão nos é revelada, pois negá-la ou irritar-se com ela é,
uma vez mais, a reação autoperpetuadora do falso eu.
Em livros escritos a respeito de santos
e místicos, a contemplação tem sido associada com tanta
freqüência a fenômenos extraordinários e, às vezes, mesmo
bizarros, que provavelmente nem temos idéia de quantos contem-plativos
verdadeiros encontramos à nossa volta, escondi-dos até
deles mesmos. O estereótipo do contemplativo como uma
pessoa passiva, retraída, sonhadora e às vezes reprimida é também uma
caricatura, pois a contempla-ção exige uma
capacidade de sentir paixão, além de um amor ardente pela vida. Escrever sobre a contemplação, com sua terminologia por vezes estranha (as
"noites escuras", a aridez
dos sentidos, abandono, graças místi cas etc.), envoive o risco de
que ela pareça não estar relacionada à vida comum e às pessoas comuns. Mas Deus é "comum!" Ele entrou em nossa humanidade e pode ser
encontrado nela, como a encarnação revela, e nós
e todas as coisas criadas subsistimos nele. Escreve Elizabeth Barrett Browning:
A terra está
cheia de céu,
E cada moita
comum está inflamada de Deus;
E apenas
aquele que vê tira seus sapatos;
Os demais sentam-se em torno dela e põem-se a arrancar amoras".
Além disso, a contemplação não é dependente de uma
clausura física (que de forma alguma é garantia de produção de contemplativos),
mas de uma "clausura do coração" que, sem ser
removido das relações amorosas e de um papel ativo no mundo, torna-se o "lar" de Deus, como Jesus prometeu:
Se alguém
me ama, observará minha palavra. e meu Pai o amará; nós viremos a ele e estabeleceremos
nossa morada .
Ser contemplativo, portanto, não se
limita a nenhum estilo de vida
específico, como o monástico ou o religio-;o, mas tem tudo a ver com escutar o chamado de
Deus 9ara se tornar
amor, em qualquer estado de vida em que nos
encontremos. Pois a contemplação não nos deixará menos
interessados pelo mundo em que vivemos; ao con-trário,
aumentará nosso interesse por ele.
Menos
interessados pelo mundo em que vivemos; ao con-trário, aumentará nosso
interesse por ele. De qualquer maneira, para crescer nessa (e em qual quer) oração e para aprofundar nossa relação
com Deus, é essencial que encontremos, a c,ada dia, uma quantidade substancial
de tempo para a quietude e silêncio interiores em oração e que permaneçamos
fiéis a isso como uma verdadeira prioridade. Alguma flexibilidade será necessá
ria, mas ela deve ter como princípio e centro nossa relação de amor com Deus.
Os enamorados não agendam um tempo para estar juntos — eles o fazem acontecer,
sabendo que nenhuma relação profunda é possível ou pode durar e crescer sem
isso. Pois "o Deus imanente pode ser descoberto, mas o Deus transcendente
precisa revelar-se"'2. Por meio de tal compromisso sério com a
oração,aprenderemos que uma "espera apaixonada", com nosso coração
desperto e atento Àquele que amamos, em fidelidade e constância, é da maior
importância, estejamos nós na luz ou na escuridão. E saberemos, como são
Bernardo nos assegura, que "apenas ele é Deus, que jamais é buscado em
vão, mesmo quando não pode ser encontrado"'3. Então, como orou são Paulo,
o próprio Deus, por meio de seu Espírito, nos possibilitará crescer em nos so eu interior, de forma que Cristo possa
viver em nosso coração pela fé, e, arraigados no amor e fundados no amor,
teremos a força para compreender a largura e o comprimento, a altura e a
profundidade de que conhecendo amor de
Cristo, que está além do conhecimento, poderemos ser
cumulados de toda a plenitude de Deus (Ef 3,16-19). Ele conclui:
Glória àquele que pode, por seu
poder que age em nós, fazer além, infinitamente além do que nós podemos pedir e conceber (v. 20).
Também fora dos momentos de oração, podemos aprender a "meditar"
sobre a vida, vivendo de forma refletida e não
na superfície das coisas: "ouvindo a vida" e reconhecendo como
Deus está lá, como ele está em toda a
criação, pessoas e acontecimentos de nossa vida cotidiana comum.
Para
aumentar essa percepção, uma prática muito útil é dedicar
algum tempo antes do final de cada dia a refletir e discernir
em oração como Deus está presente e atuante, talvez
disfarçado em coisas comuns, em momentos que passaram
por nós ou em circunstâncias que pareceram escondê-lo em vez de revelá-lo. Pois a
verdade é que estamos imersos em Deus, recebendo dele vida e ser
e amor a cada momento, tão constantemente quanto o ar que
respiramos durante toda a vida. O que falta é abrir nosso olho
interior e ver o que já está lá, crescer em nossa
consciência dessa realidade mais profunda, "pois é nele que
temos a vida, o movimento e o ser" (At 17,28). Nas
palavras bem-hurnoradas
de Meister
Eckhart, "Deus está sempre
em casa. Nós é que às vezes saímos para um passeio".
A contemplação desenvolverá essa consciência ao
desenvolver o dom da fé, que é nossa participação na visão de realidade de Deus.
Mesmo em pequenas coisas, há
muito que podemos fazer para cultivar e nutrir uma vida interior.
Como isso exige um mínimo de silêncio interior, podemos, por
exemplo, eliminar o barulho constante a que nos submetemos com rádios
do carro, TV etc.; podemos evitar distrações e agitações
desnecessárias e criar para nós ilhas vivificantes de
quietude e paz. Tudo isso irá contribuir não só para a
qualidade de nossa oração, mas para a qualidade de nossos
relacionamentos com família e amigos e todos os nossos contatos com os outros.
Poucos de nós precisam olhar
muito longe para encontrar oportunidades que desafiem nossa orientação
autocentrada, esse arquiinimigo do crescimento espiritual, pois elas são
abundantes em qualquer vida familiar ou de grupo. Na
verdade, nosso"guru" pode vir a ser a própria situação que estamos vivendo, em
que Deus nos pede para que consintamos
em entregar nossa vida aos outros. Muitas oportunidades de morrer para o falso eu, a
fim de que a vida amorosa de Cristo
possa crescer em nós, às vezes passam
despercebidas quando procuramos ou esperamos por elas apenas em ocasiões dramáticas ou heróicas. Teresa de Lisieux disse: "Claro que
gostaríamos de sofrer nobremente, em
grande estilo... Que ilusão! Sofrer pobremente,
isso é sofrimento! ". "Sofrer" significa submeter-se, suportar, agüentar. Nesse sentido, há
ocasiões em que não precisamos fazer
mais do que agüentar e suportar a
nós mesmos, com paciência e compaixão. Pois sentir pena ou raiva de nós mesmos e de nossas
imperfeições e falhas é apenas outra
faceta da não-aceitação da verdade pelo
falso eu e de sua ilusão de uma possível perfeição. Uma vez mais, o elemento de paradoxo está
presente nes sas
observações, pois toda oportunidade e ocasião de ocasiões em
que não precisamos fazer mais do que agüentar e suportar a nós
mesmos, com paciência e compaixão. Pois sentir pena ou
raiva de nós mesmos e de nossas imperfeições e falhas é
apenas outra faceta da
não-aceitação da verdade pelo falso
eu e de sua ilusão de uma possível perfeição nas
observações, pois toda oportunidade e ocasião de negar o falso
eu é o outro lado da moeda da liberdade e alegria. Esse é o modo de Jesus,
e essa é sua promessa. Assim, a contemplação
é, em última instância, um movimento
pela escuridão para a luz. Um conto rabínico ilustra algumas implicações disso com grande sensibilidade .
Um antigo rabino certa vez perguntou a seus alunos
como eles poderiam saber quando a noite havia acabado e o dia estava
retornando. "Poderia ser", perguntou um dos alunos,
"quando se pode ver um animal à distância e saber se ele é um
carneiro ou uni cachorro?" "Não", respondeu o rabino.
"Poderia ser", sugeriu outro, "quando se olha para uma árvore
à distância e pode-se saber se é uma figueira ou um
pessegueiro?" "Não", disse o rabino. "Bem, então como
é?", indagaram os alunos. "É quando se olha no rosto de
qualquer mulher ou homem e se vê que ela ou ele é sua irmã
ou irmão. Porque, se você não puder fazer isso, não importa
que hora seja, ainda é noite".
Ver cada mulher ou cada homem como irmã e irmão é
participar da visão de fé do místico, cuja intuição central é a
unidade e unicidade de TUDO, em Deus. É um efeito, pleno de graça, da
contemplação, que gradualmente transforma
nosso modo de ver a realidade. Essa visão
mística está longe de um sonho esotérico ou "nebuloso", pois certamente a sobrevivência de
nosso planeta depende de unia percepção universal dessa unidade e da interligação de todos os povos e de todo o
universo no Amor único que é Deus.
Na
expressão profunda de Karl Rahner, "O cristão do futuro será um místico, ou então
não será um cristão"