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domingo, 6 de setembro de 2009


MÍSTICA E PROFECIA NA VIDA DO PROFETA ELIAS


Sete aspectos básicos da Mística e Profecia no Carmelo

1. O Chamado

2. Aceitação da vocação

3. Denuncia

4. Anuncio

5. Testemunho

6. Dúvidas e Fraquezas

7. Continuidade

Cada um destes sete as­pectos será visto e analisado sob os seguintes sete ângu­los, para que apareça sua riqueza para a vida da Famí­lia Carmelitana na América Latina e Caribe

1. Na Bíblia: Elias e Maria

2. Nos Fundadores e Fundadoras

3. Nos Santos e Santas

4. Na Pastoral

5. Na Comunidade

6. Na história do Carmelo da AL

7. Na várias idades das pessoas

1. O Chamado, a vocação, a nova experiência de Deus

Deus chama sem parar

Elias aparece de repente, sem anúncio prévio, sem pai nem mãe. Ele vem de Tesbe na Transjordânia, e grita: “Vivo é o Senhor em cuja presença estou!” (1Rs 17,1). A intervenção constante da Palavra de Deus na vida de Elias obriga-o a sair do lugar onde se encontra para o lugar onde Deus o chama: "Vai-te daqui!" O chamado de Deus é um apelo, cujo eco percorre a vida de Elias, do começo ao fim. Deus chama sempre. Desde que se abriu à ação da Palavra de Deus, a vida de Elias é só movimento. Já não pode parar. Deve andar sempre. Sair de um lugar para outro:

"Vai-te daqui!"

para a torrente de Carit (1Rs 17,3),

para Sarepta na Sidônia (1Rs 17,9),

para encontrar o rei Acab no Carmelo (1Rs 18,1),

para ir na frente do rei até Jezrael (1Rs 18,46),

para o Monte Horeb(1Rs 19,7-8),

para sair da gruta (1Rs 19,11)

para continuar a missão e ungir Eliseu (1Rs 19,15-16),

para denunciar o rei na vinha de Nabot (1Rs 21,18-19),

para encontrar o mensageiro do rei (2Rs 1,3)

para encontrar o rei (2Rs 1,15)

para Betel (2Rs 2,2),

para Jericó (2Rs 2,4),

para o Jordão (2Rs 2,6)

para o céu num carro de fogo (2Rs 2,11).

Elias já não se pertence. Ele era conhecido pelo povo como alguém que, a cada momento, podia ser arrebatado pelo Espírito para realizar a obra de Deus (1Rs 18,12). Sua vida tornou-se uma despedida contínua. Um peregrinar constante em busca do que Deus queria dele. Elias viveu em estado permanente de saída, de êxodo. No fim, ele é arrebatado (2Rs 2,11).

O chamado atinge todos os setores da vida

O caminhar de Elias não é só geográfico, mas atinge também o nível pessoal do próprio Elias e o nível da comunidade à qual pertence. A palavra que o chama inicia, nele e por ele, um processo de mudança e de transformação que abrange todos os níveis da vida. Atinge o nível das instituições, tanto econômicas e sociais, como políticas e religiosas. Atinge o nível da cultura e dos valores básicos da vida. Atinge tudo. É um processo que continuou ao longo dos séculos e nos atinge hoje.

Os dois lados do chamado de Deus

Neste chamado permanente aparece, de um lado, a Palavra de Deus que chama. Ela atinge Elias em todos os momentos da sua vida, tanto os momentos de clareza, de coragem e de decisão, como os de confusão, de desânimo e de desencontro. De outro lado, está o próprio Elias, a pessoa chamada. Ele se abre para Deus, para que a Palavra tome conta dele e o leve por caminhos dos quais ele mesmo nem sempre conhece o trajetória nem percebe todo o alcance.

O itinerário místico de Elias na Tradição da Família Carmelitana

O que mais marca a Tradição Eliana no Carmelo é este caminhar constante do profeta em obediência à Palavra que o chama a cada momento. A Tradição Eliana da Família Carmelitana retomou esta imagem do caminho e começou a insistir no itinerário místico ou espiritual, realizado pelo profeta. Ela apresenta Elias como modelo do caminho que o carmelita ou a carmelita deve percorrer para realizar o ideal do Evangelho tal como este está expresso na Regra de Santo Alberto. A Subida do Monte Carmelo começa com o convite: "Saia daqui, dirija-se para o oriente e esconda-se junto ao córrego Carit, que fica a leste do Jordão" (1 R 17,3). Os primeiros Carmelitas comentavam dizendo que Carit significa Caridade: “Saia daqui e esconda-se na caridade!”

2. Aceitação do chamado, a nova consciência

Elias responde sem parar

Elias vai respondendo ao chamado e, invariavelmente, cada vez de novo, a resposta é sempre a mesma: "E Elias partiu e fez como Javé tinha mandado!" Ele deve caminhar:

atravessa o Jordão e vai para a torrente Carit (1Rs 17,5);

sai de Carit e vai para Sarepta (1Rs 17,10);

vai e se apresenta ao rei Acab (1Rs 18,2.15);

vai até à entrada de Jezrael (1Rs 18,46)

vai para o deserto onde deita desanimado (1Rs 19,4)

vai para o Monte Horeb (1Rs 19,8);

sai da gruta e coloca-se diante de Javé (1Rs 19.13)

vai e unge Eliseu como profeta (1Rs 19,19);

vai para encontrar Acab na vinha de Nabot (1Rs 21,19);

vai para encontrar-se com o mensageiro do Rei (2Rs 1,4);

vai para Betel (2Rs 2,2);

vai para Jericó (2Rs 2,4);

vai para o Jordão (2Rs 2,6-7);

vai e atravessa o Jordão (2Rs 2,8)

vai e é arrebatado (2Rs 2,11).

A resposta traz nova consciência e coragem

A aceitação da Palavra de Deus fez brotar em Elias uma nova consciência, nascida da certeza: “Vivo é o Senhor, em cuja presença estou!”. Elias não é um profeta da corte do rei Acab como Natan era da corte de Davi (1Rs 1,32; 2Sm 7,1-3) e de Salomão (1Rs 1,38). Elias é o primeiro profeta que, a partir da sua experiência de Deus, atua com independência e liberdade frente ao poder político e religioso do rei. A experiência de Deus gerou nele uma liberdade interior que lhe dava força para enfrentar as ameaças do Rei (1Rs 18,18), para convocar o povo e criticar seus desvios (1Rs 18,19-21). Dava coragem para aceitar o desafio dos profetas de Baal no Monte Carmelo (1Rs 18,19.25) e para denunciar o crime de Acab e Jezabel que assassinaram Nabot e lhe roubaram a vinha (1Rs 21,18-19).

A aceitação da Palavra de Deus em sua vida também o sustentou na hora do medo, da dúvida e da fuga. Orientou-o na caminhada pelo deserto, quarenta dias e quarenta noites (1Rs 19,5-8). Foi luz para ele na escuridão: escuridão luminosa. Ajudou-o a escutar a voz de Deus no silêncio de todas as vozes: silêncio sonoro (1Rs 19,11-12).

Um resumo da resposta de Elias ao chamado de Deus

“Então surgiu o profeta Elias como um fogo, e a sua palavra queimava como tocha. Fez vir contra eles a fome e, por causa de seu zelo, os reduziu a pequeno número. Por ordem do Senhor, ele fechou o céu e, por três vezes, fez descer o fogo. Elias, como você se tornou famoso com seus prodígios! Quem pode orgulhar-se de ser igual a você? Você fez um homem se levantar da morte e sair do mundo dos mortos, por ordem do Altíssimo. Você levou reis à ruína e tirou do leito homens ilustres. Você ouviu censuras no Sinai e decretos de vingança no Horeb. Você ungiu reis como vingadores, e profetas para lhe sucederem. Você foi arrebatado num turbilhão de fogo, num carro puxado por cavalos de fogo”. (Eclo 48,1-9)

Este caminhar tem o seu ponto de partida: a situação de injustiça que pede denúncia. Tem o seu objetivo: anunciar a Boa Nova de Deus e refazer a Aliança. Tem a sua característica: o testemunho que revela a presença do Espírito. Tem as suas fraquezas: as dúvidas que pedem discernimento. Tem a sua continuidade: horizonte aberto numa comunidade orante e profética. Este caminhar, motivado pela Palavra, era o espelho onde os primeiros carmelitas reencontravam o ideal de suas vidas, até hoje.

3. Ponto de partida: a situação de injustiça que pede denúncia

A experiência profunda de Deus iluminou a realidade e gerou consciência crítica em Elias para ele poder perceber e denunciar as injustiças. Ela o levou a lutar pela justiça e pela paz. Nesta luta, o que aparece não é só a situação de injustiça, na qual o povo era obrigado a viver, mas também a situação pessoal do próprio Elias com suas limitações. E além disso, na época do cativeiro da Babilônia, foi a recordação da luta de Elias que ajudou o povo exilado a encontrar a saída do cativeiro.

A situação de injustiça que pede denúncia

O profeta Elias atuou na época do rei Acab (874-853 aC). O resumo do governo de Acab (1Rs 16,29-34) oferece o quadro de referências para situar a ação do profeta Elias. São três as conseqüências negativas da política do rei Acab: 1. O desprezo pela vida: o povo voltou a sacrificar seus filhos aos ídolos (1Rs 16,34). 2. A quebra da Aliança: abandonaram Javé e seguiram outros deuses (1Rs 16,30-33). 3. O sistema injusto da monarquia: apoiados no direito do rei (cf. 1Sam 8,11-18), Jezabel e Acab mentiram, roubaram e mataram (1Rs 16,30-31; 21,7-19). A ação de Elias vai caracterizar-se (1) pela defesa da vida do povo, (2) pela restauração da Aliança do povo com Javé, (3) pela denúncia das injustiças da monarquia.

A situação pessoal do profeta com suas limitações

Elias não aparece como um herói, mas como um homem comum, “fraco como nós" (Tg 5,17), que vive em busca de Deus. Às vezes, ele reage com força e denuncia sem medo as injustiças. Outras vezes, ele não vê mais futuro, e foge desanimado: "Quebraram a aliança, derrubaram os altares, mataram os profetas. Só eu sobrei, e até a mim eles querem matar!" (1Rs 19,10.14). A fraqueza o dominou, ele teve medo e fugiu (1Rs 19,3). Sua motivação e visão não coincidiam com a motivação e a visão do próprio Deus. Ele tinha que sair desta situação de imperfeição e passar por uma purificação, por uma Noite Escura. É esta caminhada purificadora em direção a Deus que a Tradição Eliana da Família Carmelitana procurou descrever e comentar no Liber Institutionis Primorum Monachorum (Livro da Instituição dos Primeiros Monges).

A situação do povo no cativeiro da Babilônia e a história de Elias.

No tempo do exílio da Babilônia (587-538 aC), o povo encontrou na história de Elias uma luz para entender e avaliar melhor sua própria situação. Os exilados gemiam no cativeiro. Eles interpretavam sua situação como um castigo de Deus (Lm 1,12.14; 2,1) e diziam: “Deus nos abandonou!” (Is 40,27; 49,14). Estavam de volta na mesma terra, de onde Abraão havia saído, mais de mil anos antes. O cativeiro parecia o mesmo fracasso da aliança como no tempo de Elias. E o povo se perguntava: "Por que tudo isto nos aconteceu? Quem é o culpado?" Uns diziam: o culpado é o rei, a monarquia! Outros diziam: o culpado são os (falsos) profetas que contribuíram para levar o povo à ruína (Jr 28,1-17). "Quem é o culpado da desgraça do povo: o rei ou o profeta?" Esta pergunta dava atualidade à história de Elias, pois nela o Rei Acab acusa o Profeta Elias (1Rs 18,17), e o Profeta acusa o Rei (1Rs 18,18). Ajudado e esclarecido pelas informações a respeito da atuação do profeta Elias contra as injustiças de Acab e Jezabel, o povo exilado descobriu que o culpado era e continuava sendo o sistema da monarquia que tinha manipulado a religião e a imagem de Deus em seu próprio favor (1 R 18,20-24.39). O Rei que para o povo era o "ungido", o messias, na realidade era "a ruína de Israel" (1 R 18,18).

A situação de onde Elias deve partir era uma situação de crise que se manifestava em todos os níveis da vida: econômico, social, político, ideológico, cultural, religioso. Foi nesta situação de crise que a Palavra de Deus se fez presente na vida do povo, chamando Elias: "Saia daqui, dirija-se para o oriente e esconda-se junto ao córrego Carit, que fica a leste do Jordão" (1 R 17,3-4). Chama a todos nós: “Saia do lugar onde está e esconda-se na Caridade!”

4. Objetivo: anunciar a Boa Nova de Deus e refazer a Aliança

Elias revela a Boa Nova de Deus ao povo.

No Monte Carmelo, Elias enfrentou os profetas de Baal e denunciou a falsa imagem de deus que eles divulgavam (1Rs 18,27-29). A denúncia dos erros e das injustiças era apenas um lado da ação profética. O outro lado era o anúncio da Boa Nova do Deus vivo e verdadeiro presente no meio do povo. Pela sua atuação, Elias conseguiu levar o povo a escolher Javé como o seu Deus: "Javé! Ele é Deus!"(1 R 18,39).

Elias refaz a história e cria um novo começo

Elias volta às origens do povo em busca de Deus, refaz a história, cria um novo começo

O Profeta Elias

1. Travessia

Atravessa o Jordão a pé enxuto(2R 2,8).

2. Deserto

Vai para o deserto de Karit e Horeb (1R 17,2;19,1-8).

3. Alimentado no deserto

É alimentado com água, carne e pão (1R 17,6; 19,5-8)

4. Longa caminhada

Alimentado pela comida de Deus, ele anda 40 dias e 40 noites pelo deserto (1R 18,8).

5. As doze tribos

Refaz o altar das doze tribos (1 R 18,30-31) e, no fim, restabelecerá as doze tribos (Ecli 48,10).

6. Partilha

Junto à viúva, ele insiste na partilha e, assim, criou abundância (1 R 17,10-16),

7. Encontro com Deus

Na Montanha de Deus, Horeb, ele encontra Deus (1R 19,8-13),

O Povo no deserto

1. Travessia

Atravessa o Mar a pé enxuto (Ex 14,16.22).

2. Deserto

Vai para o deserto do Sinai/Horeb.

3. Alimentado no deserto

É alimentado com carne, água e pão (Ex).

4. Longa caminhada

Alimentado pela comida de Deus, o povo caminha 40 anos pelo deserto.

5. As doze tribos

Saindo do Egito, as doze tribos se reorgan­izaram formaram o Povo de Deus (Núm 1-4)

6. Partilha

O maná partilhado criou abundância e garantiu a sobrevivência (Ex 16,1-23).

7. Encontro com Deus

No monte Sinai/Horeb, o povo encontra com Deus e

nasce como povo (Ex 19.1-9). .

Elias refaz a Aliança

Elias é o homem da Aliança. É neste ponto da renovação da aliança que a Bíblia coloca todo o peso da ação de Elias. O reencontro com Deus no Monte Horeb é o novo começo para a vivência da aliança. Elias destrói o altar de Baal, junta doze pedras e com elas faz um novo altar, símbolo da renovação da Aliança (1Rs 18,30-32). Renasceu o povo! Elias insiste na observância da aliança e denuncia a infidelidade às suas cláusulas (1R 18,18-21; 19,10). No momento de escolher novamente a Javé como o seu Deus, o povo se comprometeu a observar as cláusulas da aliança como tinha feito no início ao pé do monte Sinai/Horeb (Ex 24,1-8).

A lição que o povo do cativeiro da Babilônia encontrou em Elias

Na época dos Reis, a denúncia profética enfrentava o próprio Rei e seu sistema, cobrava deles a justiça e criticava a desigualdade social. Depois do cativeiro da Babilônia, o povo perdeu a sua independência e ficou perdido como pequena comunidade étnica no meio do império Persa. Agora, a renovação da Aliança e a luta pela justiça e pela Paz insistem na reconstrução da comunidade ao redor da sua fé em Javé. Devem ser comunidade que não permite desigualdade social. A fé no Deus libertador se expressa concretamente na solidariedade entre irmãos que não admite pobre dentro da comunidade. A comunidade se torna amostra e irradiação do Projeto de Deus.

Elias, "homem fraco como nós"(Tg 5,17), mas obediente a Deus, refaz a história do povo. É este mesmo ponto da renovação da aliança que pode ajudar-nos a enriquecer a Tradição Eliana da Família Carmelitana para os nossos dias.

5. Característica: o testemunho orante revela o fogo do Espírito

Elias, testemunho vivo de Deus

Elias foi reconhecido pela viúva como "Homem de Deus" (1 R 17,24; 2 R 1,9). Ele era um místico. Falava com autoridade, porque sua palavra tinha raiz na vida e tornou-se Palavra de Deus para os outros que, por sua vez, obedeciam a Elias: a viúva de Sarepta (1 R 17,15); Abdias, o chefe do palácio (1 R 18,14-16), o povo (1 R 18,24.30). O próprio Deus passou a ser conhecido como o "Deus de Elias"(2 R 2,14).

O testemunho de Elias anima a esperança do povo

Naquela seca de três anos, o rei só pensava na vida dos cavalos e dos jumentos; não pensava na vida do povo que morria de fome por causa da seca (1 R 18,5). Jezabel perseguia e matava os profetas de Javé e queria matar o próprio Elias (1 R 19,2). Elias, pela sua oração trouxe de volta a chuva que acabou com a seca (1 R 18,42-45) e animava a esperança do povo defendendo a vida em nome de Deus. Promovendo a partilha, garantiu o alimento para a viúva e sua família (1 R 17,14-16). Ressuscitou o filho da viúva e mereceu o título de “Homem de Deus” (1 R 17,23). Defendeu a causa de Nabot, assassinado pela injustiça do rei e da rainha (1 R 21,17-20).

Elias transforma o conflito em fonte de espiritualidade

No momento de aceitar a Palavra de Deus, Elias deixa o conflito entrar em sua vida. O conflito nascia de dupla fonte: da situação geral de infidelidade à Palavra de Deus e da vontade de Elias de ser fiel à esta Palavra que o chamava a sair da situação. Elias viveu em conflito permanente, e envolvia outros no conflito. São muitos os conflitos: com a viúva, insistindo na partilha do pão (1 R 17,10-12); com Abdias, o empregado do rei, enviando-o para junto do rei (1 R 18,9-14); com o rei e a rainha, enfrentando-os no Monte Carmelo (1 R 18,16-19) e na vinha de Nabot (1 R 21,17-19); com o povo, desafiando-o a escolher o Deus verdadeiro (1 R 18,20-24); com os profetas de Baal, desafiando-os para o julgamento (1 R 18,25-29); consigo mesmo e com as suas idéias sobre Deus, pois não encontra Deus no vento, no fogo e no terremoto (1 R 19,11-12); com Deus, queixando-se de estar só e perdido, sem saber como continuar a luta (1 R 19,4); com os militares que o desafiavam a comparecer diante do rei (2 R 1,9.11); com Eliseu chamando-o para segui-lo (1 R 18,19-20) e não permitindo que caminhasse com ele (2R 2,2.4.6). Todos estes conflitos são expressão e manifestação do grande conflito básico: caminhar do lugar onde está para o lugar onde Deus o quer

Elias, o homem do espírito e do fogo.

O livro do Eclesiástico introduz a figura de Elias com estas palavras: "Elias surgiu como um fogo, sua palavra queimava como uma tocha" (Ecli 48,1). Diz ainda que "por três vezes fez descer o fogo do céu" (Eclo 48,3; 2 R 1,10.12). O final da vida de Elias é descrito assim: "Foste arrebatado num turbilhão de fogo, num carro puxado por cavalos de fogo" (Ecli 48,9). O fogo é expressão da ação do Espírito (cf At 2,3-4). O arrebatamento no carro de fogo é realizado pelo Espírito de Javé (2 R 2,16). Abdias diz a Elias: "O Espírito de Javé te transportará não sei para onde" (1 R 18,12). Na opinião do povo, Elias podia ser arrebatado a cada momento pelo espírito de Deus. Elias entrou na história como o homem do fogo e do Espírito! Assim ele aparece no Apocalipse (Apoc 11,5-6.11-12).

Elias, o homem da oração.

Elias foi capaz de realizar tudo isto porque estava ligado a Deus pela oração: "Vivo é o Senhor em cuja presença estou" (1 R 17,1; 18,15). A oração era o espaço onde experimentava a presença de Deus. A oração de Elias sempre chamou a atenção dos carmelitas. Ele reza de várias maneiras: Ele reza e consegue de volta a vida do filho da viúva (1 R 17,20). Critica a reza dos profetas de Baal (1 R 18,27), e reza, para que Deus se manifeste ao povo no Monte Horeb (1 R 18,36-37). Reza sete vezes e insiste, até que apareça um sinal de chuva (1 R 18,42-43). Reza para que o fogo desça do céu sobre os militares que querem prendê-lo (2 R 1,10.12). Reza queixando-se (1 R 19,10.14) e pedindo a morte (1 R 19,4). Confronta-se com Deus na Brisa Leve (1 R 19,12).

6. Fraquezas e dúvidas pedem discernimento, encontram luz na Brisa Suave

A fraqueza aparece na fuga

A dimensão profundamente humana da ação profética de Elias se mistura com a mística da noite escura. Ele foge com medo de ser morto por Jezabel, cai debaixo de uma árvore e diz: “Basta, Javé! Quero morrer. Não sou melhor que meus pais!” (1Rs 19,4). Ele só pensa em comer, beber e dormir (1R 19,6).Atravessando o deserto, Elias se aproxima da montanha de Deus, o Horeb (1 R 19,8). Lá ele ouve a pergunta: "Elias, que fazes aqui?" E ele responde: "O zelo por Javé dos exércitos me consome, porque os israelitas abandonaram tua aliança, derrubaram teus altares, mataram teus profetas. Sobrei somente eu, e eles querem me matar também" (1 R 19,10.14).

A dúvida se manifesta nas palavras

Existe uma contradição entre a resposta e a realidade vivida, entre o discurso e a prática. O olhar de Elias está perturbado por algum defeito que o impede de avaliar com objetividade a realidade tal como ela é. Conforme o discurso, ele está cheio de zelo; mas a prática mostra um homem medroso que foge (1R 19,3-4). Conforme o discurso, ele é o único que sobrou; mas havia sete mil (1R 19,18). Conforme o discurso, ele sabe analisar o fracasso da nação; mas na prática não sabe analisar o seu próprio fracasso. Elias não se dá conta de que sua situação de derrota é o lugar onde Deus o atinge. Qual o defeito nos olhos de Elias? A resposta está na história da Brisa Leve.

A escuridão desaparece na noite escura da Brisa Leva

A expressão "Brisa Leva" traduz o hebraico: qôl demamáh daqqáh. Literalmente: voz de calmaria suave. A palavra hebraica, demamáh, usada para indicar a calmaria vem de uma raiz, DMH, que significa parar, ficar imóvel, emudecer. A brisa leve indica algo, um fato, que, de repente, faz emudecer, faz a pessoa ficar calada, cria nela um vazio e, assim, a dispõe para escutar; provoca nela uma expectativa. Trata-se de algo que, de repente, fez desintegrar tudo que Elias pensava sobre Deus até àquele momento. Ela indica o impacto de algum fato que o obrigou a uma mudança radical e o levou a uma visão totalmente nova das coisas. Qual foi a "brisa leve"? O texto sugere que foi a descoberta dolorosa de que Javé, o Deus de Israel, já não estava nem no vento, nem no terremoto, nem no raio! (Os sinais tradicionais da manifestação de Deus, cf Ex 19,16). Deus já não era como ele, Elias, o imaginava. Deus se fez presente na ausência! A luz apareceu na escuridão! A voz de calmaria suave é o silêncio de todas as vozes! A "Brisa Leve" é a noite escura da experiência mística; é o sair de si para se encontrar. Ela derrubou tudo e abriu o espaço para uma nova experiência de Deus que, aos poucos, foi penetrando na vida de Elias e o levou a redescobrir sua missão na reconstrução da Aliança.

Elias, o homem do deserto.

A experiência do deserto marcou a vida de Elias. Ele enfrentou o deserto de Karit (1 R 17,5), o deserto de Beersheba (1 R 19, 4), o deserto de Horeb (1 R 19,8). Deserto, não só como lugar geográfico, mas também como experiência interior. Tanto a profecia como a mística são elementos constitutivos da missão do povo de Deus que se refazem no deserto. O deserto era o lugar da origem do povo, da volta às fontes, onde se recuperavam a memória e a identidade; o lugar para onde o povo escapou para a liberdade, onde morreram os restos da ideologia do faraó, e onde o povo se reorganizou; o lugar da longa caminhada, quarenta anos, onde morreu uma geração inteira; o lugar do murmúrio, da luta, da tentação e da queda; o lugar do namoro, do noivado, da experiência de Deus, da oração. O deserto fez Elias se reaproximar da origem do povo. Os 40 dias lembram os 40 anos. No deserto Elias experimentou os seus próprios limites. Não chegou a perder a fé, mas já não sabia como usar a fé antiga para enfrentar a situação nova. Foi o momento de viver e sofrer a crise do próprio povo. Por isso mesmo, ao superar a sua crise pessoal e ao reencontrar a presença da Deus para si mesmo, ele estava redescobrindo o sentido de Deus para a vida do povo. A experiência do deserto marcou para sempre a vida dos primeiros eremitas do Monte Carmelo. Saindo da Palestina, levaram o deserto consigo, dentro de si. Vivendo na Europa, reencontraram o deserto, não na vida regular dos grandes mosteiros independentes e auto-suficientes, longe das cidades, mas sim na vida pobre dos Mendicantes nas periferias da grandes cidades.

7. Continuidade: horizonte aberto numa comunidade orante e profética

Horizonte aberto.

A história de Elias não apresenta um projeto pronto a ser implantado. Indica um caminho a ser percorrido na fé, na fidelidade e na criatividade. Caminho que vai aparecendo aos poucos, na medida em que Elias se põe a caminhar: Carit, Sarepta, Samaria, Monte Carmelo, Yisrael, Beersheba, Horeb, Eliseu, Betel, Jericó, Jordão,..... Caminhando, Elias não vê tudo claro, não sabe tudo o que deve fazer, nem tem visão total de todo o projeto de Deus. Ele só vê até à próxima curva. Muitas vezes, não sabe como andar, nem para onde. Só sabe que deve andar. Só enxerga um passo na frente. O resto é neblina, deserto, noite. A palavra se faz clara na medida em que ele tem a coragem de praticá-la. "A luz se faz é na travessia!". Viver no provisório, até o fim. O caminho só aparece caminhando nele. Elias é como Jesus que, a cada momento, faz aquilo que o Pai lhe mostra que é para fazer (cf João 5,30; 8,28). Na medida em que obedece e anda, Elias vai descobrindo o que Deus pede. Descobre aos poucos a sua própria missão, a sua própria identidade. A sua fidelidade, às vezes cega e muda, vai gerando luz para perceber a Palavra que o chama. O começo de um processo de transformação

Continuidade da missão na comunidade orante e profética.

No monte Carmelo, ele reuniu o povo, refez o altar com doze pedras, renovou a aliança e reconstruiu o povo. Nasce um novo relacionamento entre as pessoas, fundado no relacionamento renovado com Javé, o Deus do povo. Ao redor de Elias foi se formando um grupo de discípulos profetas. Obadias dizia que salvou a vida de dois grupos de 50 profetas quando Jezabel procurava matar os profetas de Javé (1Rs 18,13). No fim da vida de Elias aparecem ao redor dele comunidades de profetas em Betel (2Rs 2,3) e em Jericó (2Rs 2,5.7). Talvez seja por isso que a esperança do povo com relação ao retorno de Elias era a reconstrução da vida em comunidade: “Ele há de fazer que o coração dos pais volte para os filhos e o coração dos filhos para os pais; e assim, quando eu vier, não condenarei o país à destruição total (Ml 3,24; Eclo 48,10cf. Lc 2,17). Eliseu pediu a Elias: "Que me seja dada uma dupla porção do teu Espírito" (2 R 2,9). O Espírito de Elias repousou sobre Eliseu, seu sucessor (2 R 2,15). O discípulos o reconheceram na hora em que Eliseu, usando a capa de Elias separou as águas do rio Jordão (2 R 2,14). A missão continua nas comunidades proféticas e orantes dos profetas e profetisas.

A nova experiência de Deus que se irradia a partir de Elias.

Elias experimentou a total gratuidade de Deus e da sua presença. Deus se fez presente na Brisa Leve não por mérito de Elias. Pelo contrário! Elias experimentou a presença libertadora e restauradora de Deus no momento exato em que experimentava o seu próprio nada e a sua falta absoluta de qualquer título de glória. Eles deixou Deus ser Deus!

Elias pensava ser ele o único a defender a aliança e a causa de Deus (1Rs 19,10). E experimentou que, apesar dos altares destruídos e apesar da aliança quebrada e dos profetas assassinados, a causa de Deus não estava perdida. Pelo contrário! Não é Elias quem defende a Deus, mas é Deus quem acolhe, sustenta e defende o pobre do Elias! É desta certeza de Deus que renasce em Elias a coragem. Ele reencontra o sentido da vida e da luta.

Elias experimentou que Deus é livre! Deus não obedeceu a Elias, pois Ele não se manifestou na tempestade, nem no raio nem no tremor da terra. Deus não se sente obrigado a obedecer aos critérios que a Tradição tinha estabelecido para o povo poder reconhecer e controlar a sua presença. Esta liberdade de Deus é a raiz da nossa liberdade e da nossa libertação. Deus não pode ser usado por ninguém, nem pelos profetas de Baal nem pelo profeta Elias. Deus é livre!

Esta nova experiência de Deus dá olhos novos, abre um novo horizonte e devolve a Elias a liberdade de ação, a vitória sobre o medo, a vontade de continuar a luta pela causa de Deus em defesa da vida do povo, e dá a ele, ao mesmo tempo, a consciência clara de não ser o dono da luta nem o único a defender a causa de Deus.

Concluindo: as várias dimensões da Tradição Eliana

1. Malaquias espera o Homem da Aliança (Ml 3,23-24):

2. Tiago resume-o como Homem da oração (Tg 5,17-18).

3. A tradição rabínica acentua o Homem do deserto

4. O Apocalipse focaliza o Homem do testemunho (Apoc 11,3.5.6)

5. Lucas espera o Homem da aliança que reorganiza o povo (Lc 1,17)

6. Sirach valoriza o Homem obediente à Palavra (Ecli 48,1-11)

7. A Tradição Carmelitana acentua o Homem do Caminho


TEMA II

MÍSTICA E PROFECIA NA VIDA DE MARIA, A MÃE DE JESUS

Os sete aspectos básicos da Mística e Profecia no Carmelo

1. O Chamado

2. Aceitação da vocação

3. Denuncia

4. Anuncio

5. Testemunho

6. Dúvidas e Fraquezas

7. Continuidade

Cada um destes sete aspectos pode ser visto e analisado sob os seguintes sete ângulos, para que apareça sua riqueza para a vida da Família Carmelitana na América Latina e Caribe

1. Na Bíblia

2. Nos Fundadores e Fundadoras

3. Nos Santos e Santas

4. Na Pastoral

5. Na Comunidade

6. Na história do Carmelo da AL

7. Na várias idades das pessoas

A Bíblia fala muito pouco de Maria, e Maria, ela mesma, fala menos ainda. Os textos do NT sobre Maria são todos dos evangelhos, menos três: Gálatas (Gl 4,4), Atos (AT 1,12-14), Apocalipse (Ap 12,1-17). Ao todo, a Bíblia conservou apenas sete palavras de Maria:

1ª Palavra: "Como pode ser isso se eu não conheço homem algum!" (Lc 1,34)

2ª Palavra: "Eis aqui a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra!" (Lc 1,38)

3ª Palavra: "Minha alma louva o Senhor, exulta meu espírito em Deus meu Salvador!" Lc 1,46-55)

4ª Palavra: "Meu filho porque nos fez isso? Teu pai e eu, aflitos, te procurávamos" (Lc 2,48)

5º Palavra: "Eles não têm mais vinho!" (Jo 2,3)

6ª Palavra: "Fazei tudo o que ele vos disser!" (Jo 2,5)

7ª Palavra: O silêncio ao pé da Cruz, mais eloqüente que mil palavras! (Jo 19,25-27).

Cada uma destas sete palavras é como uma janela que permite olhar para dentro da vida de Maria e descobrir nela aqueles sete aspectos:

1) Como o chamado de Deus chegava até Maria

2) Como Maria respondia ao chamado e o colocava em prática

3) Como a experiência de Deus levava Maria a denunciar o mal

4) Como Maria anunciava a Boa Nova de Deus aos irmãos e às irmãs

5) Como Maria dava testemunho da presença de Deus

6) Como Maria enfrentava as dúvidas e fazia discernimento

7) Como Maria criava continuidade realizando a sua missão.

Mesmo correndo o risco de algumas repetição, vamos olhar nestes sete espelhos da nossa vida:

1) Como o chamado de Deus chegava até Maria

O chamado de Deus chegava a Maria não em forma de palavras da Bíblia, pois naquele tempo não havia Bíblia nas casas do povo. Só havia Bíblia na sinagoga. Provavelmente, Maria nem sabia ler. Mas ela participava dos encontros da comunidade na sinagoga aos sábados, onde se fazia a leitura orante da Palavra de Deus. Depois, em casa, o povo ruminava a Palavra que tinham ouvido em comunidade e, com ela, procurava iluminar a vida para descobrir nela o chamado de Deus. Eis alguns dos momentos, registrados na Bíblia, que nos deixam entrever como o chamado de Deus chegava até Maria:

1. Através da visita do anjo Gabriel

O anjo Gabriel a saudou: “Ave, cheia de graça, o senhor está contigo!” (Lc 1,28). Maria ficou admirada com esta saudação. O anjo disse para não ter medo e explicou que ela seria a mãe do messias. Maria é realista. Ela confere a proposta do anjo com suas reais possibilidades e diz: “Como pode ser isto, pois não conheço homem!” (Lc 1,34). Novamente o anjo explica. Assim, aos poucos, o chamado de Deus vai se esclarecendo para Maria. Foi assim que ela descobriu o apelo de Deus nas palavras do anjo: conversando e dialogando.

2. Através da notícia da gravidez de Isabel

A visita do anjo Gabriel a Maria é marcada pela necessidade de ajuda a ser dada a Isabel. No início da visita se diz: “No sexto mês” (Lc 1,26), isto é, o sexto mês da gravidez da Isabel. E no fim da visita, se diz que Maria levantou e foi às pressas para a serra da Judéia (Lc 1,39) onde moravam Isabel e Zacarias. Maria ficou três meses com Isabel (Lc 1,56). Maria leu o apelo de Deus na notícia da gravidez da sua prima Isabel, uma senhora já de idade, com parto de risco à vista

3. Através das ordens injustas do império

O recenseamento decretado pelo imperador de Roma (Lc 2,1-5) fez com que Maria e José tiveram de viajar desde Nazaré no Norte até Belém no Sul. Mais de 100 km! Maria, grávida de nove meses, procura estar com José, seu marido, e o acompanha nesta longa viagem. Tempos depois, a matança das crianças de Belém, decretada por Herodes, empregado do império romano, obrigou-os a fugir para o Egito (Mt 2,13-23). Maria sabia descobrir e acolher os apelos de Deus nos fatos da vida, mesmo quando estes eram incômodos e injustos e a faziam sofrer.

4. Através do filho que se perdeu no templo

Voltando para Nazaré, no fim do primeiro dia da viagem, Maria e José descobrem que Jesus não estava na caravana (Lc 2,41-45). Esta situação os obriga a voltar até Jerusalém para encontrar o filho perdido. Foram três dias de busca até reencontra-lo no meio dos doutores (Lc 2,45). Era um apelo de Deus buscar até reencontrar o filho.

5. Através das necessidades das pessoas

Na festa de casamento em Caná, Maria descobre que não havia vinho suficiente para a festa, e toma a iniciativa de encontrar uma solução para o problema. Ela se dirige a Jesus e diz: “Eles não tem mais vinho!” (Jo 2,3). Foi na necessidade do casal de noivos, que Maria percebeu um apelo de Deus.

6. Através do sofrimento do filho

O evangelho de João relata como Maria se mantém em pé perto da Cruz para estar junto do filho (Jo 19,25-27). Jesus pendurado na cruz é um apelo de Deus para Maria. Como Abraão que, em silêncio total oferece seu filho Isaque (Cn 22,1-14), assim Maria em total silêncio oferece seu filho ao Pai.

7. Através da comunidade no Cenáculo

Depois da Ascensão de Jesus, Maria se reúne com os discípulos e discípulas e permanece com eles durante nove dias, rezando, todos unidos no mesmo sentimento, em preparação para a vinda do Espírito de Jesus (At 1,14). Ela percebe e acolhe o apelo de Deus que a convida para viver integrada na comunidade.

2) Como Maria respondia ao chamado e o colocava em prática

Nos capítulos 1 e 2 do seu evangelho, Lucas apresenta Maria como modelo de como as comunidades. devem acolher a Palavra de Deus: ruminá-la e encarná-la na vida; como aprofundá-la e fazê-la crescer; como deixar-se moldar por ela, mesmo quando não a entendem ou quando ela nos faz sofrer. A chave para ler assim estes dois capítulos é dada pelo próprio Lucas nestas palavras de Jesus: “Felizes são aqueles que ouvem a palavra de Deus e a põem em prática." (Lc 11,27-28). Vejamos como Maria ouve a Palavra de Deus e a coloca em prática:

1. Lucas 1,26-38: A Anunciação: "Faça-se em mim segundo a tua palavra!"

Depois que o anjo Gabriel esclareceu o significado da proposta de Deus, Maria não teve dúvida e disse: “Eis aqui a Serva do Senhor”. Ela se abriu e permitiu que a Palavra se encarnasse em sua vida. Saber abrir-se, para que a Palavra de Deus seja acolhida e se encarne em nós.

2. Lucas 1,39-45: A Visitação: "Bem-aventurada aquela que acreditou!"

Duas mulheres grávidas, Maria e Isabel se encontram e conversam sobre os dois filhos crescendo em seus seios. Nesta conversa tão comum e tão profundamente humana entre duas futuras mães, as duas experimentam e acolhem a presença da Palavra. Saber reconhecer e acolher a Palavra de Deus nos fatos da nossa vida.

3. Lucas 1,46-56: O Magnificat: “O Senhor fez em mim maravilhas!”

Quando a experiência de Deus é grande a ponto de ultrapassar a capacidade das palavras, então o recurso para expressar o que se vive é o canto e a poesia. Foi o que Maria fez no encontro com Isabel, quando as duas experimentaram a presença de Deus. O resultado é esse canto tão bonito do Magnificat. Saber rezar e celebrar tudo que acontece na nossa vida.

4. Lucas 2,1-20: O Nascimento: "Ela meditava sobre os fatos em seu coração"

Grávida de nove meses, Maria se encontra a caminho de Belém, dá à luz o seu filho numa estrebaria e usa a manjedoura dos animais como berço para o filho. Os primeiros convidados são os pastores, pessoas marginalizados na sociedade daquela época. A Bíblia informa que Maria meditava sobre estes fatos em seu coração (Lc 2,19). Saber ruminar os fatos da vida para poder descobrir neles todo o seu significado para nossa vida.

5. Lucas 2,21-38: A Apresentação: "Meus olhos viram a tua salvação!"

Maria vai ao templo para apresentar seu primeiro filho. Simeão, um senhor de idade, reconhece e acolhe a presença da Palavra de Deus e canta: “Meus olhos viram a tua salvação!” (Lc 2,30). Os muitos anos de vida purificaram os olhos do velho e ele reconhece o apelo de Deus num menino pequeno nos braços da mãe. O mesmo se diga de Ana, a profetisa (Lc 2,38). E Simeão avisa: "Uma espada vai atravessar sua alma". Saber ser fiel à Palavra mesmo quando ela se torna um “sinal de contradição” )Lc 2,34).

7. Lucas 2,39-52: Aos doze anos no templo: "Então, não sabiam que devo estar com o Pai?"

Os fatos fazem sofrer a Maria e ela desabafa: “Meu filho, por que você isto conosco?” Ela não entende a resposta que lhe foi dita pelo filho: “Por que me procurava? Então não sabia que devo estar nas coisas do meu Pai?” (Lc 2,49). É ruminando que ela procura descobrir o apelo de Deus neste fato doloroso da sua vida.

Estes dois primeiros capítulos do Evangelho de Lucas nos fazem sentir o perfume que envolve o nascimento e a infância de Jesus. Neles, o ambiente é de ternura e de louvor. Do começo ao fim, se louva e se canta a misericórdia de Deus que, finalmente, chegou para cumprir suas promessas. E Deus as cumpre a favor dos pobres, dos anawim, dos que souberam esperar pela sua vinda: Isabel, Zacarias, Maria, José, Simeão, Ana, os pastores.

3) Como a experiência de Deus levava Maria a denunciar o mal

1. Através do Cântico na casa de Isabel

No cântico de Maria (Lc 1,46-55) transparece uma consciência muito clara a respeito da situação de opressão em que o povo era obrigado a viver. Como os profetas Maria denuncia a desigualdade social que gera a pobreza, fruto da injustiça dos ricos. Ela diz: “Ele dispersa os soberbos de coração, derruba do trono os poderosos e eleva os humildes; aos famintos enche de bens, e despede os ricos de mãos vazias!” (Lc 1,51-53). Ela mesma já vive uma amostra do futuro quando diz: “O Todo-poderoso realizou grandes obras em meu favor: seu nome é santo, e sua misericórdia chega aos que o temem, de geração em geração. Ele realiza proezas com seu braço direito” (Lc 1,49-50). Foi o braço direito de Deus que realizou a libertação do povo do Egito. E Maria finaliza dizendo que assim se realizam as promessas de Deus: “conforme prometera aos nossos pais em favor de Abraão e de sua descendência, para sempre” (Lc 1,55).

2. Através da esperança que suscitou no povo perseguido

No Apocalipse aparece uma mulher em dores de parto, ameaçada de morte pelo dragão. A Mulher, Maria, a mãe de Jesus, simboliza a vida, a humanidade, o povo de Deus, as comunidades perseguidas pelo império romano. Simboliza tudo aquilo que fazemos, as pequenas e grandes lutas do dia-a-dia, para melhorar a situação da vida do povo. O Dragão simboliza o império romano, o poder do mal, a morte e os sistemas políticos e econômicos que oprimem e sufocam a vida.

O Dragão está diante da Mulher para devorar o menino que vai nascer. Luta desigual! Humanamente falando, a vida perde para a morte! Pois, o que pode uma mulher em dores de parto, uma pequena comunidade, um círculo bíblico, uma organização do bairro, contra o sistema neoliberal que hoje domina o mundo e ameaça desintegrar a vida no planeta? Mas Deus tomou posição a favor da vida! Evoca a profecia de Gênesis: “Eu porei inimizade entre você e a mulher, entre a descendência de você e os descendentes dela. Estes vão lhe esmagar a cabeça, e você ferirá o calcanhar deles". (Gn 3,15). A cabeça da serpente vai ser esmagada pela mulher, por Maria, a mãe de Jesus.

Deus intervém e defende o menino, defende a Mulher, defende a vida. O menino é Jesus, a descendência da Mulher (Gn 3,15). Ele nasce, vive, morre, ressuscita e sobe ao céu. Diz o Apocalipse: “Nasceu o Filho da Mulher. Era menino homem. Nasceu para governar todas as nações com cetro de ferro. Mas o Filho foi levado para junto de Deus e de seu trono” (Apc 12,5). Este versículo é a descrição mais breve da vida de Jesus! Uma única frase! A ressurreição de Jesus é o novo começo, a nova criação. Ela revela o poder com que Deus enfrenta a serpente, o Dragão, e protege o seu povo. Este era e continua sendo o fundamento da esperança e da coragem dos oprimidos!

3. Através da “Companhia de Maria” que denuncia toda hipocrisia

Na sociedade patriarcal dos judeus, as genealogias traziam somente os nomes dos homens. Por isso, surpreende o fato de Mateus ter colocado quatro mulheres ao lado de Maria entre os antepassados de Jesus: Tamar (Mt 1,3), Raab (Mt 1,5), Rute (Mt 1,5) Betsabéia (Mt 1,6) e Maria, a mãe de Jesus (Mt 1,16). Quem são estas quatro companheiras de Maria? As quatro são estrangeiras, conceberam seus filhos fora dos padrões normais e não satisfaziam às exigências das leis da pureza. Tamar, uma Cananéia, viúva, se vestiu de prostituta para obrigar Judá a ser fiel à lei e dar-lhe um filho (Gn 38,1-30). Raab, Cananéia, era uma prostituta de Jericó. Ela ajudou os israelitas a entrar na Terra Prometida e professou a fé no Deus libertador do Exodo (Js 2,1-21). Betsabea, uma Hitita, mulher de Urias, foi seduzida, violentada e engravidada pelo rei Davi, que, além disso, mandou matar o marido dela (2 Sm 11,1-27). Rute, uma Moabita, uma pobre viúva sem futuro, optou para ficar do lado de Noemi e aderiu ao Povo de Deus (Rt 1,16-18). Esta é a “Companhia de Maria”! Pelo seu modo de agir fora dos padrões tradicionais, estas quatro mulheres questionavam os padrões do comportamento da sociedade daquele tempo. Mas suas iniciativas pouco convencionais deram continuidade à linhagem de Jesus e trouxeram a salvação de Deus para todo o povo. Foi através delas que Deus realizou seu plano de salvação e enviou o Messias prometido. Realmente, o jeito de agir de Deus surpreende, faz pensar e denuncia a hipocrisia moralista!

4) Como Maria anunciava a Boa Nova de Deus

1. Colocando-se a serviço de Deus

Esclarecida pelo anjo Gabriel, Maria responde: “Eis aqui a serva do Senhor. Faça-se em mim segundo a tua palavra” (Lc 1,38). Para os pobres daquela época, a missão do Messias e do Povo de Deus não consistia em dominar os outros como Rei, Doutor, Juiz ou Sumo Sacerdote, mas sim em servir como tinha sido anunciado pelo profeta Isaías (cf. Is 41,8-9; 42,1-4; 49,1-6; 50,4-9; 52,13 a 53,12; 61,1-2). É servindo que Maria anuncia a Boa Nova e irradia a presença libertadora de Deus no meio do seu povo. Mais tarde, Jesus dirá: “Eu não vim para ser servido, mas para servir” (Mc 10,45). Aprendeu de Maria, sua mãe.

2. Visitando sua prima Isabel

O desejo de servir caracteriza a vida de Maria e a vida de tantas outras mães e donas de casas no mundo inteiro. Maria sai de casa e anda mais de 100 quilômetros, a pé, para ajudar sua prima Isabel, senhora já de idade que estava grávida e precisava de ajuda na hora do parto (Lc 1,39-41). E ficou com ela três meses, até a hora do parto (Lc 1,56).

3. Ajudando um casal pobre

Na festa de casamento em Caná (Jo 2,1-12), Maria percebe a falta de vinho. Festa de casamento em lugar pequeno como Caná, era festa de todos e de todas. Faltar vinho era fonte de vergonha para os donos da festa. Se faltava vinho era porque os noivos eram pobres. Maria intervém e consegue resolver o problema. Ela anuncia a Boa Nova do amor de Deus através dos seus atos de serviço amoroso aos pobres.

4. Assistindo ao Filho na hora da morte na Cruz

A mesma atitude servidora marca a presença de Maria ao pé da Cruz. Diante do poder romano que decidiu a morte de Jesus, ela não pode fazer nada. Faz o que está ao seu alcance: a simples presença silenciosa junto do filho, sofrendo com ele (Jo 19,25-27). Maior Boa Nova não se pode imaginar.

5. Rezando pela unidade junto com os apóstolos

A comunidade reunida no Cenáculo é a Comunidade Original, a semente da qual vai nascer a igreja no dia de Pentecostes. Sem comunidade em oração não haveria Pentecostes! Lucas insiste em três coisas que marcam esta Comunidade Original e que devem marcar a vida de todas as comunidades, para que possam anunciar a Boa Nova de Deus: (1) viver em comunhão fraterna, (2) perseverar na oração, (3) ao redor de Maria a mãe de Jesus aguardando a vinda do Espírito Santo (At 1,14).

6. Através da leitura simbólica que os primeiros cristãos faziam de Maria

No Evangelho de João, a Mãe de Jesus aparece duas vezes: nas bodas de Caná (Jo 2,1-5) e ao pé da Cruz (Jo 19,25-27). Nos dois casos ela simboliza o Antigo Testamento que aguarda a chegada do Novo Testamento e nos dois casos, ela contribui para que o Novo chegue. Maria é o elo entre o que havia antes e o que virá depois. Ela anuncia a chegada da Boa Nova de Deus.

Em Caná, no meio da festa, o vinho acabou. A observância das leis da purificação, simbolizada pelos seis potes vazios, tinha esgotado as suas possibilidades. O Antigo Testamento, através da Mãe de Jesus, reconhece seus limites e toma a iniciativa, para que o Novo possa se manifestar: "Eles não tem mais vinho!" (Jo 2,3) Jesus responde: "O que há entre mim e ti? Minha hora ainda não chegou!" (Lc 2,4). A hora de Jesus, a passagem do Antigo para o Novo, é a sua paixão, morte e ressurreição (cf. Jo 13,1). A recomendação da Mãe de Jesus aos empregados é o último grande recado do AT. Daqui para frente é Jesus quem vai dar rumo à vida do povo de Deus: "Façam tudo o que ele lhes disser!" (Jo 2,5). Jesus manda encher de água os seis potes vazios e levar ao mordomo que diz ao noivo: "Todos servem primeiro o melhor vinho. Mas você guardou o melhor vinho até o fim!" (Jo 2,10). Onde antes havia água da purificação para os ritos dos judeus, agora tem vinho bom e abundante para a festa do casamento de Deus com seu povo. Era muito vinho! Mais de 600 litros! O que fizeram com o vinho que sobrou? Estamos bebendo até hoje!

Ao pé da Cruz: Jesus entrega o Discípulo Amado à sua mãe, e entrega sua mãe ao Discípulo Amado. A Mãe de Jesus representa o AT. O Discípulo Amado representa o NT, a comunidade que cresceu ao redor de Jesus, o filho que nasceu do AT, a nova comunidade que se forma a partir da vivência do Evangelho. A pedido de Jesus, o filho, o NT, recebe a Mãe, o AT, em sua casa. Os dois devem caminhar juntos. Pois o Novo não se entende sem o Antigo. Seria um prédio sem fundamento. E o Antigo sem o Novo ficaria incompleto. Seria uma árvore sem fruto.

5) Como Maria dava testemunho da presença de Deus

O relacionamento das pessoas com Deus não se vê, não aparece para fora, mas transparece nas atitudes que tomam, nas palavras que dizem e nas coisas que fazem. Transparece nestes sete espelhos da vida de Maria. Tudo é uma manifestação de como Maria dava testemunho da presença de Deus em sua vida. Os sete espelhos mostram como o chamado de Deus chegava até ela e como ela respondia ao chamado e o colocava em prática; como a experiência de Deus a levava a denunciar o mal; como ela anunciava a Boa Nova de Deus aos irmãos e às irmãs; como enfrentava as dúvidas e fazia discernimento; como criava continuidade realizando a sua missão.

1. Transparece no canto do Magnificat

Basta ler e meditar um pouco as palavras do Cântico de Maria para se dar conta de como era profundo o relacionamento de Maria com Deus: “Minha alma proclama a grandeza do Senhor, meu espírito se alegra em Deus, meu salvador, porque olhou para a humilhação de sua serva” (Lc 1,46-48). É da certeza da presença de Deus em sua vida, que nasce em Maria a humildade de quem reconhece e assume sua dignidade e seu valor: “Doravante todas as gerações me felicitarão” (Lc 1,48).

2. Transparece no silêncio diante de José

Depois que ficou grávida, Maria conservou o silêncio, guardou o segredo de Deus. José não estava sabendo. Ele recebe um aviso do anjo em sonho: "José, filho de Davi, não tenha medo de receber Maria como esposa!" (Mt 1,20). Se José tivesse agido conforme as exigências das leis da época, ele deveria ter denunciado Maria e ela teria sido apedrejada e morta. Mas a justiça de José era maior que a justiça dos escribas e fariseus (cf Mt 5,20). Por ser justo (Mt 1,19), ele não obedeceu às exigências das leis de pureza. Sua justiça levou-o a defender a vida tanto de Maria como de Jesus.

3. Transparece nas palavras ao menino Jesus no Templo

"Meu filho, por que você fez isso conosco? Olhe que seu pai e eu estávamos angustiados, à sua procura." (Lc 2,48). Jesus respondeu: "Por que me procuravam? Não sabiam que eu devo estar na casa do meu Pai?" Mas eles não compreenderam o que o menino acabava de lhes dizer” (Lc 2,48-50). “E sua mãe conservava no coração todas essas coisas (Lc 2,51). Na noite escura da fé, nos momentos do não saber, os místicos experimentam e testemunham a presença de Deus. Foi o que aconteceu com Maria.

4. Transparece no silêncio diante do filho na cruz

“A mãe de Jesus, a irmã da mãe dele, Maria de Cléofas, e Maria Madalena estavam junto à cruz. Jesus viu a mãe e, ao lado dela, o discípulo que ele amava. Então disse à mãe: Mulher, eis aí o seu filho. Depois disse ao discípulo: Eis aí a sua mãe. E dessa hora em diante, o discípulo a recebeu em sua casa. (Jo 19,25-27). Basta contemplar esta cena e sentir na atitude de Maria o testemunho da presença de Deus.

6) Como Maria enfrentava as dúvidas e fazia discernimento

Todos e todas temos momentos na vida em que as fraquezas da nossa condição humana se tornam como neblina que dificulta a visão e exige uma atitude de fé para poder continuar andando mesmo no escuro, sabendo que Deus é maior do que a escuridão que nos envolve. Estes momentos são mais freqüentes e mais comuns do que se pensa. Eles aparecem na vida de Maria:

1. No diálogo com o Anjo Gabriel

Na anunciação, quando a proposta do anjo ultrapassa as possibilidades reais da sua pessoa, Maria pergunta: “Como pode ser? Não tenho marido!” (Lc 1,34) O anjo Gabriel esclarece e ela aceita. É no diálogo sincero que Maria faz discernimento e esclarece suas dúvidas.

2. Na romaria diante da perda do filho

Na peregrinação a Jerusalém, ela perde o filho e experimenta o medo e o não saber. Junto com José, ela volta e enfrenta o problema até reencontrar o filho. E ainda pergunta: “Meu filho, por que você fez isso conosco?” (Lc 2,48) Mas. Ela não entendeu a resposta do filho (Lc 2,50). Nem sempre o discernimento é completo, mas é o suficiente para poder caminhar na escuridão da fé.

3. Na iniciativa dos parentes

Quando os parentes souberam que Jesus tinha tanta atividade que não lhe sobrava tempo para comer, eles saíram para detê-lo, porque diziam: Ele enlouqueceu!" (Mc 3,20-21). Foram até Cafarnaum. Ficando do lado de fora da casa onde Jesus estava, mandaram chamá-lo. Havia uma multidão sentada em torno dele. Disseram-lhe: "Eis que tua mãe, teus irmãos e tuas irmãs estão lá fora e te procuram. Ele perguntou: "Quem é minha mãe e meus irmãos?" E repassando com o olhar os que estavam sentados ao seu redor, disse: "Eis a minha mãe e os meus irmãos. Quem fizer a vontade de Deus, esse é meu irmão, irmã e mãe!" (Mc 3,31-35). Marcos diz que Maria estava junto com os parentes que queriam levar Jesus de volta para Nazaré. Não sabemos qual foi o sentimento de Maria. De qualquer maneira, o discernimento que os parentes queriam fazer, não teve o resultado que eles esperavam, pois Jesus não concordou e não voltou com eles para Nazaré. Fatos assim ajudam a amadurecer e a melhorar o discernimento que se busca.

4. Na palavra do velho Simeão

No templo, Maria ouve o velho Simeão dizer que uma espada de dor iria atravessar o seu coração (Lc 2,35). Uma palavra dita assim com relação ao futuro faz com que Maria vai ter que viver a vida inteira com a ameaça da espada da dor. Nem tudo se clareia na vida. A escuridão faz parte da natureza e da vida. Metade das 24 horas de todos os dias é luz e metade é escuridão.

5. No grupo das mulheres na Via Sacra

São Lucas fala das mulheres que querem dar apoio a Jesus carregando sua cruz (Lc 23,27). Maria devia estar com este grupo de mulheres. O único discernimento que recebem é a Palavra de Jesus que não tirou a dor nem a Cruz: “Não chorem por mim, mas chorem por vocês mesmas e por seus filhos!” (Lc 23,28).

6. Diante do filho na Cruz

No Calvário, diante do filho pendurado na Cruz, sem nenhum alívio, Maria enfrenta a dor, a fraqueza, o desprezo, a condenação, mas continua em pé, sem esmorecer, e sem dizer uma só palavra. A dor é maior. Seu silêncio vale mais que mil palavras (Jo 19,25-27).

7) Como Maria criava continuidade realizando a sua missão

Cada um dos sete livros do Novo Testamento que falam de Maria, a Mãe de Jesus, traz uma sugestão de como deve ser nossa devoção a ela para que esteja em continuidade com o ensinamento da Bíblia e crie continuidade na nossa maneira de viver e praticar o Evangelho:

1. Carta aos Gálatas: Jesus, nascido de uma mulher, nascido sob a lei (Gl 4,4)

* Dizendo que Jesus é "nascido de uma mulher", Paulo afirma a humanidade Jesus. Ele é igual a nós em tudo, menos no pecado. Dizendo que é "nascido sob a lei", ele afirma que Jesus é judeu, capaz de libertar todos que são escravos da lei e de fazer com que possam receber a adoção filial.

* É importante que a devoção a Maria nos leve a ser humanos como Jesus e comprometidos com os que vivem oprimidos, para que possam libertar-se e viver como filhos na casa do Pai, da comunidade.

2. Evangelho de Marcos: Quem é minha mãe? Quem ouve e pratica a Palavra!

* Marcos mostra como Jesus rompe o círculo estreito da família fechada sobre si mesma e como ele procura abri-lo para ouvir e praticar a Palavra de Deus que cria entre nós a dimensão da comunidade.

* É importante acentuar que a verdadeira devoção a Maria deve consistir em “ouvir e praticar a Palavra de Deus” que cria em nós a necessária abertura para a vida em comunidade.

3. Evangelho de Lucas: Maria como símbolo e imagem da Igreja:

* O documento do Concílio Vaticano II, Lúmen Gentium, faz como Lucas: apresenta Maria integrada na vida da Igreja e não separada como se fosse uma grandeza distinta, à parte.

* É importante que nossas Comunidades saibam apresentar a devoção a Nossa Senhora como parte integrante da fé e não como uma devoção separada do resto.

4. Evangelho de Mateus: Maria na companhia de outras quatro mulheres

* A imagem que Mateus nos apresenta de Maria na genealogia de Jesus é bem diferente da imagem tradicional. Maria aparece em companhia com mulheres marginalizadas pela lei, mas devotadas à causa do bem do povo.

* É importante que nossas Comunidades aprendam a viver a devoção a Nossa Senhora como acolhimento às pessoas marginalizadas que são a Companhia de Maria.

5. Evangelho de João: Maria como símbolo do Antigo Testamento

* Maria aparece como representante das esperanças do AT que se realizam em Jesus. Ela sabe reconhecer os limites das tradições do seu povo e faz com que o povo possa descobrir e acolher a chegada da Boa Nova da presença do Reino de Deus em sua vida.

* É importante que, como Maria, nossas Comunidades saibam reconhecer os limites das tradições e saibam apresentar Jesus como a resposta de Deus para as esperanças do povo.

6. Atos dos Apóstolos: Maria como símbolo da unidade

* Maria aparece como símbolo e fator de unidade. Através da oração e da espera do Espírito ela consegue fazer com que as várias tendências existentes na comunidade aprendam a conviver em harmonia.

* É importante que, nas nossas comunidades, a devoção a Nossa Senhora nos ajude a cultivar a unidade e nos leve a criar formas novas de união e de ecumenismo.

7. Apocalipse de João: Maria como defesa da vida dos perseguidos

* Maria aparece como símbolo da fraqueza na qual se revela o poder libertador de Deus em defesa das comunidades perseguidas pelo império romano (e pelo império neoliberal).

* É importante que nossas comunidades saibam descobrir a força de Deus que se esconde na fraqueza e que saibam arrancar a imagem de Maria da mão dos grandes e devolvê-la aos pequenos.

Maria, a m ãe de Jesus, é a mulher que enfrenta e vence o Dragão, símbolo da luta contra as forças da morte em defesa da vida (Apocalipse 12,1-6). Assim ela aparece nas grandes devoções populares em quase todos os países da América Latina: Nossa Senhora de Guadalupe, Nossa Senhora de Lugan, Nossa Senhora do Carmo, Nossa Senhora da Conceição Aparecida. A imagem da Mulher em luta contra o Dragão da maldade também chama a atenção para o lugar central que as mulheres ocupam hoje nas Comunidades Eclesiais de Base, nas lutas populares, na resistência do povo. Elas imitam de perto a atitude de Maria. Deste modo, Maria cria continuidade e nos ajuda a realizar nossa missão.