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terça-feira, 24 de março de 2009

AS RELAÇÕES


SANTA TERESA DE JESUS


Introdução

Pequena e densa autobiografia de Santa Teresa, na qual a Santa vai relatan­do as misericórdias do Senhor a sua alma. A série de escritos reunidos sob a epí­grafe Relações e favores não constitui um livro com unidade interna. Trata-se de um florilégio de peças heterogêneas, relatos autobiográficos de vivências interio­res, consultas espirituais marcadas de segredo, anotações esparsas a modo de ins­tantâneos para uso estritamente pessoal, formulação e motivações do voto de obediência ao diretor espiritual, avisos proféticos aos frades carmelitas descalços…

Os sessenta e sete fragmentos têm uma fibra comum, o dado místico, às vezes matizado de autobiografia, outras concentrado em um intenso esforço para descrever e ordenar as próprias experiências. Há relatos interessados unicamente em destacar a origem mística de um fato interior. Alguns favores divinos, brevíssimos, pretendem apenas fixar o papel da palavra de Deus, núcleo da experiência. Às vezes, acrescenta-se ao simplíssimo dado místico um sóbrio marco de reflexão pessoal.

A composição desse florilégio místico expande-se por um prazo de vinte e um anos, que cobrem quase todo o período literário da Santa. A primeira relação data de 1560, a última, de 1581. Apesar de se ignorar a data exata de grande parte dos acontecimentos místicos relatados e de vários favores, podemos distinguir quatro grupos cronológicos:

1. Anos da fundação de São José de Ávila, 1560-1563, nos quais escreve as três primeiras relações, ao mesmo tempo em que redige o Livro da Vida. Elas se dirigem aos primeiros confessores dominicanos, Pedro Ibáñez e García de Toledo.

2. Anos de ingresso nas sétimas moradas; supremas graças místicas; em grande parte sob a direção espiritual de São João da Cruz; 1569-1573.

3. Anos de crise e conflitos: acusações da Inquisição (em Sevilha, ela e sua co­munidade; em Madrid, o livro de sua Vida); a Santa passa à direção espiritual de Padre Gracián: 1575-1577. Destacam-se três grupos: voto de obediência a Gracián: 39-40; duas relações destinadas a Padre Rodrigo Alvarez, motivadas — ao menos a primeira — pela intervenção da Inquisição de Sevilha: Relações quarta e quinta; favores referentes à pessoa de Gracián e novas graças místicas: 42-46.

4. Anos finais: 1579-1581. Duas peças de primeira qualidade: quatro avisos aos padres descalços, que contêm a mensagem definitiva da Santa aos respon­sáveis por sua reforma e última apresentação de sua alma ao diretor Alonso Velázquez, 1581.

São sessenta e seis as Relações conhecidas, mas elas não foram as únicas que a Madre escreveu. Muitas não vieram à luz. Diversas circunstâncias acon­selharam não publicar todas elas. Algumas tratavam de temas muito ele­vados da vida espiritual, outras referiam-se a pessoas ainda vivas quando da publicação dos livros da Santa (1588).

Quanto aos autógrafos, escritos em cadernetas e papéis soltos, existem deles algumas cópias. A mais autorizada está no Carmelo de São José de Ávila.

AS Relações

1*

1. A maneira de proceder na oração que agora tenho é a seguinte: poucas vezes acontece de, estando em oração, eu poder discorrer com o intelecto, porque a alma logo começa a recolher-se e a ficar em quietude ou em arroubo, de modo tal que não posso em nada recorrer aos sentidos, tanto que, a não ser ouvir — e sem compreender —, para nada mais tenho capacidade.

2. Ocorre muitas vezes (sem que eu esteja querendo pensar em coisas de Deus, mas enquanto trato de outras coisas, e tendo a impressão de que, por muito que procurasse ter oração, não o poderia, por estar com uma grande secura, ajudando nisso as dores corporais) de dar-me tão depressa esse recolhimento e essa elevação de espírito que não consigo resistir; depois, num momento, deixa a alma com os efeitos e proveitos que traz consigo. E isso acontece sem que eu tenha tido visões ou ouvido coisas, e sem que eu saiba onde estou, mas, parecendo-me perder a alma, vejo-a com benefícios que nem em um ano eu poderia obter, mesmo que tudo fizesse para isso.

3. Outras vezes, dão-me uns ímpetos muitos grandes, e me vejo tomada pelo desejo de me desfazer por Deus; a eles também não posso resistir. Parece que a minha vida vai se acabar, o que me faz gritar e clamar por Deus, e com grande furor. Algumas vezes nem posso permanecer sentada, tamanhas as agonias que me atingem, vindo esse sofrimento sem que eu o procure. E ele é tal que a alma não quisera sair dele enquanto vivesse. São ânsias que tenho por não viver e parecer que vivo sem poder remediá-lo, porque o remédio por ver a Deus é morrer e isso não posso fazer. Assim, parece-me à alma que todos estão consoladíssimos menos ela, e que todos encontram remédio para seus sofrimentos, menos ela. E isso custa tanto que, se o Senhor não o amainasse com algum arroubo, com o qual tudo se aplaca, ficando a alma com grande quietude e satisfação — algumas vezes por vislumbrar algo do que deseja, outras por entender outras coisas —, e se nada disso houvesse, seria impossível sair desse sofrer.

4. Vêm-me noutras ocasiões desejos de servir ao Senhor, com ímpetos muito grandes, tais que não os sei descrever, e com um grande pesar por ver de quão pouco proveito sou. Então, parece-me que nenhum sofrimento ou empecilho seria posto à minha frente, nem morte nem martírio, que eu não vencesse com facilidade. Isso também ocorre sem que eu esteja fazendo considerações, e se apossa de mim de tal modo que me revira toda, e não percebo de onde me vem tanto esforço. Tenho a impressão de querer falar em altos brados e dar a entender a todos quanto importa não se contentar com coisas poucas e que bem nos dá Deus quando nos dispomos a receber.

Digo que esses desejos têm tal natureza que me desfaço e quero o que não posso. Parece-me que este corpo me aprisiona, não podendo servir a Deus em nada, nem ao estado religioso; porque, se não o tivesse, eu faria coisas muito notáveis na medida das minhas forças; vendo-me assim, sem nenhum poder para servir a Deus, sinto de tal maneira esse padecimento que sequer sei como dar-lhe a devida dimensão. Acabo com regalos, recolhimento e consolos de Deus.

5. Outras vezes ainda me aconteceu de, quando sobrevêm essas ânsias de servi-Lo, desejar fazer penitências; mas não o posso. Fazê-lo muito me aliviaria, e alivia, embora quase nada seja, por causa da fraqueza do meu corpo; se bem que, se me deixassem, eu, com tamanhos desejos, me excederia.

6. Algumas vezes dá-me muito sofrimento ter de tratar com as pessoas, e me aflige tanto que muito me faz chorar, porque todo o meu anseio é estar a sós, e mesmo que em algumas ocasiões eu não reze nem leia, consola-me a so­lidão; e a conversa, em especial a de parentes e amigos íntimos, me parece pe­sada, como se eu me sentisse vendida, salvo com aqueles com quem trato de coisas de oração e do espírito, porque com estes me consolo e alegro, ainda que a­l­gumas vezes fique farta e nem a eles deseje ver, voltada que estou para a von­tade de mergulhar na solidão; mas isso não é comum, em especial quando estou com aqueles a quem falo da minha consciência, pois eles muito me consolam.

7. Outras vezes sofro muito por ter de comer e dormir, e ver que eu, mais do que todos, não posso deixar de fazê-lo; faço-o para servir a Deus, e assim Lhos ofereço. Todo o tempo me parece curto e me faz falta para rezar, porque de estar só nunca me cansaria. Sempre tenho desejo de ter tempo para ler, porque sou muito afeiçoada a isso. Leio muito pouco, porque, tomando o livro e me contentando, recolho-me, e a lição se torna oração, e é pouco, pois tenho muitas ocupações que, embora boas, não me dariam o contentamento que disso advém; por isso, fico sempre desejando tempo, o que me torna desagradável, creio eu, ver que não se faz o que quero e desejo.

8. Todos esses desejos, além dos de virtude, o Senhor me tem dado, depois de me ter concedido essa oração quieta com arroubos, e me sinto tão melhorada que me parece ter sido antes perdição. Esses arroubos e visões me deixam com os benefícios de que vou falar agora, e afirmo que, se algum bem tenho, daqui me vieram.

9. Tomou conta de mim uma enorme determinação de não ofender a Deus nem venialmente, pois antes morreria mil mortes a fazê-lo, entendendo, porém, que o faço. Determinação de que nenhuma coisa que eu pensasse ser de mais perfeição e de mais serviço a Nosso Senhor, dizendo-me que a faça quem de mim cuida e me dirige, eu deixaria de fazer, sentisse o que sentisse, por nenhum tesouro a deixaria de fazer. E se fizesse o contrário, acredito que não teria cara para pedir algo a Deus Nosso Senhor, nem para ter oração, embora em tudo isso cometa muitas faltas e imperfeições.

Obediência a quem me confessa, mesmo com imperfeição; mas entendendo que quer uma coisa, ou que a manda, creio que não a deixaria de fazer e, se deixasse, julgaria estar muito enganada.

Desejo de pobreza, mesmo com imperfeição; mas parece-me que, embora tivesse muitos tesouros, não teria renda particular, nem dinheiro só para mim, nem nada disso me interessa; só queria ter o necessário. Contudo, sinto muita falta dessa virtude; mesmo nada desejando para mim, queria ter para dar, embora não almeje renda nem coisa alguma para mim.

10. Quase todas as visões que tenho tido me deixam grande proveito, se não forem enganos do demônio. No tocante a isso, remeto-me aos meus confessores.

11. Quando vejo alguma coisa bela, formosa, como água, campos, flores, odores, música etc., parece-me que não as queria ver nem ouvir, tamanha a diferença entre isso e o que costumo ver; e assim, sai-me a vontade delas. E disso surgiu em mim tanta indiferença com relação a essas coisas que, a não ser algum primeiro movimento, pouco me tem ficado delas, e me parece lixo.

12. Se falo ou trato com algumas pessoas profanas, por não poder evitá--lo, e mesmo que seja de coisas de oração, se a conversa se prolonga sem ser necessário, mesmo que seja por passatempo, esforço-me muito, pois me dá grande pesar. Coisas de regozijos, de que costumava gostar, e de coisas do mundo, tudo me incomoda e não posso ver.

13. Esses desejos de amar e servir a Deus, e de vê-Lo, que eu disse que tenho, não recebem a ajuda das considerações, ao contrário de antes, quando me parecia que eu estava muito devota e com muitas lágrimas; mas com uma inflamação e um fervor tão excessivos que, repito, se Deus não me remediasse com algum arroubo, durante o qual, parece-me, a alma fica satisfeita, creio que seria para logo acabar a vida.

14. Amo muito os que vejo mais beneficiados e com essas determinações, desapegados e animados, e com tais pessoas eu gostaria de tratar, e parece que me ajudam. As pessoas que vejo tímidas e que, na minha opinião, se atêm às coisas que, de acordo com a razão, se podem fazer aqui, parece que me angustiam e me fazem clamar a Deus e aos santos que foram acometidos por essas coisas que agora nos espantam; não porque eu valha alguma coisa, mas por ter a impressão de que Deus ajuda àqueles que por Ele se atrevem muito e nunca falta a quem só Nele confia. Portanto, eu quisera encontrar quem me ajudasse a crer Nele assim, sem cuidar o que hei de comer e vestir, mas entregando-o a Deus. Não se entenda que esse entregar a Deus o de que preciso seja de maneira que eu não o procure; sucede que eu não estou voltada para isso, não me aflijo por isso, digo.1 E depois que o Senhor me deu essa liberdade, contento-lhe com isso e procuro esquecer-me de mim o quanto posso. Não me parece que tenha passado um ano desde que Nosso Senhor mo concedeu.

15. Vanglória, Deus seja louvado, no meu entendimento não há por que ter; porque vejo claro nessas coisas que Deus dá não estar nada ao meu alcance, antes Deus me faz sentir minhas misérias: por mais que eu pudesse pensar, não poderia ver tantas verdades como vejo um único instante disso.

16. De uns dias para cá, quando falo dessas coisas, parece-me como se fos­sem de outra pessoa. Antes disso, parecia-me, algumas vezes, ser uma afronta dei­xar que se soubessem essas coisas de mim; agora, contudo, creio que não sou me­lhor por isso, e sim pior, pois muito pouco me beneficio com tantas graças. Por certo me parece que, em todos os pontos, nunca houve alguém pior no mun­do do que eu, e assim as virtudes dos outros me parecem muito mais me­recidas, ao passo que eu apenas recebo graças, e que aos outros Deus há de dar de uma vez o que aqui me quer dar; suplico-Lhe que não me queira pagar nes­ta vida, e assim creio que, por ser fraca e ruim, Deus me conduziu por esse caminho.

17. Estando em oração — e até, quase sempre, podendo considerar um pouco —, ainda que o procure, não posso pedir descanso, nem desejá-lo de Deus, pois vejo que Ele só viveu com sofrimento, e estes Lhe suplico que me dê, dando-me primeiro a graça para suportá-lo.

18. Todas as coisas dessa natureza e outras de muito grande perfeição pa­rece que se imprimem em minha oração, e a tal ponto que me espanto de ver tantas verdades, e tão claras, que me parecem desatino as coisas do mun­do. Dessa maneira, preciso ter o cuidado de pensar em como me relacio­nava antes com as coisas do mundo, pois tenho a impressão de ser disparate sentir as mortes e sofrimentos dele, pelo menos se durar muito a dor ou o amor dos parentes, amigos etc.; digo que ando atenta, considerando quem eu era e o que costumava sentir.

19. Se vejo em algumas pessoas certas coisas que parecem claramente pecados, não consigo me convencer de que tenham ofendido a Deus naquilo e, se me detenho nisso, que é pouco ou nada, nunca consigo me decidir, embora o veja claro; e parecia-me que o cuidado que trago de servir a Deus, todos o têm. E nisso o Senhor me fez um grande favor, pois nunca me detenho em coisa ruim de que venha a me lembrar depois e, se me lembro, sempre vejo outra virtude na pessoa em questão; assim é que nunca me fatigam essas coisas, exceto o mal coletivo e as heresias, que muitas vezes me afligem: quase sempre que penso nelas, tenho a impressão de que só esse sofrimento merece ser sentido. Também sinto isso quando vejo retrocederem alguns que tratavam de oração; isso me dá pesar, mas não muito, porque procuro não me deter aí.

20. Também melhorei em termos das curiosidades que costumava ter, se bem que não de todo, pois não me vejo estar nisso sempre mortificada, embora algumas vezes o esteja.

21. Isso tudo de que falei é que ocorre em geral com a minha alma, pelo que posso entender. O mais comum é ter o pensamento em Deus e, embora tratando de outras coisas, sem querer, como digo, não entendo o que fala quem me desperta desse estado, e isso nem sempre, mas quando trato algumas coisas de importância; e pensar nessas coisas, louvado seja Deus, é algo que me ocorre aos poucos e que não me ocupa sempre.

22. Vêm-me alguns dias — embora não muitas vezes, e durando três, quatro ou cinco dias — em que me parece ter sido privada de todas as coisas boas, e fervores e visões, e até da memória isso me sai, pois mesmo que o queira não sei que coisa boa possa ter havido em mim; tudo me parece sonho ou, ao menos, de nada me posso recordar. Afligem-me todos os males corporais; o intelecto fica perturbado, e em nenhuma coisa de Deus posso pensar, e sequer sei em que lei vivo.

Se leio, não compreendo; parece-me estar plena de faltas, sem nenhum ânimo para a virtude, e o grande ânimo que costumo ter se reduz a isso, parecendo-me que à menor tentação e murmúrio do mundo eu não poderia resistir. Vem-me então a idéia de que não sirvo para nada: é culpa minha o ter-me envolvido com coisas além das comuns; fico triste, tendo a impressão de ter enganado a todos os que acreditam um pouco em mim. Desejo fugir para onde ninguém me veja; nesses momentos não desejo a solidão por virtude, mas por pusilanimidade; parece-me que desejaria zangar-me com todos os que me contradissessem.

Vejo-me às voltas com essa batalha, mas Deus me concede a graça de não ofendê-Lo mais do que costumo, e não Lhe peço que me tire isso, mas digo que, se é de Sua vontade que eu fique assim para sempre, que Ele me conduza por Sua mão para que eu não O ofenda, e conformo-me com Ele de todo o coração, acreditando que o fato de Ele não me manter assim permanentemente é um grandíssimo favor que me faz.

23. Uma coisa me espanta: o fato de que, estando dessa maneira, uma única palavra das que costumo ouvir, ou uma visão, um pouco de recolhimento que dure uma ave-maria ou a comunhão deixem a alma e o corpo tão aquietados, e o intelecto tão saudável e claro, com toda a força e desejos que costumo ter. E tenho experiência disso, pois são muitas vezes, ao menos quando comungo, há mais de meio ano sinto notavelmente uma clara saúde corporal, o que por vezes aconte com os arroubos, em certas ocasiões durando mais de três horas; outras vezes, passo o dia inteiro com grande melhora, e tenho a impressão de que não me engano, pois o tenho verificado e observado bem. Dessa maneira, quando tenho esse recolhimento, não temo nenhuma enfermidade. É verdade que, quando tenho a oração que antes costumava ter, essa melhoria não advém.

24. Tudo isso que eu disse me faz crer que essas coisas vêm de Deus; porque, sabendo quem eu era, que seguia o caminho da perdição, vejo que em pouco tempo, recebendo essas graças, a minha alma não se conhecia, sem entender de onde me vinham essas virtudes. Eu me desconhecia e via ser uma coisa dada, e não ganha por esforço. Entendo com toda a verdade e clareza, e sei que não me engano, que isso serviu não só de recurso para Deus me atrair para o Seu serviço, como também para me tirar do inferno, como o sabem meus confessores a quem tenho feito confissão geral.

25. Também quando vejo alguma pessoa que sabe alguma coisa de mim, queria dar-lhe a entender a minha vida; porque me parece ser honra minha que Nosso Senhor seja louvado, pouco me importando tudo o mais. Isso bem sabe Ele, ou eu estou muito cega, já que nem honra, nem vida, nem glória, nem nenhum bem corporal ou da alma podem me deter, nem penso ou desejo benefícios para mim, mas sim a Sua glória.

Não posso crer que o demônio tenha buscado tantos bens visando ganhar a minha alma para depois perdê-la; não o tenho por tão néscio. Do mesmo modo, não posso crer que Deus, embora pelos meus pecados eu merecesse estar enganada, tenha desprezado tantas orações de almas tão boas quanto as que há dois anos as fazem por mim — pois não faço outra coisa senão rogá--lo a todos — para que o Senhor me permita saber se isto é para a Sua glória ou me conduza por outro caminho. Não creio que Sua Divina Majestade permitisse que essas coisas sempre fossem adiante caso não fossem Suas.

26. Essas coisas e as razões de tantos santos me animam quando tenho esses temores de que elas não sejam de Deus, por ser eu tão ruim. Contudo, quando estou em oração, e nos dias em que tenho pensamento em Deus, ainda que se juntem todos os eruditos e santos do mundo e me dêem todos os tormentos imagináveis, não me poderiam levar a crer que isso vem do demônio, pois eu não poderia acreditar, ainda que quisesse. E quando quiseram me levar a acreditar nisso, eu temi, vendo quem o dizia, e pensei que eles deviam estar dizendo a verdade, e que eu, sendo quem era, por certo me enganava; mas, à primeira palavra, recolhimento ou visão, tudo o que tinham dito se desfazia. Eu não podia mais e acreditava que era de Deus.

27. No entanto, posso imaginar que o demônio alguma vez poderia se intrometer — e isso acontece, como eu já disse e vi —, mas, quando isso se passa, os efeitos são diferentes, e quem tem experiência, creio eu, não se deixa enganar. Com tudo isso digo, embora creia que certamente vem de Deus, que não faria coisa alguma que aqueles que me dirigem julgassem não ser de maior serviço a Nosso Senhor; por nada deste mundo. E nunca deixei de entender que devia obedecer e não ocultar nada, porque isso me convém.

28. De ordinário sou muito repreendida pelas minhas faltas — e de uma maneira que me atinge as entranhas — e recebo avisos quando há ou pode haver algum perigo nas coisas de que trato; essas coisas me têm trazido muito proveito, embora eu muito lastime que muitas vezes me tragam à memória os pecados passados.

29. Muito me estendi, mas ainda assim, no tocante aos bens com que me vejo quando saio da oração, por certo me parece ter ficado aquém do necessário; mais tarde, vejo-me com muitas imperfeições, sem proveito e deveras ruim. E não entendo as coisas boas, e me engano; no entanto, a diferença em minha vida é notória, o que me faz pensar. Em tudo o que disse, falei do que me parece ter sentido verdadeiramente.

São essas as perfeições que sinto ter o Senhor operado em mim, tão ruim e imperfeita. Entrego tudo ao juízo de Vossa Mercê, que conhece toda a minha alma.2

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1. Parece-me que há mais de um ano escrevi isto que aqui está. Por todo esse tempo, Deus tem me conduzido pela mão, pois não estou pior e até vejo muita melhoria no tocante ao que direi. Seja Ele louvado por tudo.

2. As visões e revelações não cessaram, e são muito mais sublimes. O Senhor me ensinou um modo de oração que me deixa com muito mais benefícios, com muito maior desapego das coisas desta vida e com muito mais ânimo e liberdade. Os arroubos aumentaram, porque às vezes vêm com tal ímpeto e de maneira tal que, sem que eu possa escondê-los, fazem-se perceber, e mesmo estando na companhia dos outros, porque têm tal natureza que não se pode dissimular a não ser alegando — já que sou doente do coração — que é algum desmaio. Embora eu tenha grande cuidado de resistir no princípio, algumas vezes não posso.

3. No que se refere à pobreza, parece-me que Deus me fez muita graça, porque nem o necessário eu queria ter, a não ser de esmola, desejando ao extremo estar onde não se coma de outra coisa. Tenho a impressão de que estar onde estou, onde não há de me faltar de comer e de vestir, é não cumprir com tanta perfeição o voto e o conselho de Cristo quanto se cumpre em lugar onde não há renda, porque alguma vez faltará; e os bens que se ganham com a verdadeira pobreza parecem-me muitos, e não os quisera perder.

Vejo-me muitas vezes com tão grande fé, tendo o parecer de que Deus não pode faltar a quem O serve, e sem nenhuma dúvida de que não haja nem possa haver momento algum em que as Suas palavras faltem, que não consigo me persuadir de outra coisa, nem posso temer, razão pela qual muito lamento quando me aconselham que tenha renda, e me volto para Deus.

4. Parece-me que tenho muito mais piedade dos pobres do que costumava. Sinto em mim uma grande lástima e desejo de remediar a sua situação, a ponto de, se seguisse a minha vontade, dar-lhes minha própria roupa. Nenhum asco tenho deles; trato com eles e os toco. E isso vejo agora que é um dom de Deus, já que, embora por amor a Ele desse esmolas, eu não tinha piedade natural. Sinto uma reconhecida melhora nesse aspecto.

5. Quanto aos murmúrios de que me fazem objeto, que são muitos e prejudiciais a mim, também me sinto muito melhor; parece que quase não me incomodam mais do que a um bobo, e creio que algumas vezes têm razão, e quase sempre. Sinto-o tão pouco que até penso que nada tenho a oferecer a Deus e, como tenho experiência de que a minha alma muito ganha, antes me parece que me fazem bem, razão por que não guardo nenhuma inimizade para com quem assim age, tão logo me achego à oração.

Assim que ouço essas coisas, tenho um pouco de contrariedade, mas não com inquietude ou alteração; em vez disso, como vejo algumas vezes outras pessoas, tenho pena e, assim, rio de mim para mim, porque todas as ofensas, as desta vida, me parecem tão pouco importantes que não há o que sentir. Julgo ver-me num sonho e sinto que, ao despertar, tudo será nada.

6. Deus me dá desejos mais vivos, mais vontade de solidão, um desapego muito maior — como eu disse —, com visões, porque o Senhor me deu a entender o que é tudo, mesmo que eu deixe todos os amigos, amigas e parentes, pois isso é o de menos, já que me cansam muito os parentes. Tão logo possa servir a Deus um pouquinho mais, deixo-os com toda a liberdade e contentamento, e, assim, em toda parte encontro paz.

7. Algumas coisas que me foram aconselhadas na oração mostraram-se muito verdadeiras. Assim, quanto a receber graças de Deus, acho-me muito adiantada; no tocante a servi-Lo, bem pior. Porque regalos tenho tido mais — pois se têm oferecido ocasiões para isso —, embora muitas vezes sinta imensa pena; a penitência é muito pouca, e a honra que me fazem, muita, com freqüência bem contra a minha vontade.4

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1. Isto, que está escrito aqui com a minha letra, foi feito por mim há mais ou menos nove meses. Depois disso, não voltando atrás nas graças que Deus me concedeu, parece-me que recebi outra vez, pelo que entendo, muito mais liberdade. Até agora, parecia-me que eu precisava dos outros, e eu tinha mais confiança nas ajudas do mundo; agora entendo com clareza que são todos caniços secos e que apegar-se a eles não traz segurança, pois ao mínimo peso dos murmúrios e das contrariedades logo se quebram. Por isso, tenho a expe­riência de que o verdadeiro remédio para não cair é o apego à cruz e a con­fiança Naquele que nela Se pôs. Considero-O amigo verdadeiro e acho--me com isso com um domínio tal que me parece que eu resistiria a todos no mundo que fossem contra mim, contanto que Deus não me faltasse.

2. Eu, que costumava ser muito amiga de que me quisessem bem, entendo essa verdade com clareza; já nada me importo com isso, e até parece que me cansa, exceto no contato com aqueles com quem trato da minha alma ou a quem penso beneficiar, aqueles porque me suportam, e estes para que creiam com mais sentimento no que lhes digo da vaidade que é tudo; essas pessoas, sim, eu quisera que gostassem de mim.

3. Em meio aos grandes sofrimentos, perseguições e contrariedades pelos quais passei nestes meses, deu-me Deus grande ânimo;6 e quanto maiores, maior o ânimo, sem que eu me cansasse de padecer. E, diante das pessoas que falavam mal de mim, eu não só não ficava mal, como, ao que parece, renovava o meu afeto por elas. Não sei explicar isso, que é um bem concedido pela mão do Senhor.

4. É da minha natureza costumar, quando desejo uma coisa, ser impetuosa em desejá-la. Agora, porém, estão os meus desejos com tanta quietude que, quando os vejo cumpridos, ainda não sei se me alegro ou não. Porque pesar e prazer, se não é em coisas de oração, estão todos misturados, de modo que pareço boba e como tal fico alguns dias.

5. Os ímpetos de fazer penitência, que me vêm algumas vezes, e têm vindo, são grandes, e, se faço alguma, sinto-a tão pouco com aquele grande desejo que algumas vezes me parece — e quase sempre — que é graça particular, embora faça pouca, por ser muito enferma.

6. É grandíssimo [pesar] para mim muitas vezes, e agora mais excessivo, ter de comer, em especial se estou em oração. Deve ser grande, porque me faz chorar muito e dizer palavras de aflição sem quase me dar conta, o que eu não costumo fazer. Por maiores que sejam os sofrimentos que tenho tido nesta vida, não me recordo de tê-las dito, pois não sou nada mulher nessas coisas, tendo antes coração duro.

7. Sinto em mim um desejo enorme, maior do que de costume, de que Deus tenha pessoas que O sirvam com todo o desapego e que em nada das coisas de cá se detenham — porque vejo que é tudo engano —, particularmente letrados; porque, como vejo as grandes necessidades da Igreja, que muito me afligem, pois me parece equívoco ter pesar por outra coisa, nunca deixo de encomendá--los a Deus: é que vejo que seria mais proveitosa uma pessoa perfeita de todo e com verdadeiro fervor no amor de Deus do que muitas fracas.

8. Acho-me, a meu ver, com muito mais força nas coisas da fé. Parece--me que eu me oporia sozinha contra todos os luteranos, para lhes dar a entender seu erro. Sinto muito a perdição de tantas almas. Vejo muitas beneficiadas, e reconheço com clareza que Deus quis que fosse por meu intermédio; reconheço também que, pela Sua bondade, cresce a minha alma em amá-Lo cada dia mais.

9. Tenho a impressão de que, mesmo que com esforço desejasse vangloriar-me, não o poderia, assim como não vejo como seria possível considerar  minha alguma dessas virtudes; porque há pouco me vi sem nenhuma por muitos anos, e agora, de minha parte, não faço senão receber graças, sem servir, e sim como a coisa mais sem serventia do mundo. E é assim que considero algumas vezes que todos aproveitam exceto eu, que para nada sirvo.

Isso não é, com certeza, humildade, mas verdade, e verificar que sou tão sem proveito algumas vezes me dá temores, e penso se não estou enganada. Assim, vejo com clareza que dessas revelações e arroubos — que nada devem a mim, nem faço para isso mais do que faria uma tábua — me vêm esses benefícios. Isso me tranqüiliza e traz mais sossego; ponho-me então nos braços de Deus e confio em meus desejos, que estes sem dúvida entendo que são morrer por Ele e perder todo o descanso, aconteça o que acontecer.

10. Vêm-me dias em que me lembro infinitas vezes do que disse São Paulo7 — se bem que em mim por certo não seja assim — e me parece que não vivo, não falo, nem tenho vontade, mas que está em mim Quem me governa e dá forças; e ando quase como fora de mim, razão por que me é um enorme pesar a vida. E a maior coisa que ofereço a Deus como grande serviço é, sendo-me tão penoso estar afastada Dele, querer viver pelo Seu amor. Isto eu queria que fosse com grandes padecimentos e perseguições; já que não sou de proveito, queria ser útil em sofrer, e quantos sofrimentos há no mundo eu passaria por um pouquinho de mérito a mais, digo, em cumprir mais a Sua vontade.

11. Nenhuma coisa tenho ouvido na oração, embora vários anos antes, que não tenha visto cumprida. São tantas as que vejo, o que ouço das grandezas de Deus e o modo como Ele as tem guiado que quase nenhuma vez começo a pensar nisso sem que me falte o intelecto, como quem vê coisas que estão muito além da compreensão, e mergulho em recolhimento.

12. Protege-me tanto Deus em não O ofender que com certeza me espanto algumas vezes, pois me parece que vejo o grande cuidado que Ele tem por mim sem que eu para isso contribua com coisa alguma, sendo um poço de pecados e de maldades antes dessas coisas, e sem me parecer que eu fosse senhora de mim para deixar de cometê-los. E o motivo por que eu queria que se soubesse disso é que se entenda o grande poder de Deus. Louvado seja Ele para sempre e sempre, amém.8

JHS

13. Esta relação, que não é com a minha letra, que está no princípio, é a que dei ao meu confessor, e ele, sem tirar nem pôr coisa alguma, a copiou com a sua. Ele era muito espiritual e teólogo — com ele eu tratava de todas as coisas da minha alma — e falou dela com outros letrados, estando entre eles o Padre Mancio.9 Nada encontraram aí que não seja muito conforme às Sagradas Escrituras. Isso me faz estar muito sossegada, embora entenda ser necessário, enquanto Deus me levar por este caminho, não confiar nem um pouco em mim, o que sempre fiz, embora sinta muito.

Veja Vossa Mercê que tudo isso vai sob confissão, como o supliquei a Vossa Mercê.

4 a)10

JHS

1. Esta monja há quarenta anos tomou o hábito e desde o princípio começou a pensar na Paixão de Nosso Senhor, nos mistérios, e em seus pecados, sem nunca pensar em coisa que fosse sobrenatural, mas nas criaturas ou coisas, a partir das quais percebia quão cedo se acaba tudo, e nisso despendia alguns momentos do dia, sem passar-lhe pelo pensamento desejar mais, pois se tinha por tal que mesmo pensar em Deus via que não merecia.

2. Nisso passou uns vinte e dois anos com grandes securas, lendo também em bons livros. Haverá uns dezoito, na época em que se começou a tratar do primeiro mosteiro de Descalças que fundou em Ávila (uns três anos antes), que passou a ter a impressão de que lhe falavam interiormente algumas vezes e a ver algumas visões e a ter revelações.11 Ela jamais ouviu ou viu qualquer coisa com os olhos corporais, mas sim na forma de uma representação semelhante a um relâmpago, que, no entanto, as deixava tão impressas nela, e com tantos efeitos, que era como se visse com os olhos corporais, e ainda mais do que isso.

3. Ela era temerosíssima, a ponto de algumas vezes não se atrever a estar só de dia; e como, por mais que fizesse, não pudesse evitar isso, vivia aflitíssima, temendo que fosse engano do demônio. E começou a tratar com pessoas espirituais da Companhia de Jesus, entre elas o Padre Araoz, que por acaso foi ali, e que era Comissário da Companhia, e o Padre Francisco — que foi Duque de Gandía —,12 com quem tratou duas vezes, bem como um provincial da Companhia — que está agora em Roma, onde é um dos quatro assistentes — chamado Gil González, e também o que agora o é em Castela, se bem que com este não tanto. Baltasar Alvarez, que é agora Reitor de Salamanca, confessou-a por seis anos; o Reitor de Cuenca,13 chamado Salazar, e o de Segóvia, chamado Santander, este não muito tempo; o Reitor de Burgos, que se chama Ripalda, e que estava indisposto com ela até ela tratar com ele; o doutor Pablo Hernández de Toledo, que era Consultor da Inquisição; Ordóñez, que foi Reitor de Ávila. Quando estava nos vários lugares, ela procurava os que, neles, eram mais estimados.

4. Tratou muito com o Frei Pedro de Alcântara, e foi ele quem muito fez por ela.

5. Eles estiveram por mais de seis anos, nessa época, fazendo-a passar por muitas provas, e ela com muitas lágrimas e aflição, e quanto mais provas se faziam, mais as tinha, e suspensões freqüentes na oração e mesmo fora dela.14 Faziam-se muitas orações e diziam-se missas para que Deus a levasse por outro caminho, porque era grandíssimo o seu temor quando não estava em oração, embora em todas as coisas referentes ao serviço de Deus se percebesse clara melhoria, e nenhuma vanglória nem soberba, chegando a fugir dos que o sabiam; e sentia mais tratar disso do que se fossem pecados, porque lhe parecia que se ririam dela e que eram coisas de mulherzinhas.

6. Haverá uns treze anos, pouco mais ou menos, que foi ali o Bispo de Salamanca, que era, creio, Inquisidor em Toledo, e o fora aqui; ela procurou falar-lhe para assegurar-se mais e deu-lhe conta de tudo.15 Ele lhe disse que tudo isso não era coisa que tocasse ao seu ofício, porque tudo o que via e ouvia sempre a firmava mais na fé católica, em que ela sempre esteve e está firme, e com grandíssimos desejos da honra de Deus e do bem das almas, pois por uma se deixaria matar muitas vezes.

Vendo-a tão fatigada, disse-lhe que escrevesse ao Mestre Ávila, que era vivo, uma longa relação de tudo, visto que ele era homem que muito entendia de oração, e que, com aquilo que ele dissesse a ela, sossegasse. Ela assim o fez; e o Mestre lhe escreveu e a tranqüilizou muito.16 Foi de tal maneira essa relação que todos os letrados que a viram — que eram seus confessores — diziam ser de grande proveito para advertir sobre coisas espirituais; e mandaram-lhe que o trasladasse e fizesse outro livrinho para suas filhas, já que era prioresa, no qual lhes desse alguns avisos.

7. Apesar de tudo isso, de quando em quando não lhe faltavam temores, pare­cendo-lhe que as pessoas espirituais também podiam estar enganadas como ela, desejando tratar disso com grandes letrados, embora eles não fossem muito dados à oração, porque o seu desejo era apenas saber se se conformavam às Sagradas Escrituras todas as coisas que tinha. E algumas vezes se consolava, por parecer--lhe que, embora por seus pecados merecesse ser enganada, Deus não permitiria que se enganassem tantas pessoas boas como as que desejavam dar-lhe luz.

8. Com essa intenção, começou a tratar dessas coisas com padres de São Domingos, pois antes de as ter muitas vezes se confessava com eles. Aqueles com quem ela tratou são: frei Vicente Barrón, que a confessou um ano e meio em Toledo, quando ela foi fundar ali, sendo ele consultor da Inquisição e grande letrado; este muito a tranqüilizou. E todos lhe diziam que, se não ofendia a Deus e se se reconhecia ruim, não tinha por que temer. O Mestre frei Domingo Bañes17 — que é agora consultor do Santo Ofício em Valladolid — confessou-a por seis anos, e ela sempre trata com ele por carta quando algo de novo se oferece. O Mestre Chaves. O frei Pedro Ibañez, que era então leitor em Ávila e grandíssimo letrado, e outro dominicano chamado frei García de Toledo. O Padre Mestre frei Bartolomé de Medina, catedrático de Salamanca, que ela sabia estar muito mal com ela por ter ele ouvido falar dessas coisas; pareceu-lhe que este lhe diria de pronto se estava enganada, melhor do que ninguém (isso ocorreu há pouco mais de dois anos), e ela procurou confessar-se com ele, dando-lhe longas contas de tudo quando ali esteve, procurando que ele visse o que escrevera para que entendesse melhor a sua vida. Ele a tranqüilizou muito, e mais do que todos, e ficou muito amigo seu.

Também se confessou algum tempo com o Padre Mestre Frei Filipe de18 Meneses, quando esteve em Valladolid para fundar, sendo ele o Prior ou Reitor do Colégio de São Gregório, e, tendo ouvido essas coisas, fora falar com ela em Ávila com muita caridade, querendo saber se estava enganada e se havia razão para que murmurassem tanto a seu respeito; e ele se deu por muito satisfeito. Ela também tratou pessoalmente com um Provincial de São Domingos de nome Salinas, homem muito espiritual e grande servo de Deus, bem como com outro que agora é leitor em Segóvia, chamado frei Diego de Yanguas, homem de aguda percepção.

9. E alguns outros, pois em tantos anos e com temor houve lugar para isso, em especial porque, como ia a tantas partes fundar, fizeram-na passar por muitas provas, já que todos desejavam ter sucesso em lhe dar luz, razão por que com isso lhe deram segurança e se asseguraram a si mesmos.

10. Ela sempre esteve sujeita, e o está, a tudo o que diz a santa fé católica, e toda a sua oração e a das casas que fundou pedem que esta cresça. Ela dizia que, quando alguma coisa dessas a induzisse a ir contra o que é fé católica e a lei de Deus, não haveria necessidade de procurar provas, pois logo se veria ser o demônio.

11. Jamais fez qualquer coisa com base no que ouvia na oração. Em vez disso, se seus confessores lhe diziam que fizesse o contrário, logo o fazia, e sempre lhes contava tudo. Nunca acreditou tão profundamente que o jurasse que era Deus — conquanto lhe dissessem que sim —, ainda que, pelos efeitos e pelas grandes graças que isso lhe deixou em algumas coisas, lhe parecesse bom espírito; mas sempre desejava virtudes, e para isso dirigiu suas monjas, dizendo que a mais humilde e mortificada seria a mais espiritual.

12. Isto que escreveu19 deu ao Padre Mestre Frei Domingo Bañes, que está em Valladolid, que é com quem mais tem tratado e trata. Ela pensa que ele o apresentou ao Santo Ofício em Madrid.20 De todo ele se sujeita à cor­reção da fé católica e da Igreja. Nenhum a inculpou, porque estas são coisas que não estão nas mãos de ninguém, e Nosso Senhor não pede o impossível.

13. Como deu conta disso a tantos, devido ao grande temor que sentia, essas coisas se divulgaram muito, o que foi para ela um enorme tormento e cruz; diz ela que não por humildade, mas porque sempre a desgostavam as coisas que se diziam das mulheres. Extremava-se para não se sujeitar a quem ela julgava acreditar que tudo vinha de Deus, porque temia que o demônio enganasse a ambos. Tratava de sua alma com mais disposição com quem via temeroso, se bem que também sofresse com aqueles que depreciavam de todo essas coisas — era para prová-la —,21 porque a seu ver algumas delas vinham de Deus, e não queria que, por não verem a causa, as condenassem decididamente, como tampouco queria que acreditassem vir tudo de Deus, visto entender muito bem que podia haver engano; por isso, jamais lhe pareceu poder assegurar-se de todo naquilo em que podia haver perigo. Ela procurava o mais que podia em nada ofender a Deus e sempre obedecer; e com essas duas coisas pensava estar livre, mesmo que fosse o demônio.

14. Desde que passou a ter coisas sobrenaturais, o seu espírito sempre se in­clinou a buscar o mais perfeito, e quase sempre tinha grandes desejos de pa­decer; e nas perseguições — pois muitas teve — se achava consolada e com amor especial por quem a perseguia. Grande desejo de pobreza e de solidão, bem como de sair deste desterro para ver a Deus. Por esses efeitos e outros se­­me­lhantes, ela começou a sossegar, julgando que o espírito que a deixava com essas virtudes não poderia ser mau, e assim o diziam as pessoas com quem tra­tava, se bem que não para deixar de temer, mas para não ficar tão aflita. Ja­mais o seu espírito a persuadia a ocultar alguma coisa, mas sim a obedecer sempre.

15. Nunca viu qualquer coisa com os olhos do22 corpo, como foi dito, se bem que algumas vezes pensava, a princípio, que se lhe haviam afigurado coisas, enquanto em outras não o podia pensar; o que viu vinha com uma grande delicadeza e era uma coisa muito intelectual. Tampouco ouviu algum dia com os ouvidos corporais, exceto duas vezes, e, nestas, nada entendeu do que lhe diziam, nem soube o que era.

16. Essas coisas não eram contínuas, mas, em alguma necessidade, ocorriam algumas vezes, como sucedeu numa ocasião em que passara alguns dias com al­guns insuportáveis tormentos interiores e um desassossego interior advindos do temor de estar sendo enganada pelo demônio, como é explicado mais amplamen­te naquela Relação,23 onde também estão seus pecados, que assim se tornaram pú­bli­cos, como essas outras coisas, porque o medo que tinha a fez esquecer seu cré­d­ito. E estando assim aflita de maneira indescritível, bastou-lhe ouvir em seu in­terior as palavras “Sou Eu, não tenhas medo” para a alma ficar tão calma, tão ani­mada e confiante que ela não podia entender de onde lhe viera tão grande bem.

Porque o confessor não fora suficiente, nem o foram muitos letrados, com muitas palavras, para infundir-lhe aquela paz e quietude que com uma só frase nela se manifestaram. E assim aconteceu outras vezes de, com alguma visão, ficar fortalecida; porque, não fosse por isso, ela não poderia ter passado por tão grandes sofrimentos, contrariedades e enfermidades — que foram sem conta —, nem passar como passa, pois jamais vive sem alguma espécie de padecimento. Há mais e menos, mas de ordinário são sempre dores com outras muitas enfermidades, se bem que, depois de fazer-se monja, ela tem sido incomodada ainda mais.

17. Se em alguma coisa serve ao Senhor e as graças que Ele lhe faz lhe passam rapidamente pela memória, embora destas muitas vezes se lembre, ela não pode deter-se aí muito, como se detém nos pecados, que sempre a estão atormentando com um lodo malcheiroso. O ter tido tantos pecados e ter servido a Deus tão pouco devem ser a causa de não ter a tentação da vanglória.

18. Jamais, com coisas do seu espírito, teve persuasão ou coisas que não fossem todas limpas e castas, destacando-se um grande temor de ofender a Deus Nosso Senhor e de não fazer em tudo a Sua vontade. Isso ela Lhe suplica sempre, e a seu ver está tão determinada a não afastar-se daí que aqueles que a dirigem — confessores e prelados — não diriam nada que ela pensasse servir mais a Deus que ela deixasse de pôr em prática, confiando que o Senhor ajuda os que se determinam a Seu serviço e glória.

19. Ela não se lembra mais de si, nem do seu proveito — em comparação com isso; é como se ela não existisse, tanto pelo que pode entender de si como pelo que entendem seus confessores. Tudo o que está neste papel é muito verdadeiro, como pode comprovar com eles Vossa Mercê, se o desejar, bem como com todas as pessoas que disso têm tratado há vinte anos. É muito comum que o seu espírito a mova a entoar louvores a Deus, e a desejar que todo o mundo se ocupasse disso, mesmo que a ela custasse muito. Daqui vem o desejo do bem das almas, e é por isso que, vendo quão sujas são as coisas exteriores deste mundo e quão preciosas as interiores — que não têm comparação —, veio a ter em pouco as coisas dele.

20. O modo de visão sobre o qual Vossa Mercê me perguntou é assim: não se vê nada interior nem exteriormente, por não ser visão imaginária; mas, sem que se veja nada, a alma entende o que é e de que lado lhe é apresentado com muito mais clareza do que se o visse. Mas o que lhe é apresentado não é uma coisa particular; é como se uma pessoa sentisse que outra está a seu lado mas, como o ambiente está às escuras, não a visse, embora tenha certeza de que está ali.

Essa comparação não é suficiente, porque o que está às escuras pode, de algum modo, ou ouvindo ruídos ou tendo visto antes a pessoa, perceber que ela está ali, podendo ainda já a conhecer antes. Na visão de que falo, não há nada disso, mas a alma, sem palavras exteriores ou interiores, percebe clarissi­ma­mente quem é e de que lado está, e, às vezes, o que quer dizer. Por que ou como o entende ela não sabe, mas tudo se passa assim e, enquanto dura, ela não pode ignorar.

Quando a visão se retira, por mais que a alma a queira imaginar como antes, não o consegue, porque, neste último caso, percebe que é imaginação, e não presença, visto que esta não está em suas mãos, sendo assim todas as coisas sobrenaturais. E disso decorre não se considerar nada a alma a quem Deus concede esse favor, porque ela vê que este é coisa dada e que ela nada pode tirar nem pôr ali; isto a faz ficar com muito mais humildade e amor, disposta a servir sempre a esse Senhor tão poderoso, que pode fazer o que aqui sequer podemos entender. Porque, por mais letras que se tenha, há coisas que não se alcançam.

Bendito seja Aquele que as dá, por todo o sempre.

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1. São tão difíceis de dizer, ainda mais de maneira que se possam entender, essas coisas interiores do espírito, sobretudo porque passam com muita brevidade, a ponto de, se não fosse a obediência, não ser possível atinar, especialmente em coisas tão difíceis. Mas pouco importa se eu disser disparates, pois isso vai ter às mãos de quem outros maiores desatinos terá percebido em mim.

Em tudo o que disser, suplico a Vossa Mercê que entenda não ser meu intento pensar que é acertado, visto que poderei não entendê-lo; mas o que posso assegurar é que não direi nada que não tenha experimentado algumas e muitas vezes. Se é bom ou ruim, Vossa Mercê o verá e me dará conta disso.

2. Parece-me que será dar gosto a Vossa Mercê começar a tratar desde o princípio de coisas sobrenaturais, já que as de devoção, de ternura, de lágrimas e de meditações, que aqui podemos adquirir com a ajuda do Senhor, estão entendidas.

3. A primeira oração sobrenatural que, a meu ver, senti (chamo de sobrenatural algo que não podemos adquirir com nosso engenho e esforço, por mais que procuremos, embora possamos nos dispor a ele, o que é muito importante) é um recolhimento interior25 que se sente na alma, dando a impressão de que ela tem outros sentidos, como aqui tem os exteriores, e de que parece querer afastar-se das agitações exteriores; e assim algumas vezes o leva consigo, pois lhe dá vontade de fechar os olhos e não ouvir, nem ver, nem entender senão aquilo de que então se ocupa, que é poder tratar com Deus a sós. Aqui, não se perde nenhum sentido nem faculdade, estando tudo intacto, mas estando-o para ser empregado em Deus. Isso será fácil de entender por parte daqueles a quem o Senhor o tiver concedido; a quem Ele não o concedeu, serão pelo menos necessárias muitas palavras e comparações.

4. Deste recolhimento vêm algumas vezes uma quietude e uma paz interior muito jubilosas, ficando a alma com a impressão de que não lhe falta nada; e até o falar a cansa, digo o rezar e o meditar, pois ela não quereria senão amar. Dura um instante, e mesmo vários.

5. Desta oração costuma advir um adormecimento que chamam das faculdades, que não estão absortas nem tão suspensas que se possa denominar isso arroubo. Se bem que não seja de todo união, alguma vez, e mesmo muitas, a alma percebe que só a vontade está unida e entende muito claramente — digo claramente ao que parece. A alma está toda empenhada em Deus e vê que lhe faltam forças para trabalhar em outra coisa; e as outras duas faculdades ficam livres para negócios e obras do serviço de Deus. Enfim, andam juntas Marta e Maria. Eu perguntei ao Padre Francisco26 se isso seria engano, porque me deixava confusa, e ele me disse que acontecia muitas vezes.

6. É muito diferente quando é união de todas as faculdades, porque então a alma nada pode fazer; o intelecto fica como que espantado, a vontade mais ama do que entende, mas não entende se ama, nem entende o que faz de modo a poder dizê-lo. A memória, a meu ver, desaparece, não havendo também pensamento; na verdade, os sentidos sequer ficam despertos então: é como se eles se perdessem por aquele breve espaço de tempo para a alma mais se dedicar àquilo que goza, penso eu. Isso passa depressa. Pela riqueza que fica na alma, em termos de humildade e de outras virtudes e desejos, compreende-se o grande bem que lhe veio daquele favor, mas não se pode dizer o que é, porque, embora entenda, a alma não sabe como o entende nem como dizê-lo. A meu ver, se é verdadeiro, esse é o maior favor que Nosso Senhor faz neste caminho espiritual, ou, ao menos, um dos grandes.

7. Para mim, arroubos e suspensão são uma só coisa; eu é que costumo dizer suspensão, para não dizer arroubo, que espanta. Mas também se pode verdadeiramente chamar de suspensão essa união de que falei. Ela difere do arroubo pelo fato de durar mais e ser mais sentida no exterior, porque a respiração vai se encurtando de maneira que não se pode falar nem abrir os olhos. Embora aconteça isso mesmo na união, aqui é com maior força, porque o calor natural vai não sei para onde; quando é grande o arroubo, de que há mais e menos em todos esses modos de oração, as mãos ficam geladas e por vezes esticadas com paus; o corpo, se está de pé ou ajoelhado, assim fica. E é tanto o que a alma se empenha no gozo do que o Senhor lhe apresenta que parece esquecer-se de animar o corpo, deixando-o desamparado; e, se dura mais tempo, os nervos se ressentem.

8. Parece-me que aqui quer o Senhor que a alma entenda mais daquilo que goza do que na união. Assim, são-lhe reveladas comumente algumas coisas de Sua Majestade no enlevo; e os efeitos com que a alma fica são grandes: ela se esquece de si mesma para desejar que tão grande Deus e Senhor seja conhecido e louvado. Tenho para mim que, se isso é de Deus, a alma não pode ficar sem um grande conhecimento de que ali não pode nada, sua miséria e ingratidão por não ter servido a Quem, apenas pela Sua bondade, lhe concede tão grande graça. Porque o sentimento e a suavidade são tão excessivos, estando além de qualquer comparação com coisas daqui, que, se aquela lembrança não passasse, a alma ficaria sempre com asco dos contentamentos do mundo, vindo assim a ter em muito pouca conta todas as coisas deste.

9. A diferença entre arroubo e arrebatamento é que o arroubo leva a alma, pouco a pouco, a morrer para essas coisas exteriores, a perder os sentidos e a viver em Deus. O arrebatamento vem com um único indício que Sua Majestade dá no mais profundo da alma, com uma velocidade tal que ela tem a impressão de ser arrebatada para sua própria parte superior e de sair do corpo; eis por que é necessário ânimo, no início, para entregar-se aos braços do Senhor, a fim de que Ele a leve para onde quiser. Porque, até que Sua Majestade a ponha em paz no lugar para onde quer levá-la (digo levá-la a entender coisas elevadas), por certo é preciso, no princípio, que a alma esteja bem determinada a morrer por Ele; porque, no início, a pobre alma não sabe o que há de ser aquilo.

10. A meu ver, as virtudes ficam com isso mais fortes, porque aumentam os desejos e fica mais claro para a alma o poder desse grande Deus, para que ela O tema e ame, visto que Ele, sem que nada possamos fazer, arrebata a alma, agindo bem como Senhor dela. Fica-lhe um grande arrependimento de tê-Lo ofendido, bem como espanto por ter ousado ofender tão grande Majestade, e uma grandíssima ânsia de que não haja quem O ofenda, mas que todos O louvem. Penso que devem vir daqui esses desejos tão imensos de que se salvem as almas e de ter alguma participação nisso, assim como de que esse Deus seja louvado como merece.

11. O vôo do espírito é um não sei quê, que nem sei como chamar, vindo do mais íntimo da alma. Só me lembro dessa comparação, que escrevi onde Vossa Mercê sabe que estão amplamente relatados esses e outros modos de Oração; e é tal a minha memória que logo me esqueço.27 Parece-me que a alma e o espírito devem ser uma só coisa, já que, assim como um fogo, se for grande e estiver disposto para arder, assim também a alma, de acordo com a disposição que tem com Deus, é como o fogo, uma vez que imediatamente arde e lança uma chama que chega ao alto, sendo esta coisa tão fogo quanto o é a outra que está embaixo; e não é porque esta chama sobe que o fogo que a produziu deixa de ficar onde está. Assim ocorre com a alma, que parece produzir de si uma coisa tão rápida e tão delicada que se eleva à sua parte superior e vai aonde o Senhor quer que vá. O fato é que não se pode dizer mais, parecendo um vôo, pois eu não sei com que outra coisa compará-lo. Sei que se entende com clareza e que não é possível impedi-lo.

12. Parece que aquela avezinha do espírito escapou da miséria desta carne e do cárcere deste corpo, podendo desse modo dedicar-se mais ao que o Senhor lhe dá. É algo tão delicado e precioso, pelo que a alma entende, que não lhe parece ha­ver nisso ilusão, nem em nenhuma dessas coisas, quando passam. Depois vêm os temores, por ser tão ruim quem o recebe que de tudo lhe parece ter razão para temer, embora no interior da alma permaneçam uma certeza e uma segurança com que se pode viver, mas não para deixar de se esforçar para não ser enganada.

13. Denomino ímpetos um desejo que acomete a alma algumas vezes, sem ser precedido de oração, o que é o mais comum; é apenas uma lembrança repentina de que a alma está ausente de Deus, ou então alguma palavra que ouve a induz a esse estado. É tão poderosa essa lembrança e, por vezes, tem tamanha força que, num átimo, parece que a alma desatina; é como quando se recebe uma notícia ruim repentinamente, sem que se tivesse a mínima idéia do seu teor, ou quando se sofre um grande sobressalto, parecendo que o discurso mergulha no pensamento para que a pessoa se console, ficando ela como que absorta. Assim acontece aqui, mas o pesar é motivado por tal causa que fica na alma a certeza de que vale a pena morrer por ele.

14. Parece que tudo quanto a alma entende então é para mais padecer e que o Senhor não quer que todo o seu ser lhe sirva para outra coisa, nem mesmo recordar-se de que Sua vontade é que viva; a alma tem a impressão de que está em grande solidão e de todo desamparada, a ponto de não se poder descrever. Porque todo o mundo e suas coisas lhe dão pesar, e nenhuma coisa criada lhe faz companhia, nem quer a alma senão o Criador, vendo que isso é impossível se não morrer. E, como não há de se matar, a alma morre por morrer, de tal maneira que corre verdadeiramente perigo de morte, vendo-se como que dependurada entre o céu e a terra, sem saber o que fazer de si.

E, de quando em vez, Deus lhe dá notícia de Si para que ela veja o que perde; fá-lo de uma maneira tão estranha que é impossível descrever, porque nenhuma há na terra, ao menos de quantas passei, que se iguale a ela. É suficiente que isso dure meia hora para deixar o corpo tão desconjuntado e os pulsos tão abertos que sequer as mãos ficam em condições de escrever, havendo ainda imensas dores.

15. A alma não sente disso coisa alguma até que passe o ímpeto. Ela tem muito o que fazer em sentir o interior, e não creio que sentiria graves tormentos exteriores, e está com todos os seus sentidos, podendo falar e até ver; andar não, visto estar derreada pelo grande golpe do amor. Mesmo que morra para tê-lo, isso só lhe advém quando Deus o dá. Deixa enorme efeito e ganho na alma. Dizem certos letrados que é uma coisa, e outros, outra; nenhum o condena. O Mestre Ávila me escreveu que era bom,28 e assim o dizem todos. A alma bem compreende ser grande graça do Senhor. Se fosse muito amiúde, a vida pouco duraria.

16. O ímpeto comum é o que traz o desejo de servir a Deus, ao lado de uma grande ternura e lágrimas para sair desse desterro. Contudo, como há li­berdade para a alma considerar que é vontade do Senhor que ela viva, com isso se consola e Lhe oferece o viver, suplicando-Lhe que não seja senão para a Sua glória. Com isso, o ímpeto passa.

17. Outro modo bem freqüente de oração é à maneira de ferida, pois a alma tem a impressão de que lhe enfiam uma seta no coração, vindo esta de dentro. Assim, produz-se uma dor grande que a faz queixar-se, mas tão pra­zerosa que ela nunca quereria que lhe faltasse. Essa dor não atinge os sentidos e tampouco é chaga material; ela fere o interior da alma, sem parecer dor corporal. Contudo, como não é possível explicar a não ser por comparações, escrevem-se essas grosserias, pois diante do que é essa ferida as minhas palavras o são; mas é que eu não sei dizê-lo de outra maneira.

Eis o motivo pelo qual essas coisas não devem ser escritas nem contadas, porque é impossível que as entenda senão quem as tiver experimentado. Refiro-me ao ponto até o qual chega esse pesar, porque as penas do espírito são completamente diferentes dos sofrimentos daqui. Disso percebo o muito que padecem as almas no inferno e no purgatório, muito mais do que é possível perceber aqui através dos sofrimentos corporais.

18. Outras vezes parece que essa ferida do amor sai do mais íntimo da alma. Os efeitos são grandes; e quando o Senhor não a dá, não há o que fazer, por mais que se procure, da mesma forma que não é possível deixar de tê-la quando Ele a deseja dar. Vêm como que uns desejos de Deus, tão vívidos e tão delicados que não é possível descrever. A alma, vendo-se presa para não gozar como queria de Deus, aborrece-se muito com o corpo, que lhe parece uma grande parede que a impede de fruir aquilo que então percebe, que, a seu ver, goza em si, sem embaraço do corpo. Ela vê então o grande mal que nos adveio por ter o pecado de Adão nos tirado essa liberdade.

19. Esse modo de oração veio antes dos arroubos e dos grandes ímpetos de que falei. Esqueci-me de dizer que, de modo geral, aqueles grandes ímpetos não desaparecem se não advierem um arroubo e um grande regalo do Senhor, em que Ele consola a alma e a anima a viver para Ele.

20. Tudo isso que eu disse não pode ser imaginação, devido a alguns motivos que seria longo descrever. Se é coisa boa ou não, sabe-o o Senhor. A meu ver, contudo, os seus efeitos e o grande proveito que deixa na alma não se podem deixar de entender.

21. As Pessoas vejo claramente serem distintas, tal como via ontem Vossa Mercê e o Provincial29 conversando; a diferença é que não vejo nada, nem ouço, como já disse a Vossa Mercê; mas é com uma certeza estranha, e, embora não vejam os olhos da alma, quando falta aquela presença, logo se vê que falta. Como é isso não sei, mas sei muito bem que não é imaginação; porque, embora depois me desfaça para torná-lo a representar, não posso, mesmo já o tendo experimentado. E acontece a mesma coisa com tudo de que falo aqui, pelo que posso entender, já que, em tantos anos, tem-se podido verificar bem para dizê-lo com essa certeza.

22. Verdade é, e atente Vossa Mercê para isso, que a Pessoa que sempre fala bem posso afirmar quem me parece ser, não podendo fazer o mesmo com as outras. Uma delas sei bem que nunca foi. A causa jamais compreendi, nem me ocupo em pedir mais do que Deus quer, porque logo me parece que o demônio me haveria de enganar; e tampouco o pedirei agora, pois ainda tenho esse temor.

23. A primeira parece-me que alguma vez me falou; mas, como agora não me lembro bem, nem sei o que era, não o ousarei afirmar. Tudo está escrito onde Vossa Mercê sabe,30 e com amplidão maior do que aqui, se bem que não sei se com estas palavras. Embora essas Pessoas distintas se dêem a entender de uma maneira estranha, a alma entende ser um só Deus. Não me recordo de ter a impressão de que Nosso Senhor fale, a não ser a Humanidade, e, digo já, isso posso afirmar que não é ilusão.

24. Não sei o que Vossa Mercê disse de água, e tampouco entendi onde está o Paraíso terrestre. Já disse que o que o Senhor me dá a entender, o que não posso evitar, entendo-o por mais não poder. Porém pedir a Sua Majestade que me dê a entender alguma coisa é algo que jamais fiz, pois logo me pareceria que eu o imaginava e que o demônio me havia de enganar; nunca, Deus seja louvado, fui curiosa, desejando saber coisas, nem me interessa saber mais. Muito trabalho me tem custado o que, como eu digo, entendi sem querer, embora pense que foi esse o meio empregado pelo Senhor para a minha salvação, pois me viu tão ruim, já que os bons não precisam de tanto para servir a Sua Majestade.

25. Lembro-me de outra oração, que vem antes da primeira de que falei. Trata-se de uma presença de Deus, que de modo algum é visão, mas parece que, de cada vez e todas as vezes (pelo menos quando não há secura) que uma pessoa quer se encomendar a Sua Majestade, mesmo que apenas reze vocalmente, Ele se faz presente.

Praza-lhe que eu não perca tantas graças por minha culpa, e tenha misericórdia de mim.

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1. Oh, quem pudesse dar bem a entender a Vossa Senhoria a quietude e sossego em que se acha a minha alma! Porque ela já tem tanta certeza de que há de gozar de Deus que lhe parece já gozar da posse que lhe foi dada, apesar de ainda não ter o gozo. É como se alguém tivesse dado a outro uma grande renda, por escrituras muito firmes, para que ele disso gozasse daqui a certo tempo e colhesse os frutos; mas, até que isso aconteça, a pessoa só goza da posse, que já lhe deram, que é garantia de que aproveitará essa renda. E, com o agradecimento que lhe fica, sequer a quereria aproveitar, porque lhe parece que não a mereceu, mas sim servir, mesmo que seja padecendo muito; e até, por vezes, parece-lhe que sofrer daqui até o fim do mundo seria pouco para servir a quem lhe deu essa posse.

Porque, na verdade, ela em parte já não está sujeita às misérias do mundo como costumava; embora sofra mais, não lhe parece que lhe toquem senão a roupa: a alma está como que num castelo, com senhorio, e assim não perde a paz, se bem que essa segurança não lhe tire um grande temor de ofender a Deus e de não deixar tudo aquilo que a impeça de servi-Lo. Com efeito, ela até tem mais cuidado; contudo, anda tão esquecida do seu próprio proveito que lhe parece ter perdido parcialmente o ser, tão esquecida anda de si. Em tudo tem em vista a honra de Deus e o cumprir melhor a Sua vontade e o ser Ele glorificado.

2. Conquanto isso seja assim, no tocante à sua saúde e ao seu corpo, parece-me estar ela mais cuidadosa, com menos mortificação no comer e, na penitência, seus desejos não são os mesmos de antes. Ao que parece, porém, tudo está voltado para poder melhor servir a Deus em outras coisas, oferecendo-Lhe muitas vezes, como um grande sacrifício, o cuidado do corpo, pois isso a cansa muito. Algumas vezes, se põe à prova em algo, embora lhe pareça não poder fazê-lo sem prejudicar a sua saúde, só o fazendo ao lembrar-se das ordens dos prelados. Nisso e no desejo de ter saúde também deve se intrometer um grande amor-próprio. A meu ver, contudo, entendo que me daria muito mais gosto, e me dava, poder fazer muita penitência; porque ao menos me parecia fazer alguma coisa, dando bom exemplo, sem viver com esse tormento que é o não servir a Deus em nada. Vossa Senhoria veja o que será melhor fazer quanto a isso.

3. As visões imaginárias cessaram, mas parece que sempre estou com a visão intelectual das três Pessoas e da Humanidade, o que é, a meu ver, coisa muito mais elevada. E agora entendo, pelo que posso julgar, que eram de Deus as que tive, porque dispunham a alma ao estado em que ora se encontra. Mas, sendo tão miserável e tão fraca, Deus a ia levando como via ser necessário; a meu parecer, as visões são muito apreciáveis quando vêm de Deus.

4. As falas interiores não cessaram. Quando é preciso, dá-me Nosso Senhor alguns avisos, e ainda agora, em Palência, se teria feito um disparate, se bem que não de pecado, não fosse por isso.32

5. Os atos e desejos não parecem ter a força que costumavam, porque, embora sejam grandes, é tão mais potente o desejo de que se faça a vontade de Deus e tudo quanto seja para a Sua maior glória que, como a alma tem bem entendido que Sua Majestade sabe o que para isso convém e está tão afastada do interesse próprio, esses desejos e atos logo se acabam e, a meu ver, não têm força. Daqui vem o medo que me atinge algumas vezes, se bem que não com a inquietude e o sofrimento de antes, de que a alma esteja abobada e eu sem fazer nada, porque penitência não me permitem.

Atos de padecer, de martírio e de ver a Deus não têm força, e o mais comum é que eu não possa praticá-los. Parece que vivo apenas para comer e dormir e não ter pena de nada, pois mesmo esta não me é dada senão algumas vezes, a ponto de, como digo, eu temer que seja engano, embora não o possa crer, porque, ao menos de acordo com a minha opinião, não reina em mim, com força, apego a nenhuma criatura, nem a toda a glória do céu, mas somente a amar a este Deus. Isto não sofre redução, mas, a meu ver, antes cresce, o mesmo ocorrendo com o desejo de que todos O sirvam.

6. Mas, com isso, uma coisa me espanta: os sentimentos tão excessivos e interiores que costumavam me atormentar ao ver as almas se perderem e ao pensar se ofendia a Deus já não posso sentir agora, se bem que, a meu ver, não seja menor o desejo de que Ele não seja ofendido.

7. Deve Vossa Senhoria perceber que em tudo isso, quer no que agora tenho, quer no passado, não tenho podido mais nem está em minhas mãos; servir mais eu poderia, se não fosse ruim. Mas digo que, se agora procurasse, com grande cuidado, desejar morrer, eu não o poderia, o mesmo ocorrendo com praticar os atos como deveria, sentir o sofrimento pelas ofensas a Deus, bem como os tão grandes temores que trouxe em mim por tantos anos por me parecer que andava enganada.

Desse modo, já não preciso procurar letrados nem dizer nada a ninguém: basta que eu me assegure de ir bem e de poder fazer alguma coisa. E tenho falado disso com alguns deles, com quem tratei das outras: o frei Domingo, o Mestre Medina e alguns da Companhia. Com o que Vossa Senhoria me disser agora, acabarei de me assegurar, pelo grande crédito em que o tenho. Cuide muito disso, por amor de Deus.

Tampouco me vi privada de entender que algumas almas que me tocam de perto estão no céu e outras, não.33

8. A solidão me faz pensar que não se pode dar aquele sentido a “o que se amamenta nos seios de minha mãe”.34 A ida para o Egito…

9. A paz interior e a pouca força que têm os contentamentos e descontentamentos para tirá-la [a presença] de uma maneira duradoura…

Essa presença, tão fora de dúvidas, das três Pessoas, em que claramente se experimenta o que diz São João — “que faria a sua morada na alma” —,35 e não só por graça, mas porque quer dar a sentir essa presença, que traz tantos bens indescritíveis, é de tal maneira que não é necessário ficar fazendo considerações para perceber que Deus está ali.

E isso ocorre quase sempre, a não ser quando muita enfermidade traz acabrunhamento, pois algumas vezes parece que Deus deseja que se padeça sem consolo interior; mas nunca, nem num primeiro movimento, a alma distorce a vontade de que nela se faça a de Deus.

Tem tanta força essa entrega à vontade de Deus que a alma não quer nem a morte nem a vida, a não ser por pouco tempo, quando deseja ver a Deus; mas logo lhe é representado que estão presentes essas três Pessoas com tanta força que, com isso, se aplaca o sofrimento dessa ausência, e fica o desejo de viver, se Ele quiser, para mais servi-Lo e de, se pudesse, contribuir para que uma única alma O amasse mais e O louvasse por sua intercessão. Porque, mesmo que por pouco tempo, isso lhe parece ser mais importante do que estar na glória.

Teresa de Jesus

736

1. Aos dezessete dias de novembro, oitava de São Martinho, ano de 1569, vi que, para algo que sei, se passaram doze anos. Para trinta e três, que é o que o Senhor viveu, faltam vinte e um.

Em Toledo, no convento do glorioso São José do Carmo.

Eu por ti e tu por mim.

Vida.37

Doze por mim, e não por minha vontade, foram vividos.

838

Estando eu no convento de Toledo, e tendo alguns me aconselhado que não concedesse o direito de enterro nele a quem não fosse cavalheiro, disse--me o Senhor: “Muito errarás, filha, se olhares as leis do mundo. Põe os olhos em mim, pobre e depreciado por ele. Porventura serão os grandes do mundo grandes diante de mim? Ou haveis vós de ser estimadas pela linhagem, ou pelas virtudes?”

(Isto era sobre o conselho que me davam de não permitir o enterro em Toledo a quem não fosse cavalheiro.)39

940

Acabando de comungar, no segundo dia da Quaresma, em São José de Malagón, representou-se-me Nosso Senhor Jesus Cristo em visão imaginária, co­mo de costume; e, estando eu a contemplá-Lo, vi que na cabeça, em lugar da coroa de espinhos, estava uma coroa de grande resplendor — provavelmen­te no lugar onde fizeram chaga.

Como sou devota dessa estação, consolei-me muito e comecei a pensar que grande tormento deveria ser para ter feito tantas feridas, e a sentir pena. Disse-me o Senhor que não O lastimasse por aquelas feridas, mas pelas muitas que agora Lhe faziam. E eu Lhe perguntei o que podia fazer para remediar isso, pois estava decidida a tudo. Disse-me Ele que este não é o momento de descansar, e que eu me apressasse a fazer essas casas, porque, com as almas delas, Ele tinha descanso; que tomasse quantas me dessem, porque havia muitas almas que, por não terem onde, não O serviam, e que as que fizessem em lugares pequenos fossem como esta, pois nelas as almas poderiam merecer o mesmo pelo desejo de fazer como nas outras.

Disse-me que procurasse que todas andassem sob o governo de um prelado, e que eu me empenhasse muito para que não se perdesse a paz interior por causa da manutenção corporal, pois Ele nos ajudaria para que isso nunca faltasse; que se considerassem em especial as enfermas, e que a prelada que não as provesse e as regalasse era semelhante aos amigos de Jó: Ele dava o açoite para o bem de suas almas, e elas punham em risco a paciência. Que eu escrevesse a fundação dessas casas.41

Estando eu a pensar que, em Medina, nunca havia encontrado nada para escrever sobre sua fundação, perguntou-me Ele o que mais eu queria para ver que sua fundação fora milagrosa. Quis dizer com isso que Ele o fizera, quando parecia não haver nenhuma condição, determinando-me eu a pô-la em prática.42

10

Estando eu pensando num aviso que o Senhor me dera para que eu desse e não entendendo nada, embora Lho suplicasse, eu pensava que devia ser o demônio; disse-me que não era e que me avisaria no momento certo.43

11

Estando eu pensando uma vez que se vive com muito mais pureza quando se está afastado de negócios e que, quando eu me envolvo neles, devo andar mal e com muitas faltas, ouvi: “Não pode deixar de ser, filha; procura em tudo a reta intenção e o desapego, e põe os olhos em mim, para que tudo o que fizeres seja conforme ao que eu fiz”.44

12

Estando eu pensando qual seria o motivo de agora não ter quase nunca arroubos em público, ouvi: “Não convém agora; bastante crédito tens para o que Eu pretendo. Consideremos a fraqueza dos maliciosos”.45

13

Estando um dia muito penalizada devido ao que era preciso para remediar a Ordem, disse-me o Senhor: “Faze o que está em teu poder e deixa-Me agir, sem te inquietares com nada; goza do bem que te foi dado, que é muito grande. Meu Pai se deleita contigo, e o Espírito Santo te ama”.46

14

Um dia, disse-me o Senhor:47 “Sempre desejas sofrimentos e, por outro lado, tu os recusas: disponho as coisas de acordo com o que sei de tua vontade, e não de acordo com tua sensibilidade e fraqueza. Esforça-te, pois vês quanto te ajudo. Quero que ganhes esta coroa. Em teus dias, verás muito adiantada a Ordem da Virgem”.

Isso ouvi do Senhor em meados de fevereiro, ano de 1571.

1548

1. Passei todo o dia de ontem com grande solidão e, a não ser quando comunguei, nada causou em mim ser dia da Ressurreição. À noite, estando com todas, cantaram um copla dizendo como era difícil suportar viver sem Deus.49 Como eu já estava penalizada, foi tamanho o efeito que isso teve em mim que minhas mãos começaram a se entorpecer e não me foi possível resistir. Porque, assim como saio de mim pelos arroubos de gozo, assim também fica suspensa a alma com o pesar imenso, a ponto de alhear-se. Até hoje eu não tinha compreendido isso.

De uns dias para cá, parecia-me não ter ímpetos tão grandes como costumava, e agora me parece que a causa é o que tenho dito, embora nem saiba se pode ser, pois antes o pesar não chegava a fazer-me sair de mim e, sendo tão intolerável e estando eu em meus sentidos, fazia-me dar imensos gritos sem que eu o pudesse evitar. Agora, como aumentou, chegou a ponto desse trespassamento, e entendo melhor o que Nossa Senhora sentiu, pois até hoje — como eu disse — não tinha entendido o que é trespassamento. O corpo ficou tão alquebrado que escrevo isto hoje com muito sofrimento, pois as mãos estão como que desconjuntadas e doloridas.

2. Vossa Mercê, quando me vir, me dirá se é possível esse alheamento de pesar e se o sinto tal como é ou se me engano.

3. Até esta manhã estive com esse pesar e, estando em oração, tive um grande arroubo e me pareceu que Nosso Senhor me levara o espírito até junto de Seu Pai e lhe dissera: “Esta, que me deste, eu te dou”. E parecia-me que me aproximava de Si. Isso não é coisa imaginária, mas vem com uma grande certeza e uma delicadeza tão espiritual que não se sabe descrever. Ele me disse algumas palavras de que não me lembro; algumas falavam de conceder--me graças. Durou algum tempo o ter-me junto de Si.

4. Como Vossa Mercê se foi ontem tão depressa e vejo as muitas ocupações que tem para que me possa consolar mesmo o necessário, pois vejo que são mais necessárias as ocupações de Vossa Mercê, fiquei por algum tempo com aflição e tristeza. Como sentia a solidão de que falei, ela ajudou nisso; e, como não me parece que eu esteja apegada a alguma criatura da terra, deu-me certo escrúpulo, pois temi começar a perder essa liberdade.

Isso foi à noite. Hoje, Nosso Senhor me respondeu, dizendo-me que não me maravilhasse, porque, assim como os mortais desejam companhia para comunicar seus contentamentos dos sentidos, assim também a alma a deseja — quando há quem a entenda — para comunicar seus gozos e sofrimentos, entristecendo-se por não ter com quem fazê-lo. Disse-me: “Ele agora vai bem e me agradam suas obras”.

5. Como Ele esteve algum tempo comigo, lembrei-me de ter dito a Vossa Mercê que essas visões passavam depressa. Disse-me Ele que havia diferença entre estas e as imaginárias e que não podia haver regra certa nas graças que nos faz, porque às vezes convém de umas maneiras e outras, de outra.

6. Um dia, depois de comungar, pareceu-me clarissimamente que se sen­tou ao meu lado Nosso Senhor, começando a consolar-me com grandes re­galos; e me disse, entre outras coisas: “Aqui me vês, filha, pois sou Eu; mos­tra tuas mãos”, parecendo-me que as tomava e as aproximava do Seu lado. E disse: “Olha as minhas chagas. Não estás sem Mim. A brevidade da vida passa”.

Por algumas coisas que me disse, entendi que, depois que subiu aos céus, nunca baixou à terra, a não ser no Santíssimo Sacramento, para comunicar--Se com alguém.

Disse-me que, depois de ressuscitar, fora ver Nossa Senhora, que já estava com grande necessidade, pois o pesar a tinha tão absorta e trespassada que não voltou logo a si para gozar daquele gozo (por meio disso compreendi esse meu outro trespassamento, que é bem diferente; qual não devia ser o da Virgem!); e que estivera muito com Ela, pois fora necessário estar até consolá-la.

1650

1. Na terça-feira depois da Ascensão, tendo estado algum tempo em oração depois de comungar, aflita, porque me distraía de uma maneira que me impedia de fixar-me numa coisa, queixei-me ao Senhor da nossa miserável natureza. Minha alma começou a se inflamar, parecendo-me que entendia claramente que tinha presente toda a Santíssima Trindade em visão intelectual. Nela, por certa maneira de representação (que era uma figura da verdade para que eu, em minha rudeza, pudesse entender), minha alma entendeu que Deus é trino e uno; assim, parecia-me que as três Pessoas me falavam e se representavam distintamente dentro de minha alma. Disseram-me que, a partir desse dia, eu veria melhora em mim em três coisas, porque cada uma dessas Pessoas me concedia uma graça: na caridade, no padecer com contentamento e no sentir essa caridade com abrasamento na alma. Compreendi as palavras que o Senhor diz — “Estarão com a alma em graça as três Pessoas Divinas” —, porque as via dentro de mim do modo como disse.51

2. Estando depois agradecendo ao Senhor graça tão grande, e achando-me indigna dela, eu disse a Sua Majestade com grande sentimento que, como me havia de fazer semelhantes favores, por que Sua mão me largara para que eu fosse tão ruim? Fi-lo porque, no dia anterior, tivera grande pesar pelos meus pecados, tendo-os presentes. Eu via claramente o muito que o Senhor fizera, desde que eu era muito pequena, para me aproximar de Si com recursos muito eficazes e que nenhum desses recursos me fora de valia. Com isso, percebi o amor excessivo que Deus nos tem ao perdoar tudo quando nos queremos voltar para Ele, e mais por mim do que por outras pessoas, por vários motivos.

Parece que ficaram tão impressas em minha alma aquelas três Pessoas que vi, sendo Deus um só, que, se durasse assim, seria impossível eu deixar de estar recolhida com tão divina companhia.

Não há por que escrever algumas outras coisas e palavras que aqui se passaram.

17

Uma vez, pouco antes disso,52 indo comungar, e estando a Espécie no relicário — porque ainda não me fora dada —, vi um tipo de pomba que agitava as asas com ruído. Isso me perturbou tanto, e me suspendeu, que recebi a Espécie com muita contrição. Tudo isso aconteceu em São José de Ávila. Dava-me o Santíssimo Sacramento o Padre Francisco de Salcedo.

No outro dia, ouvindo sua missa, vi o Senhor glorificado na Hóstia. Disse-me que aceitava seu sacrifício.

1853

Essa presença das três Pessoas, de que falei no princípio,54 trago-a até hoje — que é dia da Comemoração de São Paulo — presente em minha alma com muita freqüência. E como eu estava acostumada a só trazer Jesus Cristo, sempre me parecia haver algum impedimento em ver três Pessoas, embora entendendo que é um só Deus. E disse-me hoje o Senhor, quando eu pensava nisso, estar errada em imaginar as coisas da alma com a representação das do corpo; que eu entendesse tratar-se de coisas muito diferentes, e que a alma tem capacidade de gozar muito. Pareceu-me que Ele se representou a mim tal como numa esponja a água se incorpora e embebe; parecia-me que a minha alma se enchia dessa maneira com aquela Divindade, gozando e tendo em si, de certo modo, as três Pessoas.

Também ouvi: “Não te esforces para Me teres encerrado em ti, mas para te encerrares em Mim”. Parecia-me que, de dentro de minha alma — onde estavam, e eu via, essas três Pessoas —, elas se comunicavam a todas as coisas criadas, não faltando nem deixando de estar comigo.

1955

Estando eu, poucos dias depois disto que digo,56 pensando se teriam razão aqueles que julgavam ruim que eu saísse a fundar e que achavam que eu estaria melhor se me dedicasse sempre à oração, eis que ouvi: “Enquanto se vive, o be­nefício não está em procurar gozar mais de Mim, mas em fazer a Minha vontade”.

Parecia-me que, já que São Paulo fala do encerramento das mulheres57 — como me tinham dito há pouco tempo e como eu ouvira —, essa seria a vontade de Deus. Disse-me Ele: “Dize-lhes que não se conduzam somente por uma passagem da Escritura, mas que olhem outras e vejam se porventura poderão atar-Me as mãos.”

2058

Estando eu, um dia depois da oitava da Visitação, encomendando a Deus um irmão meu numa ermida do Monte Carmelo, disse ao Senhor, não sei se em pensamento: “Por que se encontra esse meu irmão onde a sua salvação corre perigo? Se eu visse, Senhor, um irmão Vosso nesse perigo, o que não faria para remediá-lo!” Parecia-me que eu não deixaria de fazer o que estivesse a meu alcance.

Disse-me o Senhor: “Ó filha, filha! Irmãs minhas são estas da Encarnação,59 e tu te deténs? Tem, pois, ânimo; vê o que Eu quero, que não é tão difícil quanto te parece, e onde pensas que essas outras casas vão perder, umas e outras ganharão. Não resistas, pois grande é o Meu poder”.

21

O desejo e os ímpetos tão grandes de morrer me deixaram, em especial desde o dia da Madalena, no qual decidi viver de boa vontade para muito servir a Deus, embora algumas vezes, por mais que o deseje, não consiga tirar de mim o desejo de vê-Lo.60

22

Uma vez ouvi: “Tempo virá em que, nesta igreja, se farão muitos milagres; chamá-la-ão a igreja santa”. É São José de Ávila, ano de 1571.61

23

Estando uma vez pensando na grande penitência que fazia Dona Catalina de Cardona62 e que eu poderia ter feito mais, seguindo os desejos que por vezes o Senhor me dava de fazê-la, se não fosse para obedecer aos confessores, bem como se não seria melhor deixar de lhes obedecer nesse aspecto a partir de então, disse-me o Senhor: “Isto não, filha; bom caminho segues, e seguro. Vês toda a penitência que ela faz? Mais considero tua obediência”.

2463

Uma vez, estando eu em oração, o Senhor me mostrou, por um estranho modo de visão intelectual, o estado da alma em graça; em Sua companhia vi a Santíssima Trindade em visão intelectual, vindo dela, até a alma, um poder que se assenhoreava de toda a terra. Fizeram-me ouvir as palavras dos Cânticos que dizem: Veniat dilectus meus in hortum suum et comedat.64

Mostrou-me Ele também o estado da alma em pecado, sem nenhum poder, mas como alguém que estivesse de todo atado e preso, com os olhos tapados, que, mesmo querendo, não pode ver, nem andar, nem ouvir, encontrando-se em grande obscuridade. Causaram-me tanta lástima as almas que assim estão que qualquer trabalho me pareceria leve se servisse para livrar uma delas. Pareceu--me que, se se entendesse isto tal como eu vi — pois mal se pode descrever —, não seria possível que alguém quisesse perder tanto bem nem estar em tanto mal.

2565

1. Na véspera de São Sebastião, no primeiro ano em que fui priora na Encarnação, ao começar a Salve, vi na cadeira prioral, onde está Nossa Senhora, descer com grande multidão de anjos a Mãe de Deus e pôr-se ali. Tenho a impressão de que não vi então a imagem, mas essa mesma Senhora. Pareceu--me que se assemelhava um pouco à imagem que me fora dada pela Condessa,66 se bem que eu mal tivesse tido tempo de poder ter certeza, pois aquilo logo me suspendeu muito. Parecia-me ver anjos acima das cornijas67 dos cadeirais e por sobre os parapeitos, mas não em forma corporal, porque era visão intelectual.

Ela esteve assim todo o tempo da Salve, e disse-me: “Bem acertaste em pôr-Me aqui; Eu estarei presente aos louvores que derdes ao Meu Filho e os apresentarei a Ele”.

2. Depois disso, fiquei na oração, que tenho, de estar a alma com a Santíssima Trindade; e parecia-me que a pessoa do Pai me aproximava de Si e dizia palavras muito agradáveis. Entre elas disse-me, mostrando-me o quanto me queria: “Eu te dei o Meu Filho, o Espírito Santo e esta Virgem. Que podes tu dar a Mim?”

2668

1. No dia de Ramos, acabando de comungar, entrei em grande suspensão, de modo que nem podia engolir a Espécie, e, tendo-A na boca, senti verdadeiramente, ao voltar um pouco a mim, que toda ela se enchera de sangue. Parecia-me que o rosto e todo o meu corpo também estavam cobertos dele, como se então o Senhor acabasse de derramá-lo. Parecia-me que estava quente e que era excessiva a suavidade que eu sentia. E disse-me o Senhor: “Filha, Eu quero que o Meu sangue te seja de proveito, e que não tenhas medo de que a Minha misericórdia te falte. Eu o derramei com muitas dores, e tu, como vês, gozas dele com tão grande deleite; bem te pago o convite que me fazias neste dia”.

Ele disse isso porque há mais de trinta, se podia, eu sempre comungava nesse dia, procurando preparar a minha alma para hospedar o Senhor; porque me parecia muita crueldade a dos judeus que, depois de tão grande recepção, O tinham deixado ir comer tão longe. Eu fazia de conta que Ele ficava comigo, e em pousada bem ruim, com agora vejo, e fazia umas considerações bobas, que o Senhor devia aceitar; porque essa visão é uma das que tenho por muito certas, razão por que me tem servido na comunhão.

2. Antes disso, eu tinha estado, creio que por três dias, com aquele grande pesar que tenho algumas vezes mais do que outras de estar afastada de Deus. E, nesses dias, ele fora muito grande, parecendo-me impossível suportá-lo. E estando assim tão aflita, vi que era tarde para fazer a refeição, sem no entanto poder deixar de fazê-lo, já que, devido aos vômitos, fico muito fraca se não a fizer um pouco mais cedo. Assim, com muito esforço, pus o pão diante de mim para obrigar-me a comê-lo; logo me apareceu ali Cristo, que me parecia partir o pão e me pô-lo para comer na boca. Ele me disse: “Come, filha, e passa como puderes; pesa-me o que padeces, mas isso te convém agora”.

Vi-me liberta daquele pesar e consolada, porque me pareceu verdadeiramente que Ele estava comigo, o que me perdurou por todo o outro dia, satisfazendo-se com isso o meu desejo.

O fato de Ele dizer “pesa-Me” me faz pensar, porque me parece que ele já não pode ter pena de nada.

27

“Com que te afliges, pecadorazinha? Não sou Eu o teu Deus? Não vês quão mal sou tratado ali? Se Me amas, por que não te condóis de mim?”69

28

Sobre o temor de pensar que não se está em graça:70 “Filha, é muito diferente a luz das trevas. Eu sou fiel. Ninguém se perderá sem o entender. Enganar-se-á quem se julgar seguro por receber regalos espirituais. A verdadeira segurança é o testemunho da boa consciência; mas ninguém pense que pode por si estar na luz, assim como não poderia fazer com que não viesse a noite, porque a graça depende de Mim. O melhor recurso possível para conservar a luz é perceber que não se pode nada e que ela vem de Mim; porque, ainda que se esteja nela, no momento em que Eu me afastar, a noite virá. Esta é a verdadeira humildade: saber o que se pode e o que Eu posso.

Não deixes de escrever os avisos que te dou, para que não os esqueças; se queres por escrito os dos homens, por que pensas que perdes tempo em escrever os que te dou? Tempo virá em que terás necessidade de todos eles”.

2971

Sobre a explicação do que é união:

1. “Não penses, filha, que é união estar muito junto de Mim, porque também o estão os que Me ofendem, embora não queiram. Nem o são os regalos e prazeres da oração, por mais excelsos que possam ser e malgrado venham de Mim; são meios, muitas vezes, para ganhar as almas, mesmo as que não estejam em graça”.

Quando ouvi isso, eu estava com o espírito sobremodo elevado. O Senhor deu-me a entender que era espírito, como a alma estava então e como se devem entender as palavras do Magnificat: Exultavit spiritus meus.72 Não o sei dizer; parece-me que me foi dado a entender que o espírito é a parte superior da vontade.

2. Voltando à união, entendi que era esse espírito limpo e elevado acima de todas as coisas da terra, não ficando nenhuma parte sua que deseje apartar--se da vontade de Deus. É de tal maneira a união que o espírito e a vontade ficam em conformidade com a Dele e, num desapego de tudo, empregados em Deus, não havendo lembrança de amor a si mesmo nem a nenhuma coisa criada.

3. Pensei: se isso é união, de uma alma que sempre tem essa determinação podemos dizer que sempre está em oração de união, embora seja verdade que essa oração só pode durar muito pouco. Ocorreu-me então que, enquanto andar com justiça, merecendo e ganhando, a alma receberá a união, mas não se pode dizer que ela viva unida como na contemplação. Parece-me que entendi, embora não por palavras, que é tanto o pó da nossa miséria, das faltas e estorvos em que voltamos a nos enredar que não seria possível estar com a pureza que tem o espírito quando se junta com o de Deus, visto que já se mostra fora da nossa indigna miséria e elevando-se acima dela. E parece-me que, se é união estarem a nossa vontade e o nosso espírito em tal sintonia com o de Deus que só a pode ter quem estiver em estado de graça, ao contrário do que me tinham dito. Assim, parece-me que será bem difícil entender quando é união, a não ser por uma graça particular de Deus, visto não se poder saber quando estamos nela.

4. Escreva-me Vossa Mercê sua opinião e me indique o ponto em que digo disparates, voltando a me enviar este papel.73

3074

Tendo lido num livro que era imperfeição ter imagens curiosas, eu não queria ter na cela uma que eu tinha, e, mesmo antes de ler isso, me parecia de mais pobreza não ter nenhuma, a não ser de papel; depois que li isso um dia destes, eu já não queria tê-las de nenhum outro tipo. E entendi, estando descuidada disso: que não era boa mortificação. Qual era melhor: a pobreza ou a caridade. Que o melhor era o amor, que eu não deixasse tudo aquilo que me despertasse para ele, nem o tirasse das minhas monjas. Que o livro falava das muitas molduras e coisas curiosas nas imagens, e não da imagem. Que o que o demônio fazia aos luteranos era tirar-lhes todos os meios para mais despertarem a devoção, o que os fazia perder-se. “Meus cristãos, filha, hão de fazer, agora mais do que nunca, o contrário do que eles fazem”.

Entendi ter muita obrigação de servir a Nossa Senhora e a São José, porque muitas vezes, estando eu totalmente perdida, Deus voltava a me dar saúde graças aos seus rogos.

31

Na oitava do Espírito Santo, fez-me o Senhor uma graça, e me deu esperança de que esta casa iria melhorando, digo, as almas que há nela.75

32

No dia da Madalena, voltou o Senhor a confirmar uma graça que me fizera em Toledo, elegendo-me, na ausência de certa pessoa, em seu lugar.76

33

1. Um dia depois de São Mateus,77 estando eu como costumo depois que tive a visão da Santíssima Trindade e vi como Ela está com a alma que está em graça, foi-me dado a entender muito claramente isso, de modo que, por intermédio de certos recursos e comparações, eu o vi numa visão imaginária. E se bem que outras vezes me tivesse sido dada a entender a Santíssima Trindade por meio de visão intelectual, a verdade não ficava em mim depois de alguns dias como esta de que agora falo, de maneira a que eu pudesse pensar nisso e com isso me consolar. E agora vejo do mesmo modo como o ouvi de letrados, não o tendo entendido como agora, embora sempre acreditasse sem hesitação, porque não tenho tido tentações da fé.

2. A nós, pessoas ignorantes, parece que as três Pessoas da Santíssima Trindade estão — tal como vemos representado — numa só Pessoa, à feição de quando se pintam num corpo três rostos; e assim nos espanta tanto, porque parece coisa impossível e que não há quem ouse pensar nisso, já que o entendimento fica obscurecido e teme duvidar dessa verdade, privando-se assim de um grande benefício.

3. Representaram-se a mim três Pessoas distintas, pois a cada uma se pode ver e falar individualmente. E depois pensei que só o Filho tomou carne humana, o que prova essa verdade. Essas Pessoas se amam, comunicam-se e se conhecem. Mas, se cada uma existe por si só, como podemos dizer que as três são uma mesma essência, e acreditar nisso, tomando-a por grande verdade, sendo eu capaz de morrer por ela mil vezes? Em todas essas três Pessoas não há senão um querer, um poder e um domínio, de modo que nada pode uma sem a outra: de quantas criaturas há, é só um o Criador. Poderia o Filho criar uma formiga sem o Pai? Não, pois o poder é todo um, e o mesmo ocorre com o Espírito Santo; assim é que há um só Deus todo-            -poderoso, e todas as três Pessoas são uma só Majestade.

Poder-se-ia amar o Pai sem gostar do Filho e do Espírito Santo? Não; quem contentar a uma dessas três Pessoas divinas contentará as três, e quem ofender uma delas desagradará a todas. Poderá o Pai estar sem o Filho e o Espírito Santo? Não, porque há uma só essência, e onde está uma estão as três, pois não se podem separar. Como, então, vemos que são distintas as três Pessoas, e como tomou carne humana o Filho, e não o Pai nem o Espírito Santo? Isso eu não entendi, mas sabem-no os teólogos. Bem sei eu que, naquela obra tão maravilhosa da Encarnação, estavam as três, e não me ocupo em pensar muito nisso. Logo meu pensamento se conclui ao ver que Deus é todo-poderoso e que pôde fazê-lo do modo como quis, podendo assim fazer tudo o que quiser. E quanto menos o entendo, mais o creio e maior devoção tenho. Seja para sempre bendito. Amém.

3478

Se Nosso Senhor não me tivesse feito as graças que me fez, não me parece que eu teria tido ânimo para as obras realizadas nem forças para os sofrimentos que se têm passado, as contradições e maus julgamentos. Assim, depois que se começaram as fundações, foram-me tirados os temores que eu antes tinha de estar enganada, sendo infundida em mim a certeza de que era Deus, o que me fazia lançar-me a coisas difíceis, se bem que sempre seguindo conselhos e submetendo-me à obediência. Por isso percebo que Sua Majestade Nosso Senhor, como quis despertar o princípio desta Ordem e, por Sua misericórdia, me tomou como instrumento, foi obrigado a suprir o que me faltava, que era tudo, para que tivesse efeito e se mostrasse melhor a Sua grandeza em coisa tão ruim.

35

Estando eu na Encarnação, no segundo ano do priorado, na oitava de São Martinho,79 em comunhão, o padre frei João da Cruz, que ia me dar o Santíssimo Sacramento, partiu a Hóstia para outra irmã. Pensei que não era falta de Hóstia, mas que ele queria me mortificar, porque eu lhe tinha dito que gostava muito quando as Hóstias eram grandes (não porque eu não entendesse que não importava para o Senhor estar lá inteiro mesmo que fosse num pedacinho bem pequeno). Disse-me Sua Majestade: “Não tenhas medo, filha, que alguém tenha poder para afastar-te de Mim”. Assim, Ele me dava a entender que isso não importava.

Então o Senhor me foi representado numa visão imaginária, como em outras vezes, bem no meu íntimo; dando-me Sua mão direita, disse-me: “Olha este prego, que é sinal de que serás Minha esposa de hoje em diante. Até agora não o tinhas merecido; doravante, defenderás Minha honra não só como Criador, como Rei e como teu Deus, mas como verdadeira esposa Minha: Minha honra é a tua, e a tua, Minha”.

Teve tal efeito em mim esse favor que eu não podia caber em mim; fiquei como que desatinada e disse ao Senhor que ou aumentasse a minha baixeza ou não me concedesse tão infinita graça, pois certamente não me parecia que a minha natureza a pudesse suportar. Passei assim todo o dia muito embevecida. Mais tarde senti ter obtido um grande proveito, e maior confusão e aflição ao ver que em nada correspondo a tão grandes graças.

3680

1. Isto me disse o Senhor outro dia: “Pensas, filha, que o merecimento está no gozar? Ele não está senão em trabalhar, em padecer, em amar. Não terás ouvido que São Paulo estivesse fruindo os gozos celestiais mais de uma vez, e muitas que padeceu. E vês a Minha vida toda cheia de padecimentos, e só no Monte Tabor terás ouvido sobre o meu gozo. Não penses, quando vês Minha Mãe tendo-Me nos braços, que Eu gozava daquelas consolações sem grave tormento. Desde que Simeão Lhe disse aquelas palavras, Meu Pai deu-lhe clara luz para que visse o que eu haveria de padecer. Os grandes santos que viveram nos desertos, sendo guiados por Deus, faziam grandes penitências, além de travar grandes batalhas com o demônio e consigo mesmos, tendo passado muito tempo sem nenhum consolo espiritual.

Crê, filha, que Meu Pai dá maiores sofrimentos àqueles que mais ama, e que a estes responde o amor. Em que te posso demonstrá-lo mais do que ao querer para ti o que quis para Mim? Vê estas chagas, e nunca chegarão a este ponto as tuas dores. Este é o caminho da verdade. Assim me ajudarás a chorar a perdição em que vivem os do mundo, entendendo tu que todos os seus desejos, cuidados e pensamentos são empregados em como conseguir o contrário”.

2. Quando comecei a ter oração, estava com uma dor de cabeça tão grande que me parecia quase impossível conseguir suportá-la. Disse-me o Senhor: “Por meio disso verás o prêmio do padecimento, pois, como tu não tinhas saúde para falar Comigo, Eu falei contigo e te regalei”. E é certo que foi assim, porque estive recolhida por uma hora e meia ou pouco menos. Nesse tempo de recolhimento, Ele me disse essas palavras e tudo o mais. Nem eu me distraía nem sei onde estava — e com tão grande contentamento que nem sei dizê-lo. E a minha cabeça ficou boa, o que muito me espantou, surgindo em mim um grande desejo de padecer.

É verdade que eu ao menos nunca ouvi que o Senhor tivesse outro gozo na vida a não ser dessa vez, o mesmo se aplicando a São Paulo. Sua Majestade tam­bém me disse que tivesse muito vívidas na memória as palavras que o Senhor disse a Seus apóstolos: “Que o servo não havia de ser maior do que o Senhor”.81

3782

Vi uma grande tempestade de sofrimentos e que, assim como os egípcios per­se­­guiam os filhos de Israel, assim também haveríamos de ser perseguidos; mas Deus nos faria passar por isso ilesos, e os inimigos seriam envolvidos pelas ondas.

3883

Estando eu um dia no convento de Beas, disse-me Nosso Senhor que, como eu era sua esposa, prometia conceder-me tudo quanto eu Lhe pedisse. E como penhor deu-me um anel formoso, com uma pedra semelhante a uma ametista, mas com um resplendor muito diferente dos daqui, pondo-o no meu dedo. Escrevo isto devido à minha confusão ao ver a bondade de Deus e a minha vida ruim, que me faz merecer estar no inferno. Mas ai, filhas! Encomendai-me a Deus e sede devotas de São José, que muito pode. Escrevo esta tolice…84

39(= 41)*

JHS

1. Alguém, no dia da Páscoa do Espírito Santo,85 estando em Ecija, se lembrou de uma grande graça que recebera de Nosso Senhor numa véspera dessa festa, e desejou fazer uma coisa muito especial em Sua honra. Pareceu--lhe bem prometer não encobrir nenhuma coisa de falta ou pecado que fizesse em toda a sua vida desde aquele momento a um confessor a quem tinha em lugar de Deus, porque essa obrigação não se tem para com os prelados. Embora essa pessoa já tivesse feito voto de obediência, isso lhe parecia ser mais. Ela também prometeu fazer tudo quanto o confessor lhe dissesse, desde que não fosse contra a obediência que tinha professado, naturalmente em coisas graves. E, ainda que no início isso fosse uma dificuldade para ela, ainda assim o prometeu.

2. A primeira coisa que a fez decidir isso foi entender que prestava algum serviço ao Espírito Santo; a segunda, ter por muito serva de Deus e letrada a pessoa que escolheu, a qual daria luz à sua alma e a ajudaria a mais servir a Nosso Senhor.

Disso nada soube a pessoa escolhida até depois de alguns dias de feita a promessa. Essa pessoa é o padre frei Jerônimo Gracián de la Madre de Dios.86

São coisas de consciência.

40 (= 39 — 40)

É coisa de minha alma e consciência. Ninguém a leia, mesmo que eu venha a morrer, mas a entregue ao Padre Mestre Gracián.87

JHS

1. No ano de 1575, no mês de abril, estando eu na fundação de Beas, foi por acaso ali o Mestre frei Jerónimo de la Madre de Dios Gracián,88 e, tendo eu confessado com ele algumas vezes, embora não o tendo no lugar em que tinha tido outros confessores para em tudo me governar por ele, estando um dia comendo sem nenhum recolhimento interior, minha alma começou a se suspender e recolher, de modo que pensei que me queria vir algum arroubo, e foi-me representada esta visão com a brevidade costumeira, que é como um relâmpago.

2. Pareceu-me ter junto a mim Nosso Senhor Jesus Cristo sob a forma que Sua Majestade costuma se representar a mim, tendo a Seu lado direito o mestre Gracián, e eu ao esquerdo. Tomou-nos o Senhor a mão direita e, juntando-as, disse-me que queria que eu tomasse o mestre Gracián em Seu lugar enquanto vivesse, e que chegássemos a um acordo em tudo, porque assim convinha.

3. Fiquei com uma segurança tão grande de que era de Deus que, embora se pusesse na minha frente a lembrança de dois confessores que eu tivera por muito tempo e a quem seguia e muito devia, e que me faziam muita resistência (especialmente um deles,89 que a fazia de modo muito intenso, a ponto de eu julgar que ele se ofendia; eram grandes o respeito e o amor que eu tinha por ele), a segurança que isso me deu foi a de que me convinha aquilo, ficando ainda o alívio decorrente da impressão de que minha obrigação de seguir, em cada lugar para onde ia, diferentes pareceres tinha chegado ao fim. Ainda mais que alguns [confessores] me faziam padecer muito por não me entenderem, embora eu jamais tenha deixado nenhum deles, parecendo-me que a culpa era minha, até que ele se fosse ou eu me fosse. Por duas outras vezes o Senhor repetiu, com palavras diferentes, que eu não temesse, porque Ele mo dava. E assim me decidi a não fazer outra coisa e propus, de mim para comigo, levá-lo adiante enquanto vivesse, seguindo em tudo o seu parecer, desde que não se opusesse notavelmente a Deus, o que estou bem certa de que não acontecerá, já que o mesmo propósito que eu tenho de em tudo seguir o mais perfeito creio que ele também tem, como tenho visto por algumas coisas.

4. Fiquei com uma paz e um alívio tão grandes que me espantaram e me certificaram de que o Senhor o quer; porque essa paz tão grande da alma e o consolo não me parece que o demônio pudesse infundir. Parece-me que isso ainda permanece em mim, de uma maneira que não sei dizer, mas o fato é que cada vez que me recordo louvo de novo Nosso Senhor e me lembro do versículo que diz: “Qui posuit fines suos in pace”,90 e queria me desfazer em louvores a Deus.

Parece-me que há de ser para glória Sua, e assim volto a propor de nunca mais tornar a mudar.91

5. No segundo dia da Páscoa do Espírito Santo,92 depois dessa minha decisão, indo eu a Sevilha, ouvimos missa numa ermida em Ecija e nela ficamos durante a sesta; estando minhas companheiras na ermida e eu sozinha numa sacristia que ali havia, comecei a pensar no grande favor que me fizera o Espírito Santo numa véspera de Páscoa,93 e isso me suscitou grandes desejos de prestar-Lhe um serviço especial. E eu não achava nada que não tivesse feito. E cheguei à conclusão de que, embora o voto de obediência já tivesse sido feito, eu não o fizera da maneira mais perfeita possível; e veio--me a idéia de que Lhe seria agradável o que eu já me tinha proposto a fazer com o Padre frei Jerónimo. Se por um lado me parecia que isso nada representava, por outro me parecia uma coisa dificílima, considerando-se que aos prelados não se revela o interior da alma e que, afinal, eles mudam e, se com um a pessoa não se sentir bem, vem outro, razão por que fazer isso significava ficar sem nenhuma liberdade interior e exterior por toda a vida.94 E acometeu-me um pouco, e até muito, o desejo de não o fazer.

6. Essa mesma resistência da minha vontade me causou vergonha e deu-me a impressão de que havia algo que eu não fazia por Deus, sendo-me oferecida a oportunidade, uma coisa de que sempre fugi. O fato é que a dificuldade me afligiu de tal maneira que não me parece que eu tivesse feito coisa alguma em minha vida, nem ao fazer profissão, que gerasse maior resistência em mim, salvo quando saí da casa de meu pai para ser monja. E a causa disso é que me esqueci de quanto o amava e das qualidades que tinha para isso, considerando--o então como um estranho, o que me espantou; minha preocupação era se seria bom fazer aquilo pelo Espírito Santo. Creio que me detinham as dúvidas que em mim afloravam sobre se isso seria ou não serviço de Deus. [7] Depois de algum tempo de batalha interior, o Senhor me deu uma grande confiança, parecendo--me que eu fazia aquela promessa pelo Espírito Santo, que ficava obrigado a dar-lhe [a Gracián] luz para que ma desse, além de me lembrar de que Jesus Cristo Nosso Senhor mo havia dado; com isso, pus-me de joelhos e prometi fazer tudo quanto ele me dissesse por toda a vida, desde que não fosse contra Deus nem contra os prelados com quem eu estava obrigada. Fiz a restrição, para me tirar os escrúpulos, de só fazê-lo em coisas importantes, deixando de lado situações em que, importunando-o eu em alguma coisa, ele me dissesse que não mais falasse disso, ou coisas referentes ao meu prazer ou ao seu, que são bobagens nas quais não se quer deixar de obedecer; prometi que de todas as minhas faltas e pecados não lhe ocultaria nada conscientemente, o que também é algo além do que se costuma fazer nos contatos com os prelados. Enfim, prometi tê-lo em lugar de Deus interior e exteriormente.

8. Não sei se mereci, mas grande coisa me parecia ter feito pelo Espírito Santo, ao menos considerando tudo quanto eu sabia; e assim fiquei com grande satisfação e alegria, e tenho estado assim desde então. Pensando ficar limitada, fiquei com mais liberdade e muito confiada de que Nosso Senhor lhe há de conceder novos favores por esse serviço que Lhe prestei, a fim de que me caiba uma parte deles e em tudo me dê luz.

Bendito seja Aquele que criou uma pessoa que me satisfizesse de tal maneira que eu me atrevesse a fazer o que tenho dito.

42

Estando eu, no dia da Madalena,95 considerando a amizade que estou obrigada a ter a Nosso Senhor de acordo com as palavras que Ele me disse sobre essa santa, e tendo grandes desejos de imitá-la, o Senhor me fez uma grande graça e me disse que doravante me esforçasse, pois havia de servi-Lo mais do que servira até então. Deu-me o desejo de não morrer tão cedo, a fim de haver tempo para eu me dedicar a isso, e fiquei com grande determinação de padecer.

43

Estava eu um dia muito recolhida, recomendando a Deus Eliseu,96 quando ouvi: “É Meu verdadeiro filho; não deixarei de ajudá-lo” — ou alguma coisa parecida com isso, não me lembro bem.

44

1. Acabando de comungar na vigília de São Lourenço,97 eu estava com o pensamento tão distraído e disperso que não conseguia me recolher, e comecei a ter inveja dos que vivem no deserto, parecendo-me que, como não ouvem nem vêem nada, estão livres dessa distração. Ouvi: “Muito te enganas, filha; eles antes têm ali tentações mais fortes dos demônios. Tem paciência, que enquanto dura a vida não se pode evitá-las”.

2. Estando nisso, veio-me de súbito um recolhimento com uma luz interior tão grande que me pareceu que eu estava em outro mundo. Meu espírito achou-se dentro de si numa floresta e horto muito deleitoso, a tal ponto que me fez lembrar do que se diz no Cântico:98 Veniat dilectus meus in hortum suum. Vi ali meu Eliseu,99 é certo que um pouco escuro, mas com uma estranha formosura; trazia na cabeça como que uma grinalda de ricas pedrarias; e muitas donzelas iam à sua frente com ramos nas mãos, todas cantando louvores a Deus. Eu não fazia senão abrir os olhos para ver se me distraía, mas isso não bastava para me tirar essa atenção; parecia-me haver uma música de passarinhos e de anjos de que a alma gozava, embora eu não a ouvisse: é que via a alma naquele deleite. Eu percebia que ali não havia outro homem. Disseram-me: “Este mereceu estar entre vós, e toda esta festa que vês haverá no dia que estabelecer em louvor da Minha Mãe; apressa-te se queres chegar aonde ele está”.

3. Isso durou mais de uma hora e meia — sem que eu pudesse me distrair. Trouxe-me um grande deleite, coisa diferente de outras visões; e o que tirei daqui foi amor a Eliseu e tê-lo mais presente naquela formosura. Fiquei com medo de que fosse tentação, porque imaginação não é possível.

45

Uma vez ouvi que o Senhor está em todas as coisas e em nossa alma; apresentou-se a mim a comparação de uma esponja que se embebe de água.100

46101

Como viessem meus irmãos e eu deva tanto a um,102 não deixava de estar com ele e de tratar do que convém à sua alma e à sua residência — e tudo me dava cansaço e pesar. E estando a oferecer isso ao Senhor e tendo a impressão de que o fazia por estar obrigada, veio-me à lembrança o que está nas nossas Constituições, que nos dizem que nos afastemos dos parentes; e, quando pensava se estava obrigada, disse-me o Senhor: “Não, filha, pois vossos Institutos não devem seguir senão a Minha Lei”. É verdade que a intenção das Constituições é de que não nos apeguemos a eles; e isso de tratar com eles a meu ver antes me cansa e mais me desfaz.

47

Tendo acabado de comungar no dia de Santo Agostinho103 — não sei dizer como —, foi-me dado a entender, e quase a ver (se bem que tenha sido coisa intelectual e que passou depressa), que as três Pessoas da Santíssima Trindade, que trago esculpidas em minha alma, são uma só e mesma coisa. Isso me foi dado a perceber por uma representação tão estranha e por uma luz tão clara que teve em mim um efeito bem distinto do que se manifesta quando se crê somente pela fé.

A partir daquele momento, não mais pude pensar em nenhuma das três Pessoas divinas sem entender que estão presentes todas as três; de maneira que eu estava hoje considerando que, sendo Elas uma só coisa, só o Filho tinha tomado carne humana, e o Senhor me deu a entender que, embora fossem uma só, as Pessoas são distintas.

Elas têm tal grandeza que mais uma vez a alma deseja sair deste emba­r­aço que é o corpo para gozar delas, embora pareça não ser para a nossa baixeza entender algo delas; e embora passe num instante, fica na alma um benefício que é maior, incomparavelmente maior, do que aquele que se obtém com muitos anos de meditação — e sem que se possa entender como.

48

No dia de Nossa Senhora da Natividade104 tenho particular alegria. Quando chega esse dia, parece-me bem renovar os votos. E, querendo-o fazer, foi-me representada certa feita, numa visão iluminativa, a Virgem Nossa Senhora; pareceu-me fazê-lo em Suas mãos e que Lhe era agradável. Essa visão ficou comigo por alguns dias, como se Ela estivesse junto a mim, perto do lado esquerdo.

49

Um dia, quando acabava de comungar, pareceu-me verdadeiramente que a minha alma se tornava uma só coisa com o Corpo Sacratíssimo do Senhor, cuja presença me foi representada, tendo em mim grande efeito e aproveitamento.105

50

Certa vez, eu estava pensando se me haviam de mandar reformar certo mosteiro,106 e fiquei pesarosa. Ouvi: “Que temes? Que podes perder senão a vida, que tantas vezes me tens oferecido? Eu te ajudarei”. Foi numa ocasião em que muito me satisfez a alma.

51107

Tendo um dia falado com uma pessoa que havia deixado muito por Deus e lembrando-me de que nunca deixara nada por Ele, e de que em nada O tenho servido como estou obrigada, além de ver as muitas graças que Ele concedeu à minha alma, comecei a ficar muito aflita. Disse-me o Senhor: “Já sabes o desposório que há entre ti e Mim e, havendo isso, o que Eu tenho é teu, e assim te dou todos os sofrimentos e dores que passei; com isso, podes pedir a Meu Pai como se fossem coisas próprias tuas”.

Embora eu tenha ouvido dizer que somos participantes disso, agora passei a ver a coisa de outra maneira, parecendo-me que fiquei com grande domínio, porque a amizade com que Sua Majestade me fez esse favor não pode ser descrita aqui. Tive a impressão de que o Pai o admitia, e desde então olho de modo muito diferente o que o Senhor padeceu — como coisa própria —, o que me dá grande alívio.

52108

Estando eu certa feita desejando fazer algo em serviço de Nosso Senhor, pensei em quão pouco poderia servi-Lo, dizendo dentro de mim: “Para que, Senhor, quereis Vós minhas obras?” Disse-me Ele: “Para ver tua vontade, filha”.

53109

Deu-me uma vez o Senhor uma luz numa coisa que eu gostei de entender, e me esqueci em pouco tempo e não pude mais voltar a lembrar o que era. E ao fazer esforços para me lembrar, ouvi: “Já sabes que te falo algumas vezes; não deixes de escrevê-lo; porque, embora a ti não aproveite, poderá beneficiar outros”. E fiquei pensando se, pelos meus pecados, não haveria de aproveitar a outros e perder-me eu. Disse-me Ele: “Não tenhas medo”.

54110

Estava eu uma vez recolhida com esta companhia que sempre trago na alma quando tive a impressão de estar Deus nela de tal maneira que me lembrei de quando São Pedro disse: “Tu és Cristo, Filho de Deus vivo”.111 Porque assim estava Deus vivo em minha alma. Não foi como outras visões, porque isso traz em si a força com a fé, de modo que não se pode duvidar de que a Trindade está em nossa alma por presença, por potência e por essência. Traz um grandíssimo proveito compreender essa verdade.

E estando eu espantada de ver tanta majestade em coisa tão baixa quanto a minha alma, ouvi: “Não és baixa, filha, pois és feita à Minha imagem”. Também ouvi algumas coisas sobre a razão pela qual Deus se deleita mais com as almas do que com outras criaturas. Mas são coisas tão delicadas que, embora o intelecto as tenha apreendido naquele momento, eu não as sei descrever.

55

Tendo estado com tanta pena do mal de Nosso Padre112 que não sossegava, e suplicando ao Senhor muito encarecidamente, depois de comungar, que, como Ele mo havia dado, não mo tirasse, disse-me Ele: “Não tenhas medo”.

56113

Estando eu uma vez com a presença das três Pessoas que trago na alma, era tanta a luz que não se podia duvidar de que estava ali o Deus vivo e verda­deiro; e, ali, me davam a entender coisas que depois não sei dizer. Entre elas estava a razão de a Pessoa do Filho, e não as outras, ter tomado carne humana. Como eu disse, não sei explicar coisa alguma disso, pois algumas se passam tão no segredo da alma que parece que o intelecto compreende como alguém que, dormindo ou meio adormecido, tem a impressão de ouvir o que se diz.

Eu estava pensando em quão difícil é o viver, que nos priva de estar sempre naquela admirável companhia, e disse intimamente: “Senhor, dai-me algum meio para que eu possa suportar esta vida”. Disse-me Ele: “Pensa, filha, que, depois de acabada a vida, não Me podes servir como o fazes agora. E come por amor a Mim e dorme por amor a Mim, e tudo o que fizeres seja por Mim, como se já não fosses tu que vivesses, mas sim Eu, que é o que dizia São Paulo”.114

57115

Uma vez, acabando de comungar, foi-me dado a entender como este Santíssimo Corpo de Cristo é recebido pelo Seu Pai dentro de nossa alma. Entendo e tenho visto que estas divinas Pessoas estão em nossa alma e quão agradável é ao Pai essa oferenda de Seu Filho, porque Se deleita e goza com Ele — digamos assim — aqui na terra, pois a Sua humanidade não está conosco em nossa alma, mas só a Divindade, e por isso ela é tão aceita e agradável ao Pai, que nos faz tão grandes favores.

Entendi que Ele também recebe esse sacrifício quando o sacerdote está em pecado, embora não se comuniquem as graças à sua alma como se comunicam aos que estão em graça. Não porque essas influências deixem de estar na sua força, visto procederem da comunicação com que o Pai recebe esse sacrifício, mas por culpa de quem as há de receber. Do mesmo modo, não é culpa do sol não brilhar do mesmo jeito sobre um pedaço de pez e um de cristal. É muito importante saber como isso acontece, porque há grandes segredos no interior quando se comunga. É uma pena que esses corpos não nos deixem gozar deles.

58116

1. Na oitava de Todos os Santos, tive dois ou três dias muito trabalhosos com a lembrança dos meus grandes pecados e temores de perseguições que só se fundavam na possibilidade de me levantarem falsos testemunhos — e me faltava todo o ânimo que costumo ter para padecer. Embora eu quisesse me animar e fizesse atos interiores, além de perceber que isso seria um grande benefício para a minha alma, pouco me aproveitavam, pois não saía o temor e era uma guerra desabrida.

Encontrei uma carta em que o meu bom Padre117 diz que São Paulo falou: “Não permite Deus que sejamos tentados além do que podemos suportar.” Isso muito me aliviou, mas não foi suficiente, pois no dia seguinte deu--me uma grande aflição por me ver sem ele, porque, como eu não tinha a quem recorrer nessa tribulação, tinha a impressão de viver numa solidão muito grande. Contribuía para isso perceber que já não encontrava quem me desse alívio senão ele, que está ausente na maior parte de tempo, o que era para mim um grande tormento.

2. Na noite seguinte, ao ler num livro outro dito de São Paulo que começou a me consolar, fiquei pensando que antes sempre trouxera presente Nosso Senhor, que tão verdadeiramente me parecia ser Deus vivo. Pensando nisso, disse--me Ele, aparecendo a mim bem no íntimo, como ao lado do coração, por visão intelectual: “Aqui estou, mas quero que vejas o pouco que podes sem Mim.”

3. Logo me senti segura e desapareceram todos os temores. E, estando nessa mesma noite em matinas, o Senhor, por visão intelectual tão grande que quase parecia imaginária, se pôs nos meus braços à maneira como se pinta a “Quinta Angústia”. Essa visão causou-me um grande temor, porque era muito patente e tão junto de mim que me fez pensar que fosse ilusão. Disse--me Ele: “Não te espantes com isso, pois numa maior união, e sem comparação, está Meu Pai com a tua alma”.

E, assim representada, ficou até agora essa visão. O que disse de Nosso Senhor durou em mim mais de um mês. Já me foi tirado.

59

1. Estando uma noite com muito pesar porque fazia tempo que nada sabia do meu Padre,118 que não estava bom quando me escrevera da última vez (embora o pesar não fosse como o primeiro que me deu o seu mal, pois era com confiança e de um modo que não mais tive depois; mas o cuidado impedia a oração), tive de repente a impressão, e de tal modo que não pode ter sido imaginação, de que no interior me era apresentada uma luz. E vi-o percorrendo o caminho, alegre e de rosto branco, embora a luz que vi é que tornasse seu rosto branco, pois assim me parece que estão todos no céu. E pensei se não é do resplendor e da luz que saem de Nosso Senhor que vem o estarem eles brancos. Ouvi: “Dize-lhe que sem temor comece logo, pois é sua a vitória”.119

2. Um dia depois de ele120 ter vindo, estando eu à noite louvando Nosso Senhor pelas tantas graças que me tinha concedido, disse-me Ele: “Que Me pedes que Eu não faça, filha Minha?”

60

1. No dia em que se apresentou o Breve,121 como eu estivesse com grandíssima atenção,122 estando toda perturbada, sem sequer poder rezar, porque me tinham dito que o nosso Padre estava em grande aflição por não o deixarem sair, além de haver grande barulho, ouvi estas palavras: “Ó mulher de pouca fé, sossega, que muito bem se está fazendo!”

2. Era dia da Apresentação de Nossa Senhora, no ano de mil quinhentos e setenta e cinco. Propus interiormente que, se a Virgem alcançasse de Seu Filho que nos víssemos, o nosso Padre e nós, livres destes frades, lhe pediria que ordenasse que em todos os lugares se celebrasse com solenidade esta festa nos nossos conventos de Descalças.

3. Quando propus isso, eu não me lembrei das palavras que tinha ouvido segundo as quais o Padre haveria de estabelecer uma festa — na visão que tive.123 Agora, voltando a ler este caderninho, pensei se não há de ser essa a festa.

61

Estando um dia em oração, senti estar minha alma tão dentro de Deus que não me parecia haver mundo, mas que estava embebida Dele. Foi-me dado ouvir o versículo do Magnificat: Et exultavit spiritus. Isso ocorreu de uma maneira que não posso esquecer.124

62

Eu estava uma vez pensando sobre o quererem desfazer este mosteiro de Descalças,125 e se a intenção não era de, pouco a pouco, ir desfazendo todos eles, quando ouvi: “Isso pretendem, mas não o verão, senão muito pelo contrário”.

63

Tendo começado a me confessar com uma pessoa126 na cidade em que estou no momento, ela, apesar de ter muita amizade por mim e de continuar a tê-la depois que aceitou governar minha alma, se esquivava de vir ter comigo. Estando uma noite em oração, pensando na falta que me fazia, percebi que Deus a detinha para que não viesse, por ser conveniente que eu tratasse da minha alma com uma outra pessoa do lugar.

Isso muito me custou, por me obrigar a conhecer uma nova mentalidade, pois podia ser que essa nova pessoa não me entendesse e me inquietasse, e por ter afeição àquele que me fazia essa caridade — se bem que, sempre que via e ouvia esta outra pessoa pregar, eu tivesse contentamento espiritual —, além de levar em conta que esta última pessoa tem muitas ocupações, o que parecia não me convir. Disse-me o Senhor: “Eu farei com que te ouça e te compreenda. Declara-te a ele, que será algum remédio para os teus sofrimentos”.

Esta última parte decorreu, segundo penso, do fato de eu então me achar aflitíssima por estar ausente de Deus. Também me disse na ocasião Sua Majestade que bem via o sofrimento que eu tinha, mas que, enquanto eu vivesse neste desterro, não podia ser de outro modo e que era para o meu maior bem, consolando-me muito. Assim aconteceu: a pessoa gosta de me ouvir, busca tempo para fazê-lo, me compreendeu e trouxe-me um grande alívio. É muito letrada e santa.

64

Estando eu, num dia da Apresentação, encomendando muito a Deus uma pessoa,127 parecia-me que ainda era inconveniente ela ter renda e liberdade para a grande santidade que eu lhe desejava; pensei em sua pouca saúde e na muita luz que dava às almas e ouvi: “Muito Me serve, mas grande coisa é seguir-Me liberto de tudo como eu Me puz na cruz. Dize-lhe que confie em Mim”. Esta última parte decorreu do fato de eu me lembrar de que a pessoa não poderia, com sua pouca saúde, manter tanta perfeição.

65

Estando uma vez pensando no pesar que me dava o comer carne e não fazer penitência, entendi que algumas vezes isso era mais amor-próprio do que desejo de fazer penitência.128

66

Estando uma vez com muito pesar de ter ofendido a Deus, disse-me Ele: “Todos os teus pecados são, diante de Mim, como se não existissem; no futuro, esforça-te, que teus sofrimentos não acabaram”.129

Estando em São José de Ávila, na véspera da Páscoa do Espírito Santo,130 na ermida de Nazaré, considerando uma grandíssima graça que Nosso Senhor me concedera num dia como este, há vinte anos131 pouco mais ou menos, começaram a tomar conta de mim um ímpeto e um grande fervor de espírito que me puseram em suspensão. Nesse grande recolhimento, ouvi de Nosso Senhor o que agora direi:

Que dissesse aos Padres Descalços, de Sua parte, que procurassem observar estas quatro coisas e que, enquanto as observassem, esta Ordem sempre teria maior crescimento, bem como que, quando a elas faltassem, compreendessem que estavam menosprezado o seu princípio.

A primeira, que as cabeças estivessem em conformidade.

A segunda, que, embora eles tivessem muitas casas, em cada qual houvesse poucos frades.

A terceira, que tivessem pouco contato com seculares, e isto para o bem de suas almas.

A quarta, que ensinassem mais com obras do que com palavras.

Isso aconteceu no ano de 1579. E como é grande verdade, eu o firmo com o meu nome.

Teresa de Jesus

haver do que estar a alma solta das mãos do seu Criador? Ditosos os que com fortes grilhões e correntes dos benefícios da misericórdia de Deus, se virem presos e incapacitados a fim de serem poderosos para se soltarem. Forte como a morte é o amor, e duro como o inferno.2

Ó, quem se visse já morto às vossas mãos e arrojado nesse divino inferno de onde já não esperasse poder sair, ou melhor, já não temesse ver-se expulso! Mas, ai de mim, Senhor! Enquanto dura esta vida mortal, a vida eterna sempre corre perigo!

4. Ó vida inimiga do meu bem, quem tivesse permissão para acabar contigo! Suporto-te, porque Deus te suporta; mantenho-te porque és Dele; não me traias nem seja ingrata a mim.

Apesar disso tudo, ai de mim, Senhor, quão longo é o meu desterro!3 Breve é todo o tempo para dá-lo por vossa eternidade; muito longo é um só dia, e mesmo uma hora, para quem não sabe e teme Vos ofender. Ó livre arbítrio, tão escravo de tua liberdade se não viveres ancorado no temor e no amor de quem te criou! Ó quando virá o ditoso dia em que te hás de ver afogado no mar infinito da Suma Verdade, onde já não serás livre para pecar nem o quererás ser, porque estarás protegido de toda miséria, familiarizado com a vida do teu Deus!

5. Ele é bem-aventurado porque Se conhece, Se ama e goza a Si mesmo, sem ser possível outra coisa; não tem nem pode ter, nem seria perfeição Divina, liberdade para esquecer-Se de Si mesmo e deixar de Se amar. Então, alma minha, entrarás em teu descanso quando te entranhares nesse Sumo Bem e entenderes o que Ele entende, amares o que ama e gozares do que goza. Quando tiveres perdido tua mutável natureza, deixarão de haver mudanças; porque a graça de Deus terá podido tanto que te fez partícipe de Sua divina natureza,3 e com tamanha perfeição que já não poderás nem quererás poder esquecer-te do Sumo Bem nem deixar de gozá-Lo juntamente com o Seu amor.

6. Bem-aventurados os que estão inscritos no livro desta vida.4 Mas tu, alma minha, se o estás, porque estás triste e me pertubas? Espera em Deus, que ainda agora confessarei a Ele meus pecados e reconhecerei Suas misericórdias.5 E, de tudo junto, farei um cântico de louvor com suspiros perpétuos ao meu Salvador e Deus. Pode ser que venha algum dia em que eu Lhe cante a minha glória,6 e que a minha consciência, onde já terão cessado todos os suspiros e medos. Nesse momento, a minha força estará na esperança e no silêncio.7

Mas quero viver e morrer em aspirar à vida eterna e por ela esperar a possuir todas as criaturas e todos os seus bens, que haverão de se acabar. Não me desampares, Senhor, porque em Ti espero; que a minha esperança não seja confundida.8 Que eu Te sirva sempre e faz de mim o que quiseres.

Modo de visitar os conventos

JHS

1. Confesso, em primeiro lugar, a imperfeição que tive no tocante à obediência ao começar isto, porque, embora deseje mais do que nenhuma outra coisa ter essa virtude, ele me tem sido de grande mortificação e me causado grande repugnância.

Queira Nosso Senhor que eu acerte em dizer algo, visto que só confio em Sua misericórdia e na humildade de quem me mandou escrever, e por ela Deus, poderoso que é, o fará e não me levará em conta.

2. Embora não pareça conveniente começar pelo temporal, tive a impressão de que, para o espiritual sempre estar em aumento, é mister falar do temporal, se bem que, nocaso de mosteiros de pobreza, a questão se afigure distinta. Mas é fundamental que em toda parte haja acordo e em tudo sejam levados em conta o governo e a ordem.

3. Pressupondo-se antes de tudo ser conveniente ao prelado comportar-se com as súditas de maneira tal que, se de um lado é afável com elas e lhes mostra amor, de outro dá a entender que nas coisas substanciais há de ser rigoroso, sem nunca abrandar, não creio que haja no mundo algo que mais prejudique um prelado do que o não ser temido e o dar ensejo a que os seus súditos lhe falem como a um igual, em especial quando se tratar de mulheres; porque, se uma vez perceberem que há no prelado tanta brandura que ele há de deixar passar suas faltas e mudar de opinião para não descontentar, será muito difícil o governá-las.

4. É vital que elas entendam que há uma cabeça, e não piedosa, para tudo o que seja menosprezo da religião, e que o juiz seja tão reto na justiça que as convença de que não há de ceder no que for mais serviço ao Senhor e maior perfeição, mesmo que o mundo venha abaixo. Ele deve ser afável e amigo delas, mas só até quando entender que não há falta nisso. Porque assim como é fundamental que o prelado se mostre benigno e demonstre amá-las como pai, o que é muito importante para o seu consolo e para não o verem com, o estranho, também o é a atitude de que falo. E ele tiver de faltar em alguma dessas coisas, que seja antes na última do que na primeira.

5. Isso porque, como as visitas não são feitas mais de uma vez por ano, se as monjas não compreenderem que as faltas têm de ser aos poucos corrigidas e castigadas com amor as que as cometerem ao cabo do ano, passa-se um ano e outro e a Religião fica relaxada. Porque ainda que a falta seja da priora e mesmo que depois outra seja mandada, as monjas podem habituar-se ao relaxamento e — por ser terrível coisa o costume advindo da nossa natureza — aos poucos, e em pequenas doses, vir a causar à Ordem danos irreparáveis. O prelado que não o remediar a tempo dará terríveis contas a Deus.

6. Parece-me que prejudico esses conventos da Virgem Nossa Senhora ao tratar de semelhantes coisas, já que, pela bondade do Senhor, eles estão longe de precisar desse rigor. Mas, temerosa com o relaxamento que o tempo costuma introduzir nos conventos por não se observarem esses princípios, dispus-me a falar disso, sendo outra razão o ter visto que a cada dia os nossos mosteiros avançam mais, bem como o fato de que talvez havido quebra da ordem em alguns se os prelados não tivessem feito o que aqui digo no tocante ao rigor, remediando pequenas coisas e substituindo as preladas que eles entendiam não servir para isso.

7. Nisso particularmente é preciso não ter nenhuma piedade, porque muitas serão muito santas e não servirão para preladas, sendo necessário remediá-lo de imediato, porque onde se trata de tanta mortificação e exercícios de humildade isso não será tido por ofensa. E se o for, claro se verá que a irmã não serve para o cargo, visto não poder governar almas que tanto cuidam da perfeição quem a tiver tão pouca que queira ser prelada.

8. É mister que o visitador tenha Deus muito presente, e a graça que faz a essas casas, para que, por sua causa, esta não venha a se reduzir, e que não dê mostras de piedade, que na maioria das vezes é introduzida pelo demônio para causar grande mal, além de constituir a maior crueldade que um prelado pode ter com suas súditas.

9. Não é possível que todas as que se elegerem para preladas tenham talento para isso. Quando isso for observado, de nenhuma se deve deixar passar o primeiro ano sem tirá-las do cargo. Porque num não podem causar muito dano, mas em três podem destruir o convento ao tornarem habitual a imperfeição. E tem tal importância essa atitude que o prelado, mesmo que se desfaça por pensar que determinada pessoa é santa e não erra intencionalmente, tem de obrigar-se a não deixá-la com o cargo. É só isso que peço, pelo amor de Nosso Senhor. E quando vir que as que se hão de eleger têm alguma pretensão ou paixão, qualquer coisa que Deus não queira, que se anule a eleição e indiquem nomes de candidatas de outros mosteiros, porque de uma eleição realizada dessa maneira jamais poderão vir bons frutos.

10. Não sei se isso de que falei é temporal ou espiritual. O que eu quis começar a falar1 é que se vejam com muito cuidado e atenção os livros de gastos, não se trata disso levianamente.

Particularmente nas casas de renda convém muito que os gastos sejam compatíveis com a renda, embora se passe como se puder. Porque, glória de Deus, todos os de renda têm o bastante para, se gastarem com moderação, passar muito bem. E se assim não for, se pouco a pouco começarem a se endividar, perder-se-ão, porque, havendo muita necessidade, os prelados julgação ser desumano não lhes dar o ganho dos seus trabalhos ou impedia que cada uma seja provida pelos parentes ou coisa semelhante entre as que agora se usam2 — sendo meu desejo, sem sombra de dúvida, antes ver o convento desfeito do que vê-lo nesse estado. Por isso eu disse3 que das coisas temporais costumam vir grandes danos ao espiritual, o que torna importantíssima essas recomendações.

11. Nos de pobreza, deve-se e providenciar muito para que não se contrariam dívidas. Porque, se há fé e se servem a Deus, não lhes há de faltar. Logo, que não gastem em demasia.

Saber nuns e noutros4 muito particularmente a ração servida às monjas e o modo como são tratadas, e as enfermas, e fazer que se dê suficientemente o necessário, porque para isso nunca deixa-o de dá-lo, desde que haja ânimo e diligência por parte da prelada; bem se vê isso pela experiência.

12. Acompanhar nuns e noutros o trabalho que se faz e contar o que se ganha com as próprias mãos serve para duas coisas: animar as monjas e agradecer às que fizeram muito, de um lado e, de outro, para que nos lugares em que não haja tanto cuidado em trabalhar — por não haver tanta necessidade — seja dito às monjas quanto se auferiu alhures, pois essa consideração pelo trabalho para tudo é muito proveitosa, mesmo se deixarmos de lado o proveito temporal.

E lhes é de consolo, quando trabalham, perceber que o prelado vai tratar disso, já que, embora isso não seja coisa importante, é preciso às vezes, no governo de mulheres tão enclausuradas, que muito se consolam em contentar o prelado, condescender com suas fraquezas.

13. Informar-se se dão demasiados presentes, em particular em casas de renda, onde pode ser mais freqüente e costuma vir a destruir os conventos, apesar de parecer coisa de pouca monta. Se acontece de as preladas serem gastadoras, pode ser que, para dar, deixem as monjas sem comer, como se vê em alguns lugares, razão porque é preciso ver o que se pode fazer e a esmola que se pode dar de acordo com a renda. Em tudo é preciso haver controle, peso e medida.

14. Não consentir que as casas sejam demasiado grande e que, para as construir ou aumentar, a não ser por grande necessidade, se endividem. Para isso é necessário ordenar que nada se construa sem avisar o prelado, dando conta do que se há de fazer, para que, de acordo com o seu parecer, ele dê ou não licença. Não se tome isso por insignificância, visto poder ela causar muito prejuízo, além de ser melhor passar apertos por estar numa casa não muito boa do que ficarem as monjas desassossegadas ou em má situação por causa de dívidas, bem assim sem o que comer.

15. É muito importante que sempre se veja toda a casa para observar o recolhimento que há. Porque é bom evitar as ocasiões e não confiar na santidade que vir, por maior que seja, já que não se conhece o futuro. Por isso é mister pensar em todo o mal que poderia acontecer para, como digo, evitar as oportunidades. É particularmente necessário que os locutórios tenham duas grades, uma por dentro e outra por fora, e que em nenhuma delas caiba uma mão. Isso é fundamental, bem como verificar os confessionários, que devem ter os véus pregados e uma pequena janela de comunhão. A portaria deve ter dois ferrolhos, e duas chaves a clausura, como o determinam as Atas,5 ficando uma com a porteira e a outra com a priora. Sei bem que já se age assim, mas digo-o aqui para que não se esqueça, porque todas essas coisas são dignas de receberem a nossa atenção constante, devendo as monjas ter conhecimento de que se está atento, a fim de que não descuidem.

16. É muito importante informar-se com o capelão e com quem as confessa (não devendo haver muita comunicação, mas só o necessário), buscando-se saber muito particularmente sobre as monjas e o recolhimento da casa. Se houver alguma tentada-se, deve ouvi-la com muita atenção, porque, embora muitas vezes esta pense ser o que não é o encareça, pode-se partir disso para saber das outras a verdade, impondo-lhes preceito, e repreendê-la mais tarde com rigor, para que todas fiquem espantadas e não voltem a fazê-lo.

17. E quando, sem culpa da priora, alguma viver cuidando de minudências ou exagerar as coisas, é mister haver rigor, dando-se a entender sua cegueira para que se acalme, porque, vendo que isso não lhe será de proveito, mas que foi percebido tal como é, sossegue. Porque, não sendo coisas graves, sempre se há de favorecer a prelada, mesmo que as faltas se remediem, pois para a quietude das súditas seria muito boa a simplicidade da perfeita obediência, que impede que o demônio induza alguma a pensar que julga melhor do que a prelada e ficar atentado para coisas que não importam, causando a si mesma muitos prejuízos.

Isso fica a cargo da decisão do prelado para deixá-las com proveito, embora no caso das melancólicas haja muito a fazer. É vital não mostrar brandura com as que forem assim, porque se pensarem que poderão se sair bem, jamais cessarão de inquietar e não sossegarão; que entendam sempre que serão castigadas e que, nisso, se há de favorecer a prelada.

18. Se por acaso alguma tratar de transferência de convento, deve-se dar-lhe uma resposta inequívoca sobre a necessidade de entender deuma vez por todas que é impossível. Porque ninguém pode entender, exceto quem já viu, os enorme inconvenientes que há e a porta que se abre para as tentações no pensar que é possível sair de sua casa, por mais relevantes que sejam as razões por ela apresentada. E mesmo que se tenha de fazer isso, não devem elas entendê-lo, e muito menos perceber que se fez em função de sua vontade; porque a diretamente envolvida não se assentará em parte alguma e muito se prejudicarão as outras.

Devem todas entender que a monja que pretender sair de sua casa não receberá do prelado crédito em coisa alguma e que mesmo que a tivesse de tirar dali, por esse motivo não o faria, refiro-me a tirar para alguma necessidade ou fundação. E é bom que se haja assim, porque essas tentações só costumam acometer as melancólicas e as que não servem para coisas de muito proveito. Na verdade, talvez fosse bom falar sobre isso antes mesmo de alguma se referir à questão, aproveitando alguma prática, para dizer quão ruim isso é e quão mal se pensaria de quem tivesse essa tentação, bem como falar das causas e dizer que nenhuma pode sair, porque até agora havia motivos para se ter necessidade disso.6

19. Informar-se se a priora tem amizade particular com algumas, fazendo mais por ela do que pelas outras, porque se não houver isso não se deve fazer caso da amizade, desde que não seja nenhuma coisa exagerada. Porque as prioras sempre precisam tratar mais com as que entendem melhor e são mais discretas. E como a nossa natureza não nos deixa que nos tomemos pelo que somos, cada qual pensa merecer atenções especiais, podendo assim o demônio introduzir essa tentação em algumas, porque o inimigo, na ausência de graves ocasiões de fora, sempre acha detalhezinhos dentro de casa para que sempre haja guerra e mérito em resistir, e assim haverá a impressão de que aquela ou aquelas dominam a priora.

É vital procurar que esta seja moderada, se houver alguma demasia, pois isso é muita tentação para as fracas; mas que não se proíba, já que, como eu disse, pode-se tratar de pessoas que tornem isso necessário. Contudo, é preciso enfatizar sempre muito que não haja excessiva intimidade com nenhuma. Logo se entenderá como são as coisas.

20. Há algumas tão demasiado perfeitas,7 a seu ver, que tudo o que vêm parece falta, e essas costumam ser as que mais faltas têm, mas não as vêem em si, lançando toda a culpa na pobre priora ou em outras, podendo levar um prelado a cometer o desatino de tornar adequado o que já o é. Eis por que não se deve acreditar numa só, como eu disse,8 para remediar alguma coisa; deve-se obter informações com as outras, porque se já houver o correto rigor seria insuportável que cada prelado, a cada visita, impusesse novos mandatos.

Trata-se de coisa deveras importante, razão por que, se em nada houver gravidade não se devem deixar mandatos. Como eu digo, informe-se bem com a própria priora e com as outras acerca do que se quer remediar, sobre os porquês e o costume. Porque pode ocorrer de haver tamanha sobrecarga que as monjas, sem poderem cumprir tanta coisa, deixem de lado o importante da Regra.

21. Merece todo o empenho do prelado a observância das Constituições. E onde houver priora que tenha tanta liberdade que as castigue por qualquer motivo ou tenha se habituado a fazê-lo, parecendo-lhe que pouco importa esse ou aquele ponto, entenda-se ser isso causa de grandes danos para a casa — o que o tempo prova, caso já não seja evidente. Eis a causa de estarem os mosteiros, e até as ordens, tão perdidos em alguns lugares: faz-se pouco caso mesmo de coisas poucas,8 vindo-se então a cair nas muito grandes. Avise-se, pois, em público, que todas devem dizer quando houver falta nisso no convento, e que, se não se vier a saber, no caso de a haver, será muito castigada aquela que não tiver informado. Com isso, as prioras haverão de temer e terão todo o cuidado.

22. É preciso não contemporizar com elas, sintam ou não pesadume. Devem as prioras entender que sempre será assim e que a principal razão do seu cargo é fazer observar a Regra e as Constituições e deixá-las de lado e tirar coisas na própria cabeça, bem assim que há de haver quem o observe e o avise ao prelado. A priora que fizer alguma coisa contrária a isso, vindo o prelado a tomar conhecimento, me parece impossibilitada de realizar o seu ofício, porque isso é sinal de que não segue um caminho muito reto no serviço de Deus quem não quer que aquele que está em seu lugar o saiba. Por isso, deve o prelado ver se há delicadeza e verdade nas coisas com ele tratadas; caso não haja, deve ele repreender com grande rigor procurando meios junto à priora ou oficiais ou tomar outras medidas; porque, mesmo que não mintam, podem encobrir algumas coisas, e não razão para que, sendo o prelado a cabeça sob cujo comando se deve viver, deixe de saber de tudo — porque um corpo bom sem cabeça só pode produzir mal, porque não passa disso o fato de lhe ocultarem o que há de ser remediado.

23. Concluo que se se respeitarem as Constituições, tudo irá bem. E se não houver muito cuidado nisso, e na observância da Regra, de pouco servirão visistas. Porque estas devem servir a esse fim; se não o conseguirem e se nisso já houver hábito, mesmo tendo-se trocado de priora e removido monjas, o que Deus não permita, refaça-se a casa com outras que guardem por inteiro os regulamentos da Ordem, nem mais nem menos do que como se se fundasse outra vez, pondo cada uma num outro convento e separando-as, porque uma ou duas não podem fazer muito dano numa casa bem organizada.

24. Atente-se para o fato de poder haver prioras que peçam alguma liberdade para fazer algumas coisas contrárias às Constituições; elas talvez apresentem várias razões que, ao seu ver, são muito relevantes; porque talvez não entendam mais e desesem fazer o prelado entender que convém. E mesmo que não sejam coisas contrárias às Constituições, podem ter tal natureza que sua aceitação seja danosa; como o prelado não está presente, não sabe o que de fato pode haver, e sabemos enfatizar aquilo que queremos conseguir.

Por isso, o melhor é não dar ensejo a coisa alguma que não siga o modo como as coisas ora estão ordenadas — que, como se vê, estão indo bem, além de se ter experiência em sua prática. Mais vale o certo do que o duvidoso. E, no tocante a esses casos, deve o prelado ser intransigente e não se incomodar de dizer não, devendo porém ter a liberdade de que falei no princípio,9 e o senhorio santo de pouco se importar em contentá-las ou descontentá-las — sejam prioras ou monjas — naquilo em que, com a passagem do tempo, possa haver algum inconveniente. Basta ver novidade para não se começar.

25. No tocante às licenças para admitir monjas, coisa importantíssima, que não as conceda o prelado sem que lhe dêem uma boa explicação e, estando num lugar em que isso seja possível, procure informar-se pessoalmente. Porque pode haver prioras muito amigas de aceitar monjas, a ponto de se contentarem com pouco. Quando uma tal priora o quer e diz que está informada, é freqüente que as monjas concordem com ela e poderia ser que, seja por amizade, parentesco ou por outras razões, a priora se afeiçoasse a uma postulante e pensasse acertar quando erra.

26. Sua admissão poderá ser facilmente remediada; professá-las, porém, requer inúmeros cuidados e, no tempo das visitas, deve o prelado informar-se se há noviças e como são, para que ele fique de sobreaviso se não convier dar a permissão; porque é possível que a priora se dê bem com a monja, ou goste muito dela, e as súbitas não ousem dizer-lhe o que pensam, embora o digam ao prelado.

Em conseqüência, quando for possível, será acertado que se adie a profissão, se for próxima, até a visita do prelado; e se julgar oportuno, deverá ele dizer que lhe enviem os votos em segredo, como numa eleição. É sobremaneira importante não haver na casa quem possa dar trabalho e trazer inquietude a vida inteira, de modo que qualquer medida que se tome para evitá-lo será bem empregada.

27. Na admissão de irmãs conversas, é fundamental ter grande cuidado, porque quase todas as prioras gostam muito de fazê-lo, o que sobrecarrega a casa, por vezes com quem pouco pode trabalhar. Grande motivo é para não condescender logo com elas se não vir necessidade; informe-se sobre as que estão na casa, visto que, como não há um número determinado, se não houver bom senso pode-se provocar muitos danos.10

28. É recomendável procurar sempre não preencher o número de irmãs em cada casa, deixando-se alguns de reserva, porque pode aparecer uma monja que seja bom admitir e não se possa fazê-lo por falta de vaga. Isso porque ultrapassar o número de modo algum deve ser admitido, por ser um precedente tão grave quanto a própria destruição dos conventos.

Eis por que vale mais tirar o proveito de um do que fazer mal a todos. Poder-se-ia, caso algum mosteiro não estivesse completo, passar para lá uma monja para permitir a entrada de outra; e, se a que vai tiver trazido algum dote, deixar que o leve para o novo mosteiro, porque vai para sempre, remediando-se assim a situação. Porém na impossibilidade disso, perca-se o que se perder, não se deve iniciar prática tão daninha para todas. Quando lhe pedirem a licença, o prelado deve informar-se do número existente para ver o que convém fazer, porque em coisa de tamanha importância não há razão para confiar nas prioras.

29. É fundamental saber se as prioras fazem acréscimos às obrigações, tanto em termos de oração como de penitência. Porque poderia acontecer de cada uma acrescentar ao seu gosto coisas particulares tão pesadas que as monjas, sobrecarregadas por isso, perdessem a saúde e não pudessem fazer o obrigatório. Não falo de alguma necessidade que eventualmente surja em algum dia, mas sim de coisas tão indiscretas que sejam praticamente tomadas por costume, o que é comum, não ousando as monjas falar, por julgarem que dizê-lo é pouca devoção, exceto quando falam com o prelado.

30. Ver o que se recita no coro, tanto em cantos como em orações, e informar-se de há um bom andamento e, no caso dos cantos, se é feito em voz baixa, como manda a nossa profissão, e se edifica; porque, se for em voz alta, haverá dois prejuízos: parece mal, por não seguir uma regra, e faz perder a modéstia e o espírito do nosso modo de viver. Se não se der muita atenção a isso, haverá excessos e será tirada a devoção dos que ouvem; mas que as vozes sejam antes mortificadas do que dêem a impressão de desejar parecer bem aos que ouvem — o que é uma falta quase geral que talvez não mais venha a ter remédio, se levarmos em conta como andam os costumes, razão pela qual é mister dar muita atenção a isso.

31. Quanto às coisas importantes que o prelado ordenar, seria muito oportuno que ele mandasse uma monja, diante da priora, que, por obediência, lhe escreva caso isso não se faça; e que a priora entenda que essa monja não poderá deixar de fazê-lo, Isso em parte equivaleria a estar o próprio preladopresente, porque todas terão mais cuidado e advertência para não faltar em nada.

32. Antes de começar a visita, deve-se alertar claramente que é ruim que as prioras fiquem desagradadas com as  irmãs que apontarem ao prelado as faltas que julguem haver. Mesmo que elas não tenham a mesma opinião da priora, estão obrigadas pela própria consciência a fazê-lo; e no tocante à mortificação, que deveria dar contentamento à priora, por ajudá-la a cumprir melhor a sua função e a servir a Nosso Senhor, se a priora se desgostar com as irmãs, temos um sinal certo de que não serve para governá-las. Porque, se assim ocorrer, da próxima vez elas não ousarão falar, por virem que o prelado vai embora e elas têm de enfrentar o problema, podendo por isso haver relaxamento em tudo. Dessa maneira, por mais santidade que haja nas preladas, não há por que confiar nelas, porque a nossa natureza tem um caráter tal que o inimigo, não tendo outras coisas a que recorrer, carregará a mão nesse ponto e talvez venha a ganhar o que perde em outros.

33. Convém que o prelado mantenha segredo em tudo, que a prelada não venha a saber quem lhe dá avisos. Porque, como eu digo, ainda estão na terra, para não lembrar que, se outras razões não houvesse, isso serve para afastar outras tentações, ainda mais porque pode causar muitos malefícios.

34. Se forem ditas das prioras coisas sem importância, fazendo-se alguns rodeios é possível alertá-las sem que percebam que a informação veio das monjas, porque quanto mais se puder dizer que elas nada informam, tanto mais conveniente. Mas quando se tratar de coisas importantes, mais vale remediá-la do que dar gosto à priora.

35. Informe-se sobre a entrada de algum dinheiro em poder da prelada sem que o saibam as clavárias, o que é muito importante, pois, sem se darem conta, podem fazer. Também não deve a priora possuir dinheiro, mas seguir as Constituições. Isso também é fundamental nas casas de pobreza. Tenho a impressão de já ter me referido a isso,11 o que deve acontecer com outros assuntos; é que os dias passam e, por não tornar a ler, esqueço-me.

36. É muito trabalhoso para o prelado dar atenção a tantos detalhes como os aqui aludidos, mas maior terá ele se houver prejuízos irremediáveis por não tê-lo feito, porque, como eu disse, por mais santas que sejam, isso é vital. O mais importante, como afirmei no início,12 no tocante ao governo de mulheres, é mister que estas entendam haver um cabeça que não transigirá por nada deste mundo, mas há de guardar e cumprir tudo o que for parte da religião e castigar tudo que não o seja, e vejam que ele tem particular cuidado com isso em cada casa e que não vai se limitar a uma visita anual, devendo também saber tudo o que se passa cada dia. Com isso, a perfeição vai antes aumentando do que diminuindo, por que as mulheres, em sua maioria, são briosas e temerosas.

37. Importa muito o que eu disse para não se descuidarem e que alguma vez, quando necessário, não haja só o dizer, mas o fazer, porque a punição de um servirá a todas. E se por piedade ou por outros motivos se fizer o contrário no início, quando ainda há pouco a corrigir, mais tarde ter-se-á de fazê-lo com maior rigor e essas piedades serão uma enorme crueldade da qual se terá de dar contas detalhadas a Deus Nosso Senhor.

38. Há algumas monjas com tanta simplicidade que consideram grande falta de sua parte falar das prioras em coisas que se devem remediar, e mesmo que elas o considerem deslealdade, cumpre adverti-las que estão obrigadas a isso, bem como a, com humildade, chamar a atenção da priora quando virem que ela falta às Constituições ou a alguma coisa importante. É possível que ela nem se dê conta do que faz e que até as próprias monjas lhe digam que faça e depois, se ficarem desgostosas com ela, a acusem. As irmãs ignoram muito o que se há de fazer nessas visitas, razão por que o prelado há de, com discrição, adverti-las e ensinálas.

39. É extremamente importante informar-se sobre o que se faz como o confessor; e não com uma ou duas, mas com todas, e o modo como ocorre a sua entrada na casa. Porque, se não é vigário — nem o há de ser, afastando-se as oportunidades de se intrometer onde não deve —, é necessário que não haja comunicação com ele, a não ser com grandíssima moderação, e quanto menor melhor. Atente-se muito para os obséquios e presentes, se não forem bem poucos, embora por vezes não se possa evitar alguma coisa. E é preferível que lhe paguem mais pela capelania a ter esse cuidado, que está eivado de inconvenientes.

40. Também é vital avisar as prioras que não sejam muito mão aberta e presenteadoras, devendo antes ter presente a obrigação de ver bem como gastam. Porque elas não passam de mordomos e não têm de gastar como se os recursos fossem seus, senão como manda a prudência, com muito cuidado para não cometer excessos. Tudo isso para não mencionar que ela não deve dar mau exemplo, estando obrigada em consciência a não fazê-lo, e à guarda do temporal, bem como a não ter, tanto quanto as outras, coisas particulares, exceto alguma chave de escrivaninha do escritório para guardar papéis, isto é, cartas, que — especialmente se forem do prelado — não devem ser vistos por todos, ou coisas desse gênero.

41. Observem-se as vestes e apetrechos usados nos cabelos, para ver se respeitam as Constituições. E se houver, que Deus não o permita, alguma coisa em algum momento que seja curiosa ou pareça não ser de tanta edificação, deve-se fazer queimar diante da que a usar; porque obrigá-las a uma coisa como essa deixa-as espantadas e elas se emendam e se lembram do fato para o dizerem às que vierem depois.

42. Outro ponto que merece atenção é o modo de falar, que deve ser simples, cortês e religioso, tendo mais estilo de ermitãos ou pessoas afastadas do mundo do que de linguagem cheia de vocábulos da moda e afetados, ou que nomes tenham, que se usam no mundo, onde sempre há novidades. No tocante a isso, valorize-se mais o serem humildes do que curiosas.

43. Tanto quanto possível, deve-se evitar que tenham litígios se não for indispensável, porque o Senhor lhes dará por outro lado o que perderem por um. Deve-se levá-las sempre a guardar a maior perfeição e ordenar que não se apresente nem sustente nenhum litígio sem avisar o prelado e com ordem expressa deste.

44. Assim, vão-se admoestando as que forem admitidas que valorizem mais os talentos das pessoas do que o dote que trouxerem, e que não se devem admitir postulantes em função de algum interesse, mas sim de acordo com o que mandam as Contituições, especialmente se faltar alguma condição.

45. Deve-se dar prosseguimento ao que faz agora o prelado que o Senhor nos deu,13 de quem aprendi muito do que digo aqui vendo as suas visitas, em particular no tocante a este ponto: não ter com nenhuma irmão intimidade maior do que com todas, não estar com ela a sós, nem lhe escrever, mas sim, como verdadeiro pai, mostrar igual amizade a todas.

Porque no dia em que houver amizades particulares em conventos, mesmo que seja como a de São Jerônimo e Santa Paula, jamais ficaremos livres de boatos, como com eles sucedeu. Isso não faz dano apenas á casa em que ocorrer, mas a todas, porque o demônio logo torna o fato conhecido para obter algum proveito. E como por nossos pecados o mundo está tão perdido quanto a isso, seguir-se-ão a isso muitos inconvenientes, como agora se vê.

46. Pelo mesmo motivo, o prelado passa a merecer menor consideração e perde a estima geral que todas devem ter sempre, como agora têm, ficando elas com a impressão de que a sua amizade se restringe a um só objeto, quando é muito proveitoso que seja estimada por todas. Não estou me referindo por eventuais ocorrências advindas de situações em que se imponham certas necessidades; falo antes de coisas que chamem a atenção ou se notabilizem pelo exagero.

47. Quando for entrar na casa, digo nos conventos, para visitar a clausura (o que deve fazer sempre, visto estar a seu cargo observar muito bem toda a casa, como já foi dito14) que tenha o cuidado de ir com o seu companheiro, e sempre com a priora e algumas monjas. E de modo algum, ainda que seja pela manhã, fique para comer no convento, mesmo que insistam muito; que veja o que tem de ver e se vá logo, porque, para falar, é melhor através da grade. Porque, embora fosse possível fazer isso com toda a bondade e respeito, é ensejo para que, com o passar do tempo, venha algum ao qual não convenha dar tanta liberdade e que, mesmo que não se queira, venha a tomar mais. Queira o Senhor não o permitir, mas que se façam sempre essas coisas de edificação e tudo o mais que agora se faz, amém, amém.

48. Não consista o Visitador exageros nas comidas que lhe derem nos dias em que estiver visistando, mas apenas o que for conveniente. Se se agir de outra forma, que ele muito recrimine, porque não convém nem para o profissão dos prelados, que é a de probreza, nem para a das monjas, nem serve para nada, se não comem só o que lhes basta, além de não se dar a edificação recomendável às monjas.

49. Quanto a isso, por agora, creio que haveria pouco remédio a dar, mesmo que houvesse excessos, porque o prelado que temos não percebe se lhe dão pouco ou muito, nem bom ou ruim, nem sei se daria alguma atenção a isso se não fosse o particular cuidado que tem com tudo.

Ele o tem muito em fazer o escrutínio sem o companheiro, porque não quer, se houver alguma falta nas monjas, que este o perceba. Isso é admirável para que não se saibam as ninharias das monjas, se bem que, neste momento, glória a Deus, se houvesse alguma pouco dano causaria, já que o prelado as vê como pai e guarda-as como tal; e Deus lhe mostra a importância das faltas porque ele está em Seu lugar. Quem não está talvez considere muito o que é pouco e, como não se importa, não tem cuidado com o que diz e termina por fazer que se perca sem causa o crédito do mosteiro. Queira o Senhor que os prelados vejam esse exemplo e procurem agir sempre assim.

50. Não convém ao prelado mostrar que quer muito à prioresa, nem que se dá muito bem com ela, ao menos diante de todas, porque lhes dificultará o dizerem das faltas daquela. E que deixe bem claro para elas que ele não a desculpa e, se houver necessidade, a repreende e corrige. Porque não há desconsolo que mais afete uma alma zelosa de Deus e da Ordem do que, estando cansada de ver as coisas caindo e esperando a vinda do prelado para que este resolva o problema, percebe que se fica na mesma. Ela se volta para Deus e decide que a partir de então vai se calar, mesmo que tudo venha abaixo, devido ao pouco proveito de falar.

51. Como as pobres monjas só são ouvidas uma vez, quando chamadas, e as prioras têm bastante tempo para desculpar faltas, apresentar razões, minimizar e talvez acusar a pobre de ser apaixonada (porque mesmo que não lhe digam quem é, ela mais ou menos o percebe); e como o prelado não pode ser testemunha e as coisas ditas são tais que não se pode desprezá-las, fica tudo como estava. Pois o prelado, se pudesse ser testemunha, em poucos dias entenderia a verdade, e as prioras não pensam que não a dizem, e esse nosso amor próprio tem tal natureza que, como por milagre, livramo-nos das culpas e não nos conhecemos.

52. Isso me aconteceu inúmeras vezes, e com prioras muito servas de Deus a quem eu dava tanto crédito que jamais teria acreditado. Passando uns dias na casa, eu ficava espantada de ver tudo ao contrário do que me fora dito, e em coisas importantes, o que me fazia entender que era paixão; era quase metade do convento e era ela quem não o percebia, como depois vim a compreender. Creio que o demônio, por não ter muitas ocasiões em que tentar as irmãs, tenta a priora para que tenha divergências com elas em alguns pontos — e ver como suportam tudo é coisa para louvar Nosso Senhor.

Por essas razões, adquiri o hábito de não acreditar em nenhuma até informar-me bem para mostrar à que está errada como o está, porque, se não for dessa maneira, o remédio não será eficaz. Não que todas as ocorrências disso envolvam coisas graves; mas das pequenas coisas podemos chegar ás grandes, se não se agir com muito cuidado.

53. Espanto-me de ver a sutileza do demônio e como faz cada uma crer que diz a maior verdade do mundo. Eis o motivo de eu dizer que não se dê pleno crédito à priora ou a uma monja em especial, mas que se tenha o cuidado de tomar informações adicionais quando se tratar de coisas importantes, para administrar adequadamente o remédio.

Ajude-nos Nosso Senhor dando-nos sempre um prelado atento e santo, porque, se assim for, Sua Majestade lhe dará luz para que haja em tudo com acerto e nos conheça bem, o que são condições para que tudo seja muito bem governado, crescendo as almas em perfeição para honra e glória de Deus.15

54. Suplico a Vossa Paternidade, como recompensa pela mortificação que me deu fazer isso, que a tenha agora escrevendo algumas advertências aos Visitadores. Se se acertou em alguma coisa aqui, pode-se ordenar melhor, o que vai ajudar, porque agora começarei a acabar as Fundações,16 poder-se-á incluir ali, o que seria de grande proveito. Embora eu tenha medo de que não haja outro tão humilde como quem me mandou escrever que deseja tirar algum proveito disso, se Deus o quiser quem vier não poderá deixar de fazê-lo.

Porque se se visitarem essas casas como é de costume na Ordem,17 o fruto obtido será muito pouco e talvez cause mais prejuízo que proveito. Ainda mais que há necessidade de outros elementos além daqueles a que aludi; não falei deles porque não os entendo ou não me lembro agora. Só no princípio será preciso maior cuidado, pois uma vez que entendem que as visitas hão de ter essa natureza, pouco trabalho haverá no governo.

55. Faça Vossa Paternidade o que está em suas mãos para deixar esses avisos que dei da maneira como Vossa Paternidade procede nessas visitas.18 O Senhor proverá as outras coisas por Sua misericórdia e pelos méritos dessas irmãs, cujo intento é somente acertar em Seu serviço e ser para isso instruídas.

 

 

 

 

 

 

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