S. João da Cruz e S. Teresa nos deixaram estudos minuciosos dos caminhos da oração contemplativa. Mais do que qualquer outro místico, eles nos descreveram os pormenores práticos de nossa cooperação com o Espírito de Deus no grau de oração que aqui nos interessa. Ambos acham que na Noite dos sentidos e na oração de Quietude, as faculdades da alma são de algum modo passivas. Mas concordam também em que elas ainda são livres de agir, podendo ajudar ou estorvar a ação de Deus. Pensam igualmente que para ajudar a obra da graça, as faculdades devem pôr-se em uma atividade muito simplificada, que na hora da oração passiva, consiste em não fazer outro esforço senão conservar-nos passivos. Fora do tempo da oração, podem fazer mais. Mas é, de qualquer modo, mortificante manter a alma num estado de atenta receptividade durante os primeiros passos da oração passiva quando a graça age quase sem se fazer sentir e a imaginação é solicitada por muitas distrações.
Quero aqui resumir um importante capítulo na vida de S. Teresa. Ele nos diz o que a nossa alma pode e deve fazer na oração de quietude.
A santa começa por recordar-nos a natureza dessa oração. Este "começo de todas as bênçãos" e "penhor de grandes coisas a vir" é o primeiro antegôzo da mística. Pois, embora possa a contemplação infusa começar durante aquela árida parte da Noite cios Sentidos em que não se sente a presença divina, contudo a oração de quietude muito evidentemente absorve a alma num estado de recolhimento passivo e banha todo o ser com uma indescritível paz que desce do senso profundo e atual da presença de Deus. As águas escuras da alma foram subitamente iluminadas pelaluz celeste. Envolvida da claridade de Deus, acorda a uma nova vida, descobre-se como um ser diferente e descansa numa alegria desconhecida. No entanto, esse senso de Deus não é claramente definido, porque a alma ainda está ofuscada pela caridade divina. O espírito fica numa tranqüilidade profunda, balouça docemente como um barco ancorado em porto seguro, enquanto o sol se levanta sobre um novo mundo através de uma névoa silenciosa e translúcida. A idéia do barco é minha e não de S. Teresa e pode ter obscurecido a matéria. Mas as expressões que ela usa bastam para aclarar o sentido. São "quietude", "recolhimento", "satisfação", "paz", "alegria muito grande", "repouso das faculdades", "doce delícia". William Blake conheceu esta oração e falou dela como de uma noite de luar.
Muito bem. Nesta oração, as faculdades são passivas. E, no entanto, podem agir.
São passivas, isto é, nada podem fazer nem para adquirir esta bênção, nem para conservá-la. É um puro dom de Deus. Não é produzido por nenhuma técnica deliberada. Os nossos esforços só podem dispor-nos a recebê-lo como uma dádiva. É por isto que a oração de quietude pode ser distinta dos paralelos naturais da experiência mística, ao alcance do esforço do homem. A alma pode tornar-se recolhida à custa dos próprios esforços, concentrando-se em si mesma numa experiência profundamente repousante. Mesmo o amor humano pode às vezes produzir esse efeito, embora seja mais apto a gerar a inquietude do que a paz. A alma que adquiriu um alto grau ascético de recolhimento é capaz de produzir voluntariamente uma reflexão intelectual sobre o ser metafísico de Deus presente em seu íntimo. Isso pode às vezes ser realçado por uma inspiração natural do gênero a que já nos referimos ao falar da intuição metafísica do ser. Na oração da quietude, a experiência é algo de maior. A alma inteira sente-se iluminada, vitalizada, erguida a um novo plano do ser, e livre, até certo ponto, das limitações materiais. Ela tem um extraordinário senso de lucidez e de liberdade, como um adolescente que acaba de sair da aula ou um pássaro que fugiu da gaiola,. Mas acima de tudo isso, está a divina Realidade em que esta experiência se passa. Não é pelo pensamento ou a reflexão que a alma chegou a Deus, nem é por um conceito que O apreende. Contudo, ela está "n'Ele", nadando em sua luz, envolvida numa nuvem de ouro. E o fator essencial desta experiência é o descobrimento de Deus, que se revela à alma em sua imanência e transcendência. Tudo que a alma experimenta tem origem neste mistério central, que Deus está em todas as coisas e na alma, mas é, apesar disto, infinitamente acima da alma e de todas as coisas.
E agora, ainda um pouco de S. Teresa. Ela zomba das pessoas que gozaram deste prazer e depois tentam recapturá-lo por seus próprios esforços. Mas ela o faz com muita bondade, porque, afinal de contas, também fora um deles. Os principiantes na oração recebem este admirável sentimento interior. Não ousam mais mover-se. Param transfixados, de olhos fechados, mal ousando respirar, com medo que tudo se desvaneça. Ou então, logo que a centelha do amor é acesa em seu coração, põem-se a empilhar lenha para a fogueira, multiplicando inúteis raciocínios e ocas considerações, que sem demora sufocam o fogo. E S. Teresa resume a sua opinião sobre a inutilidade de nossos esforços para adquirir este grau de oração:
"Estranha forma de crença é esta que, quando Deus quer que um sapo vôe Ele espera que o faça por seus próprios esforços. . . Nossas almas são agravadas pela terra e por mil impedimentos, e o fato de quererem voar, não lhes adianta nada, pois, embora o vôo lhes venha mais naturalmente a elas do que a um sapo, elas são tão completamente mergulhadas no logo que perderam toda a capacidade".
E agora, qual é o papel das faculdades na oração de quietudes? Precisamos de fazer uma distinção. Quando a alma está nesta oração, elas têm um papel; fora disso, têm outro. Além disto o efeito da graça da quietude difere conforme a faculdade.
Primeiro, vejamos as faculdades da alma quando ela ora em quietude. Os sensos exteriores estão recolhidos. É em geral o fruto do recolhimento ativo, intensificado pela ação do Espírito no fundo da alma. Os sentidos interiores especialmente a imaginação e a memória, podem estar recolhidos ou inteiramente distraídos. Quando a alma se acha profundamente absorta no recolhimento passivo, a imaginação e a memória ficam quase inteiramente inativas. Ou, se agem, o seu movimento não é percebido nas profundezas da alma.
Às vezes, porém, estas faculdades podem estar aflitivamente ocupadas. O mesmo se aplica à inteligência, que não raro descansa numa reverente apreciação de mensagem de Deus à vontade. Mas em outras ocasiões, a razão e a imaginação podem fazer muito barulho. Nossa alma exterior prega sermões, reforma os mosteiros, reprova heréticos, passa em revista as faltas de outros contemplativos, desenvolve complexas teorias da vida interior, assume a direção espiritual de todos os conventos de monjas, urge os bispos a levarem uma vida de maior oração, e finalmente se torna Papa e governa a Igreja Universal com o aplauso de todos. . . Enquanto isto se passa, a vontade, escondida atrás de um escudo à prova de bomba no centro da alma, apega-se com tristeza e desespero à esperança de que Deus não a abandonará a sós com os argumentos do enfatuado monstro que circula do lado de fora. Sob tais condições, é fácil compreender que será bem pouca a oração de Quietude em sentido verdadeiro, pois ela implica a paz sensível e o repouso em presença de Deus. Se concedemos que a vontade está de todo rezando, em estado passivo, então ela sofre essa árida quietude que pertence à noite dos sentidos propriamente dita. À medida que a quietude cresce e ganha melhor a posse da vontade, esta faculdade assume um império mais completo sobre as outras. Mas aqui está a coisa interessante: ela as regula passivamente, isto é, na direção que ela imprime ao resto da alma, ela própria é movida passivamente por Deus. Este ponto é muito importante. Éle oferece a única justificação possível para o governo que a vontade, tanto neste como em outros graus da oração mística, exerce sobre a razão. Naturalmente falando, a inteligência é a mais nobre faculdade da alma, incumbida normalmente de guiar a vontade pela luz de Deus.
Consideremos mais de perto o papel da vontade no estado de quietude. Ela é a faculdade que nessa oração se mantém mais passiva. É por ela que o amor de Deus se apossa da alma e a atrai, sem que as outras faculdades percebam como isso acontece. Isto explica duas coisas : primeiro, a coincidência de distrações com a união com Deus no recolhimento passivo; segundo, a impossibilidade de formar uma idéia clara do modo dessa união. Por que? É que Deus ao unir a si passivamente a alma, não o fez através da inteligência, mas de uma faculdade cega, avontade.
Sobre isto diz S. Teresa:
"A alma tem tal satisfação em Deus, que, embora possam as duas outras faculdades ser distraídas, como é a vontade que está em união com Deus enquanto dura o recolhimento, sua quietude e repouso não são perdidos, mas a vontade gradualmente reconduz o entendimento e a memória ao estado de recolhimento, outra vez. Pois, embora a vontade não seja completamente absorvida, ela é tão bem ocupada, sem saber como, que por maiores esforços que façam o entendimento e a memória, não podem privá-la do seu contentamento e júbilo; de fato, sem qualquer trabalho de sua parte, ela ajuda a impedir que esta pequena centelha de amor seja extinta."
Há aqui um paradoxo! É a vontade que, por ser passiva, não está "fazendo nada", que de fato faz tudo na oração de quietude. As outras faculdades, ainda ativas, na verdade não fazem nada, fazem até menos do que nada, porque a sua atividade é nociva e tende a impedir a obra de Deus. Mas, como indica o santo, graças à ação passiva da vontade movida diretamente por Deus, a atividade indesejável das outras faculdades é submetida à direção e perde o seu eleito nocivo. É esta a solução do aparente problema: a vontade movida passivamente por Deus, atua em um sentido muito mais alto e perfeito do que quando se move por si mesma. Também, sendo Deus infinitamente acima de limitações, o que acontece quando a vontade se torna prisioneira do seu Amor e é, por assim dizer, incapaz de fazer o que não é da sua vontade, é que ela fica perfeitamente livre, da liberdade mesma de Deus. Ubi Spiritus Domini, ibi libertas!
Todavia, vimos que na oração de quietude, a vontade não fica inteiramente cativa de Deus, retendo a sua natural tendência para seguir a direção da inteligência. A razão e a imaginação podem atraí-la, conseguindo convencê-la da excelência da sua luz sobre as obscuras consolações recebidas em segredo. S. João da Cruz assevera que, logo que isto acontece, a oração passiva e sobrenatural termina, mesmo se uma forte consolação e um especioso sentimento de passividade se prolonga na vontade. Discutiremos daqui a pouco alguns dos textos de S. João sobre o assunto.
Isto nos leva outra vez à verdade em que venho insistindo: mesmo na oração passiva, o progresso da alma e a sua cooperação com Deus depende em grande parte da discreção sobrenatural exercida pela inteligência. Aqui vão as provas que S. Teresa fornece a esta tese.
Quando um contemplativo atingiu à oração de quietude, que deve fazer do seu entendimento? Primeiro: em geral, fora do tempo de efetiva absorção na oração passiva, a inteligência tem várias coisas importantes a fazer. Ela deve reconhecer, diz S. Teresa, o grande dom que Deus concedeu à alma. Deve compreender como lhe importa viver segundo o favor concedido, continuando a exercer-se, muito simplesmente, no conhecimento (gnosis) de si, isto é, na humildade, sem deixar de produzir motivos de confiança e estimular a vontade ao progresso nessa oração. Ela reconhecerá, diz a santa, que esta graça é penhor de "grandes coisas a vir", e que muitas outras almas dependem dela, pois Deus não a confere para o bem exclusivo de um. Deus derrama a sua alegria sobre todo o mundo, através de vasos eleitos, embora talvez obscuros, que Ele viu aptos a receber o vinho da oração interior. O que a inteligência deve antes de tudo fazer, é mostrar à vontade a importância da perseverançana oração e na renúncia, sem voltar, como disse S. Teresa numa expressão consagrada pela ascética, às "panelas de carne".
Muito mais importante é a discreção e o bem-estar da nossa razão no próprio momento da oração passiva.
Cito a própria S. Teresa:
"O que a alma tem a fazer nessas ocasiões de quietude é só ir calmamente e não fazer ruido. Por ruido eu entendo ir com a inteligência à procura de muitas palavras e reflexões com que dar graças por este benefício, e empilhar os pecados e imperfeições para fazer sentir a si mesmo que não deve servir a eles. . . A alma sofrerá grande perda se não tiver cuidado com isto, principalmente se o seu entendimento é vivo, e o resultado, se ela começa a discorrer consigo mesma e a fazer reflexões, é que logo imaginará que está fazendo algo que valha a pena, visto que os seus discursos e reflexões são de todo inteligentes."
Mantendo a comparação da "pequena centelha", usada em todo esse capítulo, S. Teresa previne a razão para que esta evite ajuntar lenha demais para a fogueira. Pode, porém, contribuir com algum esforço para fazer o fogo:
"Umas poucas folhas ajuntadas com humildade (e elas serão menos do que folhas se somos nós que as ajuntamos) são mais úteis para acender o fogo, do que um monte de lenha, isto é, o mais sapiente raciocínio".
Há uma consideração que a razão deve usar mais do que nenhuma ao tempo da oração: ela terá consciência de estar em face de um dom de Deus e reconhecer-se-á incapaz de contribuir com qualquer coisa de substancial ao trabalho em curso. Esta sentença de S. Teresa é clássica:
"Tudo que a razão tem a fazer nesse estado é compreender que não existe razão alguma, salvo a bondade de Deus, para que Èle nos conceda este grande favor, e ter em mente que nós estamos então bem próximos d'Ele..."
No entanto, a oração de petição não é excluída mesmo dos momentos de absorção passiva em Deus. São pedidos sem palavras e bem simples, mas compreendem tudo que é necessário às almas no mundo e aos que dependem de nós pela graça de Deus. Finalmente, a meditação nunca é abandonada por completo. A alma terá às vezes de voltar à meditação discursiva, mas fora do tempo da oração passiva. S. João da Cruzconcorda. Em todo caso, ter-se-á sempre diante dos olhos a simples idéia da cruz de Cristo, e a certeza de que a única via para a união divina é a estrada estreita que Jesus palmilhou antes de nós.
Uma idéia errada do papel atribuído à razão nos inícios da vida mística levaria inevitavelmente à estagnação. Sob pretexto de deixar-se em passiva receptividade diante de Deus, abolindo todo ato formal de amor ou conhecimento (gnosis), o contemplativo cairá na rotina. Se ele for virtuoso, poderá continuar por algum tempo a agir virtuosamente pela força do hábito. Mas bem depressa as ações virtuosas iriam tornar-se cada vez mais vazias e exteriores, sem o fervor interno da vontade. Ninguém pode renunciar à busca ativa da perfeição. As graças passivas apenas modificam o caráter da atividade do homem, elevando-a, para dar cada vez maior iniciativa a Deus. Mas Deus ordinariamente não concederá essas inspirações passivas senão a almas consumidas por um generoso desejo de cooperar com a graça.
É verdade que a inércia espiritual pode dar a certas almas uma ilusão de pas. Mas é uma paz tão insalubre como a estagnação da água parada. O verdadeiro repouso a que Deus chama o homem, "descansa" em perfeita união com o conhecimento (gnosis) e o amor de Deus, pois ali não resta nenhum obstáculo à atividade do espírito em Deus, nem há mais fadiga onde não há niais trabalho.
O místico flamengo, Bem-aventurado João Ruysbroeck tem algo a dizer sobre os Begardos e outros precursores da heresia quietista. Suas palavras, apesar do contexto diverso, fazem pensar naquilo que João de S. Tomás diz da impraticabilidade duma contemplação não inspirada pelo Espírito Santo, mas dada pelo que se poderia chamar de "encurralamento" num ato de fé. Diz Ruysbroeck:
"É verdade que logo que um homem se esvasia de si mesmo e abstrai de todas as imagens da parte sensível da alma, ficando inativo em suas faculdades superiores, ele entra num estado natural de repouso. . . Mas o homem que realmente ama a Deus não pode ficar assim, porque acaridade e a ação intensa da graça não são indolentes... O homem interior não suporta estar longo tempo fechado em si mesmo num estado de repouso meramente natural... Essa espécie de repouso não é permitida . . . Ela leva o homem a uma condição de completa cegueira e à ignorância de todo conhecimento (gnosis). . . ele se enfraquece e perde o poder de agir. . . isto é uma estéril preguiça. . . em que ele se esquece não só de si, mas de Deus, e de tudo mais, especialmente quando é solicitado a fazer algum pequeno trabalho!"
Ruysbroeck continua a mostrar, numa linguagem bem clara, que esta inércia depressa leva ao polo oposto da vida de contemplação, e inabilita o homem a receber a Luz da verdade, confirmando-o na vontade própria. Quando a inteligência e a vontade são deixadas como que imbecilizadas, a vida espiritual não é mais possível.
"Sem uma atenção interior e amorosa a Deus, este homem será capaz dos piores erros porque ele se afasta de Deus para concentrar-se em si mesmo com amor natural. Ele só procura consolo, doçura e satisfação. . . Tudo que faz é no seu interesse pessoal, não para a honra de Deus. . . Sua vida é guiada pelo amor natural e por isto ele se acastela em sua vontade própria e torna-se incapaz de renunciar-se."
A única maneira de escapar um contemplativo a esse desastroso malentendido é pôr a inteligência ao serviço da fé e do amor. Deve ele possuir odiscernimento e a visão sobrenatural que lhe vêm duma constante e humilde atenção as inspirações da graça. Não é sempre fácil distingui-las das inclinações naturais que afastam o homem de Deus. Só uma alma que atingiu a madureza contemplativa pode logo dizer a diferença entre a inatividade estagnante das faculdades e a frutuosa e passiva motivação da mente e da vontade pelas inspirações do Espírito Santo.
Às vezes um trem que avança nas trevas dá a im, pressão de andar à ré. O mesmo acontece à alma que é visitada pelas trevas e as provas interiores. Também, quando há dois trens na estação, e um começa a mover-se, os passageiros do outro têm a impressão de que é o seu que anda. Isso se aplica igualmente à vida espiritual. O contemplativo que chegou a uma parada no meio de uma fervente comunidade pode imaginar que ele se movimenta e os outros marcam passo. A base desse erro é justamente o progresso dos companheiros.
O papel da discreção nos começos da mística é descobrir o verdadeiro caminho entre os extremos. A razão guiada pela fé deve estar vigilante e dar à vontade a luz suficiente para rejeitar tanto os impulsos para a super-atividade, como as tendências à inércia.
Ora, ao fazerem-se julgamentos desse tipo, é quase fatal que se apliquem a todas as almas, indiscriminadamente, certas regras muito gerais. Elas são necessárias, mas, na prática, a direção de contemplativos, dominada antes de tudo pelos sãos princípios cia teologia católica, é também uma "arte", bem mais do que uma ciência. O diretor deve ter um faro especial para ver os problemas particulares à luz das circunstâncias especiais, o que exige também alguma experiência da oração contemplativa. Atividades inúteis ou mesmo danosas para uma alma, não seriam siquer suficientes para uma outra. E a mesma alma, em certas ocasiões, precisará de trabalhar mais com as suas faculdades do que em outras. Cada caso deve ser julgado, com grande humildade e circunspeção, em seu próprio mérito. É por isto que é tão perigoso deixar almascontemplativas nas mãos de diretores que possuem teorias preferidas sobre a vida espiritual, se devotam com paixão a um ou a outro campo nas disputas teológicas, e diminuem ou esticam os penitentes para que caibam no leito procusteano das suas opiniões prediletas.
Uma das questões mais delicadas a decidir é se a alma entrou ou não no regime da contemplação infusa. Concordam os teólogos em que, entrando uma alma na contemplação, a sua atividade discursiva, as meditações, os atos afetivos cia vontade, são muito simplificados e reduzidos. Convém igualmente as autoridades em que, na contemplação claramente passiva, a atividade das faculdades é, ao menos até certo ponto, impedida pela ação de Deus.
Infelizmente o problema do limite entre estados ativos e passivo de oração, entre o que é "adquirido" e o que é "infuso", é objeto de debates muito apaixonados. Os que são não aceitam a possibilidade duma precoce contemplação "infusa" descarregam a ira nos pobres penitentes, obrigando-os a continuar a meditar e a produzir atividade mais abundante do que seria bom para o seu estado avançado na oração. Os que, de outro lado, sustentam que a menor aridês já é sinal da ação infusa de Deus, arriscam-se a levar alguns principiantes a perder tempo com castelos e inutilidades, pondo em perigo o seu progresso.
Devo, entretanto, indicar que as divergências doutrinárias não implicam uma diferença obrigatória nos caminhos práticos a seguir na formação das almas. Sirvo-me do pensamento de um eminente teólogo jesuíta do nosso tempo, o Pe. J. de Guibert, e de um dos seus discípulos, o Pe. Lebreton. Este diz que, mau grado a variedade de concepções sobre o apelo próximo à contemplação infusa, todas as escolas reconhecem naprática que a contemplação é um dom de Deus e que a melhor disposição para ele, é a renúncia e a humildade. Todos igualmente concordam em que enquanto a alma encontra proveito e paz na meditação e na oração afetiva, estas não devem ser suspensas. Praticamente, pois, qualquer que seja sua posição teórica, o diretor não encorajará nenhum interesse pela mística que resulte em detrimento das "vias ordinárias" da vida espiritual, e enfraqueça a alma em sua mortificação e na prática da oração. Mas ele não porá nenhum obstáculo a uma alma possuída dehumildade e de ardente desejo de união com Deus, e fortemente atraída ao silêncio, à solidão e a simples formas de oração sem palavras.
A opinião de S. João da Cruz, reconhecido como o maior dos teólogos da mística católica, é, na prática, a posição mais segura para decidir quando é chegado para a alma o momento de suspender a meditação discursiva e de pôr-se em receptividade sob a secreta orientação da graça. Os três sinais que S. João reconhece na alma que Deus chama à oração contemplativa, são bem conhecidos. Só nos cumpre passar por eles muito brevemente.
Dois desses sinais são negativos, um é positivo.
O primeiro é a incapacidade para meditar, numa alma que sabia outrora fazer frutuosas meditações discursivas e agora não pode mais. O uso daimaginação e da mente, antes fácil, torna-se agora difícil. Este sinal por si mesmo não diz nada.
O segundo é a perda de interesse nos objetos particulares do pensamento. A ênfase está na palavra "particulares". A alma acha-se sumamente interessada em algo, ou melhor, em Alguém, que fica, todavia indefinido. Ela não consegue satisfazer a esse interesse, dirigindo o pensamento a coisas particulares. A mente e a vontade não encontram a menor satisfação nas coisas da terra e até nas do céu, isto é, em idéias de Deus e do céu que podem ser-lhe representadas na imaginação. A alma chegou à distinção existente entre Deus em pessoa e Deus como é contido em nossos conceitos sobre Ele. Isto pode ser fonte de grande ansiedade e aflição, porque tendemos naturalmente a identificar Deus com as idéias que d'Ele temos, e como não somos mais capazes de sentir afeto sensível por uma imagem de Deus, pensamos ter perdido o amor por Ele mesmo. E vem a tendência a forçar a devoção sensível por alguma representação particular de Deus, ou por imagens ou pinturas sacras qüe antes nos consolavam.
O terceiro sinal é o mais importante. Sem ele não poderíamos decidir que uma alma é chamada à oração passiva, pois os dois outros poderiam provir, por exemplo, do relaxamento ou da má saúde.
O terceiro sinal é uma atração positiva pela oração contemplativa solitária. Deixo a S. João descrever este atrativo:
"O terceiro e mais seguro sinal é que a alma tem prazer em estar só e olha atenciosamente para Deus, sem fazer meditação particular, em paz interior e quietude e repousa, em atos e exercícios das faculdades, memória, entendimento e vontade, ao menos sem atos discursivos, isto é, sem passar de uma coisa a outra. A alma guarda só uma atitude geral e amorosa de atenção e conhecimento (gnosis), mas sem qualquerinteligência particular, e não advertindo ao que ela está contemplando."
É quase a mesma condição acima descrita por S. Teresa. S. João, contudo, observa a alma num estágio mais primitivo e mais árido da mesmaoração, em que não existe quase nenhuma percepção de prazer e doçura nesta atenção passiva a Deus, sob a "nuvem da ignorância". S. João aqui só exclui certo modo de atividade: os atos discursivos. A alma está ainda comprometida em algo de bem definido. A atenção é uma precisa atividade da mente, e implica também atividade da vontade. Conhecimento é ato da inteligência. A diferença não é entre atividade e inatividade, mas entre duas espécies de ação, entre raciocínio e intuição. A alma lança o seu olhar cheio de amor para as trevas onde Deus se esconde, e vai gradualmente perdendo a visão do resto.
O que S. João da Cruz escreveu sobre esse estado de oração força-nos a concluir que a razão tem nele uma importante função: aquele que descrevemos como discernimento dos espíritos. Seria inútil ensinar contemplativos a conduzir-se nessa espécie de oração, se não pudessem compreender as instruções nem usar a mente e a vontade para pô-las em prática. E, como vimos, a primeira tarefa da razão é resistir ao instinto que a leva à análise discursiva da sua condição e a fazer longos sermões sobre ela. Quando esta forma de oração toma incremento na alma, torna-se mais suave, consoladora e até mesmo às vezes inebriantes. Aqui também deve a razão ter cautela. Pois, como diz S. João da Cruz:
"Quando tais pessoas começam a ser recolhidas, o demônio costuma oferecer-lhes amplo material para distrações, sugerindo conceitos e palavras em seu entendimento, para o corromper e enganar mais sutilmente com coisas que têm uma aparência de verdade" .
Em outra passagem extremamente interessante, o santo chega a dizer:
"Desta maneira, sem quase nenhum alvoroço, o demônio comete as mais sérias injúrias, causando à alma a perda de grandes riquezas e atraindo-a com a isca mais insignificante, como um peixe que sobe do fundo das puras águas do espírito, onde, sem nenhum apoio, estava imerso em Deus".
É diferente como o Espírito de Deus age na alma que chamou à oração contemplativa: inclina esta alma à solidão, à simplicidade e paz. Eis algumas passagens em que S. João da Cruz descreve as inspirações do Espírito Santo:
"O Espírito de Deus tem esta característica na alma em que Ele habita, que a inclina à ignorância (isto é, das "coisas particulares") e desinteresse em conhecer os assuntos dos outros, especialmente das coisas que não lhe servem de proveito. E assim a alma fica em completa ignorância a respeito das coisas que ela conheceu anteriormente" .
O santo simplesmente repete o que já nos tinha falado no "segundo sinal" da contemplação iniciante. A inspiração divina retira a alma dos conceitos que parecem delimitar as perfeições divinas e cria-lhe um dissabor pelas representações incapazes de fazer justiça à infinita realidade de Deus. Mais do que isto, ela torna a alma mortalmente enfastiada das mil curiosidades que alimentam a mente dos homens. Em vez de recolher em S. João da Cruz os inúmeros textos que constituem uma verdadeira antologia sobre os primeiros passos da oração contemplativa, basta-me lembrar que os seus "três sinais" contêm o essencial sobre estes estados. São suficientes para indicar como o Espírito Santo "unge" a alma com a emoção de suas graças especiais, "lançando após si o perfume dos seus unguentos com que Ele atrai a alma a correr em seu encalço". S. João da Cruz passa adiante e nos lembra que a contemplação mística só tem por fim tornar-nos perfeitos nas virtudes teologais, especialmente nacaridade.
"Esses unguentos são as suas divinas inspirações e toques que. . . são ordenados à perfeição da lei de Deus e da .fé, na qual perfeição a almadeve andar sempre mais e mais perto de Deus. . . até que ela chegue a tão delicada e pura preparação que mereça a união com Deus e a substancial transformação em todas as suas faculdades."
Ele repete o que nos dizia, em substância, nos "três sinais": "Deus infunde na alma, secreta e quietamente, um conhecimento (gnosis) amante e a sabedoria, sem nenhuma intervenção de atos específicos" Numa bela sentença, o santo descreve como a alma responde às delicadas inspirações do "Espírito da Sabedoria divina, o amoroso, tranqüilo, solitário, pacífico e doce arrebatador no espírito."
"As vezes, a alma sentir-se-á terna e serenamente arrebatada e vulnerada, sem saber por quem, nem donde, nem como, pois o Espírito se comunica sem nenhum ato da parte da alma" .
Esta contemplação é um paraíso de paz, de liberdade interior, de crescimento espiritual. A alma é, afinal, purificada não só em sua substância, que é impregnada com a luz da graça santificante, mas também em suas faculdades, agora livres de toda absorção no que é acidental e transitória. Ela redescobre a sua essencial dignidade e livra-se de toda escravização ao desejo. Mas o principal é que ela começa a mover-se em um novo mundo, uma "nova criação", algo que transcende o nível da sua própria natureza, e são os jardins suspensos da contemplação, entre o céu e a terra.
Mas notem bem que S. João declarou que o Espírito se comunica sem nenhum ato da parte da alma. Os toques da graça mística então começados não se subordinam a nenhuma atividade de nossas faculdades. O que não quer dizer que todo o trabalho da inteligência e da vontade atingiu de repente ao seu fim. S. João da Cruz é até mais preciso do que S. Teresa em determinar exatamente o que cabe a nossas faculdades nesta "oração de quietude". Pode parecer que ele exige menos do que ela, mas lembrêmo-nos de que ela considerava um campo mais vasto, toda a vida do contemplativo, em oração e fora dela. S. João fala principalmente do que se faz no tempo de oração. A atividade que ele requer da almadeve ser produzida pelo entendimento e a vontade em comum. É muito simples. Ela tem três "momentos".
O primeiro é a remota disposição genérica para receber as inspirações da oração passiva. O principal "cuidado da alma será de ver que ela não põe obstáculos no caminho do seu guia, que é o Espírito Santo." Ela deve escolher um bom diretor, coisa muito importante aos olhos de S. João. No mais a tarefa de "remover obstáculos" resolve-se na "discreção" ou "discernimento dos espíritos". A alma cuida de não tomar por inspiração divina as sugestões do amor-próprio ou do Demônio.
O segundo passo é uma atividade muito simples a ser realizada logo que a mente se recolheu em prece e a vontade se concentrou em Deus e n'Ele repousa. A alma conserva-se numa atitude de "simples conhecimento (gnosis) ou consciência" de modo que possa receber o conhecimento (gnosis) e o amor infusos que lhe vêm de Deus. Isto é tão simples e já tão dominado pela ação absorvente do Espírito, que S. João não hesita em opô-la à "atividade natural" da alma, que ele proíbe nessa hora. Atividade "natural" é apenas a série discursiva de atos que são próprios à nossa mente raciocinante. A atitude conveniente é descrita nos seguintes termos:
"Para receber estas graças, a alma deve estar desimpedida e em paz, conforme a maneira de Deus; como o ar, que recebe maior iluminação e calor do sol quando ele é mais puro e limpo e em repouso".
Afinal, o terceiro momento. Logo que houver uma indicação positiva (que a alma deve reconhecer por experiência) de estar sendo passivamente atraída por Deus a um profundo silêncio, à solidão, e à absorção interior, as faculdades abandonam toda atividade. Não precisam mais de guardar-se num estado de simples consciência. Elas abandonam até a este, que é o mais raro dos nossos' atos, e deixam-se levar pela suave e forte gravitação com que Deus as submerge quietamente nas trevas do seu amor.
Neste momento, a consciência reflexa do nosso falso eu cotidiano tomba como um manto pesado e manchado. O "eu profundo", que jaz muito em baixo para ser objeto de análise, liberta-se para afundar nos abismos da liberdade e da paz de Deus. Agora cessa toda a advertência ao que acontecer dentro e em torno de nós. Estamos muito longe da superfície, mergulhados em Deus, e conhecê-Lo e só a Ele, obscuramente. Cessando de perceber-se, o espírito é arrastado à eternidade como uma folha solta pelos ventos do outono.
Quando isto acontece e a alma é cônscia de ser levada em silêncio, ela põe-se à escuta, e esquece mesmo aquela amorosa consciência de que falei, de modo que fique livre para o que é desejado dela, pois ela só deve exercer esta consciência quando não é cônscia de ser conduzida à solidão ou repouso, ou esquecimento, ou atenção do espírito, que é sempre acompanhada de uma certa absorção interior" .
Não cesso de comentar esta interessante passagem que enumera os diferentes modos em que as faculdades são libertadas para a oraçãopassiva. Há grande diferença entre "esquecimento" e "atenção do espírito". Também esta atenção passiva é algo de mais intenso e mais puro do que o "simples conhecimento (gnosis) e consciência" que foi ativamente produzido pela alma mesma sob a atração da graça. Em todo caso, houve parada da atividade da razão. As faculdades foram tomadas por Deus, embora não de todo absorvidas n'Ele. Agora, a mente e a vontade não têm mais a fazer do que descansar no esquecimento de si mesmas e de todas as coisas.
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