Há pessoas que nos dizem muito. Se calhar, não dizem nada ao resto do mundo, mas para nós, elas são fonte de inspiração. Num post anterior, já tinha partilhado convosco a minha admiração pelo irmão universal, o Beato Carlos de Foucauld...hoje, apresento-vos um irmão carmelita, Lourenço da Ressurreição, que experimentou a Presença de Deus na vida do dia a dia. Ele fez dos pequenos actos e pensamentos quotidianos um encontro com o seu e meu Senhor.Rosto de: Lourenço da Ressurreição
Nicolau Herman (Lourenço da Ressurreição), nasceu em 1614, em Hériménil, Lorena (actual região do mesmo nome do Nordeste Francês), numa família profundamente cristã.
Aos 18 anos, num dia de Inverno, olhando a natureza despojada, pensando que dentro de pouco tempo as árvores desfolhadas voltariam a florescer, Nicolau é iluminado por uma evidência e uma simplicidade imediatas, percebendo que na base desse processo anual, existe um Ser pessoal, inteligente e cheio de amor. Então, a sua fé em Deus se personifica, recebendo essa graça da Providência e do poder de Deus, que admitirá mais tarde, nunca se ter apagado de sua alma.
Este mesmo ano, a Lorena era ocupada pela França, e o Duque Carlos IV, expulso do seu país, juntou tropas para reconquistar as suas terras. Nicolau alistou-se no exército do Duque de Lorena. Nessa Guerra de Trinta Anos, tristemente célebre pela crueldade desumana, os soldados não recuavam diante de pilhagens ou qualquer género de violência. Mais tarde, Nicolau lastimará o seu passado, deplorando os seus pecados diante de Deus. Se ignoramos naquilo que consistiam verdadeiramente, o que é certo é que a precedente graça tinha desaparecido da sua vida. Duas vezes se encontrará diante da morte; finalmente uma ferida o obrigará a deixar as armas aos 21 anos.
O tempo da cura para o corpo, foi-o também para a alma; e a experiência vivida aos 18 anos voltou à tona. Então resolveu entregar-se a Deus e mudar a conduta passada. Adoptou algum tempo a vida de eremita com outro companheiro. Mas, desconcertado ao ver que ele passava da alegria à tristeza, da paz à tribulação, do fervor à ausência de devoção, não perseverou neste caminho. Foi então para Paris onde foi mordomo na casa do senhor Fieubert, onde ele dirá ter sido “um pesadão que quebrava tudo.”
É aí que o Convento dos Carmelitas da rua Vaugirard (hoje, Instituto Católico) começou a atraí-lo; e mais, um dos seus tios era da Ordem. Nicolau decide aos 26 anos pedir a entrada como irmão converso (não sacerdote), e tomou por nome Irmão Lourenço da Ressurreição. Lourenço era o nome do santo patrono da sua paróquia natal; Ressurreição lhe recordara talvez o renascimento da árvore despojada a quando dos seus 18 anos.
Primeiro, foi cozinheiro ao longo de 15 anos, depois sapateiro do seu convento; após dez anos de penosa caminhada, num sentimento doloroso por causa dos seus pecados, um acto de abandono determinante o liberta, e pouco a pouco, faz-o encontrar o seu próprio caminho espiritual: viver o trabalho como tempo de oração, as tristezas, como as alegrias, na “Presença de Deus”; transformando todas as suas ocupações à “maneira de pequenas conversas com Deus, sem prever, como calhar…sem necessidade de delicadezas, estar com bondade e simplicidade.” O único método da vida espiritual do Irmão Lourenço foi de certo modo o exercício da Presença de Deus que consistiu em “agradar e acostumar-se na divina companhia, detendo-se amorosamente com Ele em todo o tempo.” Assim, a alma é conduzida “insensivelmente a este simples olhar, a esta visão amorosa de Deus em tudo, que é a mais santa e mais eficaz maneira de oração.” “Na via de Deus, os pensamentos são tidos em conta como pouco, o amor faz tudo.” O encanto do Irmão Lourenço atrai numerosas pessoas que lhe vem pedir conselhos: é assim que as suas cartas ou notas dados oralmente chegaram até nós.
No início de 1691, o Irmão Lourenço adoece. Como o seu mal aumentava, deram-lhe o Sacramento dos Enfermos. A um religioso que lhe perguntara o que ele fazia e com que ocupava o seu espírito, ele respondeu: “Faço o que farei na eternidade, bendigo a Deus, louvo a Deus, adoro e amo-O de todo o coração, eis o nosso trabalho, meus irmãos, adorar a Deus e amá-l’O, sem se preocupar do resto.” Depois, com a paz e a tranquilidade de alguém que adormece, o Irmão Lourenço morre em 12 de Fevereiro de 1691, aos 77 anos.
Pouco tempo depois, o abade José de Beaufort, vigário geral do cardeal de Noailles, e amigo do carmelita sapateiro ao longo de um quarto de século, fez conhecer a mensagem de Lourenço em duas obras biográficas que, em 1991, foram publicadas numa edição crítica. Selado com o selo da simplicidade e da verdade, essa mensagem não envelheceu em três séculos.
A prática da Presença de Deus, como maneira orante, aconselhada pelo Irmão Lourenço, valeu-lhe uma irradiação inter-confessional. A sua espiritualidade do dever de estado faz com que todos os estados de vida nele se encontrem. Se a sua insistência sobre as virtudes teologais, fé, esperança e caridade, lembram os ensinamentos de São João da Cruz, a locução de Lourenço denuncia uma familiaridade com Santa Teresa de Jesus, recordando em particular a “oração recolhida, de meditação”. Enfim, o quietismo não teve nenhuma influência nele: o seu abandono confiante inscreve-se na colaboração da alma à obra divina, e, a ascese como meio de dispor o corpo e o espírito ao encontro do Deus vivo.
Ensinamentos do Irmão Lourenço da Ressurreição - carmelita do século XVII
“A prática mais santa e mais necessária na vida espiritual é a Presença de Deus. É agradar e acostumar-se na divina companhia, detendo-se amorosamente com Ele em todo o tempo, em todos os momentos, sem regras nem medida, sobretudo na hora da tentação, da tristeza, da aridez, do desgosto e mesmo da infidelidade e do pecado.”
“Devemos durante o nosso trabalho e as outras acções, até durante as nossas leituras e redacções, mesmo espirituais, e digo mais: durante as nossas devoções exteriores e orações vocais, parar algum tempo, o mais frequente que possamos, para adorar a Deus no fundo do nosso coração, saboreá-Lo de passagem, fortuitamente. Porque sabeis que Deus está presente diante de vós durante as vossas acções, que Ele está no fundo e no centro da vossa alma, porque não cessar ao menos de tempo a tempo as vossas ocupações exteriores, e mesmo as vossas orações vocais, para adorá-Lo interiormente, louvá-Lo, suplicá-Lo, oferecer-Lhe o vosso coração e agradecer-Lhe? Que mais pode haver de mais agradável a Deus do que deixar assim, inúmeras vezes ao dia, todas as criaturas, para se retirar e adorá-Lo no seu interior…para gozar um só instante o Criador? Pois assim destrói-se o amor-próprio, que não pode senão sobreviver no meio das criaturas, de que estes regressos interiores a Deus nos livram insensivelmente!”
“Será conveniente para aqueles que iniciam esta prática, de formular interiormente algumas palavras, como: ‘Meu Deus, sou todo vosso’; ‘Deus de amor, amo-Vos de todo o meu coração’; ‘Senhor, conformai-me ao vosso Coração’ ou qualquer outra palavra que o amor produzirá na hora.”
“Pela Presença de Deus e por este olhar interior, a alma familiariza-se com Deus de tal maneira que ela passa quase todo o seu tempo em actos contínuos de amor, de adoração, de contrição, de confiança, de acção de graças, de oferenda, de súplica e das mais excelentes virtudes. Às vezes, até chega a ser um único acto que não acaba mais, porque a alma está sempre num exercício contínuo desta divina Presença.“
“A presença de Deus é a vida e o alimento da alma, que se pode alcançar com a graça de Deus.”
CONVERSAS COM O IRMÃO LOURENÇO DA RESSURREIÇÃO
Registradas por Monsenhor Joseph de Beaufort
PRIMEIRA CONVERSA
3 de Agosto de 1666
Encontrei o Irmão Lourenço pela primeira vez, e ele me disse que, em sua conversão, quando tinha dezoito anos e ainda estava no mundo, Deus lhe havia concedido extraordinária graça. Certo dia de inverno, ao contemplar urna árvore despida de todas as folhas, ocorreu-lhe que essas folhas apareceriam de novo antes que se passasse muito tempo, seguidas de flores e frutos. Isso lhe deu tão penetrante visão da providência e do poder de Deus que o impacto produzido jamais desapareceu de sua alma. Essa percepção o libertou completamente do mundo e nele acalentou tão grande amor por Deus que não poderia dizer se esse amor crescera durante os mais de quarenta anos transcorridos desde então.
Ele havia sido lacaio do senhor de Fieubert, tesoureiro da Associação de Poupança, e era um bronco desajeitado que vivia quebrando tudo.
Entrara para o mosteiro na esperança de ser dolorosamente censurado por sua inépcia e pelos erros que haveria de cometer, fazendo a Deus, desse modo, oferenda da própria vida e de seus prazeres. Deus, porém, o havia surpreendido, porque, ali, ele só encontrara contentamento, o que o fazia dizer-Lhe freqüentemente: “Senhor, Tu me pregaste uma peça”.
Afirmou que deveríamos estabelecer-nos na presença de Deus, conversando sempre com Ele, e que nos deveria causar vergonha abandonar a conversa com Deus para pensar em ninharias e coisas insensatas. Deveríamos alimentar nossas almas com pensamentos elevados de Deus e, desse modo, encontrar grande alegria em estar com Ele. Deveríamos vivificar nossa fé. Era lamentável que a tivéssemos tão pouca e que, em vez de tornar a fé a lei de suas vidas, as pessoas se sentissem satisfeitas com uma devoção menor cuja forma mudava todos os dias. Assegurou que o caminho da fé era o espírito da Igreja e que, por si só, era capaz de levar-nos a grande perfeição.
Deveríamos dar-nos inteiramente a Deus, abandonando-nos a Ele tanto nas questões temporais quanto nas espirituais, e encontrar felicidade em cumprir Sua vontade, levasse-nos Ele pelos caminhos do sofrimento ou pelos caminhos do conforto, porque são a mesma coisa para quem verdadeiramente se resignou a Deus. Precisamos ser fiéis quando Deus põe nosso amor à prova, fazendo-nos passar por épocas de aridez espiritual. É exatamente nessas ocasiões que devemos demonstrar nossa entrega à vontade Dele, por meio de atos de resignação tais que um só desses atos faz com que nos adiantemos muito.
Disse que as baixezas e iniqüidades das quais ouvia falar todos os dias não o escandalizavam; ao contrário, considerando a malícia de que um pecador é capaz, surpreendia-se por não serem ainda maiores. Orava pelos pecadores, mas, sabendo que Deus poderia emendá-los quando Lhe aprouvesse, já não ficava tão preocupado.
Declarou que, para nos entregarmos a Deus na medida em que Ele o deseja de nós, precisamos observar cuidadosamente como se move a alma, pois ela se pode envolver tanto nas coisas espirituais quanto nas mais grosseiras. Deus dá a necessária luz àqueles que verdadeiramente desejam estar com Ele. Se fosse esta minha intenção, que eu ficasse à vontade para procurá-lo (a ele, Irmão Lourenço) sempre que quisesse, sem receio de ser importuno; mas se não fosse este o desejo que me assistia, não deveria visitá-lo outra vez.
SEGUNDA CONVERSA
28 DE SETEMBRO DE 1666
O irmão Lourenço me disse que era sempre o amor que o governava, e que ele não qualquer outro interesse nem se atormentava com a possibilidade de vir a perder-se ou salvar-se. Descobrira que sua resolução de tornar o amor de Deus a finalidade de todas as suas ações tinha-lhe dado a paz. Ficava feliz por apanhar, pelo amor de Deus, um pedaço de palha do chão, buscando apenas a Ele, nada mais, nem mesmo os dons que Deus lhe poderia conferir.
Essa conduta da alma fez com que Deus lhe concedesse uma graça infinita, mas, ao receber os frutos dessa graça — o amor que dela surge — descobriu ser necessário desconsiderar seu sabor, porque isto não era Deus (sabendo-se, pela fé, que Deus é infinitamente maior e completamente diferente disto e de tudo o mais que ele pudesse sentir). Essa atitude produziu uma disputa maravilhosa entre Deus e a alma: enquanto Deus dava, a alma negava que o que ela recebia fosse Deus. Nesse combate, a alma fez-se, pela fé, tão forte quanto Deus, e até mais forte, visto que Ele não era capaz de dar tanto que ela não pudesse continuar negando que fosse Ele Próprio aquilo que Ele lhe dava.
O Irmão Lourenço afirmou que o arrebatamento e o êxtase eram experimentados pela alma que fica brincando com esses dons, em vez de rejeitá-los e ir além, para alcançar o próprio Deus. A despeito de maravilhar-se, é preciso que a pessoa não se deixe inebriar por essas coisas; apesar delas, é Deus o amo e senhor.
Contou que, como Deus recompensa de maneira rápida e magnífica qualquer coisa que se faça para Ele, gostaria, algumas vezes, de poder ocultar de Deus o que houvesse feito por Seu amor, de modo que, renunciando à recompensa, pudesse sentir o prazer de ter feito algo exclusivamente para Deus.
Contou, também, que sua mente se havia perturbado muito com a crença de estar ele certamente destinado à danação; todos os homens do mundo não teriam sido capazes de mudar essa convicção. Contudo, raciocinou deste modo a respeito do assunto: “abracei a vida religiosa apenas pelo amor de Deus, e tentei agir apenas para Ele. Esteja perdido ou seja salvo, quero continuar fazendo as coisas sempre pelo amor de Deus apenas. Pelo menos, restará isso de bom: até à morte, terei feito tudo o que podia para amá-Lo.” Por quatro anos, essa angústia o havia afligido, e ele tinha sofrido muito, mas, desde então, já não se preocupava com o Céu nem com o Inferno; sua vida tornara-se tão somente plena liberdade e alegria ininterrupta.
Colocava seus pecados entre Deus e ele próprio, como que para dizer ao Senhor que não merecia as graças que Ele lhe conferia, mas isso não impedia que Deus continuasse a cumulá-lo delas. Algumas vezes, era como se Deus o tomasse pela mão e o pusesse diante de toda a corte celeste, para mostrar o miserável sobre quem Ele se comprazia em despejar Suas graças.
Observou que, no início, é preciso alguma dedicação para criar o hábito de conversar com Deus o tempo todo e relatar-Lhe tudo o que fazemos, mas, depois de um pouco de esforço, somos despertados por Seu amor sem qualquer dificuldade.
Após o período favorável que Deus lhe dera, esperava ter seu tempo e sua quota de dor e sofrimento, mas não se angustiava com isso, sabendo que, nada podendo fazer de si próprio, Deus não deixaria de dar-Lhe forças para suportar o que acontecesse.
Contou que, quando havia uma oportunidade de exercitar qualquer virtude, ele sempre dizia: “Meu Deus, não sei como fazer isto se Tu não me conduzires”. Então, era-lhe dada a força necessária, e mais ainda.
Quando errava, apenas confessava a falta e dizia a Deus: “Jamais farei de outro modo, se me deixares à minha própria sorte; pertence a Ti evitar minhas quedas e corrigir meus erros”. Depois disso, não continuava a afligir-se pelo erro cometido.
Afirmou que devemos agir de maneira muito simples em relação a Deus, e falar com Ele francamente, pedindo-Lhe ajuda à medida que as coisas acontecem, porque, conforme sua freqüente experiência, Deus nunca deixa de dar esse auxílio.
Recentemente, ele havia sido mandado à Borgonha, para comprar vinho, um trabalho penoso para ele, porque, além de faltar-lhe o pendor para negócios, tinha uma perna aleijada, de modo que só podia subir no barco arrastando-se desamparadamente. Contudo, ele não se preocupara com isto nem com a compra. Disse a Deus que o negócio a Ele pertencia, e descobriu que tudo se realizara e ele acabara fazendo um bom trabalho. No ano anterior, fora enviado ao Auvergne, com a mesma incumbência. Não sabia dizer como o negócio havia sido feito. Sabia que não fora ele quem o fizera, mas fora feito, e muito bem feito.
Acontecera coisa semelhante com a cozinha, pela qual ele tinha, por natureza, a maior aversão. Tendo se acostumado a fazer tudo pelo amor de Deus, sempre orando pela graça de realizar bem o trabalho, achara muito fáceis os quinze anos durante os quais] estivera encarregado de nela trabalhas
Então, havia sido designado para a confecção de sandálias, o que lhe agradava muito, mas estava pronto para deixar também essa tarefa, não fazendo senão regozijar-se em qualquer lugar, executando coisas triviais pelo amor de Deus. Para ele, os momentos de oração não eram, de nenhum modo, diferentes de quaisquer outros. Cumpria retiros quando o Padre Prior lhe dizia que o fizesse, mas jamais os havia desejado nem pedido, porque mesmo o trabalho mais absorvente não o distraía de Deus.
Ciente de que era preciso amar a Deus em todas as coisas e empenhando-se em cumprir esse dever, não sentia a necessidade de um diretor espiritual, mas, sim, de um confessor, para absolvê-lo dos pecados cometidos. Ele tinha plena consciência de suas faltas e elas não lhe causavam surpresa. Confessava-as a Deus e não tentava apresentar desculpas para elas. Depois, voltava em paz a seus costumeiros exercícios de amor e adoração.
Em suas angústias, não consultava pessoa alguma. Em vez disso, sabedor, com a luz da fé, de que Deus estava presente, ficava satisfeito em agir para Ele, acontecesse o que acontecesse, disposto a perder-se pelo amor de Deus, que o contentava por completo.
Disse que os pensamentos estragam tudo; é por eles que o mal se inicia. Precisamos ter o cuidado de rejeitá-los tão logo percebamos que eles não se mostram necessários à nossa ocupação do momento nem à nossa salvação, retomando à conversação com Deus, que nos conforta.
No começo, passava todo o período de oração rejeitando os pensamentos, para neles cair novamente. Jamais fora capaz de orar segundo as regras, como os demais. Entretanto, começara meditando de maneira discursiva durante algum tempo, mas, depois, não sabia como as coisas se passavam, e lhe seria impossível dar contas do que acontecia.
Pedira para continuar sempre noviço, sem acreditar que alguém quisesse receber sua profissão e incapaz de imaginar que se tivessem passado os dois anos de noviciado.
Não era audacioso o suficiente para pedir mortificações a Deus, nem as desejava verdadeiramente. Bem sabia, entretanto, que as merecia em grande número e que, quando Deus as enviasse, Ele também lhe enviaria a graça, para ser capaz de passar por elas. Todas as práticas de penitências e outros exercícios só serviam para promover a união com Deus por meio do amor. Tendo pensado nisto cuidadosamente, estava persuadido de que o caminho mais curto para chegar a Deus era o exercício ininterrupto do amor, fazendo-se todas as coisas por Seu amor.
Declarou que devemos distinguir, com clareza, os atos de compreensão dos atos de vontade, porque os primeiros têm pouca importância e os segundos são tudo. O que realmente importa é amarmos a Deus e regozijarmo-nos Nele.
Mesmo todas as penitências possíveis não serviriam para remover um único pecado, se estivessem dissociadas do amor. Sem ansiedade, devemos esperar nossa remissão no sangue de Jesus Cristo, esforçando-nos, apenas, para amá-Lo de todo o coração. Aparentemente, Deus concede as maiores graças aos que foram maiores pecadores, em vez de aos que permanecem na inocência, porque nisto mais se demonstra sua bondade.
Disse que não ficava pensando na morte, nem nos pecados, nem no Céu, nem no Inferno, mas, apenas, em fazer as coisas mais triviais pelo amor de Deus —coisas pequeninas, porque ele era incapaz de fazer grandes coisas. Assim, não mais se preocupava, porque o que quer que lhe acontecesse era a vontade de Deus.
Explicou que mesmo que fosse profundamente ofendido por alguém, isto nada era comparado ao sofrimento interior que já havia suportado ou às grandes alegrias que já havia experimentado e experimentava, ainda, com freqüência. Desse modo, nada o preocupava nem atemorizava, e ele só pedia a Deus que o conservasse incapaz de ofendê-Lo.
Disse-me que praticamente não sentia escrúpulos, porque “quando reconheço que errei, admito-o e digo: ‘é o meu normal; é o que sempre me acontece’. Quando não erro, reconheço que foi por um ato de Deus e agradeço a Ele.”
TERCEIRA CONVERSA
22 DE NOVEMBRO DE 1666
Disse-me o Irmão Lourenço que, nele, os alicerces da vida espiritual haviam sido uma elevada concepção e uma exaltada estima de Deus sem outra consideração a não ser o próprio Deus. Uma vez plenamente delineados estes fundamentos, no começo, ele não teve outra preocupação senão excluir todos os outros pensamentos e praticar todas as suas ações pelo amor de Deus. Quando, algumas vezes, se passava um período considerável sem que pensasse em Deus, não ficava inquieto por causa disso, mas, confessando-Lhe sua mesquinhez, voltava a Ele com confiança de intensidade equivalente à da infelicidade que sentira por tê-Lo esquecido. Declarou que a confiança que depositamos em Deus é um modo de prestar-Lhe grande honra, e isto nos atrai abundantes graças. Deus não nos pode iludir, nem permitir, por um grande lapso de tempo, o sofrimento de uma alma que se tenha entregado inteiramente a Ele e esteja determinada a, por Ele, tolerar todas as coisas.
O Irmão Lourenço alcançara um estado em que não tinha senão pensamentos em Deus. Quando algum outro pensamento ou uma tentação queriam aparecer, assim era sua experiência do pronto auxílio de Deus: ao sentir que se aproximavam, deixava, algumas vezes, que se adiantassem; no momento certo, apelava para Deus e eles imediatamente desapareciam. Essa mesma experiência ocorria quando tinha algo a fazer. Jamais pensava no assunto com antecedência, mas, no devido tempo, Deus lhe mostrava, como em um espelho, o modo pelo qual a coisa deveria ser feita. Já por um bom período, ele havia assim procedido, sem preocupar-se antecipadamente. Antes, porém, de ter essa experiência do pronto auxílio de Deus nos seus afazeres, neles aplicava sua própria precaução.
Não se lembrava das coisas que fazia, e mal prestava atenção a elas enquanto as estivesse fazendo, de modo que, ao levantar-se da mesa após uma refeição, não sabia o que havia comido! Agindo na simplicidade de sua vida, tudo fazendo pelo amor de Deus, dava-Lhe graças por dirigir suas atividades e uma infinidade de outros atos. Tudo, porém, de maneira muito simples, de um modo que o mantivesse preso a amorosa presença de Deus.
Quando alguma ocupação o distraía um pouco, sua alma era assaltada por uma lembrança de Deus, vinda do próprio Deus; essa lembrança despertava-lhe um pensamento Nele, tão vívido, tão ardente, tão cálido e, algumas vezes, tão forte que ele gritava e tinha um violento impulso de cantar e pular feito um doido.
O Irmão Lourenço ficava muito mais unido a Deus nas atividades comuns do que quando as interrompia para praticar os exercícios religiosos do retiro dos quais saía, geralmente, com aridez espiritual.
Tinha a expectativa de vir a passar por grande sofrimento do corpo ou da mente, e a grande provação seria perder essa perceptível consciência de Deus que por tanto tempo havia estado com ele; mas a bondade de Deus lhe havia garantido que Ele não o abandonaria de nenhum modo e lhe daria forças para suportar quaisquer males que, por permissão divina, viessem a lhe acontecer. Portanto, ele nada temia, nem precisava aconselhar-se com quem quer que fosse a respeito do seu estado espiritual. Quando havia tentado fazê-lo, tinha saído sempre mais perplexo do que antes. Estava preparado para morrer e perder-se pelo amor de Deus, não abrigando qualquer receio, porque abandonar-se inteiramente a Deus é o caminho seguro em que há sempre suficiente luz para guiar-nos adiante.
Explicou que, no começo da vida espiritual, é necessário nos aplicarmos fielmente a agir e renunciar a nós mesmos; depois disso, porém, alegrias indescritíveis nos aguardam. Nas dificuldades, nosso único recurso é voltarmo-nos para Jesus Cristo e pedirmos Sua graça, com a qual todas as coisas se tornam fáceis.
Ficamos presos às penitências e devoções particulares e negligenciamos o amor, que é nossa finalidade verdadeira. Isto é o que revelam nossas obras, e esta é a razão pela qual se vê tão pouca virtude consistente.
Para que nos aproximemos de Deus, não são necessários artifícios nem erudição, mas só um coração determinado a dedicar-se apenas a Ele e a amá-Lo, apenas a Ele.
QUARTA CONVERSA
25 DE NOVEMBRO DE 1667
O irmão Lourenço falou comigo, sem reservas e com profundo fervor, a respeito de seu caminho para aproximar-se de Deus, e a esse respeito já observei alguma coisa.
Ele me disse que o que importa é renunciar de uma vez por todas a tudo que reconheçamos não levar a Deus, de modo que nos habituemos à conversa ininterrupta com Ele, sem mistério nem artifícios. Precisamos apenas reconhecê-Lo presente em nosso íntimo, falar com Ele a cada momento, pedir Sua ajuda, descobrir qual é Sua vontade nas coisas duvidosas e fazer com alegria aquelas que claramente percebemos que Ele requer de nós, oferecendo-as a Ele antes de começarmos e agradecendo-Lhe quando elas tenham sido completadas.
Nessa conversação ininterrupta, toda nossa ocupação é louvar, adorar e amar a Deus incessante-mente, por Sua infinita bondade e perfeição.
Devemos pedir Sua graça cheios de confiança, sem prestar atenção a nossos pensamentos, mas encontrando apoio nos méritos infinitos de Nosso Senhor. Deus, em todas as nossas ações, jamais deixa de nos conceder Sua graça — isto o Irmão Lourenço percebia claramente, a não ser quando era distraído da companhia de Deus, ou se tivesse esquecido de pedir Seu auxílio. Em momentos de dúvida, Deus jamais nos faltará com Sua luz, se nosso único propósito for agradar a Ele e agir por Seu amor.
Afirmou que nossa santificação não depende de alterar o que fazemos, mas de fazer para Deus o que faríamos comumente para nós mesmos. E uma tristeza ver como tantas pessoas se apegam ao que fazem de maneira tão imperfeita, preocupando-se com a opinião dos outros, confundindo os meios com os fins.
Ele não encontrou melhor caminho para aproximar-se de Deus do que por meio das ocupações comuns que lhe eram prescritas consoante a regra da obediência, purificando-as da preocupação com a opinião dos outros tanto quanto possível e realizando-as pelo puro amor de Deus.
Declarou que era um grande equívoco imaginar que os momentos de oração devessem ser diferentes de quaisquer outros,.porque temos a obrigação de ficar tão unidos a Deus, por nossas ações, nos períodos de trabalho, quanto, pela oração, nos momentos a ela destinados.
Para ele, a oração se havia tornado a presença de Deus, com a alma inconsciente de qualquer outra coisa que não o amor. Após os momentos de oração, ele não percebia qualquer diferença, porque continuava junto a Deus, louvando-O e bendizendo-O com todas as forças. Desse modo, passava a vida em alegria ininterrupta, esperando, todavia, que Deus lhe desse um pouco de sofrimento quando ele (Irmão Lourenço) ficasse mais forte. Disse que é preciso, de uma vez por todas, confiar em Deus e efetuar a entrega total de nós mesmos a Ele, que não nos enganará.
Jamais nos devemos cansar de fazer pequenas coisas pelo amor de Deus, porque Ele não observa a magnitude da obra, apenas o amor. Não nos devemos surpreender com nossos freqüentes fracassos iniciais; no final, criado o hábito, seremos capazes de agir sem mesmo pensar no que estamos fazendo, e com admirável prazer.
A fim de nos conformarmos inteiramente à vontade de Deus, só precisamos cultivar a fé, a esperança e a caridade. Tudo mais é desprovido de importância e não nos devemos fixar nessas coisas; são como a ponte pela qual passamos correndo para nos perdermos na Meta única, pela confiança e pelo amor.
Tudo é possível àquele que crê; mais ainda, ao que tem esperança; ainda mais, ao que ama; e mais que tudo, àquele que cultiva essas três virtudes e nelas persevera.
A finalidade que nos devemos propor nesta vida é tornarmo-nos os mais perfeitos adoradores de Deus que tenhamos a possibilidade de ser, assim como temos a esperança de sê-lo por toda a eternidade.
Quando entramos na vida espiritual, devemos considerar minuciosamente que tipo de gente somos, reconhecendo sermos desprezíveis, indignos do nome de cristãos, sujeitos a todo tipo de miséria e a uma infinidade de azares, que nos perturbam e tornam mutáveis nossa saúde, nosso humor, nossas disposições íntimas e exteriores — enfim, pessoas a quem Deus deve humilhar por meio de incontáveis dores e provações, tanto internas quanto externas. Reconhecendo isso, deveríamos achar surpreendente que soframos angústias, tentações, antagonismos e contradições em mãos de nosso próximo? Não deveríamos, ao contrário, nos submeter a essas coisas, suportando-as por tanto tempo quanto seja da vontade de Deus, como passaríamos por aquilo que consideramos benéfico para nós?
Quanto maior for a perfeição a que aspira a alma, mais dependente ela é da graça divina.
AS MÁXIMAS ESPIRITUAIS DE IRMÃO LOURENÇO DA RESSURREIÇÃO
Tudo é possível àquele que crê; mais ainda, àquele que tem esperança; ainda mais, àquele que tem amor, e, mais que tudo, àquele que cultiva essas três virtudes e nelas persevera. Todos os que foram batizados e verdadeiramente crêem deram o primeiro passo no caminho da perfeição e se tomarão perfeitos perseverando na prática das seguintes máximas.
Em tudo que dissermos, fizermos ou empreendermos, precisamos manter os olhos fixos em Deus e em Sua glória. Nossa meta é sermos os mais perfeitos adoradores de Deus que possamos ser nesta vida, como esperamos sê-lo por toda a eternidade. Precisamos tomar a firme decisão de superar, com a graça de Deus, todas as dificuldades inerentes à vida espiritual.
Quando nos dedicamos à vida espiritual, precisamos considerar seriamente quem somos, reconhecendo que merecemos um completo desprezo. Somos indignos do nome de cristãos e estamos sujeitos a toda espécie de misérias e a um enorme número de defeitos que nos perturbam e tornam mutáveis nossa saúde, nosso humor, nossas disposições interiores e suas manifestações externas. De um modo geral, somos pessoas a quem é preciso que Deus humilhe por meio de grande número de distúrbios e provações, internos e externos.
Precisamos acreditar que é vantajoso para nós e agradável a Deus que nos sacrifiquemos por Ele, que é normal Sua divina providência deixar-nos ao sabor de toda sorte de situações, sofrendo todo tipo de dores, misérias e tentações pelo amor de Deus, por tanto tempo quanto Lhe pareça. Sem que o coração e a mente assim se submetam à vontade Dele, tanto a devoção quanto a perfeição não podem ser duradouras.
A alma depende da graça, tanto mais quanto seja maior seu desejo de perfeição mais elevada. O auxílio de Deus é necessário em todos os momentos, porque a alma nada pode fazer sem ele. O mundo, a natureza e o diabo, aliados, empenham-se em uma guerra sem quartel, tão encarniçada que, sem um auxílio verdadeiro e sem essa atitude humilde e necessária de dependência, eles arrastariam a alma contra a vontade dela. Parece contrário à natureza, mas nisto a graça encontra prazer e repouso.
Práticas necessárias para alcançar a vida espiritual
A prática mais sagrada, mais universal e mais necessária à vida espiritual é a da presença de Deus. É deliciar-se com Sua divina companhia e ficar acostumado a ela, falando com humildade e conversando amorosamente com Ele todo o tempo, em todas as horas, sem regra ou medida, especialmente nas horas de tentação, sofrimento, aridez espiritual, desencanto e, mesmo, infidelidade e pecado.
Precisamos diligenciar para que todas as nossas ações, sem exceção, se tornem uma espécie de breve conversa com Deus, que não seja estudada, mas que surja da pureza e da simplicidade de nossos corações.
Precisamos realizar todas as nossas ações de maneira cuidadosa e deliberada, não de forma impulsiva ou precipitada, porque isto é característico da mente distraída. Precisamos trabalhar com Deus, de maneira suave, tranqüila e amorosa, rogando-Lhe que aceite o nosso trabalho. Por essa permanente atenção a Ele, quebraremos a cabeça do diabo e faremos que suas armas lhe caiam das mãos.
Durante nosso trabalho e demais atividades, até mesmo quando estivermos escrevendo ou lendo, não importa o quanto sejam espirituais os assuntos — digo mais, até durante nossos exercícios religiosos e orações em voz alta — precisamos, tão freqüentemente quanto nos seja possível, parar por um momento para adorar Deus no fundo de nossos corações, para saboreá-Lo, ainda que de passagem e às ocultas. Tendo a consciência de que Deus está presente enquanto você pratica as ações, que Ele está no fundo e no centro de sua alma, por que não interromper as atividades e até as orações em voz alta, pelo menos vez por outra, para adorá-Lo interior-mente, para louvá-Lo, para pedir Seu auxílio, para oferecer-Lhe seu coração e para agradecer-Lhe?
Que pode haver de mais agradável a Deus do que esse ato de, ao longo do dia, a pessoa afastar-se incontáveis vezes de tudo que foi criado para retirar-se e adorá-Lo no interior? Esse voltar-se para dentro destrói o amor-próprio, que só pode subsistir em meio às criaturas. Portanto, voltar-se para Deus no interior nos desembaraça, sem que o percebamos.
Enfim, não podemos oferecer a Deus prova maior de nossa fidelidade do que renunciar às criaturas e desprezar numerosas vezes o convívio delas para desfrutar, por um único momento, o Criador.
Não quero, com isso, obrigá-lo a afastar-se para sempre do que é exterior, porque isto é impossível. Seu guia deve ser, porém, a prudência, mãe de todas as virtudes. Afirmo, entretanto, que um erro comum entre pessoas de mentalidade espiritual é não se retirarem periodicamente do que é externo para adorarem Deus no seu próprio interior e, por alguns momentos, desfrutarem de Sua presença divina em paz. Estendi-me um pouco nisto, mas achei que o assunto exigia alguma explicação. Vamos voltar a nossos exercícios.
Toda essa adoração deve ser feita com fé, acreditando que Deus está verdadeiramente em nossos corações, que precisamos adorá-Lo, amá-Lo e servi-Lo em espírito e verdade, que Ele vê tudo o que acontece e acontecerá em nós e nas demais criaturas, que Ele é independente de todas as coisas e o único de que todas as criaturas dependem, infinito em todas as espécies de perfeição. Ele é Aquele que, em virtude de Sua excelência infinita e domínio soberano, merece tudo o que somos, bem como todas as coisas no céu e na terra, das quais Ele pode dispor como desejar, no tempo e na eternidade. Todos os nossos pensamentos, palavras e ações pertencem-Lhe por direito. Vamos pôr isto em prática.
Precisamos examinar cuidadosamente quais as virtudes que nos são mais necessárias, quais as mais difíceis de adquirir, quais os pecados que cometemos mais freqüentemente e quais de nossas quedas são as mais costumeiras e inevitáveis. Precisamos recorrer a Deus com completa confiança no momento do combate, permanecer firmes na presença de Sua majestade divina, adorá-Lo humildemente, levar a Ele nossas misérias e fraquezas e, amorosamente, pedir-Lhe o auxílio de Sua graça. Desse modo, sem termos nenhuma, encontraremos Nele todas as virtudes.
Como devemos adorar Deus em espírito e verdade.
Esta questão abriga três pontos a que é preciso responder.
Adorar Deus em espírito e verdade significa adorar Deus como devemos adorá-Lo. Deus é espírito. E precisamos adorá-Lo em espírito e verdade, quer dizer, com uma adoração do espírito, humilde e autêntica, no fundo e no centro de nossas almas. Só Deus pode ver essa adoração, e precisamos repeti-la com tal freqüência que, no final, se torne uma segunda natureza em nós, como se Deus estivesse unificado com nossas almas e nossas almas estivessem unificadas com Deus. A plena compreensão disso só virá por meio da prática.
Adorar Deus em verdade significa reconhecê-Lo pelo que Ele é e reconhecer-nos pelo que nós somos. Adorar a Deus em verdade significa reconhecer verdadeiramente, realmente e em espírito que Deus é o que Ele é: infinitamente perfeito, infinitamente adorável, infinitamente afastado de todo mal e assim em relação a todos os atributos divinos. Quem somos nós e que razão nos poderia desculpar de não usarmos a plenitude de nossas forças para oferecer a esse magnífico Deus toda a nossa reverência e adoração?
Adorar a Deus em verdade significa confessar que somos completamente o oposto Dele, mas, se o desejarmos, Ele nos quer tornar como Ele Próprio. Quem seria imprudente a ponto de faltar, ainda que por um momento, com o respeito, o amor, o serviço e a contínua adoração que devemos a Ele?
União da alma com Deus
Há três espécies de união: a primeira é a habitual; a segunda, a virtual; e a terceira, a real.
A união habitual se dá quando estamos unidos a Deus apenas pela graça.
A união virtual ocorre quando iniciamos uma ação pela qual ficamos unidos a Deus e permanecemos unidos a Ele pela virtude de tal ação, ao longo de todo o tempo em que ela perdura.
A união real é a mais perfeita. Sendo, como é, plenamente espiritual, seu movimento torna-se perceptível porque a alma não está adormecida, como nas outras uniões, mas acha-se poderosamente excitada e sua operação é mais ardente que a do fogo e mais luminosa do que o sol no céu sem nuvens. Não obstante, este sentimento pode conduzir a equívocos, porque não se trata, apenas, de uma simples expressão do coração, como dizer “meu Deus, eu Te amo de todo o coração” ou outras palavras similares. Em vez disso, é como um “quê” da alma, doce, calmo, espiritual, reverente, humilde, amoroso e muito simples, que a transporta e a incita a amar a Deus, a adorá-Lo e, até, a abraçá-Lo com uma ternura inexpressível que só a experiência pode capacitar-nos a compreender.
Aqueles que buscam a união divina precisam saber que as coisas capazes de tornar a vontade cheia de alegria são, de fato, agradáveis e deliciosas para ela, ou, pelo menos, assim lhe parecem.
Precisamos admitir que Deus é incompreensível e que, para estarmos unidos a Ele, temos de privar a vontade de todos os tipos de satisfações e prazeres físicos e espirituais, de modo que, ao tornar-se desprendida, possa amar a Deus acima de todas as coisas, porque, se a vontade puder, de algum modo, compreender Deus, só pelo amor poderá fazê-lo. Há uma grande diferença entre os gostos e os caprichos da vontade e a operação dessa mesma vontade, porque os gostos e os caprichos da vontade estão nos limites da alma, mas sua operação, que é o amor propriamente dito, termina em Deus, que é sua finalidade.
A respeito da Presença de Deus.
A presença de Deus é a aplicação de nossa mente a Deus, ou é uma reminiscência de Deus presente que pode ser realizada pela imaginação ou pelo entendimento.
Conheço alguém que por quarenta anos pratica uma presença de Deus intelectual, que ele chama por diversos outros nomes. Algumas vezes ele a chama de “ato simples”, “conhecimento claro e distinto de Deus”, ou “visão indistinta”, ou “consciência generalizada e amorosa de Deus”. Outras vezes, ele a chama de “ato de estar atento a Deus”, “conversa silenciosa com Deus”, “confiança em Deus” ou “vida e paz da alma”. Tal pessoa me disse que todas essas formas da presença de Deus nada mais são que sinônimos para designar a mesma coisa, que, atualmente, é uma segunda natureza nele. Eis como:
Por força da repetição dos atos — afirma essa pessoa — a todo momento reconduzindo a mente à presença de Deus, criou um hábito de tal maneira que, logo que fica livre de suas ocupações externas — e, muitas vezes, até quando está mais ocupado por elas — a ponta de seu espírito, ou a parte suprema de sua alma, eleva-se sem qualquer esforço de sua parte e se mantém como que suspensa e fixa em Deus, acima de todas as coisas, como em seu centro e local de repouso. Como ele geralmente tem consciência de que seu espírito, mantido suspenso desse modo, é acompanhado pela fé, sente-se plenamente satisfeito. Isto é o que ele chama de “presença real de Deus”, que inclui todos os outros tipos de presença e muito mais, de modo que ele vive, agora, como se só existissem no mundo ele e Deus. Conversa com Deus em toda parte; pede-Lhe o que necessita e regozija-se permanentemente com Ele de incontáveis maneiras.
Convém, entretanto, saber que essa conversação com Deus se dá no fundo e no centro da alma. É ali que a alma fala com Deus de coração para coração, sempre na grande e profunda paz de que desfruta em Deus. Tudo o que acontece do lado de fora significa, para a alma, não mais do que um fogo de palha que se extingue tão logo se acende, e quase nunca, ou muito pouco, é capaz de perturbar sua paz interior.
Voltando à questão da presença de Deus, afirmo que essa consciência suave e amorosa de Deus acende, de maneira imperceptível, um fogo divino na alma, inflamando-a com o amor de Deus em tão grande intensidade que a pessoa se vê forçada a realizar várias atividades exteriores no esforço de mantê-lo sob controle.
Ficaríamos surpresos se soubéssemos o que, às vezes, a alma diz a Deus. Essas conversações agradam tanto a Deus que Ele tudo permite à alma, desde que ela queira permanecer sempre com Ele e em Seu seio. Como temendo que a alma voltasse às coisas criadas, Deus cuida de fornecer-lhe tudo o que ela possa desejar, se bem que ela encontre, em seu próprio interior, um alimento saborosíssmo e deliciosíssimo a seu paladar, sem que jamais o tenha desejado ou procurado e sem sequer haver contribuído para isso de qualquer modo, a não ser, apenas, com o consentimento.
A presença de Deus é, então, a vida e o alimento da alma, que podem ser adquiridos pela graça do Senhor. Eis os meios para consegui-la:
Meios de alcançar a presença de Deus.
O primeiro meio é uma grande pureza de vida.
O segundo é uma grande fidelidade à prática dessa presença e à consciência de Deus no próprio interior, o que deve ser sempre feito de maneira suave, humilde, amorosa, sem deixar-se cair na preocupação ou na inquietude.
Precisamos tomar especial cuidado para que essa consciência íntima, ainda que por um momento, preceda nossas atividades exteriores e, de tempos em tempos, as acompanhe, e que desse mesmo modo sejam todas elas completadas. Como são necessários tempo e muito trabalho para adquirir essa prática, precisamos não nos desencorajar quando falharmos, porque o hábito só é formado pelo esforço. Todavia, uma vez formado, tudo se fará com prazer.
Não é senão correto que o coração, o primeiro a pulsar com vida e a parte do corpo que controla o resto, seja o primeiro e o último a amar e adorar Deus, iniciando ou completando as atividades físicas e espirituais e, de um modo geral, todos os exercícios da vida. E é desse modo que devemos ter o cuidado de produzir essa consciência interior, o que precisamos fazer, como disse, sem angústia e com naturalidade, para torná-la mais fácil.
Não é descabido, para os iniciantes, formular interiormente algumas expressões como: “Meu Deus, sou completamente Teu”, ou “Deus de amor, eu Te amo de todo o coração” ou “Senhor, faze comigo segundo o Teu coração”, ou quaisquer outras palavras que o amor produza de repente. Precisam cuidar, porém, de que suas mentes não divaguem ou se voltem para as coisas criadas. A mente precisa ser mantida fixa em Deus apenas, de maneira que, vendo-se assim premida e forçada pela vontade, seja obrigada a permanecer com Deus.
Esta presença de Deus, um pouco difícil no começo, se fielmente praticada, opera secretamente maravilhosos efeitos na alma, atrai para ela graças abundantes do Senhor e a conduz, insensivelmente, a essa simples consciência, a essa visão amorosa de Deus presente em toda a parte que é a mais santa, a mais garantida, a mais fácil e a mais eficaz forma de oração.
Observe-se, por favor, que chegar a este estado pressupõe a mortificação dos sentidos, já que é impossível a uma alma que encontra alguma satisfação nas coisas criadas desfrutar completamente dessa presença divina: para estar com Deus, precisamos deixar de parte Suas criaturas.
Benefícios da presença de Deus
O primeiro benefício que a alma recebe da presença de Deus é que sua fé se torna mais intensa e atuante em todas as situações da vida, especialmente em relação às necessidades, já que obtém facilmente graças nos momentos de tentação e no trato inevitável com as coisas criadas. Porque a alma, acostumada por esse exercício à prática da fé, vê e sente Deus presente por meio de uma simples recordação. Para ela, é fácil invocá-Lo de maneira eficaz e obter aquilo que necessita. Pode-se dizer que ela tem, aqui, alguma coisa parecida com o estado dos bem-aventurados, pois quanto mais se adianta, mais intensa fica sua fé, a qual se torna, afinal, tão penetrante que a pessoa quase poderia dizer: “já não creio, mas vejo e experimento”.
A prática da presença de Deus nos fortalece na esperança. Nossa esperança cresce na proporção do nosso conhecimento. À medida que nossa fé penetra os segredos da Divindade por meio desse exercício santo, à medida que vai descobrindo, em Deus, uma beleza que ultrapassa infinitamente não apenas a dos corpos que vemos na terra mas, até, a das almas mais perfeitas e a dos anjos, nossa esperança cresce e se fortifica, e a grandeza desse bem de que ela pretende desfrutar — e que, de certo modo, já saboreia — a tranqüiliza e sustenta.
Essa prática inspira à vontade o desprezo das coisas criadas e a inflama com o fogo do amor sagrado, porque, estando sempre com Deus, que é um fogo consumidor, esse fogo reduz a cinzas tudo o que se poderia opor a Ele. A alma assim abrasada só pode viver na presença de seu Deus, presença que produz no coração dela um ardor santo, um zelo sagrado e um forte desejo de ver esse Deus amado, conhecido, servido e adorado por todas as criaturas.
Pela presença de Deus e por essa consciência interior, a alma se torna tão íntima de Deus que passa praticamente toda a vida em atos contínuos de amor, adoração, contrição, confiança, ação de graças, oferenda, petição e todas as virtudes mais excelsas. Às vezes isto se torna, até, um ato contínuo, porque a alma pratica permanentemente esse exercício da divina presença.
Sei que poucas pessoas alcançam esse estado adiantado. É uma graça que Deus só concede a algumas almas escolhidas, já que, afinal, a simples consciência de Deus permanece um dom voluntário de Sua mão generosa. Direi, porém, para consolo daqueles que desejam abraçar esta santa prática, que Ele geralmente a dá às almas que estão dispostas a recebê-la. Se Ele não a der, podemos ao menos adquirir, com o auxílio da graça ordinária, por meio dessa pratica da presença de Deus, um modo e um estado de oração que se assemelha grandemente à simples consciência de Deus.
CARTAS DE IRMÃO LOURENÇO
CARTA NÚMERO 1
1o. DE JUNHO DE 1682
Reverenda Madre:
Aproveito esta oportunidade para contar-lhe a experiência de um de nossos religiosos a respeito dos admiráveis efeitos e do auxílio ininterrupto que lhe advieram da presença de Deus. Vamos, os dois, nos beneficiar dela.
A principal preocupação dele, durante mais de quarenta anos de vida dedicada à religião, tem sido sempre estar com Deus e nada fazer, dizer ou pensar que pudesse desagradá-Lo, sem qualquer outro interesse que não, unicamente, o amor de Deus, que merece infinitamente mais.
Atualmente, ele está tão habituado a essa presença divina que recebe assistência em todos os momentos e em todas as situações. Durante cerca de trinta anos, a alma dele se tem deliciado com permanente alegria íntima, tão intensa algumas vezes que, para mantê-la sob controle e impedir que se manifeste externamente, ele é constrangido a exibir um comportamento externo pueril que mais se assemelha a tolice que a devoção.
Se, momentaneamente, ele se afasta um pouco da divina presença, Deus logo se manifesta em sua alma, para chamá-lo de volta. Isto muitas vezes acontece quando está demasiadamente envolvido com os deveres comuns. Ele responde fielmente a esses chamados interiores, seja erguendo o coração a Deus, seja por um olhar suave e amoroso, seja com as palavras que o amor articula nesses encontros, como: “Meu Deus, eis-me aqui, sou todo Teu” ou “Senhor, faze comigo segundo o Teu coração”. Parece-lhe — na verdade, ele o sente — que, satisfeito com essas poucas palavras, nosso Deus de amor volta a adormecer, e repousa no fundo e no centro da alma do religioso. Essas experiências o persuadem de que Deus está sempre no fundo de sua alma, de tal modo que ele não tem qualquer dúvida a respeito disto, não importa o que esteja fazendo ou o que lhe esteja acontecendo.
A senhora pode julgar por si própria, reverenda Madre, como são grandes o contentamento e a felicidade desse homem. Percebendo no íntimo, todo o tempo, um tesouro tão inestimável, ele já não fica inquieto com a necessidade de encontrá-lo, nem precisa dar-se ao trabalho de buscá-lo; o tesouro permanece plenamente acessível, para que o monge dele retire quanto lhe agrade.
Esse religioso costuma queixar-se de nossa cegueira e proclama sem cessar que somos dignos de pena por nos satisfazermos com tão pouco. “Deus” — diz ele — “tem um tesouro infinito para conceder e nós nos satisfazemos com um pouquinho de devoção visível, que acaba em um instante. Somos cegos e, desse modo, amarramos as mãos de Deus, impedindo o fluxo generoso de Suas graças. Quando Deus descobre uma alma imbuída de fé intensa, Ele a inunda com a graça, tal qual uma corrente represada que encontrou nova saída espalha suas águas de maneira impetuosa e abundante.”
Sim, muitas vezes interrompemos essa torrente por não sermos capazes de apreciá-la da maneira devida. Paremos de bloqueá-la, minha prezada Madre; voltemo-nos para nós mesmos, rompamos a barragem, abramos espaço para que a graça flua, recuperemos o tempo perdido. Talvez nos reste pouco tempo para viver. A morte está atrás de nós. Vamos pôr-nos em guarda: só vivemos uma vez!
Repito novamente: voltemo-nos para nós mesmos; o tempo urge, e não há desculpas. Cada um é responsável por si próprio. Eu creio que a senhora tomou medidas adequadas e que não terá surpresas. Elogio-a, porque isso é o que temos de fazer na vida. Entretanto, precisamos continuar trabalhando, porque, na vida espiritual, não nos adiantarmos é irmos para trás. Aqueles que recebem o vento do Espírito Santo navegam mesmo enquanto dormem. Se o barco de nossa alma ainda é golpeado por ventos ou tempestades, despertemos o Senhor que nele repousa, e Ele logo tranquilizará o mar.
Tomei a liberdade, Madre caríssima, de narrar-lhe essa atitude excelente para que a senhora possa compará-la com a sua própria. Ela servirá para reacender e inflamar a sua se, por infortúnio (queira Deus que não, pois seria um grande mal), tiver esfriado, mesmo que pouco. Vamos então, a senhora e eu, recordar o fervor inicial e aproveitar o exemplo e a atitude desse religioso pouco conhecido do mundo, mas conhecido de Deus, que o recobre de carinho. Pedirei isto para a senhora; rogue fervorosamente para que o mesmo seja dado àquele que é, em Nosso Senhor, etc.
CARTA NÚMERO 2
(SEM DATA, PROVAVELMENTE 1685)
Reverenda e venerável Madre:
Recebi hoje dois livros e uma carta da Irmã X, em preparação para professar e que, a esse respeito, pede as orações de sua boa comunidade e, em especial, as suas próprias. Ela insiste em que tem, nessas orações, uma grande e singular confiança; assim, não a desaponte: peça a Deus que ela possa fazer seu sacrifício apenas por amor a Ele, com a firme resolução da entrega completa a Deus. Vou enviar-lhe um desses livros que tratam da presença de Deus que é, em minha opinião, tudo em que consiste a vida espiritual; parece-me que quem a pratique como é preciso espiritualiza-se em pouco tempo.
Sei que, para isso, o coração precisa estar vazio de todas as outras coisas, porque Deus deseja possuí-lo com exclusividade. Sem primeiro esvaziá-lo de tudo que não seja Ele Próprio, Deus não pode ter o coração apenas para Si, nem pode agir ali e fazer nele o que Lhe agrade.
Não há no mundo modo de vida mais doce ou mais pleno de deleite do que o da permanente conversa com Deus; só aqueles que o praticam e saboreiam podem entender isto. Não é, porém, por esta razão que eu o aconselho à senhora. Não é consolo o que devemos buscar nessa prática, mas precisamos empreendê-la por um princípio de amor e porque Deus o quer.
Se fosse pregador, nada mais pregaria senão a prática da presença de Deus. Se fosse diretor espiritual, eu a recomendaria a todas as pessoas, porque acredito que seja a prática mais necessária e, até, a mais fácil.
Ah, se soubéssemos a necessidade que temos da graça e do auxílio de Deus, não o perderíamos de vista nem por um instante. Creia-me, e adote, a partir de agora, a resolução firme e sagrada de jamais novamente afastar-se Dele por vontade própria, e de passar o resto de seus dias nessa santa presença, privada, pelo amor de Deus, se Ele assim quiser, de todos os consolos do Céu ou da terra. Dedique-se a esse trabalho e, se o fizer de maneira adequada, pode ficar segura de que rapidamente verá os benefícios. Eu a auxiliarei com minhas orações, ainda que humildes. Recomendo-me encarecidamente às orações da senhora e de sua comunidade, sendo, de todas, e especialmente da senhora, etc.
CARTA NÚMERO 3
3 DE NOVEMBRO DE 1685
Reverenda e venerável Madre:
Recebi da senhorita X os rosários que a lhe confiou. Fiquei surpreso de que a senhora não me tenha dado sua opinião a respeito do livro que lhe enviei e que, agora, já deve ter recebido. Dedique-se intensamente, pelos derradeiros anos de sua vida, à prática de que ele trata; tarde é melhor do que nunca.
Não posso compreender como religiosos são capazes de viver satisfeitos sem a prática da presença de Deus. No que me diz respeito, tanto quanto posso, mantenho-me recolhido Nele, no fundo e no centro de minha alma, e nada temo enquanto assim estou com Ele. Afastar-me Dele, porém, ainda que por pouco, é um inferno.
Esse exercício não mata o corpo. Entretanto, é até bom, de tempos em tempos, e, mesmo, freqüentemente, privar o corpo de pequenas satisfações inocentes e lícitas, porque, quando uma alma quer devotar-se inteiramente a Deus, Ele não admite que ela tenha outras delícias. Isto é mais que razoável.
Não quero dizer que seja necessário contrariar-se muito. Não. Precisamos servir a Deus em santa liberdade, tratando fielmente do que devemos fazer, mas sem perturbação ou inquietude excessivas, trazendo a mente de volta a Deus, suave e tranqüilamente, sempre que descobrirmos que ela está divagando.
É necessário, contudo, pôr toda nossa confiança em Deus, deixando de lado todos os outros cuidados, até um grande número de devoções particulares que, embora muito boas, algumas vezes nos sobrecarregam de modo inconveniente. Essas devoções são apenas meios para se atingir um fim. Se, portanto, por este exercício da presença de Deus, estamos com Ele, que é a nossa meta, é inútil voltar aos meios. Em vez disso, podemos continuar nosso amoroso intercâmbio com Ele, permanecendo em Sua santa presença — seja por um ato de adoração, de louvor, de desejo, seja por atos de oferenda, ação de graças, ou por quaisquer outros que nossa mente conceba.
Não se sinta desencorajada pela repugnância que isso causa a sua natureza. A senhora precisa violentar essa natureza. Freqüentemente, no começo, pode pensar que é uma perda de tempo, mas deve resolver-se a continuar perseverando até a morte, a despeito de todas as dificuldades. Recomendo-me às orações de sua comunidade e às suas próprias em especial.
Sou, em Nosso Senhor, etc.
CARTA NÚMERO 4
(SEM DATA, PROVAVELMENTE 1689)
Senhora:
Fiquei verdadeiramente condoído com sua situação. Se a senhora puder deixar o trato de seus negócios ao senhor e à senhora X, e não se ocupar de outra coisa a não ser a oração a Deus, isto vale por um golpe de estado. Deus não pede muito de nós. Pede-nos um pensamento Nele de vez em quando ou um breve ato de adoração; às vezes, que oremos por Sua graça ou Lhe ofereçamos nossos sofrimentos; às vezes, que Lhe agradeçamos as graças que nos foram e são concedidas. Em meio às dificuldades que a afligem, encontre conforto Nele tão freqüentemente quanto possível. Durante as refeições ou na conversação social, erga, por vezes, seu coração a Ele. A mínima recordação Dele será sempre muito agradável. Não é preciso gritar, porque Ele está mais próximo de nós do que podemos imaginar.
Para estar com Deus, não é necessário ir sempre à igreja. Podemos fazer de nossos corações uma capela para onde nos retiramos, de tempos em tempos, para. conversar com Ele, suave, humilde e amorosamente. Todos são capazes dessa conversa íntima com Deus; alguns, mais, alguns, menos. Ele sabe o que podemos fazer. Vamos começar. Talvez Ele esteja esperando apenas uma generosa resolução de nossa parte. Tenha ânimo. Resta-nos pouco tempo para viver. A senhora está com cerca de sessenta e quatro anos e eu, com quase oitenta. Vamos viver e morrer com Deus. Os sofrimentos nos serão sempre mais doces e agradáveis quando estivermos com Ele e, sem Ele, os maiores prazeres serão cruel suplício. Que Ele seja bendito por todos. Amém.
Pouco a pouco, habitue-se a adorá-Lo deste modo, pedindo-Lhe Sua graça, oferecendo-Lhe o coração vez por outra, ao longo do dia, enquanto faz alguma coisa, em todos os momentos em que possa. Não se imponha regras especificas ou formas particulares de devoção, mas tenha fé, amor e humildade.
Pode garantir ao senhor e à senhora de X e à senhorita X que eles têm minhas humildes orações. Sou um servidor deles e, em especial, da senhora, em Nosso Senhor.
Irmão....
CARTA NÚMERO 5
(SEM DATA, PROVAVELMENTE 1682/83)
Reverendo Padre
Como não encontrei meu modo de viver descrito nos livros, embora isso não me incomode realmente, gostaria, entretanto, de conhecer, por segurança, sua opinião a respeito de meu estado presente.
Alguns dias atrás, conversando com uma pessoa piedosa, ela me disse que a vida espiritual é uma vida de graça que começa com temor servil, é ampliada pela esperança da vida eterna e se consuma em puro amor, e diferentes pessoas têm diferentes graus desses estádios, pelos quais alcançam essa bem-aventurada consumação.
Não segui, de nenhum modo, todos esses métodos; ao contrário, desde o começo descobri que eles me assustavam, não sei porquê. Foi por essa razão que, quando entrei na vida religiosa, resolvi dar-me inteiramente a Deus para expiação dos meus pecados, e renunciar, por Seu amor, a tudo que não fosse Ele.
Durante os primeiros anos, em minhas orações, costumava pensar na morte, no juízo, no Inferno, no Céu e nos meus próprios pecados. Assim continuei por alguns anos; durante o resto do dia, mesmo durante o trabalho, aplicava-me cuidadosamente à presença de Deus, que considerava sempre junto a mim, freqüentemente no próprio fundo de meu coração. Isso me conferiu um apreço tão grande por Deus que só a fé me podia satisfazer.
Sem sentir, acabei fazendo a mesma coisa durante o tempo dedicado à oração, com grande felicidade e consolo. Foi assim que comecei.
Entretanto, é preciso confessar que sofri bastante durante os dez primeiros anos. O temor de não ser tão dedicado a Deus quanto desejava, a memória de meus antigos pecados sempre diante de mim e a graça exuberante que Deus me concedia, tudo isso era a fonte e a substância dos meus males. Nesse período, continuei a cair muitas vezes, mas, com a mesma rapidez, levantava-me de novo. Parecia-me que as criaturas, a razão e o Próprio Deus estivessem contra mim, e que apenas a fé permanecesse a meu favor. Algumas vezes, era torturado pelo medo da presunção, porque eu afirmava ter alcançado logo o que outros só haviam obtido com dificuldade. Em outras ocasiões, era acometido pela fantasia de que estivesse provocando deliberadamente minha danação e que não havia salvação para mim.
Quando me resignei a viver meus dias no sofrimento dessas perturbações e angústias (o que de nenhum modo diminuiu minha confiança em Deus, antes aumentou minha fé) descobri, de repente, que havia mudado. Minha alma, até então sempre em torvelinho, experimentou profunda paz interior, como se tivesse encontrado seu centro e lugar de repouso.
Desde então, tenho feito meu trabalho diante de Deus com a simplicidade da fé, com humildade e amor, tentando, com todas as forças, nada fazer, nada dizer, nada pensar que possa desagradá-Lo. Espero que, tendo feito tudo o que podia, Deus me trate conforme Lhe agrade.
Não consigo exprimir o que me está acontecendo agora. Não tenho perturbações nem dúvidas a respeito de meu estado, assim como não tenho outra vontade que não a vontade de Deus. Tento realizá-la em todas as coisas e a ela me submeto de um modo tal que eu não realizaria o mero ato de apanhar do chão um pedaço de palha sem as ordens de Deus, nem o faria por outro motivo que não o puro amor a Ele.
Abandonei todos os atos de devoção e piedade que não sejam obrigatórios e, em vez disso, estou dedicado a manter-me sempre na sagrada presença Dele pelo simples ato de estar atento e por uma generalizada e amorosa consciência de Deus. Isto é o que eu chamo “presença real de Deus”, ou melhor, uma quase permanente conversa silenciosa e oculta da alma com Deus. Isto resulta, às vezes, em uma alegria e um contentamento interiores — e, freqüentemente, exteriores — de tal intensidade que, para mantê-los sob controle e impedir que se mostrem externamente, sou constrangido a me comportar de maneira pueril, mais parecendo um doido que um devoto.
Enfim, reverendo Padre, não posso duvidar de que minha alma tenha estado com Deus por mais de trinta anos. Deixarei de mencionar muitas coisas para não fatigá-lo, mas creio que seja adequado explicar-lhe como penso em mim mesmo em relação a Deus, que concebo como meu rei.
Vejo-me como o mais miserável dos seres humanos, recoberto de chagas, de corrupção, culpado de toda sorte de crimes contra seu rei. Tomado por sincero remorso, confesso a Ele toda a minha maldade. Imploro seu perdão e ponho-me nas mãos Dele, para que faça comigo o que quiser. Longe de castigar-me, porém, esse Rei pleno de bondade e misericórdia, beija-me amorosamente, faz-me sentar à mesa Dele, serve-me com Suas próprias mãos, dá-me as chaves de Seu tesouro e trata-me, em tudo, como Seu favorito. Ininterruptamente, conversa comigo e deleita-Se na minha companhia de maneiras incontáveis, sem tocar no meu perdão nem cancelar meus hábitos anteriores. Embora Lhe implore que faça comigo segundo Seu coração, ainda me vejo mais fraco e desprezível, e, todavia, cada vez mais acarinhado por Deus. E assim que me vejo, de tempos em tempos, em Sua presença sagrada.
Minha atitude mais comum é esse simples estar atento e a generalizada e amorosa consciência de Deus, a Quem me sinto freqüentemente apegado, colhendo disso maior doçura e satisfação do que as de um bebê apegado ao seio de quem o amamenta. Portanto, se me for permitida a ousadia de tal expressão, em virtude da indizível doçura que Nele tenho provado e experimentado, gostaria de chamar esse estado de “seio de Deus”.
Se, em alguma ocasião, por necessidade ou por fraqueza, afasto-me Dele, sou logo chamado de volta por uma comoção interior tão deliciosa e encantadora que me constrange falar nela. Mas eu lhe imploro, reverendo Padre, que tenha presentes minhas grandes imperfeições, que o senhor conhece muito bem, em vez dessas abundantes graças com que Deus favoreceu minha alma, ignorante e indigno que sou.
Quanto às horas de oração, elas representam o prosseguimento deste mesmo exercício. Algumas vezes, imagino-me um pedaço de pedra ante um escultor que deseja fazer uma estátua. Apresentando-me assim perante Deus; peço-Lhe que represente Sua imagem perfeita em minha alma e que me torne completamente como Ele Próprio.
Em outras ocasiões, logo que me dedico a essa prática, sinto toda minha alma e todo o meu espírito elevarem-se, sem qualquer cuidado ou esforço de minha parte, e assim permanecem, tal qual tivessem sido suspensos e mantidos em Deus como seu centro e lugar de repouso.
Sei que algumas pessoas chamariam a este estado ociosidade, ilusão e amor-próprio. Admito que haveria nisto uma santa ociosidade e um amor-próprio bem-aventurado se, neste estado, a alma fosse capaz de sentir-se assim. Na verdade, neste estado de repouso, a alma não pode ser perturbada pelos atos anteriores em que se apoiava; agora, em vez de serem de auxílio, eles lhe causariam mal-estar.
Não posso, porém, admitir que este estado seja chamado de ilusório, porque a alma, neste estado, desfruta de Deus e só a Ele deseja. Se isto for ilusão minha, então pertence a Deus corrigir as coisas. Que Ele faça de mim o que quiser, porque só busco a Ele e quero ser completamente Dele.
Muito agradeceria que o senhor me comunicasse sua opinião, a qual muito significa para mim, pois tenho por Vossa Reverência grande consideração, e sou, reverendo Padre, em Nosso Senhor, etc.
CARTA NÚMERO 6
(SEM DATA)
Reverenda e venerável Madre:
Embora minhas orações valham pouco, a senhora não deixará de tê-las, como prometi; mantenho minha palavra. Que felicidade se pudéssemos encontrar o tesouro de que fala o Evangelho! Nada mais teria importância. Sendo infinito, quanto mais procurássemos, mais riquezas encontraríamos. Vamos dedicar-nos a procurá-lo incessantemente, sem nos sentirmos esgotados até que tenhamos êxito.
Finalmente, reverenda Madre, não sei o que será de mim. Parece-me que a paz da alma e o repouso da mente vêm a mim durante o sono. Se eu fosse capaz de sofrer, seria por não ter absolutamente nenhum sofrimento e, se isso me fosse permitido, de boa vontade me consolaria a existência de um Purgatório onde pudesse sofrer para a expiação de meus pecados. Só sei que Deus olha por mim. Minha tranqüilidade é tão grande que nada temo. O que poderia temer quando estou com Ele? Agarro-me a Ele com todas as minhas forças. Que Ele seja bendito por todos. Amém.
CARTA NÚMERO 7
12 DE OUTUBRO DE 1688
Senhora:
Temos um Deus infinitamente bom, que conhece todas as nossas necessidades. Sempre acreditei que Ele a faria passar por uma situação de extrema dificuldade. A seu tempo, quando a senhora menos esperar, Ele virá. Tenha, mais do que nunca, confiança Nele. Junte-se a mim no agradecimento a Ele pelas graças que Ele lhe concede, especialmente pela força e pela paciência que lhe dá em suas aflições. Este é um sinal óbvio do cuidado Dele com a senhora. Portanto, encontre seu consolo Nele e agradeça-Lhe por todas as coisas.
Também admiro a força e a coragem do senhor de X. Deus deu a ele boa natureza e boa-vontade, mas ele ainda é um pouco mundano e demasiadamente jovem. Espero que a aflição que Deus lhe enviou sirva como um remédio eficaz que o fará voltar a si. Esta é uma oportunidade que ele tem de colocar toda sua confiança Naquele que sempre o acompanha. Que ele se lembre de Deus sempre que puder, especialmente nos momentos de maior perigo.
É suficiente um breve elevar do coração, uma rápida lembrança de Deus, um ato de adoração interior — mesmo enquanto corre de espada na mão. Essas orações, pequenas que sejam, agradam muito a Deus e, ao contrário de fazer com que os militares percam a coragem nas situações mais perigosas, elas os fortificam. Que ele pense nisso tão freqüentemente quanto possível, de modo que fique gradualmente acostumado a esse exercício simples, embora sagrado; ninguém o vê, e nada há mais fácil do que repetir esses pequenos atos interiores de adoração, repetidas vezes, ao longo do dia. Por favor, recomende-lhe que se lembre de Deus tanto quanto possa, do modo pelo qual estou sugerindo aqui. Isto é bastante próprio e muito necessário a um soldado cotidianamente exposto às ameaças a sua vida e, não raro, a sua salvação. Espero que Deus auxilie a ele e a toda a família, a quem envio minha saudação e sou de todos, muito humildemente, etc.
CARTA NÚMERO 8
(SEM DATA)
Reverenda e venerável Madre:
A reverenda Madre nada me está dizendo de novo, e não é a única cujos pensamentos ficam agitados. A mente é extremamente fugidia, mas a vontade, senhora de todas as nossas potências, precisa recordá-la de Deus e trazê-la de volta para Ele como sua meta final.
Se a mente não foi disciplinada desde cedo, contraiu hábitos perniciosos, difíceis de superar, que a tornam distraída e dispersiva, e essas tendências nocivas geralmente nos arrastarão para as coisas terrenas, não obstante nossos esforços.
Acho que o remédio de nossos problemas é confessarmos nossas faltas e humilharmo-nos diante de Deus. Meu conselho é que não faça longos discursos durante a oração, porque, na maior parte das vezes, eles favorecem a divagação da mente. Fique diante de Deus como um pobre, mudo e paralítico, às portas de um homem rico. Empenhe-se em estar atenta à presença do Senhor. Se a mente divaga ou, eventualmente, fica absorta, não se inquiete, porque a inquietação serve, antes, para distrair a mente do que para concentrá-la: é preciso usar a vontade para recolher suavemente os pensamentos. Se assim perseverar, Deus terá compaixão da senhora.
Um modo fácil de conservar a mente mais quieta e evitar que ela divague durante o período de oração é não deixar que ganhe impulso ao longo do dia. É preciso mantê-la rigorosamente na presença de Deus e, uma vez que a senhora esteja acostumada a pensar Nele o tempo todo, não lhe será difícil permanecer tranqüila durante a oração ou, pelo menos, trazer a mente de volta quando ela divagar.
Em minhas outras cartas, falei-lhe extensamente a respeito das vantagens que se obtêm dessa prática da presença de Deus. Vamos devotar-nos a isto de maneira séria, e orar um pelo outro. Recomendo-me às orações da Irmã X e da reverenda Madre Y.
Em Nosso Senhor, muito humildemente, etc.
CARTA NÚMERO 9
28 DE MARÇO DE 1689
Aqui vai minha resposta à carta de nossa cara Irmã X. Queira, por gentileza, dar-se ao incômodo de entregá-la. A Irmã me parece cheia de boa-vontade, mas quer andar mais rápido do que a graça. A pessoa não se torna santa em um dia! Eu a recomendo à senhora, porque precisamos ajudar-nos uns aos outros com conselhos e, mais ainda, com nossos bons exemplos. Agradeceria muito se a senhora me desse notícias dela de vez em quando, dizendo se ela é mesmo bastante fervorosa e obediente.
Vamos recordar com freqüência, prezada Madre, que nossa única obrigação nesta vida é agradar a Deus e que tudo o mais é, talvez, vaidade e loucura. Passamos mais de quarenta anos na vida religiosa. Será que usamos esse tempo para amar e servir Deus que, em Sua misericórdia, nos chamou? Encho-me de vergonha e constrangimento quando considero, de um lado, as grandes graças que Deus me deu e continua incessantemente a dar e, de outro lado, o uso tão insatisfatório que delas faço e como é pequeno o proveito que tiro dessas graças no caminho da perfeição.
Já que, em sua misericórdia, Ele nos dá algum tempo, comecemos de uma vez! Vamos recuperar o tempo perdido e voltar a esse Pai de bondade com plena confiança. Ele está sempre pronto a nos receber amorosamente. Vamos renunciar, prezada Madre, e renunciar generosamente, pelo amor de Deus, a tudo o que não seja Ele; Deus merece infinitamente mais. Vamos pensar Nele continuamente. Vamos colocar Nele toda a nossa confiança. Não tenho dúvidas de que logo colheremos os benefícios disso, e a abundância de Sua graça, com a qual podemos fazer tudo e sem a qual só podemos pecar, não deixará a desejar.
Sem o auxílio permanente e real de Deus, é impossível evitar os perigos e os escolhos de que a vida está cheia. Vamos pedir-Lhe esse auxílio o tempo todo. Como, porém, pedir-Lhe isto, a menos que estejamos com Ele? Como estar com Ele, a menos que pensemos Nele freqüentemente? Como pensar Nele freqüentemente, a menos que disso façamos um hábito santo que precisamos criar? A senhora vai-me dizer que sempre repito a mesma coisa. É verdade. Não conheço meio mais adequado ou fácil do que este. E desde que não pratico qualquer outro, recomendo-o a toda gente. Precisamos conhecer antes de amar. Para conhecer Deus, precisamos pensar Nele amiúde. E quando nosso amor for forte, pensaremos Nele muito freqüentemente, porque nosso coração estará onde está nosso tesouro. Pensemos Nele, de maneira intensa e costumeira.
Seu servidor muito humilde etc.
CARTA NÚMERO 10
29 DE OUTUBRO DE 1689
Senhora:
Realmente, foi bastante difícil para mim dispor-me a escrever ao senhor de X, e estou fazendo isto apenas porque a senhora e a senhora de X querem que eu o faça. Por favor, tenham a gentileza de sobrescritar e enviar essa carta. Fico muito satisfeito com a confiança que a senhora tem em Deus; espero que Ele a amplie cada vez mais. Não há como exagerar a confiança em um Amigo tão bom e fiel, que jamais nos faltará, neste mundo ou no além.
Se o senhor de X pudesse saber como tirar proveito das perdas que sofreu e colocasse toda a sua confiança em Deus, logo Ele lhe daria outro amigo mais poderoso e melhor intencionado, porque Deus dispõe os corações como Lhe agrada. Talvez houvesse impulsos naturais e apego demasiado do senhor de X em relação ao que ele perdeu; precisamos amar nossos amigos, mas sem prejuízo do amor a Deus, que precisa vir primeiro. Lembre-se, peço-lhe encarecidamente, do que lhe recomendei, que é pensar em Deus freqüentemente, dia e noite, em todas as suas atividades, exercícios e, mesmo, durante seu entretenimento. Ele está sempre junto à senhora e com a senhora; não O deixe sozinho. A senhora acharia grosseiro não fazer companhia a um amigo que fosse visitá-la. Então, por que abandonar a Deus e deixá-Lo sozinho? Não O esqueça! Pense Nele com freqüência. Adore-O continuamente. Viva e morra com Ele. Esta é a verdadeira ocupação de um cristão; em uma palavra, este é o nosso trabalho. Se não soubermos fazer isto, precisamos aprender. Eu a ajudarei com as minhas orações.
Sou, em Nosso Senhor etc.
CARTA NÚMERO 11
17 DE NOVEMBRO DE 1690
Reverenda e venerável Madre:
Não pedirei a Deus que a livre de suas provações, mas pedirei a Ele, encarecidamente, que lhe dê a paciência e a força necessárias para sofrer durante todo o tempo que Ele queira. Encontre consolo Nele que a mantém em sua cruz; Ele a libertará quando achar adequado. Felizes aqueles que sofrem com Ele. Habitue-se a sofrer assim e peça-Lhe forças para sofrer o que Ele queira e por tanto tempo quanto Ele julgue que lhe seja necessário. O mundo não compreende essas verdades, e isso não me surpreende, porque as pessoas sofrem como cidadãos deste mundo e não como cristãos. Consideram as doenças aflições naturais e não graças de Deus; portanto, só encontram nelas o que é penoso e contrário à natureza. Mas aqueles que as vêem como vindas da mão de Deus, como sinais de Sua misericórdia e meios que Ele usa para salvação das pessoas, nelas encontram, geralmente, grande doçura e perceptível consolação.
Gostaria que a senhora estivesse convencida de que, freqüentemente, Deus está mais próximo de nós nas épocas de moléstia e sofrimento do que quando gozamos de perfeita saúde. Não procure outro médico, senão Ele. Tanto quanto posso compreender, Deus quer curá-la Ele Próprio. Ponha Nele toda a sua confiança, e logo experimentará os benefícios que retardamos ao confiar mais nos remédios do que em Deus.
Quaisquer que sejam os remédios que a senhora possa usar, eles só funcionarão na medida em que Deus o permita. Quando o sofrimento vem de Deus, só Ele pode curar e, muitas vezes, Ele nos deixa com a doença física a fim de curar nossa doença espiritual. Encontre consolo no soberano Médico do corpo e da alma.
Prevejo sua resposta: que é fácil para mim, já que como e bebo à mesa do Senhor. A senhora tem razão. Recorde-se, porém, de que é algum sofrimento para o maior dos criminosos do mundo comer à mesa do Rei e ser servido por Suas mãos sem, entretanto, ter recebido a garantia do perdão. Creio que esse criminoso sentiria um grande sofrimento, só diminuído pela confiança na bondade do Senhor soberano.
Do mesmo modo — eu lhe garanto — não importa a prazer que eu possa sentir em comer e beber à mesa de meu Rei, atormentam-me, não obstante, meus pecados sempre presentes diante dos meus olhos, bem como a falta de certeza a respeito do meu perdão. Entretanto, sinceramente, o sofrimento me é agradável.
Fique contente no estado em que Deus a colocou. Não importa o quanto a senhora ache que sou feliz, eu a invejo. Essas dores e esses sofrimentos seriam um paraíso se eu pudesse sofrer com Deus, e os maiores prazeres seriam o inferno se eu tivesse de gozar deles sem Deus. Todo o meu consolo seria sofrer alguma coisa por Ele.
Estou próximo de ir ver Deus, quero dizer, a prestar a Ele minhas contas. Porque se eu pudesse ver Deus, embora por um momento, os tormentos do Purgatório me seriam doces, ainda que durassem até o fim do mundo. O que me consola nesta vida é que eu vejo Deus por intermédio da fé. E O vejo de tal maneira que algumas vezes posso dizer: “já não creio; eu vejo, experimento o que a fé ensina”. E com esta garantia, por esta prática de fé, viverei e morrerei com Ele.
Portanto, apegue-se sempre a Deus que é o único conforto em seu sofrimento. Orarei a Ele para que Se mantenha em companhia da senhora. Minhas saudações à reverenda Madre Priora. Recomendo-me às santas orações dela, às da comunidade e às suas.
Sou, em Nosso Senhor, etc.
CARTA NÚMERO 12
(SEM DATA)
Reverenda Madre:
Vou contar-lhe, já que a senhora insiste, o método que usei para chegar a este estado de percepção da presença de Deus que Nosso Senhor, em sua misericórdia, me concedeu. Não posso ocultar o quanto me repugna atender a sua insistência, mesmo com a condição de que a senhora não mostre minha carta a ninguém. Se eu achasse que a senhora iria permitir que alguém a visse, todo o meu desejo de sua perfeição não me faria concordar. E o que lhe posso dizer a respeito deste assunto.
Tendo encontrado, em diversos livros, métodos diferentes para a pessoa aproximar-se de Deus e práticas diversas da vida espiritual, receei que tudo isso viesse a ser uma carga para minha mente, em vez de facilitar o que eu queria e buscava, a saber, um meio para que Deus dispusesse de mim completamente. Isto me levou à resolução extrema. Assim, após oferecer-me completamente a Deus para o castigo dos meus pecados, renunciei, pelo amor Dele, a tudo o que não fosse Deus, e comecei a viver como se apenas Ele e eu existíssemos no mundo. Algumas vezes, eu me considerava diante dele como um criminoso aos pés do seu juiz e, outras vezes, eu o via, em meu coração, como meu pai, como meu Deus. Ali eu o adorava tão freqüentemente quanto possível, mantendo minha mente em Sua sagrada presença e voltando a Ele todas as vezes que me distraía. Tive não poucos problemas para fazer esses exercícios, mas continuei, apesar de todas as dificuldades que encontrei, sem ficar perturbado ou inquieto quando me distraía involuntariamente. Ocupava-me dessa prática durante as atividades do dia com a mesma intensidade com que me entregava a ela nos períodos de oração, pois, todo o tempo, a toda hora, em todos os momentos, nos mais intensos períodos de trabalho que tinha, eu bania e afastava da mente tudo o que fosse capaz de retirar de mim o pensamento de Deus.
Isto, reverenda Madre, é meu exercício habitual desde que entrei para a vida religiosa. Embora o tenha praticado de maneira débil e imperfeita, recebi, não obstante, numerosos benefícios. Sei, certamente, que isto se deve à misericórdia e à bondade do Senhor — é preciso que os méritos Lhe sejam atribuídos — já que nada podemos fazer sem Ele, eu ainda menos do que os outros. Quando, porém, nos mantemos fielmente em Sua sagrada presença, vendo-O sempre diante de nós, não apenas evitando ofendê-Lo ou desagradá-Lo, pelo menos deliberadamente, mas considerando-O do modo como descrevi, adquirimos uma liberdade santa de pedir-Lhe as graças de que necessitamos. Enfim, à força de repetir esses atos, eles se tornam mais familiares e a presença de Deus se torna como que natural. Acompanhe-me, por favor, no agradecimento a Ele por Sua grande bondade para comigo, porque não posso apreciar com grandeza suficiente o número enorme de graças que Ele me concedeu, a mim, miserável pecador. Que todos o bendigam. Amém.
Sou, em Nosso Senhor, etc.
CARTA NÚMERO 13
28 DE NOV EMBRO DE 1690
Minha cara Madre
Se estivéssemos verdadeiramente acostumados à prática da presença de Deus, todas as doenças do corpo seriam fáceis de suportar. Deus, muitas vezes, permite que soframos um pouco para purificar nossas almas e fazer-nos permanecer com Ele. Não posso compreender que uma alma que esteja com Deus e queira apenas a Ele seja capaz de sofrer; eu mesmo tenho bastante experiência disto para não abrigar dúvidas.
Tenha coragem. Ofereça continuamente a Ele seus sofrimentos, enquanto Lhe pede as bênçãos para suportá-los. Acima de tudo, habitue-se a conversar com Ele freqüentemente e tente jamais esquecê-Lo. Adore-O em suas enfermidades e, vez por outra, ofereça-Lhe seus sofrimentos. Quando sua dor estiver maior, peça-Lhe, com amor e humildade, como um filho pede a seu benevolente pai, para conformar-se com a santa vontade Dele, bem como para receber o auxílio de Sua graça. Eu a ajudarei com minhas preces toscas e insignificantes.
Deus tem vários modos de nos atrair a Ele. Algumas vezes, Ele se esconde de nós, mas apenas a fé — que nunca falta quando necessitamos — deve ser nosso apoio e o alicerce de nossa confiança, e esta se deve pôr inteiramente em Deus.
Não sei o que Deus quer fazer comigo. Estou cada vez mais contente. Todos sofrem, e eu, que deveria passar por rigorosas penitências, experimento tão perenes e profundas alegrias que tenho dificuldade em mantê-las sob controle.
De bom grado pediria a Deus que me desse parte dos sofrimentos da senhora, se não soubesse a extensão da minha fraqueza, tão grande que, se Ele me deixasse à minha própria sorte por um momento, eu seria a mais miserável das criaturas. Não sei, porém, como Ele poderia deixar-me sozinho, já que a fé me permite tocá-Lo com as mãos e Ele nunca se afasta de nós a menos que nós, primeiro, nos afastemos Dele. Tenhamos, pois, o cuidado de não nos afastarmos Dele. Estejamos sempre com Ele. Vamos viver e morrer com Ele. Ore por mim e eu, pela senhora.
CARTA NÚMERO 14
21 DE DEZEMBRO DE 1690
Minha cara Madre:
Dói-me vê-la sofrer por tanto tempo. O que amaina minha compaixão por sua dor é que eu sei ser ela um sinal do amor de Deus pela senhora. Veja-a deste modo e a senhora descobrirá que fica fácil suportá-la. Acho que a senhora deveria abandonar todos os remédios humanos e entregar-se completamente á Providência divina; talvez Deus esteja apenas esperando esse abandono e uma perfeita confiança Nele para curá-la. Já que, a despeito de todos os seus cuidados, os remédios não tiveram o efeito esperado — ao contrário, seu sofrimento só aumentou — deve abandonar-se em suas mãos e confiar inteiramente Nele. Isto não é tentá-Lo.
Eu já lhe disse, em minha última carta, que Ele às vezes permite o sofrimento do corpo para curar a doença de nossas almas. Tenha coragem; faça da necessidade uma virtude. Não peça a Deus que a livre do sofrimento físico, mas, sim, que lhe dê forças para suportar corajosamente, apenas pelo amor Dele, tudo o que Ele desejar, por tanto tempo quanto Ele o deseje.
Essas orações, verdadeiramente difíceis para a natureza humana, agradam muito a Deus e são doces aos que O amam. O amor suaviza o sofrimento e, quando amamos Deus, sofremos por Ele com alegria e coragem. Faça assim, peço-lhe encarecidamente. Encontre consolo Nele que é o único remédio para todos os nossos males. Ele é o pai dos aflitos, sempre pronto a vir em nosso auxílio. Ele nos ama infinitamente mais do que podemos imaginar. Ame-O, portanto. Não busque alívio, a não ser Nele. Espero que a senhora receba rapidamente esse alívio. Adeus. Ajudarei com as minhas orações, insignificantes que sejam.
Sempre, em Nosso Senhor, etc.
PS. Esta manhã, na festa de São Tomás, comunguei em sua intenção.
CARTA NÚMERO 15
22 DE JANEIRO DE 1691
Madre Caríssima:
Rendo graças ao Senhor por lhe ter dado algum alívio, como a senhora desejava. Estive prestes a morrer muitas vezes. Embora não estivesse assim tão contente, também não pedi alívio, mas forças para sofrer com bravura, humildade e amor. Coragem, Madre caríssima! Ah! Como é doce sofrer com Deus! Não importa quão grande seja o sofrimento, aceite-o com amor, porque sofrer estando com Deus é um Paraíso. Se queremos gozar da paz do Paraíso nesta vida, precisamos ficar acostumados a conversar com Deus de maneira familiar, humilde e amorosa. Precisamos impedir que nossas mentes fiquem divagando por qualquer razão. Precisamos tornar nosso coração um templo espiritual onde O adoramos continuamente. Precisamos manter-nos constantemente em guarda para não fazermos, dizermos ou pensarmos qualquer coisa que pudesse desagradá-Lo. Quando dermos esse tipo de atenção a Deus, o sofrimento já não será mais que doçura, bálsamo e consolação.
Sei que, para alcançar este estado, os primeiros passos são muito difíceis e que precisamos agir puramente segundo a fé. Além disso, sabemos que podemos fazer qualquer coisa com a graça de Deus, e Ele jamais a recusa àquele que perseverantemente Lhe pede. Bata à porta. Continue batendo e eu lhe digo que, se a senhora não desistir, Ele a abrirá para a senhora quando achar conveniente e lhe dará, de repente, o que esteve guardando durante anos. Adeus. Ore por mim como eu oro pela senhora. Espero vê-Lo brevemente.
Em Nosso Senhor, etc.
CARTA NÚMERO 16
6 DE FEVEREIRO DE 1691
Minha cara Madre:
Deus sabe muito bem o que necessitamos, e tudo o que Ele faz é em nosso benefício. Se soubéssemos o quanto Ele nos ama, estaríamos prontos para aceitar igualmente de Suas mãos o doce e o amargo, e até as coisas mais dolorosas e difíceis seriam agradáveis e prazerosas. Os sofrimentos mais agudos, geralmente, só nos parecem insuportáveis porque os vemos na perspectiva errada. Quando estamos convencidos de que é a mão de Deus que age em nós — que Aquele que nos permite sofrer a humilhação, a dor e o sofrimento é um Pai cheio de amor — toda a amargura é afastada e apenas a doçura permanece.
Devotemo-nos inteiramente a conhecer Deus. Quanto mais O conhecermos, mais vamos querer conhecê-Lo. Como o amor é, geralmente, medido pelo conhecimento, quanto mais profundo e extenso o conhecimento, maior será o amor e, se nosso amor for grande, nós O amaremos por igual na dor e no consolo.
Não nos limitemos a buscar ou amar a Deus apenas pelas graças que Ele nos deu ou que nos possa dar, não importa quão grandes sejam. Esses favores, embora impressionantes, jamais nos levam tão próximo a Ele quanto um simples ato de fé. Vamos buscá-lo, repetidamente, por meio dessa virtude. Ele está no meio de nós. Não vamos procurar por Ele em outra parte. Não temos tido a grosseria e, mesmo, a culpa de deixá-Lo sozinho quando estamos ocupados com tantas ninharias que tanto O desagradam e talvez O ofendam? Ele pode tolerar isto, mas devemos temer que estas coisas nos possam custar muito caro algum dia.
Comecemos a ser completamente Dele e banir tudo mais de nossos corações e de nossas mentes. Ele quer neles estar sozinho; assim, vamos pedir-Lhe essa graça. Se fizermos o que pudermos de nossa parte, logo veremos em nós mesmos a transformação que esperamos. Não sei como agradecer suficientemente a Deus o alívio que Ele lhe concedeu. Espero da misericórdia Dele a graça de vê-Lo em alguns dias *. Vamos orar um pelo outro.
Sou, em Nosso Senhor, etc.
* O Irmão Lourenço ficaria doente dois dias depois e faleceria a 12 de fevereiro de 1691.
Fostes para quem te conhecia
uma testemunha luminosa de Deus vivo e próximo.
Intercede (pela graça),
fazendo as pequenas coisas do meu dia
no seu amor e por aqueles que me rodeiam.
Ámen.
Muito inspirador. Obrigado.
ResponderExcluirBem! Ele é beato, venerável, servo de Deus??? Já pesquisei e não acho nada...
ResponderExcluirTente procurar por: Nicolas Herman ou Brother Lawrence ou Irmão Lourenço da Ressurreição. Tem pouca coisa mas tem. Deus o abençoe! www.adorandonanet.blogspot.com
ExcluirQuem traduziua as Conversas e Cartas? Obrigado
ResponderExcluirLinda história e inspiradora. Por ter lido em 2017, desde então converso com Deus o tempo todo e isso mudou minha vida.
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