Teresa de Jesus
Introdução
A esta série de breves e fervorosos desabafos teresianos, escritos sem nenhuma preocupação de ordem ou sistema, enlaçados pelo fio interior e secreto da fogueira eruptiva que os provoca, Frei Luis deu o seguinte título: Exclamações ou meditações da alma a seu Deus escritas por Madre Teresa de Jesus em diferentes dias, conforme o espírito que Nosso Senhor lhe comunicava depois de haver comungado, ano de mil quinhentos e sessenta e nove (Edição príncipe, Salamanca, 1588, pp. 269-304).
Trata-se de um diário sem data. Pelo que sabemos dessas anotações: forma e ocasião em que foram escritas, data de composição aceita não sem divergências pelos teresianistas, estranha que um escrito com essas características se interrompa em data tão precoce, sem nenhuma ampliação posterior…
O original não foi conservado, tampouco as numerosas cópias. A situação e as circunstâncias em que a Madre escreve definem a forma e a estrutura deste breve e inflamado texto teresiano. Como expressão de seus sentimentos não segue um plano orgânico. Alguns editores buscam imprimir-lhe ordem, pondo títulos aproximadamente descritivos.
Percebem-se os mesmos sentimentos reiteradamente presentes em seus escritos: sentimento pela ausência de Deus, pelo tempo em que viveu afastada Dele, tempo perdido, a misericórdia e a grandeza de Deus, a vida, barreira que retarda a chegada definitiva do encontro, a adorável Humanidade de Cristo, que sofre e busca as almas, Deus justo juiz, o tormento das almas que se perdem…
Exclamações da Alma a Deus
I
1. Ó vida, vida! Como podes sustentar-te estando ausente de tua Vida? Em tanta solidão, a que te dedicas? Que fazes, se todas as tuas obras são imperfeitas e falhas? Que te consola, ó alma minha, nesse tempestuoso mar? Lastimo a mim, e mais ainda ao tempo que não vivi lastimosa. Ó Senhor, quão suaves são os Vossos caminhos! Mas quem caminhará sem temor? Temo estar sem Vos servir e, quando Vos vou servir, não encontro nada que me satisfaça para pagar algo do que devo. Parece que eu gostaria de me dedicar toda a isso, mas, quando bem considero a minha miséria, vejo que não posso fazer nada que seja bom se Vós não mo concedeis.
2. Ó Deus meu e misericórdia minha! Que farei para não desfazer as grandezas que fazeis comigo? Vossas obras são santas, são justas, são de inestimável valor e de grande sabedoria, porque são Vós mesmo, Senhor. Se delas se ocupa o meu entendimento, queixa-se a vontade, porque queria que ninguém a perturbasse em amar-Vos, já que o intelecto não pode alcançar, em tão grandes grandezas, quem é o seu Deus, e se Dele deseja gozar, a alma não vê como, posta em cárcere tão penoso como é esta mortalidade. Tudo a perturba, se bem que antes tenha sido ajudada na consideração das Vossas grandezas, onde se vêem melhor as inúmeras baixezas minhas.
3. Para que eu disse isso, meu Deus? A quem me queixo? Quem me ouve senão Vós, Pai e Criador meu? Pois para entenderdes o meu sofrer, que necessidade tenho de falar, se vejo tão claramente que estais dentro de mim? Este é o meu desatino. Mas, ai, Deus meu! Como poderei saber ao certo que não estou apartada de Vós? Ó vida minha, então hás de viver com tão pouca segurança em coisa tão importante! Quem te desejará se o ganho que de ti se pode tirar ou esperar, que é contentar em tudo a Deus, é tão incerto e cheio de perigos?
II
1. Muitas vezes, Senhor meu, considero que, se com alguma coisa se pode sustentar o viver sem Vós, é com a solidão, porque a alma descansa com o seu descanso, posto que, como não se goza com inteira liberdade, com freqüência se duplica o tormento; mas o tormento advindo do ter de tratar com as criaturas e deixar de se entender a sós com o seu Criador faz a alma tê-lo por deleite. Mas o que é isso, meu Deus, então o descanso cansa a alma que só pretende Vos contentar? Ó amor poderoso de Deus, como diferem teus efeitos do amor do mundo! Este não quer companhia por julgar que lhe hão de tirar o que possui; o do meu Deus, quanto mais amadores entende que há, mais cresce, e assim os seus gozos arrefecem ao ver que não gozam todos daquele bem.
Ó bem meu, que isto faz, de modo que, nos maiores regalos e contentamentos que se têm Convosco, lastima-se a alma com a lembrança dos muitos que existem que não querem esses contentamentos e daqueles que os hão de perder para sempre! E assim a alma procura meios para buscar companhia, e de bom grado deixa o seu gozo quando pensa que isso será alguma contribuição para que outros o procurem gozar.
2. Mas, Pai celestial meu, não seria melhor deixar esses desejos para quando a alma estiver com menos regalos Vossos, dedicando-se agora por inteiro a fruir-Vos? Ó Jesus meu! Quão grande é o amor que tendes aos filhos dos homens, a ponto de o maior serviço que se pode fazer a Vós seja deixar--Vos por seu amor e lucro, situação em que sois possuído mais plenamente. Porque, embora não se satisfaça tanto a vontade em gozar, a alma se compraz em contentar a Vós, vendo que os gozos da terra são incertos, ainda que pareçam dados por Vós, enquanto vivermos nesta mortalidade, se não estiverem acompanhados do amor ao próximo. Quem não o amar não Vos ama, Senhor meu, pois vimos demonstrado com tanto sangue o amor tão grande que tendes aos filhos de Adão.
III
1. Considerando a glória que tendes, Deus meu, preparada para os que perseveram em fazer a Vossa vontade, e os muitos sofrimentos e dores com que Vosso Filho a ganhou, quão mal a tínhamos merecido e quanto Ele é merecedor da nossa gratidão pelo grande amor que tão custosamente nos ensinou a amar, minha alma se afligiu sobremaneira. Como é possível, Senhor, que se esqueça tudo isso e que tão esquecidos de Vós estejam os mortais quando Vos ofendem? Ó Redentor meu, e quão esquecidos de si!
E que seja muito grande a Vossa bondade, e ainda assim Vos recordeis de nós, e que, tendo caído por serdes ferido por um golpe mortal, Vos esqueçais disso e volteis a dar a mão, despertando-nos de frenesi tão incurável, para que procuremos e Vos peçamos salvação! Bendito seja tal Senhor! Bendita tão grande misericódia! E louvado seja para sempre por tão generosa piedade!
2. Ó alma minha, bendize para sempre Deus tão grandioso! Como alguém se pode voltar contra Ele! Oh, que aos ingratos a grandeza da graça traz a danação! Remediai-o Vós, meu Deus. Ó filhos dos homens, até quando sereis duros de coração,1 e o endurecereis para vos opordes a esse mansíssimo Jesus? Que é isso? Porventura permanecerá a nossa maldade contra Ele? Não, que a vida do homem se acaba como a flor do feno, e o Filho da Virgem há de vir para dar aquela terrível sentença.2
Ó poderoso Deus meu! Se, ainda que não queiramos, nos havereis de julgar, por que não vemos quanto nos importa ter-Vos contente para aquela hora? Mas quem não haverá de querer Juiz tão justo? Bem-aventurados os que naquele temeroso momento se alegrarem Convosco, ó Deus e Senhor meu! Mas que fará aquele que Vós levantastes e que sabe quão miseravelmente se perdeu para ganhar um contentamento muito breve e está determinado a contentar-Vos sempre — desde que o ajude o Vosso favor —, pois não faltais, bem meu de minha alma, aos que Vos querem nem deixais de responder a quem Vos chama? Que remédio há, Senhor, para depois poder viver, que não seja morrer com a lembrança de ter perdido tanto bem como o que teria estando na inocência em que ficou no batismo? Sim, a melhor vida que pode ter é a de ir morrendo sempre com esse sentimento. Mas a alma que Vos ama ternamente, como o poderá suportar?
3. Mas que disparate Vos pergunto, Senhor meu! Parece que me esqueci de vossas grandezas e misericórdias, do fato de terdes vindo ao mundo em favor dos pecadores, de que pagastes por nós um preço tão alto,3 tendo pago pelos nossos falsos contentamentos suportando açoites e tormentos tão cruéis. Remediaste minha cegueira permitindo que vossos divinos olhos fossem tapados, e minha vaidade, com tão cruel coroa de espinhos.
Ó Senhor, Senhor! Tudo isso é mais lastimado por quem Vos ama. Meu consolo é que vossa misericórdia será louvada para sempre quando se souber da minha maldade; e mesmo assim não sei se esta dor passará antes que, vendo-Vos eu, sejam tiradas de mim todas as misérias desta mortalidade.
IV
1. Parece, Senhor meu, que a minha alma descansa pensando no gozo que terá, se por vossa misericórdia lhe for concedido gozar de Vós. Mas ela queria primeiro servir-Vos, porque haverá de ganhar daquilo que Vós, servindo a ela, a fizestes ter. Que farei, Senhor meu? Que farei, meu Deus? Ah! Quão tarde se incendiaram meus desejos e quão cedo andáveis, Senhor, granjeando-me e chamando para que eu me dedicasse por inteiro a Vós!1 Porventura, Senhor, desamparais o miserável ou te afastas do pobre mendigo quando estes desejaram aproximar-se de Vós? E porventura, Senhor, têm fim vossas grandezas ou vossas magníficas obras?
Ó Deus meu e misericórdia minha! E como as podereis agora mostrar em vossa serva! Poderoso sois, grande Deus. Agora se pode entender se minha alma compreende a si mesma vendo o tempo que perdeu e como num instante podeis, Senhor, fazer que volte a ganhar. Parece-me que desatino, pois é costume dizer que tempo perdido não se torna a recuperar. Bendito seja o meu Deus!
2. Ó Senhor! Reconheço vosso grande poder. Se sois poderoso, como o sois, o que há de impossível para Quem tudo pode? Querei, Senhor meu, querei! Porque, embora miserável, creio firmemente que podeis o que quereis, e quanto maiores as maravilhas vossas de que ouço falar, e considero que podeis fazer mais, tanto maior se torna a minha fé, e com maior determinação creio que fareis o que Vos peço. E de que se admirar do que faz o Todo-poderoso? Bem sabeis, Deus meu, que, em meio a todas as minhas misérias, nunca deixei de reconhecer vosso grande poder e misericórdia. Que isto em que não Vos ofendi me valha.
Recuperai, Deus meu, o tempo perdido dando-me graças no presente e no futuro, para que eu me apresente diante de Vós com vestes de bodas, pois se quiserdes podeis.2
V
1. Ó Senhor meu! Como Vos ousa pedir graças quem tão mal Vos tem servido e sabido guardar o que lhe destes? Como se pode confiar em quem muitas vezes traiu? E o que farei, consolo dos desconsolados e remédio de quem desejar remediar-se convosco? Porventura será melhor que eu não fale de minhas necessidades, esperando que Vós as remedieis? Certamente não. Pois Vós, Senhor meu e deleite meu, sabendo a grande quantidade delas e o alívio que é para nós contá-las a Vós, dizeis que Vo-las peçamos e que não deixareis de as dar.1
2. Recordo-me por vezes da queixa daquela santa mulher, Marta, e penso que não se queixava só da sua irmã.2 Antes tenho por certo que seu maior sentimento decorria do fato de não Vos condoerdes, Senhor, do sofrimento por que ela passava, nem reconhecerdes o seu estar convosco. Talvez ela tenha pensado que o amor que lhe tínheis não era tanto quanto o que tínheis à sua irmã. Isso devia fazer-lhe muito mal, e não o servir Àquele por Quem tinha tanto amor, já que isso faz do sofrimento descanso. Percebe-se isso no fato de ela nada ter dito à irmã, queixando-se antes a Vós, Senhor; o amor a fez atrever-se a dizer que isso não Vos preocupava. Na própria resposta se vê procedente o que digo: só o amor dá valor a todas as coisas. E o mais necessário é que seja grande o bastante para que nenhuma o estorve.
Mas como o poderemos ter, Deus meu, de acordo com o que merece o Amado, se o que nos tendes não se junta ao nosso? Queixar-me-ei com essa santa mulher? Não, porque não tenho razões para isso, já que sempre vi em mim muito maiores e imensas mostras de amor, bem além do que tenho podido pedir e desejar! Só poderia me queixar do muito que a vossa benignidade me tem suportado. Pois que poderá pedir uma coisa tão miserável como eu. Que me deis, Senhor, com Santo Agostinho, meios com os quais eu Vos dê, para pagar algo do muito que Vos devo.3 Que vos recordeis de que sou criatura vossa e que eu sabia Quem é o meu Criador para Amá-Lo.
VI
1. Ó deleite meu, Senhor de toda a criação e meu Deus! Até quando terei de esperar por vossa presença? Que remédio dais a quem o tem tão pouco na terra para conseguir algum descanso fora de Vós? Ó vida longa, vida penosa! Ó vida que não se vive! Ó que grande solidão! Que falta de solução! Pois quando, Senhor, quando, até quando?1 Que farei, Bem meu, que farei? Porventura desejarei não desejar-Vos?
Ó Deus meu e meu Criador! Então feris e não pondes o remédio, chagais e não se vê a chaga, matais deixando com mais vida? Enfim, Senhor meu, fazeis o que quereis, poderoso que sois.
Quereis que um verme tão depreciado sofra essas contrariedades? Que assim seja, meu Deus, porque o quereis, já que não desejo senão desejar-Vos.
2. Mas, ai, ai, Criador meu, que a grande dor faz que eu me queixe e diga que não tem remédio até que o queiras! Uma alma tão encarcerada deseja a liberdade sem querer afastar-se sequer um milímetro daquilo que quereis. Querei, glória minha, que cresça o seu sofrimento, ou remediai-o de todo. Ó mestre, morte, não sei quem te pode temer, pois em ti está a vida! Mas quem não te temerá tendo passado parte da vida em não amar o seu Deus? E como sou assim, que peço e que desejo? Porventura o tão merecido castigo de minhas culpas? Não o permitais, bem meu, porque muito Vos custou o meu resgate.
3. Ó alma minha! Deixa que se faça a vontade do teu Deus! Isso te convém! Serve e espera em Sua misericórdia que Ele remediará o teu sofrer quando, com a penitência de tuas culpas, tiveres ganho algum perdão delas. Não queiras gozar sem padecer. Ó verdadeiro Senhor e Rei meu! Não sirvo sequer para isso se a vossa mão e grandeza não vem em meu auxílio — porque, com isso, tudo poderei.
VII
1. Ó esperança minha, meu Pai e Criador, verdadeiro Senhor e Irmão meu! Quando considero que dizeis que vossas delícias são com os filhos dos homens,1 muito se alegra minha alma. Ó Senhor do céu e da terra! Que palavras estas, para nenhum pecador desconfiar! Falta-Vos, porventura, Senhor, com quem Vos deleites, para buscardes um vermezinho tão malcheiroso quanto eu? A voz que se ouviu no Batismo disse que Vos comprazeis com vosso Filho.2 E haveremos de ser todos iguais, Senhor? Ó que grandíssima misericórdia, que favor tão imenso que não o podemos merecer! E pensar que nós, mortais, possamos nos esquecer disso! Lembrai-Vos, Deus meu, de tanta misericórdia, e vede vossa fraqueza, pois de tudo sois sabedor.
2. Ó alma minha! Considera o grande deleite e o imenso amor que tem por nós o Pai em conhecer seu Filho, e o Filho em conhecer seu Pai, bem como o ardor com que o Espírito Santo se junta a eles. Pensa que nenhuma dessas pessoas pode se apartar, por serem todas uma só e mesma coisa. Essas soberanas pessoas se conhecem, se amam, deleitando-se umas com as outras. Para que serve, pois, o meu amor? Para que o quereis, Deus meu, o que ganhais? Oh, bendito sejais Vós! Oh, bendito sejais Vós, Deus meu para sempre! Louvem-Vos todas as coisas, Senhor infinitamente, pois não pode haver fim em Vós.
3. Alegra-te, alma minha, porque há quem ame o teu Deus como Ele merece. Alegra-te, pois há quem conheça Sua bondade e valor. Dá-lhe graças por Ele nos ter dado na terra quem assim O conhece, como o Seu Filho único que é. Com esse amparo poderás chegar-te a Ele e suplicar-Lhe que, com Sua Majestade de deleita contigo, nem todas as coisas da terra sejam o bastante para afastar-te do deleitar-se e alegrar-te na grandeza do teu Deus e em como merece ser amado e louvado. Pede-Lhe que te ajude para que tenhas alguma pequena participação em bendizer o Seu nome e para que possas dizer, sinceramente: A minha alma engrandece e louva o Senhor.3
VIII
1. Ó Senhor, Deus meu, como tendes palavras de vida,1 nas quais os mortais encontram o que desejam, se Vos quisermos buscar! Mas que espantoso, Deus meu, o esquecermos vossas palavras com a loucura e a enfermidade causadas pelas nossas más ações! Ó Deus meu, Deus, Deus autor de toda a criação! E o que são as coisas criadas se Vós, Senhor, desejardes criar mais? Sois todo-poderoso, vossas obras são incompreensíveis.2 Assim, Senhor, fazei que não se apartem do meu pensamento as Vossas palavras.
2. Dizeis: Vinde a mim vós todos que estais oprimidos de trabalhos e sobrecarregados e eu vos aliviarei.3 Que mais queremos, Senhor? Que pedimos? Que buscamos? Por que os do mundo estão perdidos a não ser por buscar descanso? Valha-me Deus, ó, valha-me Deus! Que é isso, Senhor? Oh, que lástima! Oh, que grande cegueira o Vos buscarmos naquilo em que é impossível achar-Vos!
Tende piedade, Criador, dessas pobres criaturas vossas, vede que não nos entendemos, nem sabemos o que queremos, e sequer nos damos conta do que pedimos. Dai-nos, Senhor, luz; vede que esta nos é mais necessária do que ao cego de nascença, que queria ver e não podia.4 Agora, Senhor, não se quer ver. Oh, que mal tão incurável! Aqui, Deus meu, há de se mostrar vosso poder, aqui vossa misericórdia.
3. Oh, que coisa difícil Vos peço, verdadeiro Deus meu: que queirais a quem não vos quer, que abrais a porta a quem não Vos chama, que deis saúde a quem gosta de ficar doente e procura a enfermidade! Dizeis, Senhor meu, que vindes buscar os pecadores;5 esses, Senhor, são os verdadeiros pecadores. Não percebais nossa cegueira, meu Deus, mas o sangue que vosso Filho derramou por nós. Resplandeça vossa misericórdia em meio a essa maldade tão grande; vede, Senhor, que somos criaturas vossas. Valha-nos vossa bondade e misericórdia.
IX
1. Ó piedoso e amoroso Senhor de minh’alma! Também dizeis: Vinde a mim todos os que tendes sede, que eu vos darei de beber.1 E como pode deixar de ter grande sede aquele que está ardendo em vivas chamas na cobiça dessas coisas miseráveis da terra? Ele tem enorme necessidade de água para não se consumir por inteiro nela. Eu já conheço Vossa bondade, Senhor meu, e sei que lhe dareis; Vós mesmo o dizeis e vossas palavras não podem falhar. Porque, se devido ao costume de viver nesse fogo e por serem criados nele, já não o sentem nem dele se dão conta, tão desatinados estão, não percebendo sua grande necessidade, que remédio existe, Deus meu?
Viestes ao mundo para remediar necessidades tão difíceis quanto estas. Começai, Senhor: nas coisas mais difíceis se há de mostrar vossa piedade. Vede, Deus meu, que vossos inimigos têm ganho muito. Tende piedade dos que não a têm de si, já que sua desventura os deixa em tal condição que não querem vir a Vós, vinde Vós a eles, Deus meu. Eu Vo-lo peço em seu nome e sei que, se se entenderem e caírem em si, começando a gostar de Vós, esses mortos ressuscitarão.
2. Ó vida, que a dais a todos! Não me negueis essa água dulcíssima que prometeis aos que a querem. Eu a quero, Senhor, e Vos peço, venho a Vós. Não Vos escondais de mim, Senhor, pois sabeis da minha necessidade e que ela é o verdadeiro remédio para a alma chagada por Vós. Oh, Senhor, quantas espécies de fogo há nesta vida! Oh, com quanta razão se há de viver com temor! Uns consomem a alma, outros a purificam para que vivam para sempre gozando de Vós. Ó fontes vivas das chagas do meu Deus, jorrareis eternamente com grande abundância para aplacar a nossa sede, e quão seguro estará, diante dos perigos desta vida, aquele que procurar manter-se com esse divino licor!
X
1. Ó Deus de minha alma, como nos apressamos em Vos ofender, e como Vos apressais ainda mais em nos perdoar! Qual a causa de tão desatinado atrevimento? Será o termos entendido vossa grande misericórdia e termos esquecido de que é justa vossa justiça?
Cercaram-me as dores da morte.1 Oh! oh! oh! que grave coisa é o pecado, pois bastou para matar a Deus com tantas dores! E quão cercado estais, meu Deus, deles! Onde podeis ir sem que eles Vos atormentem? Em toda parte os mortais Vos causam feridas.
2. Ó cristãos, é chegado o momento de defender vosso Rei e acompanhá--Lo em tão grande solidão. Pois são muito poucos os vassalos que Lhe restaram e grande a multidão que acompanha Lúcifer. E o pior é que se mostram amigos em público e o vendem em segredo; quase não há em quem se fiar. Ó amigo verdadeiro, quão mal Vos paga o que é traidor! Ó cristãos verdadeiros, ajudai vosso Deus a chorar, porque não são só por Lázaro essas lágrimas,2 mas pelos que não haveriam de querer ressuscitar mesmo que Sua Majestade os chamasse em altos brados.
Ó bem meu, como tínheis presentes as faltas que cometi contra Vós! Que elas se acabem, Senhor, que estejam acabadas, bem como as de todos. Ressuscitai esses mortos; que Vossas vozes sejam tão fortes que, mesmo que eles não Vos peçam vida, Vós lha deis para que depois, Deus meu, saiam da profundidade de seus deleites.
3. Lázaro não Vos pediu que o ressuscitásseis; tu o fizestes por uma mulher pecadora. Vede-a aqui, Senhor, e muito mais pecadora. Que vossa misericórdia resplandeça. Eu, embora miserável. Vos peço por aquelas que não Vo-lo querem pedir. Já sabeis, Rei meu, o quanto me atormenta vê-los tão esquecidos dos grandes tormentos que hão de padecer eternamente se não se voltarem para Vós.
Ó vós que estais acostumados a deleites, contentamentos e regalos, tende piedade de vós mesmos! Recordai-vos de que tereis de estar sempre sujeitos, eternamente, às fúrias infernais. Vede, vede, que vos roga agora o Juiz que vos há de condenar e que não tendes a vida segura em nenhum momento. Por que não quereis viver para sempre? Ó dureza dos corações humanos! Abrande-os a Vossa imensa piedade, meu Deus!
XI
1. Ó, valha-me Deus, valha-me Deus! Que grande tormento é para mim considerar o que vai sentir uma alma que sempre foi considerada, querida, servida, estimada e regalada aqui na terra quando, acabando de morrer, se vir perdida para sempre e entender com clareza que aquilo não há de ter fim (porque ali não vai lhe valer a recusa em pensar nas coisas da fé, como faz aqui) e se vir afastada do que lhe parecerá que ainda não tinha começado a gozar (e com razão, porque tudo o que se acaba com a vida é como um sopro), bem como ao ver-se rodeadas de companheiros disformes e impiedosos com os quais há de padecer mergulhada no lago hediondo cheio de serpentes (que quanto maiores tanto mais sofrimentos vão lhe infligir), na miserável escuridão em que só verá o que lhe vai causar tormento e pesar, e apenas a luz de uma chama tenebrosa! Ó, quão aquém da real dimensão disso é esta descrição!
2. Ó Senhor, quem pôs tanta lama nos olhos da alma para que ela não enxergue isso antes de estar nessa situação? Ó Senhor, quem lhes tapou os ouvidos para não escutarem as muitas vezes em que se fala disso e a eternidade desses tormentos? Ó vida que não se acabará! Ó padecer sem fim! Ó padecer sem fim! Como podem não Vos temer os que temem dormir numa cama dura para não maltratar o corpo?
3. Ó Senhor, Deus meu! Choro o tempo em que não o entendi. E como sabeis, meu Deus, o quanto me aflige ver os muitos que não o querem entender, permiti que ao menos um, um pelo menos, por quem agora Vos peço alcance a luz para que a tenham muitos. Não peço por mim, Senhor, porque não o mereço, mas pelos méritos do vosso Filho. Vede Suas chagas, Senhor, e como Ele perdoou as que lhe foram infligidas, perdoai-nos.
XII
1. Ó meu Deus e minha verdadeira fortaleza! Que é isso, Senhor, que para tudo somos covardes, menos para ir contra Vós? Aqui se empregam todas as forças dos filhos de Adão. E se a razão não estivesse tão cegas, não bastariam as de todos juntos para terem o atrevimento de tomar armas contra o seu Criador e sustentar guerra contínua contra quem os pode lançar num átimo nos abismos. Mas como há essa cegueira, eles ficam como loucos, buscando a morte, porque em sua imaginação eles julgam que com isso ganham a vida. Enfim, agem como gente sem razão.
Que podemos fazer, Deus meu, aos que estão com essa enfermidade de loucura? Dizem que esse mesmo mal os faz ter muita força. E assim são os que se afastam de Vós: gente enferma, porque toda a sua fúria se volta para Vós, Aquele que mais bem lhes fazeis.
2. Ó Sabedoria que não se pode comprender! Como foi necessário todo o amor que tendes a vossas criaturas para suportardes tanto desatino! Para aguardar que saremos, procurando promovê-lo de mil maneiras e com mil remédios! Muito espantada fico ao considerar que falta o esforço para conseguirem uma coisa muito pequena e como verdadeiramente se convencem de que não podem, ainda que quisessem, livrar-se de uma ocasião e afastar--se de um perigo em que perdem a alma, ao mesmo tempo em que têm esforço e ânimo para lançar ataques a uma Majestade tão excelsa como sois.
Que é isso, bem meu, que é isso? Quem lhes dá essas forças? Por acaso o capitão a quem seguem nessa batalha contra Vós não é vosso servo e está posto em fogo eterno? E como se levanta contra Vós? Como dá ânimo ao vencido? Como seguem quem é tão pobre, já que privado das riquezas celestiais? Que pode dar quem nada tem para si, a não ser muita desventura? Que é isso, meu Deus? Que é isso, meu Criador? De onde vêm essas forças contra Vós e tanta covardia contra o demônio? Ainda se Vós não favorecêsseis aos vossos, Príncipe meu, mesmo que devêssemos algo a esse príncipe das trevas, não valeria a pena segui-lo diante do que Vós tendes reservado para nós, vendo-se todos os gozos e promessas falsos e traidores dele. Que poderá fazer conosco quem se opõe a Vós?
3. Oh grande cegueira, Deus meu! Oh que grande ingratidão meu Rei! Oh que incurável loucura servirmos ao demônio com aquilo que nos dais, Deus meu! Pagarmos o grande amor que nos tendes com amar quem vos aborrece e há de aborrecer para sempre! Diante do sangue que derramastes por nós, dos grandes açoites e sofrimentos que suportastes e dos imensos tormentos por que passastes, em vez de vingarmos vosso Pai Eterno (já que Vós não quereis vingança e perdoastes o grande desacato com que trataram vosso Filho), termos por companheiros e amigos os que assim O trataram! Porque seguimos seu capitão infernal, ficando claro que temos de ser todos um e viver para sempre em sua companhia, a não ser que vossa piedade nos remedie, devolvendo-nos o juízo e perdoando-nos o passado.
4. Ó mortais, recuperai, recuperai os sentidos! Contemplai vosso Rei, pois agora O encontrareis manso; acabe-se já a maldade; voltem-se vossas fúrias e forças contra quem vos faz a guerra e vos quer tirar vossos direitos. Voltai, voltai à razão, abri os olhos, pedi com grandes clamores e lágrimas luz a quem a deu ao mundo. Entendei-vos, pelo amor de Deus, pois ides matar com todas as vossas forças Aquele que, para vos dar vida, perdeu a Sua; vede que é Ele quem vos defende dos vossos inimigos.
E se tudo isso não bastar, baste-vos reconhecer que nada podeis contra Seu poder e que, cedo ou tarde, havereis de pagar com o fogo eterno tão grande desacato e atrevimento. É porque vedes essa Majestade tão atada e ligada com o amor que nos tem? Que mais faziam aqueles que Lhe deram a morte senão, depois de tê-lo atado, dar-Lhe golpes e feri-Lo?
5. Ó, meu Deus, como padeceis por quem tão pouco se condói de vossos sofrimentos! Tempo virá, Senhor, em que se haverá de dar a entender vossa justiça e se é igual à vossa misericórdia. Vede, cristãos, consideremos bem, e jamais poderemos acabar de compreender o que devemos a Nosso Senhor Deus, nem as magnificências de Suas misericórdias. Pois se for tão imensa a sua justiça, ó dor, ó dor, que será dos que tiverem merecido que ela se execute e resplandeça neles?
XIII
1. Ó almas que já gozais sem temor do vosso gozo e estais sempre embebidas em louvores a meu Deus! Venturosa foi a vossa sorte. Que grande razão tendes para vos ocupardes sempre desses louvores e que inveja tem de vós a minha alma, visto já estardes livres da dor que provocam as tão grandes ofensas que se fazem nesses desventurados tempos a meu Deus, e de ver tanta ingratidão, bem como a multidão de almas, que não se quer ver, levada por Satanás. Ó bem-aventuradas almas celestiais! Ajudai a nossa miséria e intercedei por nós diante da Misericórdia Divina, para que nos seja dado algo do vosso gozo e para que seja repartido conosco um pouco desse claro conhecimento que tendes.
2. Dai-nos, Deus meu, a entender o que é dado aos que lutam varonilmente no sonho que é esta miserável vida. Fazei, ó almas que amais, que possamos entender o gozo que vos dá ver a eternidade dos vossos gozos e como é coisa deleitosa o ter certeza de que não se hão de acabar. Ó, Senhor meu, desventurados de nós! Bem o sabemos e cremos, mas, com o hábito tão difundido de não as considerarmos, essas verdades já se tornaram estranhas às almas, que não as conhecem nem as querem conhecer.
Ó gente interesseira, cobiçosa de seus gostos e deleites, gente que, por não esperarem um breve tempo e os gozarem em tanta abundância, por não esperarem um ano, por não esperarem um dia, por não esperarem uma hora, que talvez não sejam mais do que um momento, perdem tudo para gozar daquela miséria que têm diante de si!
3. Oh! Oh! Oh! Quão pouco confiamos em Vós, Senhor! Quantas riquezas e tesouros nos confiastes, já que por trinta e três anos cheios de grandes sofrimentos, rematados por morte tão intolerável e lastimável, nos destes vosso Filho, e tantos anos antes do nosso nascimento! E mesmo sabendo que não iríamos pagar, não quisestes deixar de nos confiar tesouro tão inestimável, para não serdes Vós a causa de não ganharmos aquilo que, granjeando com Ele, poderemos obter Convosco, pai piedoso.
4. Ó almas bem-aventuradas que tão bem soubestes aproveitar e adquirir herdade tão deleitosa e permanece com esse precioso preço! Dizei-nos: como granjeastes com Ele bem tão sem fim? Ajudai-nos, pois estais bem perto da fonte; colhei água para que nós não pereçamos aqui de sede.
XIV
1. Ó Senhor e verdadeiro Deus meu! Quem não Vos conhece não Vos ama! Oh que grande verdade é essa! Mas, ó dor, ó dor, Senhor, dos que não Vos querem conhecer! Temível coisa é a hora da morte. Mas, ai, ai, Criador meu, quão espantoso será o dia em que se haja de executar a vossa justiça! Muitas vezes considero, Cristo meu, quão saborosos e deleitosos se mostram vossos olhos a quem Vos ama e a quem Vós, bem meu, quereis olhar com amor. Parece-me que às almas que tender por vossas basta um só desse olhar suave como recompensa por muitos anos de serviço. Oh, valha-me Deus, quão mal se pode explicar isso a não ser a quem compreendeu quão suave é o Senhor!1
2. Ó Cristãos, cristãos! Vede a irmandade que tendes com esse grande Deus; conhecei-o e não o deprecieis, porque assim como é agradável para os que O amam, esse olhar é terrível, cheio de fúria espantosa, para os que O perseguem. Oh, não entendemos que o pecado é uma guerra campal de todos os sentidos e faculdades da alma contra Deus! Quem mais pode mais traições inventa contra seu Rei. Já sabeis, Senhor meu, que muitas vezes me causava mais temor imaginar que veria o vosso divino rosto irado comigo nesse espantoso dia do Juízo Final do que todas as penas e furores do inferno que me surgiam em mente; e eu Vos suplicava que me valesse vossa misericórdia contra coisas tão lastimosas para mim; e é isso que Vos suplico agora, Senhor!
Que me pode suceder na terra que equivalha a isso? Tudo junto aceito, meu Deus, mas livrai-me de tão grande aflição. Que eu não deixe, Deus meu, não deixe de gozar em paz tanta formosura. Vosso Pai deu-Vos a nós; não perca eu, Senhor meu, jóia tão preciosa. Confesso, Pai Eterno, que a tenho guardado mal, mas ainda há, Senhor, remédio, remédio há, enquanto vivermos neste desterro.
3. Ó irmãos, ó irmãos e filhos desse Deus! Esforcemo-nos, pois sabeis o que disse Sua Majestade: se nos arrependermos de O ter ofendido, Ele não se recordará de nossas culpas e maldades.2 Ó piedade tão sem medida! Que mais queremos? Por acaso há quem não tivesse vergonha de pedir tanto? Esta é a hora de tomar o que nos dá esse Senhor tão piedoso e Deus nosso. Ele quer amizade. Quem a negará a quem não se recusou a derramar todo o seu sangue e a perder a vida por nós? Vede: o que Ele pede não é nada; para nosso proveito vale a pena fazê-lo.
4. Oh, valha-me Deus, Senhor. Que dureza! Que desrazão e cegueira! Que nos aflija perder uma coisa, uma agulha ou um gavião — que não serve para nos dar gosto o vê-lo cortar o ar —, e não nos afete o perdermos a águia real da majestade de Deus e um reino cuja fruição não há de ter fim! Que é isso? Que é isso? Não o entendo. Remediai, Deus meu, tão grande desatino e cegueira.
XV
1. Ai de mim, ai de mim, Senhor, que é muito longo este desterro, e é passado com grandes penas com o desejo de meu Deus. Senhor, que fará uma alma atirada neste cárcere? Ó Jesus, longa é a vida do homem, embora se diga que é breve! Breve é, meu Deus, para ganharmos com ela a vida que não pode acabar; mas demasiado longa para a alma que deseja ver-se na presença do seu Deus. Que remédio dais a esse padecer? Não há remédio, a não ser que se sofra por Vós.
2. Oh, meu suave descanso dos que amam o meu Deus! Não falteis a quem Vos ama, porque por Vós há de crescer e mitigar-se o tormento que o Amado causa à alma que o deseja. Desejo eu, Senhor, contentar-Vos. Mas bem sei que o meu contentamento não está em nenhum dos mortais. Sendo assim, não me culpareis pelo meu desejo. Eis-me aqui, Senhor; se é necessário viver para Vos prestar algum serviço, não recuso todos os sofrimentos que me possam vir da terra, como dizia vosso amador São Martinho.1
3. Mas, ó dor, ó dor que tenho de mim!, porque ele tinha obras e eu tenho só palavras, pois não valho para mais! valham meus desejos, Deus meu, diante de vosso divino beneplácito, e não atentai para o meu pouco merecimento. Mereçamos todos amar-Vos, Senhor; já que se tem de viver, viva-se para Vós, acabem-se já os desejos e interesses nossos.
Que coisa maior se pode ganhar além de Vos contentar? Oh contentamento meu e Deus meu! Que farei para Vos contentar? Miseráveis são meus serviços, ainda que prestasse muitos ao meu Deus. Pois para que tenho de estar nesta miserável miséria? Para que se faça a vontade do Senhor. Que ganho maior, alma minha? Espera, espera, pois não sabes quando virá o dia nem a hora.2 Vigia com cuidado, que tudo se passa com brevidade, embora o teu desejo torne o certo duvidoso e o tempo breve longo. Vê que quanto mais pelejares tanto mais mostrarás o amor que tens ao teu Deus e tanto mais gozarás com teu Amado com um prazer e um deleite que não podem ter fim.
XVI
1. Ó verdadeiro Deus e Senhor meu! Grande consolo é para alma a quem aflige a solidão de estar ausente de Vós ver que estais em toda parte. Mas quando aumenta a intensidade do amor e dos grandes ímpetos dessa pena, de que adianta, Deus meu? Porque então o intelecto fica perturbado e a razão se esconde para conhecer essa verdade, de modo que não se pode compreender nem conhecer. A única coisa que a alma sabe é estar afastada de Vós; e nenhum remédio admite, já que o coração que muito ama não aceita conselho nem consolo, a não ser que venham de quem o feriu — espera que daí venha o remédio para o seu padecer. Quando quereis, Senhor, cedo curais a ferida que fizestes. Antes disso, não se há de esperar saúde nem gozo, exceto os que vêm de um sofrimento tão bem empregado.
2. Ó verdadeiro Amador, com quanta suavidade, com quanto deleite, com quanto regalo e com quantas mostras de amor curais essas chagas, feitas por Vós com as próprias setas do amor! Ó Deus meu e descanso de todas as minhas penas, quão desatinada me encontro! Como poderia haver meios humanos para curar quem se vê adoentado pelo fogo divino? Quem há de saber o alcance dessa ferida, de onde procedeu ou como é possível aplacar tão penoso e deleitoso tormento?
Seria um contra-senso que mal tão precioso pudesse ser sanado por coisa tão baixa como os meios a que podem recorrer os mortais? Com quanta razão diz a Esposa nos Cânticos: Meu bem-amado é meu e eu dele.1 Porque semelhante amor não pode ter como início coisa tão ínfima como o meu.
3. Mas se é baixo, Esposo meu, porque não pára em coisa criada até chegar ao seu Criador? Ó, meu Deus! Porque e eu dele? Vós, meu verdadeiro amador, começais essa guerra de amor, já que outra coisa não parece um desassossego e desamparo que alcançam” toas as faculdades e sentidos, que saem pelas praças e pelos bairros pedindo às filhas de Jerusalém que digam onde está o seu Deus.2
E então, Senhor, começada essa batalha, a quem haverão de combater senão quem se fez senhor da fortaleza em que moravam, que é a mais importante da alma, que os lançou fora dela para que voltassem a conquistar o seu conquistador? E as almas, já cansadas de se verem sem Ele, logo se dão por vencidas e, perdendo todas as suas forças, se empenham e lutam melhor e, ao se darem por vencidas, vencem o seu Vencedor.
4. Ó alma minha, que batalha tão admirável travaste neste padecer e como isso se passa bem ao pé da letra! Pois se meu bem-amado é meu e eu dele, quem se atreverá a separar e a extinguir dois fogos tão acesos? Tentá--los é esforçar-se em vão, pois esses fogos já se tornaram um só.
XVII
1. Ó Deus meu e minha sabedoria infinita, sem medida, sem limites, acima de toda a compreensão angélica e humana! Ó Amor que me amais mais do que posso amar a mim mesma, ou compreender! Para que quero, Senhor, desejar mais do que me dais? Para que me cansar em pedir-Vos coisa ordenada pelo meu desejo se tudo quanto o meu intelecto pode alcançar e meu desejo desejar já teve os seus fins entendidos por Vós, enquanto eu não sei como aproveitar isso?
Talvez naquilo em que a minha alma pensa ganhar esteja a minha perdição. Porque se Vos peço que me livreis de um sofrimento cujo fim é minha mortificação, o que estou pedindo, Deus meu? Se Vos suplico que mo deis, talvez não convenha à minha paciência, que ainda é fraca e não pode suportar tão rude golpe. E se o suporto com paciência mas não estou forte na humildade, posso pensar que fiz algo, quando Vós é Quem tudo fazeis, meu Deus. Se desejo padecer mais, não o desejaria, contudo, em coisas que não pareçam convenientes ao vosso serviço perder o crédito, visto que, de minha parte, não há sentimento de honra, além de ser possível que da mesma causa em que penso que se há de perder se ganhe mais para aquilo que pretendo, que é Vos servir.
2. Muitas coisas mais eu poderia dizer sobre isso, Senhor, para dar a entender a mim mesmo que não me entendo. Mas como sei que Vós o entendeis, para que falo? Para ver se, quando a minha miséria se revelar, Deus meu, e minha razão ficar cega, eu o possa encontrar escrito aqui com as minhas mãos. Pois muitas vezes me vejo, meu Deus, tão miserável, fraca e pusilânime que me ponho a procurar aquela vossa serva que já julgava ter recebido de Vós graças suficientes para enfrentar todas as tempestades deste mundo. Não, meu Deus, não; não mais confiarei em coisas que eu possa querer para mim. Querei de mim o que quiserdes, porque isso quero, pois todo o meu bem está em Vos contentar. E se Vós, Deus meu, contentar-me, realizando tudo o que pede o meu desejo, vejo que estaria perdida.
3. Que miserável é a sabedoria dos mortais, e incerta sua providência!1 Provede pela vossa os meios necessários para que a minha alma Vos sirva mais ao vosso gosto do que ao seu. Não me castigueis dando-me o que quero e desejo se vosso amor (que em mim viva sempre) não o desejar. Morra já esse eu, e viva em mim outro que é mais do que eu e, para mim, melhor do que eu, para que eu O possa servir. Que Ele viva e me dê vida; reine, sendo eu a cativa, pois minha alma não quer outra liberdade. Como será livre quem estiver distante do Sumo Bem? Que maior e mais miserável cativeiro pode haver do que estar a alma solta das mãos do seu Criador? Ditosos os que, com fortes grilhões e correntes dos benefícios da misericórdia de Deus, se virem presos e incapacitados a fim de serem poderosos para se soltarem. Forte como a morte é o amor, e duro como o inferno.2
Ó, quem se visse já morto às vossas mãos e arrojado nesse divino inferno de onde já não esperasse poder sair, ou melhor, já não temesse ver-se expulso! Mas, ai de mim, Senhor! Enquanto dura esta vida mortal, a vida eterna sempre corre perigo!
4. Ó vida inimiga do meu bem, quem tivesse permissão para acabar contigo! Suporto-te, porque Deus te suporta; mantenho-te porque és Dele; não me traias nem seja ingrata a mim.
Apesar disso tudo, ai de mim, Senhor, quão longo é o meu desterro!3 Breve é todo o tempo para dá-lo por vossa eternidade; muito longo é um só dia, e mesmo uma hora, para quem não sabe e teme Vos ofender. Ó livre arbítrio, tão escravo de tua liberdade se não viveres ancorado no temor e no amor de quem te criou! Ó quando virá o ditoso dia em que te hás de ver afogado no mar infinito da Suma Verdade, onde já não serás livre para pecar nem o quererás ser, porque estarás protegido de toda miséria, familiarizado com a vida do teu Deus!
5. Ele é bem-aventurado porque Se conhece, Se ama e goza a Si mesmo, sem ser possível outra coisa; não tem nem pode ter, nem seria perfeição Divina, liberdade para esquecer-Se de Si mesmo e deixar de Se amar. Então, alma minha, entrarás em teu descanso quando te entranhares nesse Sumo Bem e entenderes o que Ele entende, amares o que ama e gozares do que goza. Quando tiveres perdido tua mutável natureza, deixarão de haver mudanças; porque a graça de Deus terá podido tanto que te fez partícipe de Sua divina natureza,4 e com tamanha perfeição que já não poderás nem quererás poder esquecer-te do Sumo Bem nem deixar de gozá-Lo juntamente com o Seu amor.
6. Bem-aventurados os que estão inscritos no livro desta vida.5 Mas tu, alma minha, se o estás, porque estás triste e me perturbas? Espera em Deus, que ainda agora confessarei a Ele meus pecados e reconhecerei Suas misericórdias.6 E, de tudo junto, farei um cântico de louvor com suspiros perpétuos a meu Salvador e Deus. Pode ser que venha algum dia em que eu Lhe cante a minha glória,7 e que a minha consciência, na qual já terão cessado todos os suspiros e medos, não seja compungida. Nesse momento, a minha força estará na esperança e no silêncio.8
Mas quero viver e morrer aspirando e pretendendo a vida eterna, que possuir todas as criaturas e todos os seus bens, que haverão de se acabar. Não me desampares, Senhor, porque em Ti espero; que a minha esperança não seja confundida.9 Que eu Te sirva sempre, e faz de mim o que quiseres.
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