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terça-feira, 17 de novembro de 2009

cap 20 a 29

Capítulo 20

Trata da diferença entre união e arroubo. Explica o que é o arroubo e fala do bem que a alma que o Senhor, pela sua bondade, aproxima de Si obtém. Fala dos efeitos que isso produz. Isso é de causar muita admiração.1

1. Eu queria saber explicar, com o favor de Deus, a diferença que há entre união e arroubo, ou enlevo, ou vôo que chamam de espírito, ou arrebatamento, que são uma coisa só. Digo que esses diferentes nomes se referem a uma só coisa, que também se chama êxtase.2 É grande a vantagem que ele tem diante da união. Produz efeitos muito maiores e vários outros benefícios, porque a união parece ser igual no início, no meio e no fim, e o é no interior; mas esses outros fins alcançam um grau mais alto, manifestando-se seus efeitos tanto interior como exteriormente. Que o Senhor o declare como o fez com as outras coisas, pois, por certo, se Sua Majestade não me tivesse dado a entender os modos e formas de dizer, eu não o saberia.

2. Consideremos agora o fato de que esta última água é tão abundante que, se a terra o permitisse, poderíamos crer que já se encontra conosco a nuvem da grande Majestade. Mas quando Lhe agradecemos por esse bem enorme, fazendo obras de acordo com as nossas forças, o Senhor nos colhe a alma tal como as nuvens colhem os vapores da terra, afastando-a por inteiro desta.3 E a nuvem vai ao céu, levada pelo Senhor, que começa a lhe mostrar as coisas do reino que tem preparado para ela. Não sei se a comparação é adequada, mas na verdade é assim que acontece.

3. Nesses arroubos, parece que a alma não anima o corpo, que sente faltar-lhe o calor natural; ele vai se esfriando, embora com uma enorme suavidade e deleite. Aqui, não há como resistir, ao contrário da união, em que ficamos em nosso próprio terreno, podendo quase sempre, mesmo que com sofrimentos e esforços, resistir; nos arroubos, na maioria das vezes, isso não é possível, pois eles amiúde surgem sem que penseis nem coopereis, vindo como um ímpeto tão acelerado e forte que vedes e sentis uma nuvem ou águia possante levantar-se e colher-vos com suas asas.

4. E digo que percebeis e vos vedes levados, sem saber aonde; porque, mesmo com júbilo, a fraqueza que é nosso natural no início nos causa temor, sendo necessária uma alma determinada e corajosa — muito mais do que para o que eu já falei — que arrisque tudo, ocorra o que ocorrer, entregando--se nas mãos de Deus e indo de bom grado para onde for levada, visto que, mesmo resistindo, é levada.

Isso acontece de maneira tão forte que muitas vezes tentei resistir, empregando todas as minhas forças, especialmente em situações públicas, e também estando a sós, pois temia ser enganada; algumas vezes eu conseguia, mas com grande prostração, como quem combateu um forte gigante, ficando depois exausta; outras, eu não o podia: a alma era arrebatada e quase sempre levava a cabeça atrás de si, sem que eu pudesse controlar, havendo ocasiões em que o corpo inteiro ficava suspenso do chão.

5. Isso ocorreu poucas vezes, como certa feita em que estávamos juntas no coro, indo comungar; eu estava ajoelhada e fiquei muito pesarosa, pois me parecia uma coisa muito extraordinária que logo haveria de chamar muita atenção; assim, mandei que as monjas (pois isso se passou depois que assumi o ofício de Priora) não o revelassem. Mas outras vezes, ao perceber que o Senhor ia fazer isso (e, numa delas, na presença de importantes senhoras, pois era a festa da Vocação,4 durante um sermão), eu me estendia no chão, e as irmãs me rodeavam para segurar meu corpo, mas isso não passava despercebido. Supliquei muito ao Senhor que não quisesse mais me conceder graças que tivessem mostras exteriores; porque eu estava cansada de andar com tanta cautela, podendo Sua Majestade conceder-me esse favor sem que os outros o percebessem. Parece que Ele, pela Sua bondade, dignou-se ouvir-me, porque, até agora, isso não voltou a acontecer; é verdade que faz pouco tempo.5

6. Parecia-me, quando eu queria resistir, que se erguiam sob os meus pés forças tão grandes que não sei como explicar, forças muito mais impetuosas do que as presentes em outras coisas do espírito. E eu ficava em pedaços, porque grande é a luta e pouco o seu proveito, porque, quando o Senhor quer, nada se opõe ao Seu poder. Há ocasiões em que Ele se contenta em nos mostrar que deseja nos conceder uma graça e que não faltará; se resistirmos por humildade, Ele produzirá os mesmos efeitos que produziria caso o consentíssemos.

7. São grandes esses efeitos: um deles6 é a demonstração do grande poder do Senhor, a lição de que, quando Sua Majestade o quer, não controlamos o corpo nem a alma, nem somos senhores deles; verificamos que, a despeito de nós, há uma coisa superior, essas graças são dadas por Ele e nada podemos fazer — o que nos traz grande humildade. E eu confesso que tive muito medo e, no princípio, um enorme medo, por ver o corpo se levantar da terra, levado pelo espírito com grande suavidade, quando não se resiste. Não se perdem os sentidos; eu ao menos ficava num estado em que podia perceber que era arrebatada. Mostra-se tão bem a majestade de Quem pode fazer aquilo que os cabelos se arrepiam, ficando um grande temor de ofender a Deus tão grandioso; esse temor vem envolto num enorme amor por Aquele que ama tanto um verme tão podre a ponto de dar a impressão de que não se contenta em levar a alma a Si, querendo levar também o corpo, mesmo sendo este tão mortal e de terra tão suja — pois assim se tornou por causa de suas muitas ofensas.

8. O arroubo deixa também um estranho desapego, que não sei descrever. Acho que posso dizer que é diferente, isto é, maior do que as outras coisas do espírito; porque, embora estas provoquem o desprendimento de todas as coisas no campo do espírito, no desapego o Senhor parece querer que o corpo também seja envolvido, o que cria uma nova estranheza diante das coisas da terra, tornando a vida muito penosa.

9. Depois ele nos traz um tormento que não podemos criar por nós mes­mos nem, quando acontece, evitar. Eu queria muito explicar esse sofrimen­to tão grande, mas acho que não conseguirei, embora vá dizer alguma coisa. É bom notar que essas coisas7 são recentes, vindo depois de todas as visões e revelações de que vou falar; no tempo em que costumava ter oração, época em que o Senhor me dava grandes consolos e alegrias, bem como agora, já que isso não parou, o mais comum é que venha esse sofrimento de que vou falar. Ele pode ser maior ou menor. Falo agora de quando ele é maior, falando adiante8 dos grandes ímpetos que me acometiam quando o Senhor queria me conceder os arroubos. A dor que eu então sentia em nada se parece com o tormento de que falo agora, distinguindo-se como se distingue uma coisa muito corporal de uma muito espiritual, e creio que não exagero. De fato, o primeiro sofrimento é sentido pela alma, mas esta está acompanhada do corpo e parece que os dois o dividem, não havendo o extremo desamparo de que agora falo.

O segundo sofrimento, como eu disse, não tem a nossa participação; mui­tas vezes, vem de repente um desejo cuja origem não se sabe, desejo que pe­netra a alma por completo, começando a fatigá-la a tal ponto que ela se eleva acima de si mesma e de toda a criação; Deus a deixa tão isolada de to­das as coisas que, por mais que a alma trabalhe, parece-lhe que não há na ter­ra quem a acompanhe, nem ela o queria, desejando apenas morrer naquela solidão. Se alguém lhe fala, ela não pode responder, por mais que se esforce, pois o seu espírito não sai dessa solidão. Embora pareça estar muito longe, Deus às vezes lhe comunica Suas grandezas do modo mais estranho que se pode imaginar; assim, não9 se sabe explicar, nem creio que acredite nisso ou o entenda quem não teve a experiência; porque a comunicação não vem consolar, mas mostrar a razão que a alma tem de afligir-se por estar distante do bem que contém em si todos os bens.

10. Crescem com essa comunicação o desejo e a extrema solidão em que a alma se vê, com um pesar tão sutil e penetrante que ela pode dizer ao pé da letra, como se estivesse no deserto (e o disse, na mesma solidão, o real Profeta, que, sendo santo, teve a permissão do Senhor para senti-la de maneira mais extrema): Vigilavi, et factus sum sicut passer solitarius in tecto.10 Assim, vem-me à memória esse verso, e pareço vê-lo realizado em mim, vindo o meu consolo do pensamento de que outras pessoas sentiram essa solidão em tão alto grau. Tem-se a impressão de que a alma não está em si, mas no telhado de si mesma e de toda a criação, e até acima da parte superior de seu espírito.

11. Outras vezes, parece que a alma tem extrema necessidade de Deus, dizendo e perguntando a si mesma: Onde está o teu Deus?11 Devo observar que eu não sabia bem o significado desses versos em romance e, quando pude entendê-lo, consolei-me por ver que o Senhor os tinha trazido à minha memória sem que eu o procurasse. Outras vezes, eu me lembrava de que São Paulo disse que estava crucificado para o mundo.12 Não digo que estou assim, pois bem vejo que não é verdade; mas a alma parece não ter consolo do céu nem estar nele, ao mesmo tempo que não mais habita a terra, cujo consolo não quer; ela parece estar crucificada entre o céu e a terra. Com efeito, o que vem do céu (que é, como eu já disse,13 uma notícia tão admirável de Deus que supera tudo quanto possamos desejar) lhe causa mais tormento, visto aumentar tanto o desejo que às vezes priva a alma dos sentidos, embora por pouco tempo.

Esse sofrimento é semelhante às agonias da morte, mas traz em si tamanho contentamento que não tenho termos de comparação. É um duro martírio delicioso, pois tudo o que é oferecido à alma, mesmo o que costumava agradá-la, é recusado por ela, que não admite nenhuma coisa da terra. Ela bem entende que só deseja o seu Deus; mas não ama uma coisa particular dele, desejando-O por inteiro, e não sabe o que quer. Digo “não sabe” porque a imaginação nada lhe apresenta. Acho até que as suas faculdades não agem em grande parte do tempo em que ela está assim. A dor as suspende, assim como o júbilo o faz na união e no arroubo.

12. Ó Jesus! Gostaria que houvesse alguém que o pudesse explicar a vossa mercê,14 ao menos para que me dissesse o que é, pois assim se encontra sempre a minha alma. De maneira geral, estando desocupada, ela fica com essas ânsias de morte e tem medo, quando vê que elas começam, porque sabe que não vai morrer; mas, quando fica nesse estado, gostaria de viver nesse sofrimento, embora ele seja tão excessivo que mal consigo suportá-lo, o que às vezes me faz perder o pulso quase inteiramente, como dizem as irmãs que se aproximam de mim e que já compreendem melhor a minha situação. Fico com os braços muito abertos e com as mãos tão rígidas que às vezes não con­sigo juntá-las; fico com dor nos pulsos e no corpo, como se estivessem desconjuntados, até o dia seguinte.

13. Penso que numa dessas vezes o Senhor será servido, se tudo continuar assim, em me tirar a vida, pois, a meu ver, esse grande sofrimento é ca­paz disso, embora eu não o mereça. Nesses momentos, só tenho o desejo de que isso aconteça; não me lembro do purgatório, nem dos grandes pecados que cometi, pelos quais mereceria o inferno. Esqueço tudo no anseio de ver a Deus; e o deserto e a solidão me parecem melhores do que toda a companhia do mundo. Se algo poderia consolar a alma, esse algo seria falar com quem já tivesse passado por esse tormento; mas, embora ela se queixe disso, parece-lhe que ninguém vai lhe dar crédito.

14. Outra fonte de tormento é que, diante de dor tão intensa, a alma não de­seja a solidão como antes e só quer a companhia de alguém a quem possa quei­xar-se. É como se estivesse sendo enforcada e procurasse tomar fôlego. Creio que essa vontade de ter companhia vem da nossa fraqueza, porque o so­frimento como que nos expõe a um perigo mortal (como já estive várias vezes exposta a esse perigo, quando tive graves enfermidades e em outras situações, co­mo falei,15 creio que posso afirmar que esse sofrimento é tão grande quanto qual­quer outro). O desejo que o corpo e a alma têm de não se separarem é a cau­sa do pedido de socorro para tomar fôlego; queremos narrar o nosso sofrimen­to, queixar-nos e distrair-nos, buscando conservar a vida, bem contra a vontade do espírito ou da parte superior da alma, que não deseja sair desse penar.

15. Não sei se percebo a verdade ou se sei explicá-lo, mas, pelo que percebo, assim acontece. Veja vossa mercê que descanso pode a alma ter nesta vida, porque o que tinha — a oração e a solidão, que atraíam o consolo do Senhor — agora se tornou, quase sempre, este tormento, que é, porém, tão saboroso e, reconhece a alma, de preço tão alto que ela passa a desejá-lo, preferindo-o, ainda assim, a todas as consolações anteriores. Ela o julga mais seguro por ser o caminho da cruz, que traz em si um gosto de muito valor, porque o corpo só participa do sofrimento, e a alma é quem padece, mas saboreia sozinha o prazer e o contentamento que vêm dessa dor.

Ignoro como isso pode ser dessa maneira, mas de fato acontece assim; acho que não trocaria essa graça dada pelo Senhor (porque bem16 de Sua mão — como eu disse —, pois nada fiz para consegui-lo, por ser ele deveras sobrenatural) por todas aquelas de que falarei; não digo juntas, mas cada uma delas por si. E não deve ser esquecido o fato de isso vir depois de tudo quanto relato neste livro, e daquilo em que o Senhor agora me mantém.17

16. No princípio, eu tinha medo, como ocorre quase sempre que recebo alguma dádiva das mãos de Deus, até que, continuando, Sua Majestade me tranqüiliza. Numa ocasião, o Senhor me disse que não temesse e que valorizasse mais essa graça do que todas as já recebidas, porque, nesse sofrimento, a alma se purifica, tal como o ouro no crisol, para melhor se dispor a receber o esmalte dos Seus dons, padecendo ali o que haveria de sofrer no purgatório.

Eu já entendia que recebia uma grande graça, mas depois disso fiquei muito mais segura. Meu confessor me disse que isso é bom. Embora temendo, por ser tão ruim, eu nunca pude acreditar que isso não fosse bom; o que me fazia temer era a grandeza excessiva do favor recebido, pois me lembrava do meu pouco merecimento. Bendito seja o Senhor, que é tão bom. Amém.

17. Parece que fugi do meu propósito, porque comecei a falar de arroubos,18 embora o que falei seja superior a eles e deixe os efeitos citados.

18. Voltemos agora aos arroubos e aos seus efeitos gerais. Muitas vezes, eu tinha a impressão de deixar o corpo com tanta rapidez que ficava livre do seu peso, chegando mesmo a um ponto em que mal sentia tocar o chão com os pés. Quando está enlevado, o corpo parece morto, sem ação, mantendo--se na posição em que é tomado: se de pé, se sentado, se com as mãos aber­tas, se fechadas.19 É rara a perda dos sentidos. Há ocasiões em que os perco por inteiro, mas elas são poucas e é pequena a duração; de modo geral, a alma, mesmo perturbada e sem poder agir no exterior, continua a perceber e ouvir como se estivesse distante.

Não digo que ela perceba e ouça quando se encontra no mais alto grau de arroubo,20 isto é, no tempo em que as faculdades se perdem por estarem unidas a Deus, porque, então, ao que parece, ela nada vê nem ouve nem sente. Mas, como falei ao tratar da oração de união,21 essa transformação total da alma em Deus dura pouco; mas, enquanto dura, nenhuma faculdade age nem sabe o que acontece ali. Não devem ser coisas que se possam entender enquanto se vive na terra; pelo menos Deus não quer que o entendamos, pois não devemos ser capazes disso, o que sei por experiência própria.

19. Vossa mercê há de perguntar como é que o arroubo dura às vezes tantas horas e ocorre muitas vezes. O que acontece comigo é que — como falei na oração passada —22 a felicidade vem com intervalos: de vez em quando, a alma se engolfa ou, melhor dizendo, o Senhor a engolfa em si, e, enquanto Ele a mantém consigo um pouco, ela conserva somente a vontade. Parece-me que o movimento das outras duas faculdades tem como que uma lingüeta de relógio de sol, que nunca pára; mas, quando o quer, o Sol da Justiça as detém. Isto23 é o que digo ter pouca duração; contudo, como o ímpeto e a elevação de espírito foram grandes, mesmo que as outras faculdades voltem a se agitar, a vontade fica mergulhada em Deus e, como senhora do todo, realiza no corpo aquela operação;24 logo, se as duas outras faculdades turbulentas desejarem importuná-la, que sejam as únicas a fazê-lo, não vindo perturbá-la também os sentidos, porque assim quer o Senhor. Na maior parte do tempo, os olhos ficam fechados, mesmo contra a nossa vontade; nas poucas vezes em que ficam abertos, não conseguem, como eu disse,25 perceber ou distinguir o que vêem.

20. Aqui, é muito pouco o que o corpo pode fazer de si para que, quando as faculdades voltarem a se juntar, não haja tanto o que fazer. Por isso, aquele a quem o Senhor conceder isso não deve se desconsolar quando vir o corpo preso assim por muitas horas, com a memória e o entendimento às vezes distraídos. É verdade que, em geral, essas faculdades estão mergulhadas em louvores a Deus ou na busca da compreensão e do entendimento do que lhes ocorreu; mas, mesmo para isso, elas não estão bem despertas, mas como uma pessoa que dormiu muito, e sonhou, e ainda não acabou de despertar.

21. Detenho-me tanto nisso porque sei que existem hoje, neste lugar,26 pessoas a quem o Senhor concede esses favores, e se os que as dirigem não passaram por isso, talvez tenham a impressão de que elas parecem estar mortas no arroubo, especialmente se não forem letrados, e é uma lástima o que se padece com confessores que não o compreendem, como mais tarde falarei.27 Talvez eu não saiba o que digo; vossa mercê saberá dizer se sou coerente, pois o Senhor já lhe deu experiência disso, se bem que não há muito tempo, e é possível que vossa mercê não o tenha considerado tanto quanto eu.

Com efeito, por mais que eu tente, durante longos períodos não há forças no corpo para me mover; a alma as levou todas consigo. Muitas vezes — estando bastante enfermo e cheio de dores —, fica restabelecido28 e com maior capacidade, pois é grandioso o que ali acontece, querendo o Senhor algumas vezes que ele também se beneficie, porque já obedece ao que a alma deseja. Depois que recupera a consciência, se foi grande o arroubo, acontece à alma ficar um dia ou dois, e até três, com as faculdades tão absortas — ou como se estivesse abobada —29 que não parece estar consciente.

22. Vem então a dor de voltar a viver; a penugem já lhe caiu, e a alma tem agora asas para voar bem alto. Ela ergue o estandarte pela causa de Cristo, parecendo que o comandante da fortaleza subiu ou foi levado à torre mais alta para desfraldar a bandeira de Deus. Ela olha para os de baixo como quem está a salvo; já não teme os perigos, mas os deseja, como quem de alguma maneira tivesse a garantia da vitória. Vê-se com muita clareza quão pouco se devem estimar as coisas daqui, que nada valem. Quem está no alto percebe muitas coisas; já não quer querer, nem gostaria de ter livre-arbítrio,30 e assim o suplica ao Senhor, entregando-lhe as chaves de sua vontade.

Eis o jardineiro feito comandante; ele não deseja coisa alguma além da vontade do Senhor nem quer sê-lo31 de si, nem de nada, sequer de uma pêra da horta. Seu único desejo é que, se houver nessa horta alguma coisa boa, Sua Majestade a distribua, porque, doravante, o jardineiro nada quer ter de seu; que Deus disponha de tudo de acordo com a Sua glória e a Sua vontade.

23. E é isso o que acontece quando os arroubos são verdadeiros, ficando a alma com os efeitos e os benefícios indicados. Se os arroubos não fossem verdadeiros, eu muito duvidaria de que viessem de Deus, receando que fossem os acessos de raiva de que fala São Vicente.32 Sei por experiência que numa hora a alma fica senhora de tudo e com liberdade — e até em menos de uma hora —, a ponto de não poder se reconhecer. Ela percebe que não fez nada para receber tanto bem, nem sabe como ele lhe foi dado, mas percebe com clareza o enorme proveito que cada um desses arrebatamentos lhe traz.

Quem não passou por isso não pode acreditar; e assim a pobre alma, cuja grande maldade foi vista e que de repente aspira a coisas tão elevadas, não merece crédito, visto não se contentar em servir pouco ao Senhor, buscando chegar a extremos. As pessoas pensam que isso é tentação e disparate. Se compreendessem que isso não vem dela, mas do Senhor, a quem ela já entregou as chaves de sua vontade, não se espantariam.

24. Tenho para mim que a alma que chega a esse estado já não fala nem age por si, pois o soberano Rei cuida de tudo o que ela há de fazer. Valha--me Deus! Como é clara a declaração do verso e quanta razão tinha o salmista, e têm todos, de pedir asas de pomba.33 Entende-se bem que o espírito dá um vôo para elevar-se acima de todo o criado e, antes de tudo, de si mesmo; mas é vôo suave, vôo jubiloso, vôo sem ruído.

25. Que poder tem a alma que o Senhor transporta até aqui; ela olha tudo sem estar apegada a coisa alguma! Como está longe o tempo em que esteve ape­gada! Quão espantada fica ela de sua cegueira! Como lastima os que estão enredados, especialmente se são pessoas de oração a quem Deus já concede favores! Ela gostaria de dizer em voz alta quão enganadas elas estão, e faz isso algumas vezes, atraindo mil perseguições. Ela é considerada pouco humil­de, alguém que quer ensinar a pessoas de quem devia aprender, em particular se for mulher. E as pessoas a condenam — e com razão — porque não sabem o ímpeto que a move, ímpeto que às vezes a impede de se conter e a leva a de­senganar aqueles de quem gosta, que ela deseja ver livres do cárcere desta vida, pois o cativeiro em que ela esteve não é menor nem lhe parece menor.

26. Ela fica aflita ao lembrar-se da época em que se preocupava com a honra e em que se enganava ao crer que era honra o que o mundo assim diz; ela percebe a grande mentira que isso é e vê que todos nos enganamos; ela percebe que a verdadeira honra não é mentirosa, mas plena de verdade; essa honra valoriza o que de fato tem valor e não leva em conta o que nada vale, porque é nada, e menos que nada, tudo o que se acaba e não alegra a Deus.

27. Ela ri de si mesma, do tempo em que levava em conta o dinheiro e a sua cobiça, embora nesse aspecto eu não creia — e é verdade — que tenha tido culpa, sendo porém grande culpa levar isso em conta. Se com o dinheiro eu pudesse comprar o bem que agora vejo em mim, eu muito o apreciaria; mas vê--se que esse bem só se alcança ao abandoná-lo por inteiro. O que se com­pra com esse dinheiro tão desejado? Uma coisa de valor? Um objeto du­­radouro? Para que o desejamos? Que horrível descanso se procura obter com algo que custa tão caro! Muitas vezes, consegue-se com ele o inferno, com­prando-se um fogo inextinguível e dores infinitas. Se todos o desprezassem, o mundo teria muita ordem e alegria! Com que amizade se tratariam todos se não ligássemos para a honra e o dinheiro! Creio que assim tudo seria corrigido.

28. A alma vê a grande cegueira dos prazeres e percebe que, com eles, só consegue sofrimento, mesmo para esta vida, bem como desassossego. Que inquietude, pouco contentamento, trabalho vão! E ela vê não somente as teias de aranha que há em si mesma, suas grandes faltas, como até algum cis­co, por menor que seja, já que está exposta a muita luz; assim, por mais que trabalhe para a sua perfeição, se de fato for atingida por este Sol, ela logo se considerará muito impura. É como a água que está num vaso: não sendo ilu­minada, parece límpida; se o sol a atinge, logo se vê que está cheia de poeira.

Entenda-se essa comparação literalmente. Antes de alcançar o êxtase, a alma acredita que procura não ofender a Deus e que faz o que pode segundo suas forças; chegando aqui, porém, atinge-a este Sol de Justiça, e ela, abrindo os olhos, vê tanta poeira que desejaria voltar a fechá-los, porque ainda não é tão filha dessa Águia majestosa que seja capaz de olhar este Sol frente a frente; e, por menos que abra os olhos, vê-se toda turva e se recorda do verso que diz: Quem será justo diante de ti?34

29. Quando olha esse sol divino, a alma fica deslumbrada com a claridade. Quando olha para si, a impureza lhe tapa os olhos e essa pombinha fica cega. Assim é que, inúmeras vezes, ela fica totalmente ofuscada, absorta, espantada, desfeita diante de tantas grandezas que vê. Aqui alcança a verdadeira humildade, não dando importância a falar bem de si nem ao que os outros digam. Quem reparte a fruta da horta é o Senhor, e não ela, não tendo a alma nada de seu; todo o bem que possui é dado por Deus, e quando fala algo de si, ela o faz para a Sua glória. Ela sabe que nada tem ali e, mesmo que quisesse, não o poderia ignorar, porque o vê com os seus próprios olhos. Sem que ela cooperasse, o Senhor os fechou às coisas do mundo e fez que ela os tivesse abertos para compreender verdades do espírito.

Capítulo 21

Termina de explicar o último grau de oração. Fala do que sente a alma que o alcança ao voltar a viver no mundo e da luz que o Senhor dá a ela para ver os enganos dele. É boa doutrina.

1. Concluindo o que falava,1 digo que, neste grau, a alma não precisa consentir; ela já pertence ao Senhor e sabe que se entregou em Suas mãos com vontade e que não pode enganá-Lo porque Ele conhece tudo. Não é como aqui, onde a vida está toda cheia de enganos e fingimentos: quando se pensa ter conquistado um coração com base nas provas de afeição que dele vêm, descobre-se que tudo é mentira. Não há quem possa viver com tantas intrigas, especialmente quando há um pouco de interesse.

Bem-aventurada a alma que o Senhor faz entender verdades! Que ótimo estado para os reis! Como seria muito melhor para eles procurá-lo, em vez de um grande reino! Que retidão haveria no reino! Quantos males teriam sido evitados e se evitariam! Nele, não se temeria perder a vida nem a honra por amor de Deus! Que grande bem é esse para quem está mais obrigado a zelar pela honra do Senhor, pois todos o estão menos, já que devem seguir os reis! Por um pequeno aumento da fé e por alguma luz dada aos hereges, perdería­mos mil reinos, e com razão. Ganharíamos assim um reino que não se acaba, visto que a alma, ao provar uma única gota de sua água, aborrece de tudo o que há na terra. E que será quando estiver de todo engolfada nele?

2. Ó Senhor! Se me désseis condições para dizer isso em voz alta, não me acreditariam, tal como não acreditam nos que sabem dizê-lo de outra maneira, mas eu ao menos me satisfaria. Parece-me que, para explicar uma única verdade dessas, eu daria de bom grado a vida como coisa de pouco valor; não sei o que faria depois, porque não se pode confiar em mim. Sendo quem sou, tenho grande vontade de dizer isso aos que governam, consumindo-me por nada poder. Assim sendo, volto-me para Vós, Senhor meu, pedindo-Vos um remédio para tudo; e bem sabeis que de muito boa vontade eu me despojaria das graças que me tendes dado, permanecendo num estado que não Vos ofendesse, e as daria aos reis; porque sei que, recebendo-as, eles não poderiam consentir no que agora toleram, daí resultando grandes benefícios.2

3. Ó Deus meu! Fazei-os compreender as suas obrigações, pois quisestes de tal maneira diferenciá-los na terra que, pelo que ouvi dizer, surgem sinais no céu quando levais algum deles desta vida.3 Na realidade, comovo-me ao pensar que desejais que percebam, com essas demonstrações no céu, na época em que morrem, tal como ocorreu na Vossa, que devem imitar-Vos em vida.

4. Atrevo-me muito. Rasgue-o vossa mercê se lhe parecer ruim, e acredite que eu o diria melhor na presença deles, se pudesse ou pensasse que acreditariam em mim, porque os muito encomendo a Deus e gostaria que disso viesse proveito. Por isso valeria arriscar a vida, de que desejo muitas vezes ser privada, e o preço seria pequeno, pois o benefício seria muito; porque não se pode viver quando se vê com os próprios olhos a grande ilusão em que vivemos e a cegueira que demonstramos.

5. Chegando aqui, a alma não deseja apenas a glória de Deus; Sua Majestade lhe dá condições para levar isso a efeito. Não há nada que ela veja e considere que O serve que não se disponha a fazer; e nada faz, porque — como falei —4 ela vê com clareza que só tem valor agradar a Deus. O sofrimento vem do fato de não haver oportunidades disso para pessoas tão inúteis quanto eu. Que um dia, Bem meu, eu possa pagar um centavo do muito que Vos devo. Ordenai, Senhor, de acordo com a Vossa vontade, que esta serva Vossa Vos sirva em algo. Outras também eram mulheres, e fizeram coisas heróicas por amor a Vós. De minha parte, só sei tagarelar e por isso não quereis, Deus meu, levar-me a agir; sirvo somente em palavras e desejos, e nem para isso tenho liberdade, e, caso a tivesse, em tudo cometeria faltas.

Fortalecei minha alma, preparando-a primeiro, Bem de todos os bens e Jesus meu, ordenando em seguida os meios para Vos servir, pois já não suporto receber tanto e nada pagar. Custe o que custar, Senhor, não permitais que eu chegue diante de Vós com mãos tão vazias, pois a recompensa será dada de acordo com as obras. Aqui está a minha vida, aqui está a minha hon­ra e a minha vontade; tudo Vos dei, Vossa sou, disponde de mim de acor­do com a Vossa vontade. Bem vejo, meu Senhor, que pouco posso; mas, apro­ximando-me de Vós, chegando a essa fortaleza de onde se vêem verdades, e não Vos afastando de mim, tudo poderei; se me afasto de Vós, por me­nos que seja, voltarei para onde estava, o inferno.

6. O que é para uma alma que aqui chegou ter de voltar a tratar com as pessoas, de olhar e ver a farsa desta vida tão desorganizada, perder tempo com o corpo, dormindo e comendo! Tudo a cansa; ela não sabe como escapar, ven­do-se acorrentada e prisioneira. Ela sente mais verdadeiramente o cativeiro do corpo e a miséria da vida. Vê com que razão São Paulo suplicou a Deus que o livrasse dele;5 ao lado do apóstolo, ela pede a Deus liberdade, como falei.6

Aqui, muitas vezes é grande o ímpeto; a alma parece querer sair do corpo em busca de liberdade, já que não a tiram dele. Ela se sente uma es­crava em terra estrangeira, e o que mais a cansa é não achar muitas pessoas que se queixem com ela e supliquem por isso; a maioria deseja viver. Se fôssemos desapegados e não tivéssemos contentamento em nenhuma coisa da ter­ra, a dor de viver sempre sem Ele compensaria o medo da morte com o desejo de gozar da vida verdadeira!

7. Penso algumas vezes que, se uma pessoa como eu, tendo recebido do Senhor esta luz e sendo tão fraca em caridade e vivendo em tão grande in­certeza de alcançar o verdadeiro descanso, por não tê-lo merecido com as mi­nhas obras, sofre tanto por se ver neste desterro, qual seria o sentimento dos santos? O que devem ter passado São Paulo, Santa Madalena e outros, cu­jo anseio do amor de Deus era tão intenso? Viver deve ter sido para eles um contínuo martírio.

Parece-me que obtenho algum alívio e consolo no relacionamento com pessoas que também têm esses desejos; falo de desejos acompanhados de obras; digo de obras porque há pessoas que, a seu ver, estão desprendidas e o alar­deiam, e que de fato deveriam estar, pois seu estado o exige, bem como os muitos anos em que vêm seguindo o caminho da perfeição. Mas esta alma conhece de longe os que são perfeitos em palavras e os que tiveram suas palavras confirmadas por obras; ela tem visto o pouco proveito de alguns e o muito de outros, porque quem tem experiência o reconhece com muita facilidade.

8. Citados os efeitos que vêm de Deus…7 é verdade que há maiores ou menores. Menores porque, no início, embora os arroubos os produzam, eles não são muito perceptíveis por não terem sido comprovados por obras. A alma vai crescendo em perfeição e busca afastar os vestígios de impurezas, o que exige algum tempo; quanto mais aumentam o seu amor e a sua humildade, maior o odor que vem dessas flores de virtude para a alma e para os outros. É verdade que o Senhor pode agir de tal maneira na alma num desses enlevos que pouco trabalho lhe resta para alcançar a perfeição, mas quem não tem experiência não pode acreditar no que o Senhor concede aqui nem no fato de não haver esforço nosso capaz de alcançá-lo.

Não afirmo que, passados muitos anos, essa alma não alcance, com a graça de Deus, a perfeição, bem como um grande desapego, com muita labuta, empregando os meios descritos pelos que falaram de oração, de princípios e recursos. Mas não em tão breve tempo como os alcança, sem nenhum esforço, quando o Senhor age e, com determinação, tira a alma da terra e lhe dá domínio sobre tudo o que há nela, mesmo que essa alma não tenha mais merecimento do que a minha, não sendo exagero dizer que não tinha quase nenhum.

9. Sua Majestade o faz porque quer, e como quer,8 e, mesmo que não haja disposição na alma, Ele a dispõe para receber o bem que lhe dá. E nem sempre Ele o dá a quem merece, trabalhando bem no jardim — embora seja certo que quem faz isso bem, procurando desapegar-se, não deixa de ser recompensado —, pois em certas ocasiões deseja mostrar Sua grandeza na pior terra, como eu disse,9 preparando-a para todo o bem; e o faz de tal maneira que ela já não pode viver ofendendo a Deus como o fazia. O seu pensamento se acostuma a tal ponto a compreender a verdade verdadeira que todas as outras coisas lhe parecem brinquedo de criança. Ela ri muito quando vê pessoas graves, dedicadas à oração e vivendo em estado religioso, darem demasiada importância a questões de honra que para ela já não existem. Essas pessoas dizem que têm prudência e que zelam pela dignidade de sua condição para o seu maior proveito. Contudo, maior proveito teriam se renunciassem à honra um único dia do que defendendo-a durante dez anos.

10. Assim, a alma tem uma vida árdua e cheia de cruzes, mas cresce muito. Os que têm relação com ela têm a impressão de que chegou ao auge; mas em pouco tempo ela está muito mais perfeita, porque Deus sempre a favorece mais, pois é alma Sua que está a Seu cargo. Ele a ilumina, parecendo que a assiste e guarda permanentemente para que ela não O ofenda, protegendo-a e despertando-a para que O sirva.

Quando a minha alma recebeu de Deus esse favor tão grande, meus males cessaram e o Senhor me deu forças para me livrar deles. As situações e pessoas que antes me distraíam já não me causavam prejuízo; era como se não existissem; o que outrora me prejudicara passou a me ajudar. Tudo era um meio para mais conhecer e amar a Deus, para ver o quanto Lhe devia e mais lamentar o que eu tinha sido.

11. Eu tinha certeza de que aquilo não vinha de mim nem dos meus esforços, porque ainda não havia tempo para tanto. Sua Majestade me dera forças para isso só por bondade.

Até agora, desde que o Senhor começou a me conceder a graça desses arroubos, essas forças têm crescido, pois Ele, por Sua generosidade, me tem conduzido pela mão para que eu não fraqueje; assim, quase nada faço, e vejo com clareza que é o Senhor quem age.

Isso me faz pensar que as almas às quais o Senhor concede esses favores — almas que, vivendo com humildade e temor, sempre entendem que o próprio Senhor age e elas quase nada fazem — poderiam viver entre quaisquer pessoas; mesmo que fossem as mais distraídas e viciosas, essas pessoas não as abalariam em nada nem as impressionariam, antes10 ajudando-as a ser de tal maneira que obtenham um proveito muito maior. Essas já são almas fortes escolhidas pelo Senhor para fazer o bem a outras, embora sua força não venha delas mesmas. Quando atrai uma alma, o Senhor vai lhe comunicando segredos muito grandes.

12. Nesse êxtase, vêm as verdadeiras revelações, bem como grandes favores e visões, e tudo contribui para apequenar e fortalecer a alma, afastando-a cada vez mais das coisas desta vida e dando-lhe um maior conhecimento da grandeza da recompensa que o Senhor tem preparada para os que O servem.

Queira Sua Majestade que a imensa generosidade que tem tido com esta miserável pecadora sirva de alguma maneira para incitar e animar os que isto lerem a tudo deixar por Deus. Porque, se Sua Majestade paga já nesta vida com tanta abundância, vendo-se com clareza o prêmio e o lucro que recebem os que O servem, como não o fará na outra?

Capítulo 22

Diz que o caminho mais seguro para os contemplativos é não elevar o espírito a coisas superiores se o Senhor não o levanta, e que o meio para a contemplação mais sublime é a Humanidade de Cristo. Fala de uma ilusão em que esteve por algum tempo. Este capítulo é muito proveitoso.

1. Quero dizer uma coisa que me parece importante; se vossa mercê o considerar bom, isso servirá de aviso, talvez de aviso necessário. Porque alguns livros de oração dizem que, embora não possa por si chegar a esse estado, já que tudo é obra sobrenatural do Senhor nela, a alma pode ajudar-se elevando o espírito acima das coisas criadas, fazendo-o com humildade, depois de muitos anos de vida purgativa e de ter aproveitado a iluminativa. Não sei bem por que dizem “iluminativa”; deve ser o caminho dos que vão progredindo.

Esses livros insistem em que se deve afastar toda imaginação corpórea, chegando-se a contemplar a Divindade; eles afirmam que, para quem chegou tão longe, mesmo a Humanidade de Cristo é um embaraço e um empecilho à contemplação mais perfeita. Recorrem esses livros ao que o Senhor disse aos Apóstolos quando da vinda do Espírito Santo — digo, quando subiu aos céus.1 Porque lhes parece que, sendo essa obra toda espiritual, qualquer coisa corpórea a pode impedir ou prejudicar; e que, vendo-se as coisas de modo amplo,2 deve--se considerar que Deus está em toda parte e ver-se engolfado nele.

Isso me parece correto algumas vezes. O que não posso tolerar é o total afastamento de Cristo e a consideração de Seu divino Corpo como membro da relação de nossas misérias e das coisas criadas. Que Sua Majestade me permita saber explicá-lo.

2. Eu não o contradigo, porque os seus autores são letrados, pessoas espirituais, que sabem o que dizem; além disso, Deus conduz as almas por muitos caminhos e veredas. Quero explicar agora como conduziu a minha — nas outras coisas não me intrometo — e o perigo em que me vi por querer seguir aquilo que lia. Acredito que quem chegar a ter união e não passar adiante — isto é, chegar a ter arroubos, visões e outras graças que Deus dá às almas — vai considerar muito boa, como eu considerei, essa doutrina; mas, se eu tivesse continuado a acreditar, creio que nunca teria chegado ao ponto em que estou, porque, a meu ver, ela é errônea. Talvez eu é que esteja enganada; mas vou contar o que me aconteceu.

3. Como não tinha diretor, eu costumava ler tais livros, imaginando ir aos poucos entendendo alguma coisa (mais tarde percebi que, se o Senhor não me mostrasse, eu pouco poderia aprender com os livros, porque nada compreendia até que Sua Majestade me permitia entender por experiência; eu não sabia sequer o que fazia); quando comecei a ter alguma oração sobrenatural, isto é, de quietude, eu procurava afastar todas as coisas corpóreas, embora não me atrevesse a elevar a alma, porque, como era sempre tão ruim, eu sabia ser ousadia. Mas eu tinha a impressão de sentir a presença de Deus, o que é verdade, procurando estar recolhida com Ele — trata-se de oração saborosa, se Deus ajuda, de grande deleite.

Vendo-me com tais proveitos e gostos, não havia o que me fizesse voltar à Humanidade, a qual, para falar a verdade, me parecia um impedimento. Ó Senhor de minha alma e Bem meu, Jesus Cristo crucificado! Não me recordo uma única vez dessa opinião que tive sem sentir pesar; parece-me que cometi uma grande traição, embora por ignorância.

4. Sempre fui muito devota de Cristo (porque isto3 aconteceu depois, sendo pouco o tempo que durou essa opinião) e sempre voltava ao costume de alegrar-me com esse Senhor, em especial quando comungava. Quisera ter sempre diante dos olhos o Seu retrato e a Sua imagem, já que não podia tê--Lo tão gravado na minha alma como desejava.

Será possível, Senhor meu, que tenha estado por um instante no meu pensamento a idéia de que me havíeis de impedir alcançar o maior bem? De onde me vieram todos os bens senão de Vós? Nem quero pensar que fui culpada disso, porque muito me lastimo, sendo a causa, por certo, a ignorância; e Vós quisestes, por Vossa bondade, remediá-la, dando-me alguém para me tirar desse erro, permitindo também que eu Vos visse muitas vezes, como adiante direi,4 para que percebesse com mais clareza quão grande era o erro, e para que eu o dissesse a muitas pessoas, como já o fiz e o faço agora.

5. Tenho para mim que isso é o que impede muitas almas de não aproveitar mais nem alcançar uma liberdade de espírito muito maior quando chegam a ter oração de união. Parece-me que há duas razões para isso, e talvez eu não diga nada pertinente, mas o que digo sei por experiência, já que a minha alma estava muito mal, até que o Senhor a iluminou. Todas as alegrias da alma vinham a sorvos, e ela, saindo dali, não sentia a Companhia que depois teve nos sofrimentos e tentações.

Uma delas é5 certa falta de humildade, estando esta tão escondida e dissimulada que não a sentimos. E quem será o orgulhoso e miserável, como eu, que, quando tiver passado toda a vida com todas as penitências, orações e perseguições que se puderem imaginar, não se considere muito rico e muito bem pago, quando o Senhor lhe consente ficar ao pé da cruz com São João?6 Não sei em que outra cabeça, além da minha, caberia a idéia de não se contentar com isso, perdendo no que havia de ganhar.

6. Porque se, todas as vezes, a nossa condição ou enfermidade não nos permitem, por ser penoso, pensar na Paixão, quem nos impede de estar com Ele depois de ressuscitado, pois tão perto O temos no Sacramento, onde já está glorificado, e onde não o contemplamos tão fatigado e despedaçado, sangrando, cansado de caminhar, perseguido por aqueles a quem fez tanto bem, privado da crença dos Apóstolos?7 Pois com certeza ninguém suporta pensar sempre nos tantos sofrimentos que Ele teve.

Ei-Lo aqui, sem sofrimentos, cheio de glória, confortando uns, animando outros, antes de subir aos céus, nosso companheiro no Santíssimo Sacramento, porque parece que Ele não poderia afastar-se um momento de nós. Mas eu pude afastar-me de Vós, Senhor meu, para melhor servir-Vos! Quando Vos ofendia, eu não Vos conhecia; mas, conhecendo-Vos, como pude pensar em ganhar mais seguindo esse caminho? Ó Senhor, que mau rumo eu seguia! Parece-me que eu me teria perdido se Vós não me fizésseis voltar ao caminho, pois, ao ver-Vos junto a mim, vi todos os bens. Não há sofrimento que eu, vendo o que sofrestes diante dos juízes, não me alegre em padecer. Com tão bom amigo presente, com tão bom capitão, que se ofereceu para sofrer em primeiro lugar, tudo se pode suportar; Ele é auxílio e encorajamento, nunca falta, é amigo verdadeiro.

E vi com clareza, e continuei a ver, que Deus deseja, para O agradarmos e para que nos conceda grandes favores, que os recebamos por meio dessa Humanidade sacratíssima, em que Sua Majestade se deleita.8 Muitíssimas vezes o tenho visto por experiência; o Senhor me disse. Tenho certeza de que temos de entrar por essa porta9 se quisermos que a soberana Majestade nos revele grandes segredos.

7. Assim, que vossa mercê, senhor,10 não deseje outro caminho, mesmo que esteja no auge da contemplação; pois esse caminho é seguro. É por meio desse Senhor nosso que nos vêm todos os bens.11 Ele o ensinará; o melhor modelo é contemplar a Sua vida. Que mais queremos além de um amigo tão bom ao nosso lado, que não nos deixa passar sozinhos por sofrimentos e tribulações, ao contrário dos do mundo? Bem-aventurado quem O amar de verdade e sempre O tiver junto a si. Contemplemos o glorioso São Paulo, de cuja boca só saía o nome de Jesus, tão bem gravado o tinha no coração. Observei com cuidado, depois que compreendi isso, alguns santos, grandes contemplativos, que não seguiam outro caminho. São Francisco dá mostras disso nas chagas; Santo Antônio de Pádua, no Menino; São Bernardo se deleitava com a Humanidade; Santa Catarina de Sena… e tantos outros que vossa mercê conhece melhor do que eu.

8. Deve ser correto apartar-se do corpóreo, porque pessoas muito espirituais o aconselham; mas, para mim, só quando a alma já está muito adiantada, porque, antes disso, está claro, deve-se buscar o Criador por intermédio das criaturas.12 Tudo depende de como o Senhor concede graças a cada alma; nisso não me intrometo. O que eu queria explicar é que a Humanidade sacratíssima de Cristo não faz parte disso. E que se entenda bem esse ponto, que eu gostaria de saber explicar.

9. Quando Deus quer suspender todas as faculdades, como nos modos de oração que vimos,13 está claro que, mesmo sem desejarmos, essa presença nos é tirada. Que ela vá em boa hora; essa perda é ditosa, pois serve para fluirmos mais do que temos a impressão de perder; porque, então, a alma se entrega toda a amar aquilo que o intelecto procurou conhecer; ela ama o que não compreen­deu, regozijando-se no que não poderia se comprazer tão bem se não perdesse a si mesma para melhor ganhar. O que não me parece correto é que, intencional e cuidadosamente, acostumemo-nos a não procurar com todas as forças ter sem­­pre diante dos olhos — e quisera o Senhor que fosse sempre — essa sa­­cratíssima Humanidade; fazê-lo é ter a alma no ar, como dizem; porque parece que ela não tem apoio, por mais que pense estar plena de Deus.

É muito importante, enquanto vivemos e somos humanos, ter um apoio hu­mano, sendo este o outro inconveniente de que falo. O primeiro, como co­mecei a dizer,14 é a falta de humildade, que faz a alma querer se levantar antes que o Senhor a eleve, e não contentar-se com meditar uma coisa tão preciosa, pretendendo ser Maria antes de ter trabalhado como Marta.15 Quando o Senhor o permite, mesmo que seja no primeiro dia, não há o que temer; mas sejamos comedidos, como acho que já disse. Esse pequeno argueiro da pouca humildade, embora não pareça ser grande coisa, muito prejudica quem deseja progredir na contemplação.

10. Voltando ao segundo ponto, não somos anjos, pois temos um corpo; querer ser anjo estando na terra — ainda mais do modo como eu estava — é um disparate, devendo-se ter um apoio material para o pensamento; ainda que algumas vezes a alma saia de si ou ande tão plena de Deus que não precise de coisas criadas para atingir o recolhimento, isso não é algo tão comum; quando não é possível ter tranqüilidade, quando se anda às voltas com negócios, perseguições e sofrimentos, e em tempo de aridez, Cristo é um amigo muito bom, porque O vemos Homem, com fraquezas e sofrimentos, e permanecemos em Sua companhia; e, quando nos acostumamos, encontramo--Lo com facilidade junto a nós, embora haja dias em que não conseguimos nem uma coisa nem outra.

Quando isso acontece, é bom aquilo que já falei:16 não procuremos consolos do espírito; aconteça o que acontecer, ficar abraçado à cruz é muito bom. Este Senhor se viu privado de todo o consolo, restando-Lhe apenas os sofrimentos; não O deixemos só, fazendo-O sofrer mais. Ele nos ajudará mais do que os nossos esforços, ausentando-se quando vir que convém e que o Senhor quer tirar a alma de si mesma, como falei.17

11. Muito alegra a Deus que uma alma se sirva humildemente do Seu Filho, amando-O tanto que, mesmo que Sua Majestade queira levá-la a uma grande contemplação — como falei —,18 ela se reconhece indigna, dizendo com São Pedro: Apartai-vos de mim, Senhor, porque sou homem pecador.19

Passei por essa experiência; assim Deus tem conduzido a minha alma. Outros irão, como eu já disse,20 por outro atalho. O que entendo é que todo o alicerce da oração tem como base a humildade e que, quanto mais se humilha na oração, tanto mais a alma é elevada por Deus.21 Não me recordo de ter recebido nenhuma graça especial das que falarei adiante num momento em que não estivesse desfeita por ver que era tão ruim; e Sua Majestade ainda procurava dar-me a entender coisas que eu jamais saberia imaginar para que eu melhor me conhecesse.

Acredito que tudo o que a alma faz para se ajudar nessa oração de união logo volta a desaparecer, mesmo que pareça muito proveitoso, por ser coisa sem fundamento. Receio que, com isso, nunca se alcance a verdadeira pobreza de espírito, que consiste em não buscar consolo nem prazer na oração — porque os da terra já foram abandonados —, mas consolação nos sofrimentos, por amor Daquele que sempre viveu em meio a eles, e em ter paz nos sofrimentos e nas securas. Mesmo que sinta alguma coisa, a alma não deve se inquietar ou perturbar, como o fazem certas pessoas que consideram tudo perdido se não estiverem sempre trabalhando com o intelecto e sentindo fervor, como se, pelos seus esforços, pudessem merecer tão grande bem. Não digo que não se queira estar nem se esteja com reverência diante de Deus; mas que, se não puderem ter um único pensamento bom, como já falei,22 que as pessoas não se matem. Somos servos inúteis; que pensamos poder?

12. O Senhor quer antes que saibamos disso e que sejamos como jumentinhos para trazer a água por meio da nora de que falei;23 porque, mesmo com os olhos fechados e sem saber o que fazem, eles vão tirar mais água do que o jardineiro com todos os seus esforços. Temos de percorrer esse caminho com liberdade, entregues às mãos de Deus; se Sua Majestade quiser que sejamos Seus camareiros e confidentes de Seus segredos, que vamos de boa vontade; se Ele não o quer, que O sirvamos em tarefas subalternas e não nos sentemos no melhor lugar,24 como já falei. Deus tem mais cuidado do que nós e sabe o que é bom para cada um.

Que proveito obtém de governar-se a si quem já entregou toda a sua von­tade a Deus? Para mim, tolera-se isso aqui muito menos do que no primei­ro grau de oração, havendo muito mais prejuízo; trata-se de bens sobrenaturais: quem tem uma voz ruim não a torna boa, por mais que se esforce para cantar. Se Deus quiser dá-la, só se tem de recebê-la sem esforço. Supliquemos sempre que Ele nos dê Suas graças, com a alma submissa, embora confiante na grandeza de Deus. Como é permitido à alma ficar aos pés de Cristo, que esta não procure sair dali,25 seja qual for a sua condição; que ela imite Madalena e, quando estiver forte, Deus a levará ao deserto.

13. Assim, que vossa mercê, até achar quem tenha mais experiência que eu e saiba melhor, acredite nisso. Se forem pessoas que começam a gostar de Deus, não lhes dê crédito, pois elas têm a impressão de que aproveitam e obtêm mais prazer ajudando-se a si mesmas.26 Quando o Senhor quer, apresenta-se por inteiro sem essas ajudazinhas! Por mais que façamos, Ele arrebata o espírito, como um gigante a uma palha, e não há quem resista — como crer que, quando o quer, Ele espere que o sapo voe por si mesmo? O nosso espírito fica ainda mais pesado e difícil de levantar quando Deus não o eleva; estando carregado de terra e de mil impedimentos, pouco o beneficia o querer voar. Porque, embora isso seja mais natural para ele do que para o sapo, o espírito está tão mergulhado na lama que perdeu essa capacidade por sua própria culpa.

14. Quero concluir dizendo: sempre que pensarmos em Cristo, lembremo--nos do amor com que nos deu tantas graças e da grande prova que Deus nos dá disso ao nos conceder esse penhor do muito que nos ama; recordemo-nos de que o amor gera amor. E, mesmo que seja bem no princípio e embora sejamos muito ruins, procuremos ver isso sempre, e despertemo-nos para amar; porque, se o Senhor nos conceder uma vez o favor de que esse amor fique impresso no nosso coração, tudo ficará fácil, e faremos muito com rapidez e sem esforço. Que Sua Majestade nos dê esse amor — pois sabe o quanto ele nos convém —, em nome do amor que nos teve e do Seu Filho glorioso, que com muitos sofrimentos no-lo mostrou. Amém.

15. Desejo perguntar uma coisa a vossa mercê: por que, começando o Senhor a conceder graças a uma alma, e graças tão elevadas, como levá-la à perfeita contemplação, não fica ela logo totalmente perfeita (e com razão, porque quem recebe semelhante favor não devia mais querer consolos na terra)? Quando ela chega a ter arroubos e já está mais habituada a receber graças, por que será que os efeitos não ficam mais elevados? A alma deveria ficar tanto mais desapegada quanto mais se multiplicassem as graças; chegando a esse ponto, não poderia o Senhor santificá-la de uma vez, da mesma maneira como, mais tarde, com a passagem do tempo, vai aperfeiçoando-a nas virtudes?27

Isso eu gostaria de saber, pois o ignoro; mas sei que a força que Deus infunde no princípio, quando essa graça dura somente um piscar de olhos e só é perceptível pelos efeitos, é diferente da que vem de uma concessão mais generosa desse favor. E muitas vezes eu tenho a impressão de que o problema está em a alma não se dispor logo por inteiro, devendo o Senhor, pouco a pouco, educá-la, torná-la determinada, dando-lhe forças viris, para que ela tudo ponha inteiramente sob os pés. Tal como Ele o fez com Madalena num breve instante, o faz com outras pessoas, na medida da sua entrega à ação divina. Nunca acreditaremos o bastante no fato de Deus recompensar, ainda nesta vida, concedendo cem por um.28

16. Também pensei nesta comparação: as almas adiantadas e principiantes recebem o mesmo alimento, um manjar de que comem muitas pessoas. As que comem pouco ficam somente com o bom sabor por algum tempo; as que comem um pouco mais obtêm dele a ajuda para se sustentar; as que comem muito recebem alento e força. É possível que se coma tantas vezes, e com tanto proveito, desse manjar da vida que já não se possa comer qualquer outra coisa; porque se vê o benefício que ele traz e fica-se com o paladar tão afeito a esse gosto suave que se prefere morrer a comer outras coisas, que só servem para tirar o gosto agradável deixado pelo bom manjar.

Também privar de uma companhia santa não traz tanto benefício num dia como em muitos; e podem ser tantos os dias em que estamos com ela que, se Deus nos favorecer, nos tornemos como ela. Na verdade, tudo depende do que Sua Majestade quer dar e a quem quer dar; mas é muito importante que a alma que começa a ser agraciada se desapegue de tudo e aprecie devidamente esse favor.

17. Também tenho a impressão de que Sua Majestade procura descobrir quem O ama ou não. E Ele revela quem é, com um deleite muito soberano, capaz de avivar a fé — caso esta esteja amortecida — naquilo que há de nos dar, dizendo: “Olhai, que isto é uma gota do imenso mar de bens”. Ele nada deixa por fazer àqueles a quem ama. E, vendo que O recebem, dá e se dá a Si mesmo. Ele ama a quem O ama; e como sabe amar e que bom amigo é! Ó Senhor de minha alma, quem dera que eu tivesse palavras para explicar o que dais a quem confia em Vós e o que perde quem chega a esse estado e fica apegado a si mesmo! Vós não desejais isso, pois fazeis muito mais vindo a uma pousada tão ruim quanto a minha. Bendito sejais por todo o sempre!

18. Volto a suplicar a vossa mercê que, se tratar dessas coisas de oração que escrevi com pessoas espirituais, que elas o sejam de fato; porque, se não conhecerem senão um caminho ou se tiverem ficado na metade dele, elas não o poderão compreender. E há algumas que são levadas desde o início por um caminho muito elevado; a essas parece que outros também poderão tirar proveito ali, aquietando o intelecto, sem se valerem de coisas materiais — ficando assim secas como paus. Outras, tendo tido um pouco de quietude, logo pensam que, como têm uma coisa, podem fazer a outra; e, em vez de aproveitarem, desperdiçam, como eu disse.29 Em resumo, em tudo há necessidade de experiência e discernimento. Que o Senhor no-los conceda pela Sua bondade.

Capítulo 23

Retoma a narração de sua vida e diz como começou a crescer na perfeição e por que meios. É proveitoso para as pessoas que se encarregam de dirigir almas que têm oração saberem como devem agir no princípio e tomarem conhecimento do benefício que obteve por ter encontrado quem a dirigisse.

1. Quero agora voltar ao ponto em que interrompi a narração da minha vida,1 pois creio que me desviei mais do que devia para que se entendesse melhor o que vem a seguir. Daqui por diante, é um novo livro, isto é, uma vida nova. A que levei até aqui era minha; a que passei a viver depois que comecei a falar dessas coisas de oração é a que Deus vive em mim. Porque entendo que era impossível sair por mim mesma em tão pouco tempo de costumes e ações tão maus. Louvado seja o Senhor, que me livrou de mim mesma.

2. Tão logo abandonei as ocasiões e me dediquei mais à oração, o Senhor começou a dar-me graças, como quem desejasse, ao que parece, que eu as quisesse receber. Sua Majestade passou a me conceder com freqüência a oração de quietude e, muitas vezes, de união, que durava um longo tempo. Como naquela época havia casos de grandes ilusões e enganos provocados nas mulheres pelo demônio,2 eu comecei a temer, visto serem grandes o de­leite e a suavidade que eu sentia, amiúde sem poder evitar, por ver em mim uma enorme segurança que era Deus, em especial quando estava em oração. Eu via que, nessa condição, ficava muito melhor e mais forte; mas, quando me distraía um pouco, voltava a ter medo e a pensar se o demônio não que­reria, fazendo-me entender que era bom, suspender-me o intelecto para pri­var-me da oração mental, impedindo-me de pensar na Paixão e de me be­neficiar do raciocínio, pois isso me parecia a maior perda, porque eu não com­preendia as coisas.

3. Contudo, como Sua Majestade já queria me iluminar para que eu não O ofendesse e reconhecesse o muito que Lhe devia, esse temor aumentou tanto que fui procurar com urgência pessoas espirituais com quem tratar, pois já tinha conhecimento de algumas, visto a minha casa ter sido visitada por membros da Companhia de Jesus, de quem eu — sem conhecer nenhum deles — gostava muito, só por conhecer o seu modo de vida e de oração. Mas eu não me considerava digna de falar com eles nem capaz de obedecer-lhes, o que me trazia mais medo, pois me parecia muito difícil suportar tratar com eles e permanecer sendo quem era.

4. Assim continuei por algum tempo, até que, com muita luta e temores, decidi procurar uma pessoa espiritual para perguntar-lhe o que era a oração que eu tinha, para que ela me desse luz, explicando-me se eu estava errada, ajudando-me a fazer tudo o que eu pudesse para não ofender a Deus; porque, como eu disse,3 a falta de coragem que via em mim me deixava muito tímida. Que erro tão grande, valha-me Deus: por querer ser boa, eu me afastava do bem! O demônio deve fazer muita oposição aos iniciantes no caminho da virtude, pois eu não conseguia vencê-la. Ele sabe que todo o recurso de uma alma está em se relacionar com amigos de Deus, e por isso eu nunca conseguia me decidir a fazê-lo. Eu esperava me corrigir antes, como quando deixei a oração,4 o que jamais deveria ter feito, pois já estava tão envolvida em coisinhas de mau costume, sem conseguir perceber que eram más, que precisava da ajuda de outros que me dessem a mão para me levantar. Bendito seja o Senhor, pois a Sua mão foi a primeira.

5. Como vi que o meu temor crescia, porque a oração progredia, pensei que nisso havia grande bem ou imenso mal; eu já compreendia que tinha uma coisa sobrenatural, porque às vezes não podia resistir-lhe nem conseguia tê--la quando desejava. Pensei comigo que não havia remédio se não procurasse ter a consciência limpa e afastar-me de toda ocasião de pecado, mesmo venial; se isso vinha do espírito de Deus, o benefício era claro; se vinha do demônio, o fato de eu procurar alegrar o Senhor e não ofendê-Lo fazia com que eu me prejudicasse pouco, ao mesmo tempo que derrotava o demônio. Determinada, e suplicando sempre a Deus que me ajudasse, agi assim por algum tempo e vi que a minha alma não tinha força para manter-se tão per­feita sozinha, devido a alguns apegos a coisas que, embora não fossem más em si, bastavam para estragar tudo.

6. Falaram-me de um culto sacerdote5 neste lugar, cuja bondade e vida santa o Senhor começava a mostrar às pessoas. Eu o procurei por meio de um fi­dalgo santo6 que vive aqui. É casado, mas tem vida tão exemplar e virtuosa, e de tanta oração e caridade, que em todo o seu ser resplandecem a bondade e a perfeição. E com muita razão, porque grande bem tiveram muitas almas por seu intermédio, visto ter ele tantos talentos que, embora a sua condição não o ajude, não pode deixar de praticar boas obras: é muito inteligente e muito amável com todos; sua conversa não é monótona, mas suave e gracio­sa, além de reta e santa, dando grande contentamento a quem com ele se relaciona. Ele tudo faz para o grande bem das almas com quem conversa, não tendo outro desejo senão beneficiar a todos, dando-lhes contentamento.

7. Pois esse bendito e santo homem, com seu engenho, me parece ter sido o princípio da salvação da minha alma. Sua humildade me provoca admiração. Ele, pelo que sei, há cerca de quarenta anos tem oração — talvez com uma diferença de dois ou três anos a menos — e leva a vida de maior perfeição que seu estado lhe permite; pois tem uma mulher tão grande serva de Deus e tão caridosa que só pode ajudá-lo; em suma, Deus a escolheu como esposa de alguém que Ele sabia que viria a ser um grande servo Seu. Alguns dos seus parentes tinham desposado pessoas da minha família,7 havendo também um estreito relacionamento seu com outro servo de Deus casado com uma prima minha.

8. Por esse meio, procurei que viesse falar-me o sacerdote que eu disse ser tão servo de Deus,8 muito amigo daquele fidalgo. Eu pretendia tê-lo como confessor e diretor. O fidalgo o trouxe para que eu lhe falasse; eu me senti muito confusa na presença de homem tão santo e falei-lhe apenas da minha alma e da minha oração, pois ele não quis confessar-me, dizendo que era muito ocupado, o que era verdade. Ele começou com a santa resolução de conduzir-me como alma forte — pois havia razão para que eu assim fosse, a julgar pela oração que ele viu que eu tinha —, a fim de que eu, de nenhuma maneira, ofendesse a Deus. Vendo sua determinação imediata em coisinhas que eu, como disse,9 não tinha forças para enfrentar com tanta perfeição, fiquei aflita, e, percebendo que ele considerava as coisas da minha alma dificuldades que seriam vencidas de uma só vez, vi que tinha necessidade de muito mais cuidado.

9. Enfim, entendi que os recursos que ele me oferecia não me levariam a me remediar, por serem adequados a uma alma mais perfeita, enquanto eu, embora avançada nas graças de Deus, mal começava a praticar as virtudes e a mortificação. Se eu tivesse de tratar somente com ele, creio que certamente a minha alma nunca iria progredir, porque a própria aflição que me dava por eu ver que não fazia — nem parecia poder fazer — o que ele me dizia era suficiente para que eu perdesse a esperança e abandonasse tudo.

Fico algumas vezes espantada com o fato de que, sendo ele uma pessoa que tem a graça particular de conduzir a alma de principiantes a Deus, não tivesse podido entender a minha, nem se dispusesse a encarregar-se dela; e vejo que tudo foi para o meu maior bem, para que eu conhecesse e me relacionasse com pessoas tão santas quanto as da Companhia de Jesus.

10. Combinei com esse fidalgo santo que me visitasse algumas vezes. Aqui se provou sua grande humildade, pois ele se dispôs a tratar com uma pessoa tão ruim quanto eu. Ele começou a visitar-me, animando-me e dizendo que eu não pensasse que um dia me afastaria de tudo de uma vez, e que Deus faria isso aos poucos. Contava-me que, durante anos, ele mesmo estivera envolvido com coisas ruins, não as tendo podido acabar por si mesmo. Ó humildade, que grandes bens fazes onde te encontras e aos que se aproximam de quem te tem! Dizia-me esse santo (que, a meu ver, posso chamar assim), para me beneficiar, que tinha fraquezas — porque, com sua humildade, ele assim as considerava; mas, levando-se em conta o seu estado, não eram faltas nem imperfeição, ao passo que, para o meu, o eram em alto grau.

Não é sem razão que digo isso, embora pareça que me estendo em detalhes: isso importa muito para que uma alma comece a aproveitar e para levá-la a voar (mesmo sem asas, como dizem), o que só pode receber crédito de quem tiver passado por isso. Faço-o também porque espero em Deus que vossa mercê beneficie muitos. Digo que toda a minha salvação foi ter quem soubesse me curar, tivesse humildade e caridade para ficar comigo e sofresse ao ver que eu não me corrigia de todo. Discretamente, ele ia me ensinando aos poucos várias maneiras de vencer o demônio. Comecei a ter tamanho afeto por ele que não havia maior descanso do que o dia em que o via, embora isso não fosse muito freqüente. Quando ele demorava a me visitar, eu ficava muito aflita, crendo que, por ser eu tão ruim, não viesse mais.

11. Como ele foi percebendo minhas imensas imperfeições, e talvez pecados (embora depois do meu contato com ele eu estivesse melhor), e como eu lhe contasse das graças que Deus me concedia, para que ele me esclarecesse, disse-me o fidalgo que uns e outros não eram compatíveis entre si, pois aqueles regalos eram de pessoas muito avançadas e mortificadas, razão por que não podia deixar de temer muito, pois algumas coisas lhe pareciam vir do mau espírito, apesar de ele não chegar a uma conclusão definitiva. Ele me disse que refletisse bem sobre tudo o que percebia em minha oração e lhe contasse. Isso era difícil para mim, que não sabia dizer nada sobre o que era a minha oração, porque essa graça de entender o que ela é, e de poder explicá-la, me foi dada por Deus há pouco tempo.

12. Quando ele me disse isso, como eu já estivesse com medo, foi grande a minha aflição, e muitas as lágrimas que derramei; porque, é claro, eu desejava contentar a Deus e não podia me convencer de que aquilo fosse obra do demônio. Mas temia que, devido aos meus grandes pecados, Deus me cegasse para que eu não o entendesse. Olhando livros para ver se conseguia uma descrição da oração que eu tinha, encontrei em um, Subida del Monte,10 no tocante à união da alma com Deus, todos os sinais que se manifestavam em mim, notadamente a impossibilidade de pensar. Pois isso era o que eu mais observava: quando tinha aquela oração, eu não podia pensar; sublinhei essas passagens e dei-lhe o livro, para que ele e o clérigo a que me referi11 olhassem e me dissessem o que devia fazer. Eu lhes disse que, se essa fosse a sua opinião, eu deixaria a oração por inteiro, pois não havia motivo para me expor a tais perigos. Porque, se ao fim de quase vinte anos de prática12 nada conseguira lucrar — só tendo obtido enganos do demônio —, melhor seria deixá-la, embora isso também fosse muito ruim, visto eu já saber como ficava a minha alma sem a oração. É grande o sofrimento que disso advém, como quem cai no rio e, vá para onde vá, vê maior perigo, estando prestes a se afogar.

Este é um grande sofrimento, e desse tipo tenho tido muitos, como fa­larei adiante.13 Embora pareça não importar muito, talvez seja benéfico en­tender como se há de provar o espírito.

13. E é sem dúvida grande a aflição por que passamos, sendo necessária a prudência, em especial quando se é mulher, porque, sendo grande a nossa fraqueza, seria muito ruim dizer com clareza que se trata de obra do demônio; é preferível observar muito bem, afastando-as dos perigos que possa haver, avisando-as discretamente, e mantendo o segredo, porque assim convém.

Falo isso porque muito sofri pelo fato de algumas pessoas com quem tratei da minha oração não terem sido discretas, falando com uns e outros, causando-me, por bem, imenso dano, divulgando coisas que ficariam melhor ocultas — pois não são para todos — e dando a impressão de que eu as tornava públicas. Creio que o Senhor permitiu que assim agissem, sem culpa sua, para que eu padecesse. Não digo que revelassem segredos da confissão; contudo, como eram pessoas a quem eu contava meus temores para que me esclarecessem, eu achava que tinham de ficar caladas. Todavia, nunca ousei ocultar-lhes coisa alguma.

Afirmo, pois, que se alertem as pessoas com muita prudência, estimulando-as e aguardando: o Senhor as ajudará como ajudou a mim. Se Ele não me tivesse ajudado, eu me teria prejudicado muito, temerosa e medrosa que era. Como eu sofria muito do coração, espanto-me que isso não tenha me trazido muitos malefícios.

14. Dei o livro e um relato14 da minha vida e dos meus pecados, que fiz o melhor que pude (não como confissão, por ser ele secular, mas dando bem a entender quão ruim eu era), para que os dois servos de Deus verificassem, com sua grande caridade e amor, o que era conveniente para mim.

Quando veio a resposta que eu, muito temerosa, esperava, depois de ter pedido a muitas pessoas que me encomendassem a Deus e de ter feito muitas orações naqueles dias, o fidalgo, muito aflito, veio a mim e me disse que, ao ver de ambos, se tratava do demônio, sendo recomendável que eu procurasse um padre da Companhia de Jesus, que viria se eu o chamasse dizendo quanta necessidade tinha; eu deveria contar-lhe toda a minha vida, numa confissão geral, falando-lhe de minha condição, de maneira muito explícita. A virtude do sacramento da confissão lhe daria, com a graça de Deus, mais luz; disseram-me que esses padres têm muita experiência nas coisas do espírito e que eu não deveria descuidar daquilo que me dissesse, pois corria grande risco se não houvesse quem me dirigisse.

15. Isso me trouxe tanto medo e pesar que só pude chorar. Estando num oratório, desfeita, sem saber o que haveria de ser de mim, li num livro que o Senhor parece ter posto em minhas mãos, o que dizia São Paulo: Deus é muito fiel e jamais consente que os que o amam sejam enganados pelo demônio.15 Isso me trouxe muito consolo.

Comecei a cuidar da minha confissão geral, anotando todos os males e bens, narrando a minha vida da maneira mais clara que podia, sem omitir nada.16

Recordo-me que, depois de escrever, vi muitos males e quase nenhum bem, o que me deu muita dor e aflição. Eu também sofria pelo fato de me verem tratar em casa com pessoas santas como as da Companhia de Jesus, temendo pela minha ruindade, pois me parecia, fazendo isso, ficar mais obrigada a não ser tão ruim e a afastar-me dos meus passatempos, porque, se não o fizesse, estaria agravando a minha situação. Por essa razão, pedi à sacristã e à porteira que não o revelassem a ninguém. Isso pouco me valeu, porque estava à porta, quando me chamaram, quem o contou a todo o convento. Que empecilhos e temores põe o demônio no caminho de quem deseja chegar a Deus!

16. Tratando com aquele servo de Deus17 — muito dedicado e prudente —, revelei-lhe tudo o que me ia na alma. Bom conhecedor dessa linguagem, ele me disse o que era e muito me estimulou. Afirmou ser notoriamente es­pírito de Deus, mas que havia necessidade de que eu recomeçasse a oração, porque ela não estava bem fundada, e eu não tinha começado a entender a mortificação (e isso era tão verdadeiro que até o nome eu parecia não entender). Eu de nenhuma maneira deveria deixar a oração, sendo preciso que eu me esforçasse muito, já que o Senhor me concedia favores tão particulares. Ele declarou que talvez o Senhor quisesse, por meu intermédio, beneficiar muitas outras pessoas, bem como fazer outras coisas (parece que ele profetizou o que depois o Senhor fez comigo), e que eu seria muito culpada se não correspondesse às graças que Deus me dava. Em tudo me parecia falar nele o Espírito Santo, para curar a minha alma, tamanha a força com que se imprimiam nela as palavras dele.

17. Isso me deixou muito confusa, levando-me por caminhos que me davam a impressão de que eu me tornara uma pessoa completamente diferente. Que grande coisa é compreender uma alma! Ele me disse que eu orasse todos os dias com uma passagem da Paixão, que me beneficiasse de Cristo e não pensasse senão em Sua Humanidade, e que resistisse o quanto pudesse aos recolhimentos e gostos, só permitindo que ocorressem quando ele me ordenasse outra coisa.

18. Ele me deixou consolada e estimulada; o Senhor me ajudou, e a ele, para que entendesse a minha condição e a maneira de me dirigir. Fiquei determinada a não me desviar do que ele me mandasse em nenhuma coisa, e tenho agido assim até hoje. Louvado seja o Senhor, que me deu a graça de obedecer aos meus confessores, ainda que de modo imperfeito; tenho tido como confessores, quase sempre, esses benditos homens da Companhia de Jesus e, como digo, eu os tenho seguido, se bem que imperfeitamente.

A minha alma começou a ter uma sensível melhora, como agora direi.

Capítulo 24

Prossegue no relato iniciado e conta como a sua alma foi progredindo depois que começou a obedecer, dizendo quão pouco lhe adiantava resistir às graças de Deus e como Sua Majestade continuava a dá-las com maior abundância.

1. Depois dessa confissão, a minha alma ficou com tanta paz que eu tinha a impressão de que não havia nada a que eu não me dispusesse. Assim, comecei a mudar muitas coisas, embora o confessor não me pressionasse, parecendo antes não fazer caso de nada. Isso me estimulava mais, pois me levava pelo caminho do amor a Deus, dando-me liberdade para que eu agisse por amor, e não pela recompensa.

Assim fiquei quase dois meses, tudo fazendo para resistir aos regalos e graças de Deus. Quanto ao exterior, a mudança era perceptível, porque o Senhor já começava a me dar forças para suportar certas coisas que pessoas que me conheciam consideravam extremas, inclusive as da minha casa.1 Levando em conta o que eu fazia antes, elas tinham razão em pensar assim; mas, considerando as obrigações que o meu hábito e profissão impunham, isso não era nada.

2. Resistindo a esses gostos e regalos de Deus, consegui que Sua Majestade me ensinasse; porque, antes, eu pensava que, para que Ele me desse regalos na oração, precisava de total isolamento, e quase não me atrevia a me mexer. Depois percebi que isso pouco adiantava; porque, quanto mais eu procurava me distrair, tanto mais o Senhor me cobria de uma suavidade e de uma glória que me pareciam rodear por inteiro, deixando-me sem condições de fugir. Era tanta a minha preocupação que eu muito sofria. O Senhor se preocupava mais em me conceder favores e a se manifestar mais intensamente nesses dois meses, para que eu melhor compreendesse que não podia resistir-Lhe.

Comecei a sentir de novo amor pela sacratíssima Humanidade. A minha oração melhorou, como um prédio melhor assentado; passei a ter afeição pelas práticas de penitência que não costumava seguir devido às minhas grandes enfermidades. Aquele santo homem a quem me confessei me disse que algumas coisas não poderiam me prejudicar e que, se porventura Deus me mandava tanto sofrimento, isso devia ser por causa de eu não fazer penitência, desejando Sua Majestade que eu a fizesse. Ele me mandava praticar algumas mortificações de que eu não gostava muito. Porém, eu tudo fazia, por achar que o Senhor o tinha enviado a mim, dando-lhe a graça de me ordenar de uma maneira que me fizesse obedecer. A minha alma já começa a se ressentir de qualquer ofensa que fizesse a Deus, por ínfima que fosse, razão por que, enquanto houvesse alguma coisa supérflua, eu não podia ficar em recolhimento. Eu rezava muito para que o Senhor me levasse pela mão; tratando com seus servos, eu Lhe pedia que me permitisse não recuar, pois isso me parecia ser um grande delito, capaz de fazê--los perder crédito por minha causa.

3. Nessa época, veio a este lugar o Padre Francisco,2 que era duque de Gan­día e que, há alguns anos, tinha abandonado tudo e entrado na Companhia de Jesus. Meu confessor3 fez com que eu travasse contato com ele; o fidalgo de que falei também veio a mim, pedindo que eu lhe falasse e contasse sobre a oração que tinha, pois sabia que o Padre Francisco vivia num alto grau de contemplação, sendo muito favorecido e consolado por Deus; desde aquele momento, Deus o recompensava por ter ele deixado tudo pelo Senhor.

Tendo me ouvido, ele declarou tratar-se do espírito de Deus, parecendo--lhe ruim resistir-lhe, embora até então isso não tivesse feito mal. Ele me recomendou que eu sempre começasse a oração com uma passagem da Paixão e que, caso depois o Senhor me arrebatasse o espírito, eu não resistisse, mas me deixasse levar por Sua Majestade, também não O procurando. Como praticante avançado, ele me deu remédios e conselhos, visto que a experiência é muito importante nesse aspecto. Ele me disse que seria um erro resistir por mais tempo. Isso trouxe muito consolo a mim e ao fidalgo, que se alegrou muito por saber que tudo vinha de Deus. Ele sempre me ajudava e avisava no que podia, que era muito.

4. Nessa época, transferiram meu confessor,4 o que senti muitíssimo, pois pensei que voltaria a ser ruim, não me parecendo possível encontrar outro como ele. A minha alma ficou como num deserto, muito desconsolada e temerosa. Eu não sabia o que fazer de mim. Uma parente minha levou-me para sua casa, e procurei logo arranjar outro confessor na Companhia. Quis o Senhor que eu começasse a fazer amizade com uma senhora viúva, muito nobre e dedicada à oração, que tinha constante contato com os jesuítas.5 A instâncias dela, seu próprio diretor me ouviu. Fiquei vários dias em sua casa, porque ela morava perto dos padres, e eu gostava muito de conversar com eles; a minha alma muito se beneficiava só por ver a santidade de sua vida.

5. Esse padre6 passou a exigir de mim mais perfeição. Dizia-me que, para contentar por inteiro a Deus, nada era demais. Ele o fazia com tato e suavidade, porque a minha alma ainda não estava nada forte, e sim bem frágil, em especial no tocante a certas amizades; embora manter essas amizades não ofendesse a Deus, a afeição era muita, parecendo-me ser ingratidão abandoná-las. Eu lhe dizia que, como não ofendia a Deus, eu não tinha por que ser mal agradecida. Disse-me ele que eu me encomendasse a Deus por alguns dias e rezasse o hino Veni, Creator, para que Ele me desse luz sobre a melhor decisão a tomar. Certo dia, depois de muita oração e súplicas ao Senhor para que me ajudasse a contentá--Lo em tudo, comecei o hino e, quando o rezava, veio-me um arrebatamento tão repentino que quase me tirou de mim, coisa de que não pude duvidar, por ter sido muito manifesto. Essa foi a primeira vez que o Senhor me concedeu o favor dos arroubos. Entendi as palavras: Já não quero que fales com homens, mas com anjos.7 Isso me causou um grande espanto, porque a moção da alma foi grande e porque essas palavras, ditas no fundo do meu espírito, me causaram temor. Contudo, também me deram grande consolo, que permaneceu depois que se foi o temor, que, assim me pareceu, foi provocado pela novidade do fato.

6. Essas palavras se cumpriram, pois nunca mais consegui permanecer em amizades nem ter consolo nem afeição particular senão por pessoas que, pelo que percebo, amam a Deus e procuram servi-Lo. Mesmo que se trate de parentes e amigos, não tenho como agir de outro modo. Tratar com quem não ama a Deus nem se dedica à oração se tornou uma penosa cruz. Assim é, segundo me parece, sem nenhuma exceção.

7. Desde aquele dia, fique animada a deixar tudo por Deus, de uma maneira que me deu a impressão de que Ele quis, naquele momento — pois não me parece ter sido mais do que isso —, transformar por inteiro Sua serva. Assim, não foi necessário que me mandassem fazê-lo; o confessor, vendo-me tão apegada até então, não se atrevera a me dizer de modo patente que abandonasse as amizades. Ele devia estar esperando que o Senhor agisse como agiu. De minha parte, nunca pensei que o conseguisse; eu já tentava fazê-lo, mas era tanta a dor que sentia que desistia, ainda mais por não ver nessas amizades nenhum inconveniente. Naquele momento, porém, o Senhor me dera liberdade e força para levá-lo a efeito. Eu disso isso ao confessor e tudo abandonei, seguindo sua determinação. A pessoa com quem eu conversava tirou muito proveito do fato de ver que eu estava decidida.

8. Bendito seja Deus para sempre, por ter me dado, num instante, a liberdade que eu, com todos os esforços que fizera por muitos anos, não pude alcançar sozinha, tendo chegado muitas vezes a ponto de me exaurir tanto que abalava a própria saúde. Como foi dada por Aquele que é poderoso e Senhor verdadeiro de tudo, essa liberdade não me causou nenhum sofrimento.

Capítulo 25

Fala da maneira de entender as palavras que Deus dirige, sem ruído, à alma, e de alguns enganos que pode haver nisso. Explica os meios de saber quando são palavras divinas. É muito proveitoso para quem estiver nesse grau de oração, porque é muito bem explicado e contém abundante doutrina.

1. Parece-me conveniente explicar esse modo de Deus dirigir-se à alma, e a maneira como esta se sente, para que vossa mercê o entenda; porque, desde que o Senhor me fez essa graça pela primeira vez,1 ela tem sido muito comum, como se verá adiante.

Trata-se de palavras bem formadas,2 mas inaudíveis aos ouvidos corporais. São, porém, entendidas mais claramente do que se fossem ouvidas. Por mais que se resista, é impossível deixar de compreendê-las. Aqui na terra, quando não se quer ouvir, podem-se tapar os ouvidos ou desviar a atenção, de modo que, ainda que se ouça, não se escute. Nesse estado em que Deus põe a alma, não há como fazer isso; mesmo que seja trabalhoso, somos obri­gados a escutar, e o intelecto fica tão apto a entender o que Deus quer que entenda que pouco importa querer ou não querer. Porque quem tudo pode exige que saibamos que havemos de fazer o que Ele quer, mostrando ser o nosso verdadeiro Senhor. É grande a minha experiência nisso, porque resisti du­rante quase dois anos, dado o grande temor que sentia. Mesmo agora, ainda o tento algumas vezes, mas em vão.

2. Eu queria falar dos enganos que pode haver (embora, para quem tenha muita experiência, eles me pareçam poucos ou mesmo inexistentes — mas a experiência tem de ser muita) e da diferença existente entre a presença do bom espírito e a do mau, bem como das ocasiões em que tudo não passa de apreensão do próprio intelecto ou de comunicação do espírito consigo mesmo (não sei se isso pode acontecer, mas hoje mesmo tive a impressão de que sim). Quando essa comunicação vem de Deus, tenho tido muitas provas, em inúmeras coisas que me foram ditas dois ou três anos antes, de que se cumprem as palavras proferidas, sem exceção; acontecem também outras coisas em que se vê com clareza ser o espírito de Deus, como adiante direi.

3. Parece-me que uma pessoa, encomendando a Deus uma coisa com gran­de afeto e preocupação, poderia imaginar que ouve dizer que a coisa se cum­pri­rá ou não. Isso é muito possível, mas quem entendeu desta outra maneira3 per­ce­berá claramente do que se trata, porque é enorme a diferença. Se for uma coisa criada pelo intelecto, por mais sutil, cedo se perceberá ser ele que organiza e fala. O que distingue esses dois modos é a diferença entre ela­borar um discurso e escutar o que outra pessoa diz; o intelecto percebe que não escuta, visto que age, pois as palavras que alinha são como um ruído sur­do, sons fantásticos, sem ter a clareza das palavras do espírito. Quando o in­telecto age, podemos dis­trair--nos e, se estivermos falando, calar-nos; quando Deus fala, isso não é possível.

O indício fundamental é que não produzem efeito,4 enquanto o que o Senhor diz são palavras e obras; mesmo que não sejam palavras de devoção, mas de repreensão, dispõem a alma à primeira, fortalecendo-a, enternecendo--a, iluminando-a e dando-lhe felicidade e quietude. Se a alma estava em aridez, agitada e desassossegada, nada disso permanece e, melhor ainda, o Senhor parece querer que se compreenda que Ele é poderoso e que as Suas palavras são obras.5

4. Creio que a diferença é igual à que há entre falar e ouvir, nem mais nem menos do que isso; o que falo, como eu disse,6 vou ordenando com o intelecto; se me falam, contudo, limito-me a ouvir, sem nenhum esforço. No primeiro caso, não podemos determinar bem o que significa, como se estivéssemos meio adormecidos; no segundo, a voz é tão clara que não perdemos uma sílaba. Por outro lado, às vezes o entendimento e a alma se encontram tão alvoroçados e distraídos que não conseguiríamos formular uma frase razoável, e mesmo assim encontramos prontas frases elaboradíssimas que a alma, mesmo estando muito recolhida, não poderia formular; à primeira palavra, como eu disse, a alma se transforma por inteiro. Especialmente quando está em arroubo, com as faculdades suspensas, como poderia a alma entender coisas que antes nunca lhe ocorreram? Como surgem elas, então, já que a alma quase não age e já que a imaginação está como abobada?

5. Deve-se entender que, quando tem visões ou ouve essas palavras, a alma nunca está unida a Deus no arroubo; porque, neste último caso — como eu já declarei, creio que na segunda água —,7 as faculdades se perdem de todo e, pelo que sei, não é possível ver, nem entender, nem ouvir: a alma está entregue por inteiro a outro poder e, nesse tempo, que é muito curto, não creio que o Senhor lhe dê alguma liberdade. Depois que isso passa, encontrando-se a alma ainda no arroubo, ocorre isso de que falo;8 porque as faculdades ficam de tal maneira que, embora não estejam perdidas, quase nada fazem. Estão como absortas, sem capacidade de raciocinar. Há tantos indícios que permitem compreender a diferença que, embora possamos nos enganar, isso não vai ocorrer muitas vezes.

6. Afirmo que, se a pessoa for experiente e estiver prevenida, vai percebê--lo com clareza. Descartando outros elementos que o comprovam, como já falei,9 basta ver que as palavras, quando são falsas, não causam efeito. A alma não as admite (ao passo que aceita, mesmo sem querer, as palavras místicas)10 nem lhes dá crédito, percebendo tratar-se de um devaneio do intelecto, da mesma maneira como não levaria a sério uma pessoa que delirasse.

No caso das palavras místicas, é como se ouvíssemos uma pessoa muito santa ou instruída, e de grande autoridade, que sabemos não há de mentir para nós. E essa comparação ainda fica a dever, porque essas palavras trazem consigo, por vezes, uma majestade que, sem que saibamos quem as profere, nos faz tremer, se são de repreensão, e nos desmanchar de amor, se são amorosas. Trata-se, como eu disse,11 de coisas que estavam bem longe da memória, sendo ditas num átimo frases muito grandes que, para serem organizadas, requereriam muito tempo — por isso, não me parece que haja maneira de ignorar que não são coisas feitas por nós. Por conseguinte, não preciso me deter aqui, porque creio ser impossível que uma pessoa experiente venha a se enganar se conscientemente não o quiser.

7. Muitas vezes, quando tenho dúvidas, acontece-me de não acreditar no que me dizem, pensando que eu mesmo o criei (depois que ocorre, porque, enquanto está acontecendo, é impossível), e ver as palavras realizadas muito tempo depois. O Senhor as faz permanecer na memória, não permitindo que as esqueçamos, enquanto o que vem do intelecto é como um fraco movimento do pensamento, que passa e é esquecido. No caso das palavras de Deus, embora se esqueça um pouco com o passar do tempo, nunca se perde por inteiro a memória do que foi dito, exceto se foi há muito tempo ou se são palavras de favor ou de doutrinação. As palavras de profecia, no entanto, não são esquecidas, a meu ver, pelo menos por mim, mesmo com tão pouca memória.

8. Repito que, a meu ver, a alma, a menos que seja tão perversa que deseje fingir — o que traria grandes males —, dizendo que ouve quando na verdade não o faz, não pode deixar de ver com clareza quando é ela quem ordena as palavras e fala, se alguma vez tiver ouvido o espírito de Deus; porque, se jamais o percebeu, poderá passar a vida inteira nessa ilusão e ter a impressão de que ouve palavras divinas, embora eu não saiba como isso pode acontecer.

Para mim, a alma quer ou não quer entender: se se desfaz com o que ouve e de forma alguma gostaria de ouvir alguma coisa — por causa de mil temores e tantas outras coisas que a possam levar a querer estar quieta em sua oração sem essas coisas —, por que dá tanta liberdade para que o intelecto componha argumentos? É preciso muito tempo para fazê-lo. Aqui,12 sem perder nenhum tempo, a alma fica instruída e compreende coisas que levariam um mês para imaginar; e o próprio entendimento e a própria alma ficam espantados com algumas coisas que escutam.

9. Assim é, e quem tiver experiência verá que tudo o que eu digo é tal como digo. Louvo a Deus por tê-lo conseguido dizer. Para terminar, afirmo que, quando isso vem do intelecto, poderíamos entendê-lo quando desejássemos e, cada vez que temos oração, poderíamos imaginar ouvi-lo. Mas, quando vem de Deus, não é assim; fico muitos dias querendo entender algo, sem o poder, e, como eu disse,13 tenho de entendê-lo quando não o quero. Quem deseja enganar os outros falando que ouviu de Deus o que vem de si não terá maior dificuldade para afirmar que o ouviu com os ouvidos corporais. Na verdade, nunca pensei que houvesse outro modo de ouvir ou de entender até conhecê-lo por mim mesma, o que, como afirmei,14 me custou um enorme sofrimento.

10. Quando provêm do demônio,15 as palavras, além de não deixarem bons efeitos, deixam maus. Isso me aconteceu não mais de duas ou três vezes, e logo fui avisada pelo Senhor de que vinham do demônio. Além da grande aridez que permanece, a alma fica com uma inquietação semelhante à de muitas outras ve­zes em que o Senhor permitiu que a minha alma tivesse grandes tentações e sofrimentos de diversas espécies; e, embora me atormente muitas vezes, como direi,16 trata--se de uma inquietação que não se consegue saber de onde vem; ao que parece, a alma resiste, se perturba e fica aflita sem saber a razão, porque não ouve coisas ruins, e sim boas. Penso que um espírito sente o outro. O prazer e o deleite que daí advêm são, a meu ver, bastante distintos. O demônio poderia enganar com eles aquele que não tiver ou não tiver tido prazeres vindos de Deus.

11. Falo dos prazeres verdadeiros, que trazem uma consolação suave, forte, profunda, deleitosa, calma. Porque não considero devoções umas devoçõezinhas da alma, lágrimas e outros sentimentos pequeninos que ao primeiro sopro da perseguição desaparecem, embora sejam bons princípios e santos sentimentos, porque não são capazes de determinar se esses efeitos vêm do bom ou do mau espírito. Assim, é bom andar sempre advertido porque, se tivessem visões ou revelações, pessoas que não estão adiantadas na oração além desse ponto poderiam ser enganadas. Eu nunca experimentei essas coisas, até que Deus me concedeu, apenas pela Sua bondade, a oração de união, excetuando a primeira vez de que falei,17 ocorrida há muitos anos, quando vi Cristo. Se Sua Majestade me tivesse permitido entender tratar-se de uma visão verdadeira, como mais tarde entendi, grande benefício teria daí advindo. As palavras do demônio não deixam nenhuma suavidade na alma, mas um pavor e um grande tédio.

12. Considero muito certo que o demônio não enganará — nem Deus lhe permitirá fazê-lo — a alma que em nada confia em si e está fortalecida na fé, uma alma que entenda que é capaz de morrer mil vezes por uma verdade. Com esse amor à fé, que Deus logo infunde, gerando uma fé viva e forte, a alma deve procurar sempre seguir o que ensina a Igreja, perguntando a uns e outros, como quem já tem pés fincados com vigor nessas verdades, não podendo nenhuma revelação imaginável — mesmo que o céu se abrisse — demovê-la em um único ponto do que a Igreja ensina.

Mesmo que alguma vez se veja vacilar em pensamento contra isso ou parar para dizer: “Se Deus me diz isso, também pode ser verdade, como o que dizia aos santos”, não digo que a alma chegue a acreditar no demônio, mas que ele começa a fazer os primeiros movimentos para tentá-la. Então, o simples deter--se aí seria muito danoso. Mas creio que, nesse caso, nem mesmo os primeiros movimentos vão ocorrer se a alma estiver nisso tão forte quanto o Senhor torna aqueles a quem concede essas coisas, capaz de desafiar os demônios diante de qualquer dúvida sobre alguma verdade da Igreja, por menor que seja.

13. Afirmo que, se a alma não vir em si essa grande força e se a devoção ou a visão não a ajudarem, não se considere segura. Porque, embora não sinta de imediato o prejuízo, este poderia fazer-se, pouco a pouco, muito grande. Pelo que vejo, e sei por experiência, só há certeza de que essas coisas procedem de Deus se elas respeitarem as Sagradas Escrituras, já que a mais di­minuta distorção me faria ter muito mais firmeza em acreditar que vêm do de­mônio do que a que tenho agora de que vêm de Deus, por maior que seja esta certeza. Quando as palavras vêm de Deus, não é preciso procurar sinais nem discernir de que espírito vêm; o simples fato de se ter de fazer isso é in­dício tão claro de que vêm do demônio que, mesmo que todos me ga­rantissem que vêm de Deus, eu não o acreditaria.

Quando é o demônio que age, parece que todos os bens se escondem e fo­gem da alma, que fica desabrida e alvoroçada, sem nenhum efeito bom; pois, embora isso pareça incutir desejos na alma, estes não são fortes. A hu­mildade que fica é falsa, agitada e desprovida de suavidade. Parece-me que quem experimentou o bom espírito vai entendê-lo.

14. No entanto, o demônio pode recorrer a muitos embustes, razão por que o mais certo é temer sempre e permanecer de sobreaviso, ter um mestre instruí­do e não lhe esconder nada. Agindo assim, nenhum dano pode advir, se bem que muitos me tenham atingido, graças aos temores demasiados de algumas pessoas. Uma vez em especial, aconteceu de se reunirem muitas pessoas a quem eu dava crédito — e era justo que desse. Embora eu já estivesse sob a direção de uma delas, ia tratar com as outras a mando seu, e todas tratavam longamente do meu caso, pois eram muito amigas minhas e te­miam que eu fosse enganada. De minha parte, eu também tinha grande te­mor quando não estava em oração, já que, estando nela e recebendo do Senhor alguma graça, logo me tranqüilizava. Creio que eram cinco ou seis.18 Disse-me meu confessor19 que todos estavam convencidos de que era o demônio quem agia em mim. Eu não devia comungar com tanta freqüência, devendo me distrair e evitar a solidão.

Eu era extremamente medrosa, como disse,20 para o que contribuía minha doença do coração; assim, muitas vezes não me atrevia a ficar sozinha numa sala mesmo em plena luz do dia. Percebendo que tantos o afirmavam e eu não podia acreditar, senti-me envergonhada, parecendo-me ter pouca humildade; porque todas aquelas pessoas tinham uma vida infinitamente melhor do que a minha, sendo além disso instruídas, não havendo razões para eu não crer nelas. Eu me forçava ao máximo para acreditar e, pensando em minha vida ruim,21 achava que estavam falando a verdade.

15. Saí da igreja com essa aflição e entrei num oratório. Há muitos dias eu não comungava e estava privada da solidão — que era todo o meu consolo —, sem ter uma pessoa com quem tratar, porque todas estavam contra mim: eu tinha impressão de que alguns zombavam de mim quando falava disso, pensando ser fantasias. Outros alertavam o confessor para que ele se precavesse quanto a mim. Outros ainda afirmavam que tudo era claramente obra do demônio. Apenas o confessor22 me consolava sempre, embora parecesse concordar com todos — ele o fazia para me provar, como depois vim a saber. Ele me dizia que, mesmo que fosse obra do demônio, nada me podia fazer, desde que eu não ofendesse a Deus, pois Ele me libertaria. O confessor mandava que eu suplicasse muito a Deus, pois ele e todas as pessoas que confessava,23 e outras muitas, o faziam com fervor. Quanto a mim, dedicava toda a minha oração pedindo a Sua Majestade que me levasse por outro ca­minho, solicitando que fizessem o mesmo todas as pessoas que eu conside­rava servas de Deus. E assim fiquei por uns dois anos, não sei bem, suplican­do continuamente ao Senhor.

16. Quando eu pensava que era possível ter ouvido tantas vezes o demônio, nenhum consolo me bastava. Porque, embora não conseguisse horas de solidão para orar, mesmo em conversas o Senhor me levava ao recolhimento, e, sem que eu pudesse recusar, me dizia o que queria, e eu, contra a minha vontade, era obrigada a ouvi-lo.

17. Numa certa ocasião, estando sozinha, sem ninguém com quem falar, sem poder rezar nem ler, e estando espantada de tantas tribulações e cheia de temores de que o demônio me enganasse, fiquei toda ansiosa e cansada, sem saber o que fazer de mim. Nessa aflição já me vi muitas vezes, mas nenhuma, creio eu, num grau tão extremo. Fiquei assim durante quatro ou cinco horas,24 pois não havia para mim consolo do céu ou da terra; o Senhor me deixou padecer, temerosa de mil perigos.

Ó meu Senhor, como sois o amigo verdadeiro; és poderoso, quando quereis podeis, e nunca deixais de querer quem Vos quer! Louvem-Vos todas as coisas, Senhor do mundo! Feliz quem puder percorrer todo o universo para dizer quão fiel sois a Vossos amigos! Todas as coisas faltam; Vós, Senhor de todas elas, nunca faltais. Pouco deixais sofrer quem Vos ama. Ó Senhor meu! Com que delicadeza, polidez e sabor sabeis tratá-los! Feliz quem tiver se dedicado a amar somente a Vós! Parece, Senhor, que provais com rigor quem Vos ama, para que no extremo do sofrimento possa entender o maior extremo do Vosso amor. Ó Deus meu, feliz quem tivesse capacidade, letras e novas palavras para louvar Vossas obras, como as vê minha alma!

Falta-me tudo, Senhor meu. Mas, se não me desamparardes, não serei eu quem vai faltar a Vós. Levantem-se contra mim todos os doutos, persigam--me todas as coisas criadas, atormentem-me os demônios, mas não me falteis Vós, Senhor, pois já tenho experiência dos benefícios que concedeis a quem só em Vós confia.

18. Encontrando-me eu com essa grande fadiga (até então, eu não tinha começado a ter visões), bastaram-me estas palavras para me tirar dela e apaziguar-me por inteiro: Não tenhas medo, filha, pois sou Eu, que não te desampararei; não temas. Na condição em que eu me encontrava, parece-me que eram necessárias muitas horas para que eu me convencesse a ficar calma, e ninguém seria capaz de consegui-lo. E eis-me sossegada, só com essas palavras; eis-me forte, disposta, segura, em quietude e iluminada, e a tal ponto que vi vinha alma transformada por inteiro. Naquele momento, eu teria enfrentado o mundo inteiro, defendendo a convicção de que era Deus quem falava. Quão bom é o Senhor, e quão poderoso! Ele dá não só o conselho como também o remédio. Suas palavras são obras.25 Valha-me Deus, como Ele fortalece a fé e aumenta o amor!

19. Isso é tão certo que muitas vezes eu me lembrava de quando o Senhor ordenou que os ventos parassem no mar, no momento em que a tempestade se desencadeou.26 Assim, eu dizia: quem é este a quem obedecem todas as minhas faculdades, que dá a luz, num átimo, em meio a tanta escuridão, suavizando um coração que parecia de pedra e dando a água de lágrimas suaves onde parecia dever haver, por muito tempo, secura? Quem traz estes desejos? Quem dá este ânimo? E me veio o pensamento: que temo? Que é isso? Desejo servir a esse Senhor, não pretendo senão contentá-Lo; não quero consolação, nem descanso, nem outro bem afora fazer a Sua vontade (pois disso eu estava bem certa e, a meu ver, podia afirmá-lo).

Porque, se este Senhor é poderoso, como vejo e sei que é, e se os demônios são seus escravos (e disso não se pode duvidar, pois é verdade de fé), que mal me podem eles fazer sendo eu serva deste Senhor e Rei? Por que não haverei de ter forças para enfrentar todo o inferno?

Naquele momento, eu carregaria uma cruz com a mão, pois Deus parecia verdadeiramente me dar ânimo, modificando-me por inteiro num breve instante, a ponto de eu não temer enfrentar os demônios corpo a corpo. Eu tinha a impressão de que, com aquela cruz, venceria facilmente a todos. Desse modo, disse: “Agora vinde todos, pois, sendo serva do Senhor, eu quero ver o que me podeis fazer”.

20. Não havia dúvidas de que eles pareciam temer-me, porque fiquei calma e tão destemida diante de todos eles que todos os medos que eu tinha até então desapareceram. Embora algumas vezes tenham voltado, como adiante direi,27 nunca mais os temi, parecendo que eram eles que me temiam. Fiquei com tal poder contra eles — dádiva bem clara do Senhor de todos — que não me incomodam mais do que moscas. Eles me parecem tão covardes que, vendo que somos capazes de enfrentá-los, ficam faltos de força. Esses inimigos não atacam de frente, mas apenas a quem recua diante deles — ou nas ocasiões em que Deus permite, para o maior bem dos seus servos, que eles os tentem e atormentem. Queira Sua Majestade que temamos a quem temos de temer e que compreendamos que pode haver maior dano num só pecado venial do que no inferno inteiro, porque assim é.

21. Esses demônios nos deixam espantados porque nós queremos nos espan­tar com apegos à honra, bens e deleites. Eles, juntando-se a nós — já que tra­ba­lhamos contra nós mesmos ao amar e querer o que devíamos rejeitar —, muitos prejuízos nos trazem. Nós fazemos com que eles lutem contra nós com as nossas próprias armas, que pomos em suas mãos em vez de usá-las para nos de­fender. Isso é uma grande lástima. Mas, se rejeitarmos tudo por Deus, abraçando-nos com a cruz e buscando servi-Lo de verdade, os demônios fugirão dessas verdades como quem foge da peste. O demônio é amigo das mentiras, a própria mentira, e não faz pacto com quem anda na verdade.28 Quando ele vê que o intelecto está obscurecido, dá uma grande ajuda para que acabemos mal; porque, vendo que alguém está cego ao buscar seu repouso em coisas vãs, e tão vãs quanto as coisas deste mundo, que são brinquedo de criança, ele logo percebe que se trata de uma criança, tratando-o como tal e enfrentando-o inúmeras vezes.29

22. Praza ao Senhor que eu não seja assim. Que Sua Majestade me favoreça para que eu tenha por descanso o que é descanso, por honra o que é honra e por deleite o que é deleite, e não tudo ao contrário. E uma figa para todos os demônios,30 pois são eles que hão de me temer. Não entendo esses medos. Por que dizer: “de­mônio! demônio!” quando se pode dizer: “Deus! Deus!” — fazendo tremer o demônio?31 Sim, pois já sabemos que o demônio não pode sequer mover--se se o Senhor não lhe permitir. Que digo? Sem dúvida, tenho mais medo dos que temem muito o demônio do que dele mesmo; porque ele não me pode fazer nada, ao passo que aqueles, especialmente se são confessores, trazem muita inquietação — e passei alguns anos com tamanho tormento que ainda hoje me espanto por tê-lo suportado. Bendito seja o Senhor, que tão verdadeiramente me ajudou!

Capítulo 26

Continua no mesmo assunto. Narra certas coisas que lhe aconteceram e a levaram a perder o temor e afirmar que era o bom espírito que lhe falava.

1. Considero uma das grandes graças concedidas pelo Senhor a disposição que me deu contra os demônios; porque a alma andar acovardada e re­ceosa de alguma coisa além de ofender a Deus é um enorme inconveniente. Pois temos um Rei todo-poderoso e um majestoso Senhor que tudo pode e a todos sujeita, não havendo por que temer, se andarmos — como falei —1 em verdade diante de Sua Majestade, e com a consciência limpa. Para isso, como já afirmei, eu queria todos os temores: para não ofender em nada Aquele que num momento pode nos destruir. Porque, estando Sua Majestade contente, não há inimigo nosso que não fique confuso.

Alguém pode dizer que assim é; mas, como não há alma tão reta que O contente de todo, vem-nos o temor. A minha com certeza não o é, por ser muito miserável, inútil e cheia de mil defeitos. Mas Deus não é como as pes­soas: Ele entende as nossas fraquezas. Mas a alma, se O ama de verdade, sente isso em si de maneira inequívoca, porque, para quem chega a esse estado, o amor não fica dissimulado como no início, exibindo em vez disso grandes ímpetos e desejos de ver a Deus, como depois direi ou já disse:2 tudo cansa, tudo fatiga, tudo atormenta. Se não é com Deus ou por Deus, não há descanso que não canse, porque a alma se vê ausente do seu verdadeiro descanso, e assim é uma coisa muito clara que, como digo, não fica dissimulada.

2. Aconteceu-me outras vezes de eu estar às voltas com grandes tribulações e murmúrios sobre certo assunto de que mais tarde vou falar, problemas que envolviam quase todo o lugar em que me encontro e a minha Ordem.3 Estando eu aflita com as muitas coisas capazes de me inquietar, disse--me o Senhor: Que temes? Não sabes que sou todo-poderoso? Eu cumprirei o que te prometi (e assim o fez bem depois). Fiquei logo com muita força, e teria empreendido outra vez muitas coisas, mesmo que me custassem mais sofrimentos, para servi-Lo, dispondo-me a padecer de novo.

Isso me aconteceu tantas vezes que eu nem consigo contá-las. Em muitas delas, Ele me repreendia, o que faz ainda hoje quando tenho imperfeições, e de uma maneira capaz de desfazer a alma. Essas repreensões ao menos trazem consigo a correção, porque Sua Majestade, como eu disse,4 dá o conselho e o remédio. Outras vezes, Ele me trazia à memória meus pecados passados, em especial quando desejava me conceder favores destacados; nessas ocasiões, a alma tem a impressão de já estar no verdadeiro Juízo. Porque a verdade lhe é apresentada com tamanha clareza que ela não sabe onde se esconder.

Em outras ocasiões ainda, o Senhor me dava avisos de alguns perigos para mim e para outras pessoas, sobre coisas que viriam a acontecer, para as quais fui alertada três ou quatro anos antes, coisas que sempre se cumpriram. Algumas delas eu poderia nomear. Dessa maneira, há tantas evidências de que isso vem de Deus que, a meu ver, não se pode ignorar a Sua ação.

3. O mais seguro é (e eu assim ajo e, sem isso, não teria sossego, nem é razoável que o tenhamos, pois somos mulheres, e sem letras), como muitas vezes me disse o Senhor (e aqui não pode haver danos, mas muitos proveitos), não deixar de revelar o que vai na alma e as graças concedidas pelo Senhor ao confessor; esse confessor deve ser instruído, e devemos obedecer a ele. O Senhor me tem dito isso muitas vezes.

Eu tinha um confessor que muito me mortificava e, por vezes, me afligia e muito me fazia sofrer, porque me inquietava em demasia. Contudo, tenho para mim ter sido ele o que mais me beneficiou.5 Embora eu tivesse muita afeição por ele, às vezes me sentia tentada a deixá-lo, pois me parecia que os exercícios da oração que ele me mandava fazer me estorvavam. Toda vez que estava de­cidida a abandoná-lo, eu logo percebia que não devia fazê-lo; era uma repreen­são que me desfazia mais do que as advindas do confessor. Em certas ocasiões, eu ficava cansada: discussões de um lado e repreensões do outro; mas tudo era necessário, pois a minha vontade era muito pouco submetida.

O Senhor me disse certa feita que não é obediente quem não está determinado a padecer; que eu devia levar em consideração aquilo que Ele padecera, pois assim tudo ficaria mais fácil para mim.

4. Um confessor com quem tive contato no início aconselhou-me que, como estava provado que o bom espírito agia em mim, eu me calasse e disso não falasse com ninguém, porque, nessas coisas, o melhor é calar. Eu gostei disso, porque sofria muito cada vez que as contava ao confessor, e era tanta a minha vergonha que superava a que eu sentia ao confessar pecados graves. Particularmente quando se tratava de grandes favores, eu tinha a impressão de que não me haveriam de crer e zombariam de mim; eu sentia tanto isso que considerava ser um desacato às maravilhas de Deus, sendo esse o motivo de eu querer calar. Mas vim a compreender que fora muito mal aconselhada por ele, pois de nenhuma maneira devia ocultar coisas àqueles a quem me confessava, porque, fazendo isso, tinha grande segurança, ao passo que, fazendo o contrário, podia ser enganada alguma vez.

5. Sempre que o Senhor me ordenava uma coisa na oração e o confessor me dizia outra, o próprio Senhor repetia que lhe obedecesse; depois Sua Majestade mudava a sua opinião, para que me ordenasse outra vez de acordo com a vontade divina.

Senti muito quando se proibiu a leitura de muitos livros em castelhano,6 porque alguns muito me deleitavam, e eu não poderia mais fazê-lo, pois os permitidos estavam em latim; o Senhor me disse: Não sofras, que te darei livro vivo. Eu não podia compreender por que Ele me dissera isso, pois ainda não tinha tido visões. Mais tarde, há bem poucos dias, o compreendi muito bem, pois tenho tido tanto em que pensar e em que me recolher naquilo que me cerca, e tenho tido tanto amor do Senhor, que me ensina de muitas maneiras, que tenho tido muito pouco ou quase nenhuma necessidade de livros. Sua Majestade tem sido o livro verdadeiro onde tenho visto as verdades. Bendito seja esse livro, que deixa impresso na alma o que se há de ler e fazer, de modo que não se pode esquecer!

Quem pode ver o Senhor coberto de chagas e aflito por perseguições sem que as abrace, ame e deseje? Quem vê algo da glória que Ele dá aos que O servem e não reconhece que de nada vale tudo o que se pode fazer e padecer quando esperamos esse prêmio? Quem vê os tormentos que passam os condenados e não considera deleites os sofrimentos daqui nem reconhece o muito que deve ao Senhor por ter sido libertado tantas vezes daquele lugar?

6. Como, com o favor de Deus, falarei mais sobre algumas coisas, desejo prosseguir com a narrativa da minha vida. Queira o Senhor que eu tenha conseguido explicar-me no que tenho dito. Bem creio que quem tiver experiência o entenderá e verá que algo eu consegui dizer. Quem não a tem não me causará espanto se considerar tudo o que eu disse um disparate. Basta que eu o diga para ficar desculpado quem assim pensar, e não serei e a culpá-lo. Que o Senhor me permita acertar ao cumprir a Sua vontade. Amém.

Capítulo 27

Trata do outro modo pelo qual o Senhor ensina a alma e, sem falar, a faz entender Sua vontade de maneira admirável. Fala também de uma visão e da grande graça que recebeu do Senhor. Este capítulo é muito importante.

1. Voltando ao relato da minha vida, eu estava1 com grandes aflições e faziam por mim, como eu disse,2 muitas orações, para que o Senhor me levasse por um caminho mais seguro, visto ser aquele, como diziam, muito suspeito. Verdade é que, embora eu o suplicasse a Deus e por mais que desejasse outro caminho, eu via minha alma tão melhorada, exceto em algum momento em que estava muito cansada das coisas que me diziam e dos receios que me inspiravam, que não estava em minhas mãos desejá-lo, embora eu sempre pedisse.

Eu me via inteiramente transformada; eu não podia,3 mas me punha nas mãos de Deus, porque Ele sabia o que me convinha, para que cumprisse em mim na íntegra a Sua vontade. Eu percebia que por esse caminho rumava para o céu e que antes marchara para o inferno; que tinha de desejar isso sem acreditar que fosse do demônio, mas não me podia forçar, embora fizesse o que estava ao meu alcance para crer nisso e para desejar outro caminho, pois não estava nas minhas mãos. Eu oferecia o que fazia, quando era alguma boa obra, por essa intenção. Recorria a santos devotos para que me livrassem do demônio. Fazia novenas; encomendava-me a Santo Hilarião, ao anjo São Miguel, pelo qual voltei a ter devoção, importunando muitos outros santos para que, com a sua intercessão, o Senhor me esclarecesse.

2. Passados dois anos, durante os quais fiz todas essas orações, ao lado de outras pessoas, para que o Senhor me levasse por outro caminho ou declarasse a verdade — porque eram muito contínuas as vezes que, como eu disse,4 o Senhor falava comigo — aconteceu-me o seguinte. Estando no dia do glorioso São Pedro dedicada à oração, vi perto de mim, ou, melhor dizendo, senti, porque com os olhos do corpo ou da alma nada vi, Cristo ao meu lado. Parecia-me que Ele estava junto de mim, e eu via ser Ele que, na minha opinião, me falava.

Dada a minha grande ignorância sobre a possibilidade de semelhante visão, senti grande temor no início, e a única coisa que fiz foi chorar, embora, ouvindo do Senhor uma só palavra de segurança, ficasse em meu estado habitual, em quietude, consolada e sem nenhum temor. Parecia-me que Jesus Cristo sempre estava ao meu lado; e, como não era visão imaginária,5 não percebia de que forma. Mas sentia com clareza tê-Lo sempre ao meu lado direito, como testemunha de tudo o que eu fazia. Nenhuma vez em que me recolhesse um pouco ou não estivesse muito distraída eu podia ignorar que Ele estava junto de mim.

3. Muito aflita, corri ao meu confessor para lhe contar. Ele me perguntou em que forma eu via Cristo. Eu disse que não O via. Ele me perguntou como eu sabia que era Cristo. Respondi que não sabia como, mas que não podia deixar de perceber que Ele estava junto de mim, pois O via e sentia com clareza. O recolhimento da alma era muito maior na oração de quietude, e muito mais intenso, sendo os efeitos muito diferentes dos que eu costumava ter. Isso era muito evidente.

Para me explicar, eu só podia recorrer a comparações; e é certo que, para esse modo de visão, não me parece haver comparação adequada. Assim como é uma visão das mais sublimes (como depois me disse um santo homem de grande espírito, Frei Pedro de Alcântara, de quem depois farei menção,6 bem como outros grandes eruditos, que me alertaram para o fato de ser ela a visão em que o demônio menos se pode imiscuir), assim também não há termos para descrevê-la, pelo menos por nós, pobres ignorantes, porque os eruditos melhor o explicarão. Porque, se digo que não O vejo com os olhos do corpo nem da alma,7 por não ser visão imaginária, como percebo e afirmo com mais clareza que está perto de mim do que se O visse?

Não ajuda muito dizer que é como uma pessoa que está no escuro e não vê outra que está ao seu lado, ou como uma pessoa cega; isso tem alguma semelhança, mas não muita, porque nesse caso é possível percebê-la com os sentidos, ouvi-la falar ou mexer-se, ou mesmo tocá-la. No caso de que trato, não há nada disso, nem se vê escuridão; a presença é percebida pela alma com mais clareza do que o sol. Não digo que se veja o sol ou a claridade. Vemos uma luz que, sem se mostrar na realidade, ilumina o entendimento para que a alma goze de tão grande bem. Ela traz consigo inúmeros benefícios.

4. Não é como a presença de Deus, que é sentida muitas vezes, em especial pelos que têm oração de união e de quietude. Parece que, quando se começa a ter oração, encontra-se imediatamente com quem falar e, pelo visto, percebemos que nos ouve por meio dos efeitos e sentimentos espirituais de grande amor, grande fé, e outras determinações cheias de ternura. Esse grande favor é de Deus, e quem o receber tenha-o em alta conta, porque é uma oração muito elevada, embora não seja visão, sendo a presença de Deus percebida pelos efeitos que, como eu disse, são produzidos na alma, por ser desse modo que Sua Majestade quer dar-se a sentir. Aqui,8 vê-se com clareza que Jesus Cristo, filho da Virgem, está presente. Na outra oração, manifestam--se somente umas influências da Divindade; nesta, percebemos ao lado disso que a Humanidade Sacratíssima nos acompanha e nos quer conceder graças.

5. O confessor me perguntou: quem disse que era Jesus Cristo? Ele mesmo o disse muitas vezes, respondi; mas, antes que Ele me dissesse, já estava impresso no meu pensamento que era Ele. Antes disso, Ele já me dizia, mas eu não O percebia. Se uma pessoa que eu nunca tivesse visto e só conhecesse pela fama viesse me falar, estando eu cega ou numa grande escuridão, e me dissesse quem era, eu acreditaria nela, mas não com a mesma certeza com que o faria se a visse. Nesta oração, sim, sem que vejamos, imprime-se em nós uma evidência tão clara que não me parece haver como duvidar; quer o Senhor que isso esteja tão gravado em nosso entendimento que não possamos duvidar mais do que duvidaríamos do que vemos — e até teríamos mais dúvidas neste último caso, porque algumas vezes resta a suspeita de que tenhamos imaginado; aqui, embora possa haver tal suspeita, a certeza é tão grande que a dúvida não tem força.

6. Assim é também uma outra maneira pela qual Deus ensina a alma, falando-lhe sem falar, como expliquei.9 É uma linguagem tão sublime que mal se pode dar a entender, por mais que o queiramos, se o Senhor, pela experiência, não o ensinar. O Senhor apresenta o que deseja que a alma compreenda no mais profundo do seu íntimo, agindo ali sem imagens nem palavras, mas à maneira da visão já explicada.

E deve-se dar muita atenção a esse modo de Deus fazer com que a alma en­tenda o que Ele quer, e grandes verdades e mistérios, porque muitas vezes, quando me explica alguma visão, Sua Majestade quer dizer qual a Sua vontade com relação a mim. Parece-me que, por estas razões, essa é a oração em que o demônio menos pode se intrometer.10 Se elas não são boas, devo estar enganada.

7. É tão espiritual essa espécie de visão e de linguagem que não há nenhuma manifestação nas faculdades nem nos sentidos, o que, a meu ver, impede que o demônio perceba o que vai na alma.11 Isso acontece raras vezes e por breve tempo, porque, em outras, tenho certeza de que as faculdades não estão suspensas nem os sentidos aquietados, mas muito em si. Ou seja, isso não acontece sempre na contemplação, mas muito poucas vezes; nestas, não somos nós que agimos, nem nada fazemos: tudo parece obra do Senhor. É como se sentíssemos no estômago um alimento que não ingerimos; percebemos que está ali, mas não sabemos o que é nem quem o pôs. Aqui12 sim; mas como foi posto não o sei, pois não se vê nem se entende, jamais se pensou em desejá-lo nem passou pela cabeça a idéia de que isso fosse possível.

8. Nas palavras de que já falei,13 Deus obriga o intelecto, mesmo a contragosto, a prestar atenção, entendendo o que é dito; a alma parece ter outros ouvidos de ouvir, ouvidos que a fazem escutar e impedem que se distraia: é como alguém que ouvisse bem e fosse proibido de tapar os ouvidos. Se pessoas falassem perto dele, ainda que não quisesse, ele haveria de ouvir. De qualquer modo, algo faz, pois está atento para compreender o que é falado.

No caso em questão, nem essa pouca participação permitida no passado, simplesmente escutar, permanece. A alma encontra tudo cozido e comido; só lhe resta aproveitar, como alguém que, sem ter aprendido nem se esforçado para saber ler, e sem estudar nada, encontrasse toda a ciência dentro de si, sem saber como nem de onde ela veio parar ali, visto que jamais fez qualquer coisa mesmo para aprender o alfabeto.

9. Parece-me que esta última comparação explica algo deste dom celestial, porque a alma se vê, num átimo, sábia e tão instruída sobre o mistério da Santíssima Trindade e de outras coisas muito elevadas que não há teólogo com quem ela não se atrevesse a argumentar acerca da verdade dessas grandezas. É tamanho o espanto que basta uma graça dessas para provocar uma reviravolta na alma, levando-a a não amar senão Aquele que ela vê, sem nenhum trabalho seu, torná-la capaz de tão grandes bens, comunicando-lhe segredos e tratando com ela com tanta amizade e amor que não é possível descrever. O Senhor concede alguns favores que, por serem tão admiráveis e dados a quem tão pouco os merece, trazem consigo uma suspeita que, se a fé não for muito viva, impede a alma de acreditar neles.

Por isso, se não me ordenarem outra coisa, pretendo falar de algumas graças que o Senhor me tem concedido; vou me limitar a algumas visões que possam ser de algum proveito ou sirvam para que a pessoa a quem o Senhor as conceder não se espante, julgando-o impossível, como fazia eu. Poderão também servir para explicar o modo como o Senhor me conduziu e o caminho pelo qual me levou, porque é isso que me mandam escrever.

10. Voltando agora a esta maneira de compreender, parece que o Senhor quer de todo modo que a alma saiba algo do que se passa no céu; tenho a impressão de que, assim como lá é possível compreender sem que ninguém fale (o que eu nunca soube com certeza até que o Senhor, pela Sua bondade, quis que eu visse e me mostrou num arroubo), assim também aqui Deus se entende com a alma, bastando que Sua Majestade o deseje; não são usados artifícios para que se compreenda o amor que une esses dois amigos.

É como o que acontece no mundo quando duas pessoas têm um grande amor mútuo e se entendem muito bem, sem nem precisar de sinais, sendo suficiente que olhem uma para a outra. Creio que assim ocorre nesta maneira de entender, porque, sem que percebamos, estes dois amantes se olham, face a face, como diz o Esposo à Esposa no Cântico dos Cânticos,14 ou ao menos acho que ouvi dizer que é aí que diz.

11. Ó benignidade admirável de Deus, que assim Vos15 deixais mirar por olhos que se dedicaram a tanto mal como os de minha alma! Que eles, Senhor, diante desta visão, se acostumem a não olhar coisas baixas, nem se contentem senão Convosco! Ó ingratidão dos mortais! A que ponto há de chegar? Sei por experiência que é verdade o que digo, sendo bem pouco o que se pode dizer do que fazeis a uma alma que levais a essa condição. Ó almas que começastes a fazer oração e que tendes verdadeira fé, que bens podeis buscar nesta vida que sejam iguais ao menor dos bens celestiais, sem falar no que se ganha para a eternidade?

12. Deus com certeza se dá a todos os que deixam tudo por Ele. Ele não faz distinção entre as pessoas,16 pois ama a todas; ninguém pode dizer que Ele aja de outra maneira, por pior que seja a pessoa, já que assim foi comigo, tendo me elevado a esse estado. O que digo nada vale diante do que se po­deria dizer; só falei do que é imperativo para se explicar esta maneira de visão e de graças que Deus concede à alma. Mas não posso falar do que se sente quando o Senhor revela segredos e grandezas Suas, dos prazeres tão superiores a todos os do mundo, prazeres que com razão nos fazem aborrecer os deleites da vida, que não passam de lixo. O simples fato de evocá-los aqui para fins de comparação já me dá náuseas, mesmo que eu os pudesse aproveitar por toda a eternidade, enquanto estes que o Senhor dá são apenas uma gota do grande rio caudaloso que está preparado para nós.17

13. Isso nos causa vergonha — com certeza causa a mim. Se fosse pos­­sível haver confusão no céu, eu com razão estaria lá mais confusa do que todos. Por que havemos de querer tantos bens, deleites e glórias por todo o sempre à custa do bom Jesus? Não vamos ao menos chorar com as filhas de Jerusalém,18 já que não O ajudamos a levar a cruz, como o Cireneu? Ha­veremos de gozar com prazeres e diversões o que Ele conseguiu para nós vertendo tanto sangue? É impossível. E pensamos remediar com vãs honrarias o desprezo que Ele sofreu para que nós pudéssemos reinar para sempre? Não tem cabimento; agindo assim, errado, erradíssimo, é o caminho; nunca chegaremos lá.

Apregoe vossa mercê19 essas verdades, pois Deus me tirou essa liberdade. Eu gostaria de repeti-las sempre para mim, mas muito demorei a ouvir--me e a entender a Deus, como se verá no que escrevo.20 Por isso, tenho grandes dificuldades para falar delas, razão por que vou me calar, dizendo apenas uma coisa que às vezes considero. Queira o Senhor conceder-me um dia o favor de gozar desse bem.

14. Que glória acidental será, e que contentamento, a dos bem-aventurados que já gozam disso quando virem que, embora tarde, não deixaram de fazer por Deus o que puderam, e nada lhe negaram, dando-Lhe de todas as maneiras que puderam, de acordo com as suas forças e o seu estado. E quem mais tiver feito tanto mais receberá! Quão rico ficará quem deixou todas as riquezas por Cristo. Que honrado será quem não quis honra por amor a Ele, mas se comprazia21 em ver-se muito abatido! Quão sábio quem folgou por ver que o tinham por louco, pois o levaram à própria Sabedoria! Quão poucos assim há agora, devido aos nossos pecados! Sim, parece que se acabaram aqueles que as pessoas tinham por loucos ao vê-los realizar façanhas heróicas de verdadeiros amantes de Cristo. Ó mundo, mundo, como tens ganho honras por haver poucos que te conheçam!

15. E, no entanto, pensamos que se serve mais a Deus se se é considerado sábio e discreto! Sem dúvida assim é, a julgar pela moda da discrição. Desse modo, parece-nos pouco edificante não ter muita compostura e dignidade, cada qual em seu estado. Até o frade, o clérigo e a monja têm a impressão de que usar hábitos velhos e remendados é uma novidade, um escândalo para os fracos, ocorrendo o mesmo com o recolhimento e a oração. O mundo está de tal maneira, e estão tão esquecidas as coisas da perfeição e os grandes fervores que os santos tinham, que não se vê que o pretenso escândalo causado por religiosos que mostrem em obras o que dizem com palavras — a pouca importância que se deve dar ao mundo — não contribui tanto para as desventuras desta época quanto o desejo de ser tido por sábio e discreto.

Desses pretensos escândalos o Senhor obtém grandes proveitos. E, se uns se escandalizam, outros se arrependem. Quem dera houvesse ao menos um esboço do que Cristo e os Seus apóstolos passaram nesta nossa época, que mais do que nunca precisa disso!

16. E que bom modelo Deus nos levou agora no bendito Frei Pedro de Alcántara! O mundo não consegue suportar tanta perfeição. Fala-se que a saúde está mais fraca e que são outros os tempos. Esse santo homem viveu nesta época, mas o seu espírito era vigoroso como nos outros tempos; ele tinha o mundo sob os pés. Mesmo que não andemos descalços nem façamos penitências tão duras quanto ele, há muitas coisas, como eu já disse outras vezes,22 com que se desprezar o mundo; quando vê disposição, o Senhor as ensina. E que grande coragem Sua Majestade deu a esse santo de que falo, que, como todos sabem, fez durante quarenta e sete anos uma áspera penitência! Quero dizer algo sobre isso, pois sei que é pura verdade.

17. Ele me contou, e a outra pessoa,23 para a qual não tinha segredos (quanto a mim, a causa de me dizer foi o amor que me tinha, amor que o Senhor nele inspirou para que cuidasse de mim e para me animar num momento de muita necessidade, como eu disse e direi24): pelo que me lembro, ele disse que por quarenta anos dormiu apenas uma hora e meia por dia. Contou que no início a sua maior penitência foi vencer o sono e que, para isso, ficava sempre de joelhos ou de pé; quando dormia, era sentado, com a cabeça encostada a um pedaço de madeira que tinha pregado na parede. Ainda que quisesse, não podia deitar-se, porque a sua cela, como se sabe, não tinha nem um metro e meio. Em todos esses anos, nunca se cobriu com um capuz, por mais fortes que fossem o sol ou a chuva, nunca cobriu os pés e só vestia o corpo com um hábito de saial sem nada mais sobre a carne. Tratava-se de um hábito bem apertado, por cima do qual ele usava um pequeno manto do mesmo pano.

Ele me contou que tirava o manto quando fazia muito frio e deixava a porta e o postigo da cela abertos, a fim de que, pondo depois o manto e fechando a porta, o corpo fosse contentado e ficasse sossegado com algum abrigo. Ele costumava comer somente de três em três dias, afirmando ainda que isso não era motivo de espanto, por ser muito possível a quem se acostumasse. Um companheiro seu me contou que ele às vezes passava oito dias sem comer. É provável que isso ocorresse quando ele estava em oração, porque tinha grandes arroubos e ímpetos de amor de Deus, como testemunhei certa feita.25

18. Era extrema a sua pobreza; na mocidade, foi tamanha a sua mortificação que, segundo me contou, aconteceu de passar três anos numa casa de sua Ordem sem conhecer nenhum frade a não ser pela fala; porque jamais levantava os olhos. Ele não conhecia os lugares a que por necessidade tinha de ir, pois seguia os outros frades. Fazia o mesmo em todos os caminhos. Nunca olhou uma mulher — e isso por muitos anos. Disse-me que pouca diferença fazia para ele ver ou não ver; mas era muito velho quando o conheci,26 e tão extrema a sua fraqueza que parecia feito de raízes de árvores.

Com toda essa santidade, era muito afável, se bem que de poucas palavras, a não ser quando falavam com ele. Sua conversa era muito agradável, por ser grande a sua compreensão. Quisera dizer muitas outras coisas, mas tenho medo de que vossa mercê pergunte por que me intrometo nisso, e foi temerosa que o escrevi. Concluo, pois, dizendo que o seu fim foi como a sua vida; ele morreu pregando e admoestando seus religiosos. Quando viu que tinha chegado a sua hora, disse o salmo Laetatus sum in his quae dicta sunt mihi (Alegrei-me com o que foi dito)27 e, de joelhos, expirou.

19. Depois disso, o Senhor tem permitido que eu tenha mais ajuda dele do que tive em vida; ele me aconselha em muitas coisas. Vi-o muitas vezes com imensa glória. Da primeira vez em que me apareceu, ele me disse que fora feliz a penitência que lhe granjeara tamanha recompensa, e muitas outras coisas. Um ano antes de morrer, ele me apareceu, embora estivesse ausente.28 Assim, eu soube que ele havia de morrer e mandei que o avisassem, estando ele a alguns quilô­me­tros daqui. Quando expirou, ele me apareceu e disse-me que ia entrar em seu descanso.29 Eu não acreditei e contei a algumas pessoas; oito dias depois, chegou a notícia de que morrera ou, melhor dizendo, começara a viver para sempre.

20. Eis acabada essa vida tão áspera com glória tão imensa. Acho que agora ele me consola mais do que quando estava aqui. O Senhor me disse uma vez que concederia em nome desse Santo tudo o que Lhe pedissem. Muitas coisas que lhe encomendei que pedisse ao Senhor vi ser realizadas. Bendito seja para sempre, amém.

21. Mas para que falar tudo isso? Não é para despertar vossa mercê para que não estime em nada as coisas desta vida! Como se vossa mercê não o soubes­­se ou não estivesse determinado a tudo deixar, tendo já posto mãos à obra!

Digo-o porque vejo tanta perdição no mundo que, embora dizê-lo não sirva senão para que eu me canse de escrever, falar isso é descanso, ainda que tudo isso seja contra mim. Que o Senhor perdoe as minhas ofensas nesse caso, e que vossa mercê, a quem canso sem motivo, também o faça. Parece que desejo que vossa mercê faça penitência pelos pecados que eu cometi nesta matéria.

Capítulo 28

Narra as grandes graças que o Senhor lhe concedeu e como Ele lhe apareceu a primeira vez. Explica o que é visão imaginária. Fala dos grandes efeitos e sinais que a visão deixa quando vem de Deus. Este capítulo é muito proveitoso e importante.

1. Voltando ao nosso propósito,1 durante alguns dias a visão permaneceu, sendo-me tão proveitosa que eu não saía da oração e, mesmo quando o fazia, buscava que fosse de modo a não descontentar a quem claramente o tes­temunhava. E, embora eu às vezes temesse, devido às tantas coisas que me diziam,2 pouco durava o medo, porque o Senhor me dava tranqüilidade.

Certo dia em que eu estava em oração, quis o Senhor mostrar-me apenas as Suas mãos; era tamanha a sua formosura que eu não consigo descrevê-las. Isso me deixou muito temerosa, porque qualquer novidade em termos de gra­ça sobrenatural que o Senhor me concede muito me assusta no princípio. Há pou­cos dias, vi também o rosto divino, que, ao que parece, me deixou in­tei­ra­mente absorta. Eu não podia compreender por que o Senhor se mostra­va assim, pouco a pouco, se haveria de me fazer a graça de vê-Lo por inteiro, mas vim a entender que Sua Majestade me conduzia segundo minha fraqueza natural. Bendito seja para sempre, porque tanta glória junta era insuportável para criatu­ra tão baixa e vil, razão por que, sabendo disso, o piedoso Senhor ia me prepa­rando.

2. É provável que vossa mercê ache que não era preciso muito esforço para ver mãos e rosto tão formosos. Mas os corpos glorificados são tão belos que a glória que traz consigo a visão de coisa tão sobrenaturalmente formosa nos perturba; e, assim, isso me deixava cheia de temor, confusa e inquieta, se bem que, mais tarde, me viessem uma certeza e uma segurança tais que eu logo perdia o temor.

3. Num dia de São Paulo, durante a missa, essa Humanidade sacratíssima se apresentou a mim por inteiro, tal como é representado ressuscitado; sua formosura e majestade eram como eu já disse a vossa mercê, seguindo ordem vossa. E me custou muito fazê-lo, porque não há como descrevê-las sem as desmerecer; mas expliquei da melhor maneira que pude,3 não havendo por que repeti-lo. Digo somente que, se no céu não houvesse senão a formosura dos corpos glorificados para deleitar a vista, seria imensa a glória especial de ver a Humanidade de Jesus Cristo Nosso Senhor. Se aqui na terra Sua Majestade se mostra na medida do que pode suportar a nossa miséria, como se mostrará Ele ali onde se goza a plenitude desse bem?

4. Embora essa visão seja imaginária, nunca a vi com os olhos corporais, nem a alguma outra, mas com os olhos da alma.

Os que sabem mais do que eu dizem que a visão anterior é mais perfeita do que essa, que é muito maior do que as que se vêem com os olhos do corpo, consideradas as mais baixas,4 aquelas que mais admitem ilusões do demônio. Como eu não podia entender isso, desejava, quando me era concedido esse favor, ver com os olhos corporais, para que o confessor não me dissesse que eu estava enganada. Depois que ela acabava, acontecia-me, imediatamente depois, pensar que tinha de fato me enganado, ficando aflita por tê-lo dito ao confessor, achando que o tinha enganado. Eu caía em prantos, voltava a ele e contava-lhe as minhas dúvidas. Ele me perguntava se eu pensava que lhe dizia a verdade ou se o tinha querido enganar. Eu lhe dizia a verdade, pois a meu ver não tinha mentido nem o pretendera; por nenhuma coisa deste mundo eu usaria de enganos. Ele bem o sabia e, assim, procurava tranqüilizar-me, e eu sentia muito por ir procurá-lo com essas ninharias, que não sei como o demônio conseguia convencer-me de que eram fingimento de minha parte, trazendo-me grande tormento.

Mas o Senhor apressou-Se tanto em me dar essa graça e declarar essa verdade que cedo afastou de mim a dúvida sobre a realidade disso. Mais tarde, vi com muita clareza a minha tolice; porque, mesmo que dedicasse muitos anos a imaginar coisa tão bela, eu não o teria podido nem sabido, já que excede tudo aquilo que se pode pensar aqui, ao menos na brancura e esplendor.

5. Não é um esplendor que deslumbre, mas uma suave brancura e um brilho infuso que dão enorme prazer à vista e não cansam, o mesmo ocorrendo com a claridade que acompanha a visão dessa beleza tão divina. É uma luz tão diferente das do mundo que o clarão do sol que vemos parece sem brilho em comparação com a claridade e a luz que se apresentam à vista. Quase não se quer abrir os olhos depois disso. É como ver uma água muito clara que corre sobre cristal e onde o sol reverbera, comparada a uma água muito turva num dia nublado correndo sobre a terra. Não que se veja o sol ou que a luz se assemelhe à dele; na verdade, parece luz natural, enquanto a solar parece coisa artificial.

É luz que não conhece noite, mas que, como sempre brilha, por nada pode ser ofuscada. Em suma, é de tal maneira que, por maior entendimento que tivesse, ninguém, em todos os dias de sua vida, poderia por si mesmo imaginar como é. E, no entanto, Deus a põe diante de nós num átimo, mal nos dando tempo de abrir os olhos, caso fosse necessário fazê-lo. Pouco importa que estejam abertos ou fechados, porque, quando o Senhor deseja, mesmo que não queiramos, a vemos. Não há distração que a perturbe, nem resistência, nem esforço, nem cuidado. Tenho boa experiência disso, como direi.5

6. Eu desejaria explicar agora o modo como o Senhor se mostra nessas visões; não digo que possa explicar a maneira pela qual essa luz tão forte se imprime nos sentidos interiores, nem como o nosso intelecto percebe imagem tão clara, que verdadeiramente parece estar ali, por ser isso assunto de eruditos. O Senhor não me quis dar a entender de que forma isso acontece; e sou tão ignorante e de entendimento tão grosseiro que, embora me tentassem explicá-lo, ainda não o consegui entender.

É verdade, muito embora vossa mercê tenha a impressão de que há em mim vivacidade de espírito; porque já passei por isso muitas vezes e só o compreendo, como dizem, o que me é dado mastigado. Algumas vezes, o meu confessor se espantava com as minhas ignorâncias, pois jamais entendi, nem desejei entender, como Deus fazia isso ou como isso era possível, nem nunca o perguntei, embora, como eu disse,6 de alguns anos para cá tenha tratado com bons letrados. Eu só perguntava se uma coisa era ou não pecado. Quanto ao mais, bastava-me pensar que Deus tinha feito tudo e logo via que não tinha por que me admirar, mas razões para louvá-Lo. As coisas difíceis até me levam à devoção, e, quanto mais difíceis, tanto mais o fazem.

7. Falarei, pois, do que vi por experiência. Como o Senhor o faz, vossa mercê o explicará melhor, elucidando tudo o que estiver obscuro e eu não souber dizer. Bem me parecia, em algumas coisas, que o que eu via eram imagens; mas, por muitas outras razões, eu achava que era o próprio Cristo, de acordo com a clareza com que era servido mostrar-se a mim. Em algumas ocasiões, a visão era tão confusa que me parecia imagem, mas não semelhante aos quadros da terra, por mais perfeitos que sejam, pois destes vi muitos, e belos;7 pensar que uns e outros são semelhantes é disparate, pois se parecem tanto quanto uma pessoa viva com seu retrato, já que este, por melhor que seja, não pode ser tão natural, sendo perceptível que não passa de coisa morta. Mas deixemos isso de lado, que já está bem explicado e é tal como digo.

8. O que digo não é uma comparação, pois elas nunca são tão cabais, mas a pura verdade: há de fato uma diferença como a existente entre o vivo e o pintado — nem mais nem menos. Porque, se for imagem, é imagem viva, não um homem morto, mas o Cristo vivo. Ele dá a entender que é homem e Deus, mostrando-se não como estava no sepulcro, mas com a aparência com que saiu dele ao ser ressuscitado. Ele vem por vezes com tanta majestade que não há quem possa duvidar de que se trata do próprio Senhor, em especial quando acabamos de comungar, pois já sabemos que está ali, visto que a fé assim nos diz. Ele se apresenta tão senhor daquela pousada que parece que a alma toda desfeita se vê consumir em Cristo.

Ó Jesus meu, quem poderia explicar a majestade com que Vos mostrais? E quão Senhor de todo o mundo, dos céus, de outros mil mundos, e de mundos e céus sem conta que poderíeis criar! A alma compreende que, diante da majestade com que Vos representais, nada é para Vós serdes Senhor do universo.

9. Aqui se vê com clareza, Jesus meu, o pouco poder de todos os demônios diante do Vosso; na verdade, quem Vos contenta pode pisar em todo o inferno. Vê-se a razão que os demônios tiveram de temer quando fostes ao limbo, sendo eles obrigados a desejar mil outros infernos mais inferiores para fugir de tão grande majestade. E percebo que quereis dar a entender à alma quão grande sois e que poder tem essa Sacratíssima Humanidade unida à Divindade. Vemos muito bem como será, no dia do Juízo, ver a majestade desse Rei e o seu ri­gor para com os maus. Aqui, a visão deixa na alma a verdadeira humildade, pois esta vê sua miséria e não a pode ignorar. Aqui, ocorrem a confusão e o verdadeiro arrependimento dos pecados; a alma, mesmo vendo tantas mostras de amor, não sabe onde se esconder, e se desfaz toda.

Essa visão tem força tão imensa que, quando o Senhor quer mostrar à alma grande parte de Sua grandeza e majestade, é impossível (se o Senhor, de maneira muito sobrenatural, não quisesse ajudar a alma pondo-a em arroubo e êxtase, onde ela perde de vista, com o prazer que sente, a visão daquela presença divina) que alguém possa suportá-la.

É verdade que se esquece depois? A majestade e a formosura ficam tão impressas que só se pode esquecer quando o Senhor deseja que a alma padeça de uma aridez e de uma imensa solidão de que vou falar,8 porque, nesse caso, ela parece esquecer-se até de Deus. A alma se transforma, sempre embebida; parece-lhe que começa a amar Deus com um novo amor vivo muito elevado. E, embora a visão passada de que falei,9 que representa Deus sem imagem, seja mais elevada, esta última é mais adequada à nossa fraqueza, pois dura mais na memória e traz bem ocupado o pensamento, porque deixa representada e impressa na imaginação presença tão divina.

E quase sempre vêm juntos esses dois tipos de visão. E é bom que venham, porque, com os olhos da alma, vemos a excelência, a formosura e a glória da Santíssima Humanidade, e, da outra maneira aludida, percebemos como é Deus e quão poderoso, vemos que Ele tudo pode, tudo ordena, tudo governa e tudo enche com o Seu amor.

10. É muito boa essa visão e, a meu ver, desprovida de perigo, porque se percebe, nos seus efeitos, que aqui o demônio não tem força. Tenho a impressão de que por três ou quatro vezes o demônio tentou me apresentar o Senhor numa representação falsa em que Este toma a forma de carne, mas, quando é assim, a visão nada tem que se compare com a glória que emana da que vem de Deus. O demônio faz representações para desfazer a verdadeira visão que a alma teve; esta, contudo, resiste, sente-se perturbada, desabrida e inquieta, perdendo a devoção e o gosto que antes tinha, além de ficar sem oração.

Isso me aconteceu, como eu disse,10 três ou quatro vezes no princípio. Trata-se de coisa tão diversa que até pessoas que só tiveram oração de quie­tude são capazes de entender a diferença, com base nos efeitos das falas a que já me referi.11 É coisa muito conhecida, e a alma que não quer se deixar enganar e que tem humildade e simplicidade não poderá, a meu ver, ser ilu­­dida. Quem já experimentou uma verdadeira visão de Deus o perceberá quase imediatamente; porque, embora comece com regalos e satisfação, essa falsa visão logo é rejeitada pela alma. Isso porque, a meu ver, o gosto deve ser diferente, e a visão não tem aparência de amor puro e casto, revelando--se em breve de quem vem. Por isso, creio que onde há experiência o demônio não pode causar prejuízo.

11. É completamente impossível que isso seja imaginação; isso a nada leva, porque só a formosura e a brancura de uma mão superam tudo o que possamos imaginar; é claramente impossível à alma ver presentes, de repente, coisas em que nunca pensou e de que não se lembra, e que mesmo em muito tempo não poderiam ser concebidas pela imaginação, por serem muito mais sublimes — como eu já disse —12 do que se pode compreender no mundo. E, mesmo que o pudéssemos, a sua origem seria claramente perceptível pelo que vou dizer.

Se fosse produzido pelo intelecto, isso não deixaria os grandes efeitos de que falei nem geraria frutos, pois seria a situação de alguém que quisesse dormir, mas permanecesse desperto porque o sono não veio. Essa pessoa, sentindo necessidade de dormir ou a cabeça fraca, e querendo adormecer, esforça-se por consegui-lo; depois de algum tempo, às vezes parece conseguir algum resultado. Contudo, se não for verdadeiro, o sono não se sustenta nem fortalece a cabeça, deixando-a em certas ocasiões mais atordoada. É mais ou menos o que acontece na visão falsa: a alma fica confusa, sem sustento e sem força, cansada e desgostosa. Na visão verdadeira, não posso exagerar a riqueza que fica; o próprio corpo recebe dela saúde e conforto.

12. Eu arrolava essa e outras razões quando me diziam que minhas visões vinham do demônio e que eu me enganava — e o faziam muitas vezes —, explicando-o por meio de comparações de acordo com o que o Senhor me explicava. Mas isso era em vão, porque, como havia pessoas muito santas neste lugar (sendo eu, em comparação, uma pessoa perdida) que não eram levadas por Deus por esse caminho, logo surgia nelas o temor. Ao que parece, os meus pecados eram a causa disso. Estes eram transmitidos de umas para as outras, de modo que todas vinham a saber sem ouvir de mim, visto que eu só os contava ao meu confessor ou a quem ele me mandava que contasse.

13. Eu lhes disse uma vez que, se os que falavam isso me dissessem que uma pessoa com quem eu acabasse de falar, e conhecesse muito, não era ela mesma e que eu me enganava, eu acreditaria mais neles do que naquilo que tinha visto. Mas que, se a pessoa em questão deixasse comigo algumas jóias como prova do seu grande amor por mim, ficando eu — antes pobre e sem nenhuma jóia — rica, eu não poderia acreditar neles, mesmo que quisesse. E eu poderia mostrar a eles essas jóias, porque todos os que me conheciam viam que sem dúvida a minha alma se transformara — e assim o dizia meu confessor. A diferença era muito grande em todas as coisas, nada tendo de dissimulação, mas sim de uma clareza que todos podiam ver. Eu dizia que, tendo sido antes tão ruim, não podia acreditar que o demônio, para me enganar e me levar ao inferno, empregasse um recurso tão contrário como era tirar-me os vícios e imprimir em mim virtudes e forças. E eu percebia claramente que essas coisas me deixavam modificada por inteiro.

14. Meu confessor, que era um padre bem santo da Companhia de Jesus,13 dizia, segundo eu soube, o mesmo que eu. Ele era muito discreto e humilde; e essa humildade tão grande me deu muito trabalho, porque, embora ele fosse homem de muita oração e deveras instruído, não tomava a si mesmo por critério, já que o Senhor não o conduzia por esse caminho.14 Ele sofreu muito, e de muitas maneiras, por minha causa. Eu soube que lhe diziam que se acautelasse de mim e que não deixasse o demônio enganá-lo para fazê-lo acreditar em alguma coisa do que eu lhe dizia. Davam-lhe exemplos de outras pessoas. Tudo isso era muito cansativo para mim, que vivia temendo não ter com quem me confessar, que todos fugissem de mim. A única coisa que eu fazia era chorar.

15. Foi pela providência divina que ele quis continuar a me atender; era um servo de Deus tão virtuoso que tudo faria por Ele. Dizia-me que não ofendesse a Deus, não me desviasse dos seus conselhos e não temesse que ele me abandonasse; sempre me animava e acalmava. Ordenava-me sempre que não lhe escondesse nada, e eu obedecia. Ele me falava que, se eu seguisse isso, mesmo que tudo fosse ação do demônio, eu nenhum dano sofreria, pois antes o Senhor tiraria bem do mal que o demônio quisesse fazer à minha alma; o Senhor sempre procurava aperfeiçoá-la em tudo o que podia.

Como vivia cheia de temor, eu lhe obedecia em tudo, mesmo imperfeitamente; ele muito sofreu comigo durante os três anos e tanto15 em que me confessou, em meio a tantas dificuldades. Porque, nas grandes perseguições que me fizeram, e nas muitas circunstâncias em que o Senhor permitiu que me julgassem mal, na maioria das vezes sem que eu tivesse culpa, as pessoas o procuravam e lhe lançavam a culpa, apesar de ele ser totalmente inocente.

16. Teria sido impossível, se não fosse tão santo, nem fosse animado pelo Senhor, suportar tanto, porque ele tinha de responder aos que pensavam que eu estava perdida e não lhe davam crédito; por outro lado, ele precisava me tranqüilizar e tirar de mim o medo que eu trazia, se bem que infundindo--me um temor ainda maior. Além disso, ele tinha de me acalmar depois de cada visão, porque, como isso era uma coisa nova, Deus permitia que eu tivesse, no final, muito medo. Tudo isso se deve ao fato de eu ter sido tão pecadora, o que ainda sou. Ele me consolava com muita piedade e, se tivesse confiança em si mesmo, eu não teria padecido tanto. Porque Deus lhe fazia entender toda a verdade e, creio eu, lhe dava luz no Sacramento.16

17. Os servos de Deus que não se sentiam seguros relacionavam-se muito comigo.17 Eu falava por simplicidade coisas que eles interpretavam de outra maneira, razão por que o que eu dizia sem maiores considerações lhes parecia falta de humildade. Eu gostava muito de uma dessas pessoas, porque a minha alma tinha para com ela uma dívida infinita e por ser ela muito santa; eu sentia muito ao ver que ela não me entendia, mesmo desejando com grande ardor que eu me beneficiasse e fosse iluminada pelo Senhor. Quando me faziam perguntas, eu respondia com simplicidade e de modo descuidado, e elas logo imaginavam que eu queria ensinar-lhes e me fazer de sábia. Tudo chegava aos ouvidos do meu confessor, porque, é claro, elas desejavam o meu bem; e ele ralhava comigo.

18. Duraram muito tempo esses tormentos, que vinham de todos os lados, mas que passavam com as graças que o Senhor me concedia. Digo isso para que se entenda a grande dor que é não contar com quem tem experiência nesse caminho espiritual, pois se o Senhor não me favorecesse tanto, não sei o que teria sido de mim. Não faltavam coisas para me tirar o juízo, e algumas vezes eu me via em situações em que só me restava elevar os olhos ao Senhor.

Quando se fala, a oposição de pessoas tão boas a uma mulherzinha ruim e fraca como eu, e temerosa, parece não significar nada. Mas posso dizer que, tendo passado na vida por enormes provações, essa foi das maiores para mim. Queira o Senhor que nisso eu tenha servido de alguma maneira a Sua Majestade; porque estou bem certa de que os que me condenavam e interrogavam estavam a Seu serviço, e que era tudo para maior bem meu.

Capítulo 29

Prossegue no assunto começado e narra algumas grandes graças que o Senhor lhe deu, falando das coisas que Sua Majestade lhe dizia para infundir-lhe confiança e para que respondesse aos que a contradiziam.

1. Fugi muito do assunto, porque falava das razões que nos mostram que essas visões não são imaginação.1 Como nos seria possível representar à custa de esforços a Humanidade de Cristo, reproduzindo com a imaginação Sua grande formosura? E não bastaria pouco tempo para que a nossa criação se assemelhasse um pouco ao seu modelo. É claro que se pode representar na imaginação uma figura, contemplando-a por algum tempo, ver seus traços e a sua brancura, e, pouco a pouco, aperfeiçoá-la e gravá-la na memória. Quem o pode impedir, se o intelecto a pode fabricar? Naquilo que tratamos,2 nada disso é possível, visto termos de contemplá-la quando o Senhor a quer apresentar, e da maneira como Ele quer e da perspectiva que deseja. Não é possível pôr nem tirar nada, nem podemos, por mais que nos esforcemos, conseguir uma maneira de ver quando queremos ou de deixar de ver. Quando se quer olhar alguma coisa particular, logo se perde Cristo de vista.

2. Por dois anos e meio, Deus me concedia com freqüência essa graça, e há mais de três já não a tenho assim, pois Ele a substituiu por uma coisa mais elevada — como talvez eu venha a dizer.3 Vendo que o Senhor falava comigo, e olhando aquela grande formosura e a suavidade das palavras que vinham daqueles lábios belíssimos e divinos — ou, às vezes, o rigor —, eu desejava muito perceber a cor dos Seus olhos e saber a Sua altura para dizer depois, mas nunca o mereci, nem havia esforço capaz de me proporcionar isso, ocorrendo antes a perda da visão do todo.

Algumas vezes, eu O via olhar-me com piedade; mas aquele olhar tem tanta força que a alma não consegue suportá-lo, ficando num arroubo tão ele­vado que, para mais fluí-lo por inteiro, deixa de ver aqueles formosos olhos. Assim sendo, pouco importa se desejamos ou não a visão; vê-se com cla­reza que o Senhor quer apenas que tenhamos humildade e confusão, que to­memos o que nos é dado e louvemos quem o dá.

3. Isso acontece em todas as visões. Nada podemos fazer para ver menos ou mais, nossos esforços nada fazem nem deixam de fazer. Quer o Senhor que reconheçamos de uma vez que não se trata de obra nossa, mas de Sua Majestade, para que fiquemos humildes e temerosos vendo que, assim como o Senhor nos tira o poder de ver o que queremos, assim também pode nos tirar esses favores e graças, deixando-nos inteiramente perdidos, razão por que devemos sempre andar com temor enquanto vivemos neste desterro.

4. Quase sempre o Senhor aparecia a mim em Sua forma de ressuscitado, o mesmo ocorrendo na Hóstia. Algumas vezes, para me revigorar, quando eu passava por tribulações, mostrava-se com as chagas; em outras ocasiões, na cruz e no Horto, e, raramente, com a coroa de espinhos. Eu O via também levando a cruz. Tudo isso, como eu disse, ocorria de acordo com as necessidades minhas e de outras pessoas; mas sempre com a carne glorificada.

Muitas afrontas e desgostos passei por contar essas coisas, para não falar dos temores e das perseguições. Algumas pessoas tinham tanta certeza de que isso vinha do demônio que queriam me exorcizar. Isso não me incomodava muito. Eu sentia quando via que os confessores tinham medo de me confessar ou quando sabia que lhes falavam de mim. No entanto, eu não podia me sentir pesarosa por ter tido essas visões celestiais, nem as trocaria uma única vez por todos os bens e prazeres do mundo; eu sempre as considerava uma grande graça do Senhor, um enorme tesouro, o que o próprio Senhor muitas vezes me garantia.

Eu sentia crescer em mim cada vez mais o amor que tinha por Ele; queixa­va-me com Ele de todas essas angústias, e sempre saía consolada, e com novas forças, da oração. Eu não me atrevia a contradizê-los, porque via que seria muito pior, já que tomariam por manifestação de pouca humildade. Eu falava com meu confessor, que, quando me via cansada, sempre me consolava muito.

5. Como as visões foram se multiplicando, uma dessas pessoas, que antes me ajudava4 (era a pessoa com quem eu me confessava quando o mi­nistro não podia), começou a dizer que sem dúvida era obra do demônio. Disse-me que, como não era possível resistir, eu sempre fizesse o sinal-da-cruz e figas quando tivesse algu­ma visão, tendo certeza de que via o demônio e afugentando-o com isso; disse-me ainda que não tivesse medo, pois Deus me protegeria e livraria daquele mal.

Isso era para mim um grande sofrimento, porque, não podendo acreditar senão que era Deus, era terrível fazê-lo. E eu tampouco podia, como disse,5 desejar ser privada disso; porém, fazia o que me mandavam. Sempre suplicava muito a Deus que me livrasse dos enganos, sempre com muitas lágrimas. Recomendava-me a S. Pedro e a S. Paulo, porque o Senhor me falou pela primeira vez em seu dia,6 dizendo-me que eles me guardariam dos logros. Assim, eu muitas vezes os via muito claramente do meu lado esquerdo, embora não numa visão imaginária. Eu tinha muita devoção por esses santos gloriosos.

6. Causava-me muita aflição fazer figas quando tinha essa visão do Senhor; porque, quando sentia a Sua presença, eu podia ser feita em pedaços antes de crer que era demônio. Assim, isso era uma espécie de penitência bem penosa para mim e, para não fazer tanto o sinal-da-cruz, eu andava com uma cruz na mão.7 Isso eu fazia quase sempre, mas não fazia tanto as figas, porque muito me doía. Eu me recordava das injúrias que os judeus tinham feito ao Senhor e suplicava-Lhe que me perdoasse, pois eu o fazia para obedecer aos que ocupavam o Seu lugar, e que não me culpasse, pois eram os ministros que Ele tinha posto em sua Igreja que o pediam. Ele me dizia que não me importasse e que bem fazia em obedecer, mas que Ele os faria compreender a verdade. Quando fui proibida de fazer oração, pareceu-me que o Senhor ficara descontente. Ele me ordenou que lhes dissesse que aquilo já era tirania. Ele me dava mostras de que não se tratava do demônio; mais tarde falarei de algumas.8

7. Certa vez, estando com a cruz na mão, que eu trazia num rosário, o Senhor a tomou em Suas mãos9 e, quando me devolveu, ela estava formada por quatro pedras grandes muito mais preciosas que diamantes, incomparáveis, pois quase não se pode comparar o visível com o sobrenatural; diante das pedras preciosas lá de cima, o diamante parece pedra falsificada e imperfeita. As cinco chagas estavam formosamente cravejadas na cruz. Disse-me Ele que eu sempre veria a cruz dessa maneira, o que aconteceu: eu já não via a madeira de que era feita, e sim essas pedras — mas só eu o via.

Quando me mandaram fazer essas provas e resistir, os favores aumentaram muito; mesmo quando queria me distrair, eu nunca saía da oração. Mesmo dormindo, tinha a impressão de estar nela, porque cresciam o amor e as queixas que eu fazia ao Senhor; eu não podia suportar não pensar nele, nem isso estava ao meu alcance, por maior que fosse o meu desejo e por mais que eu me esforçasse. No entanto, obedecia quando era possível; mas era pouco, ou quase nada, o que eu podia fazer. O Senhor nunca me disse que não obedecesse, mas, ao mesmo tempo que me mandava obedecer, me dava garantias, ensinando-me o que eu haveria de dizer às pessoas, tal como o faz ainda hoje, dando-me razões tão fortes que me deixava plena de confiança.

8. Há pouco tempo, como tinha prometido,10 Sua Majestade começou a me dar mais indicações de que se tratava dele. Cresceu em mim um imenso amor por Deus, que eu não sabia de onde vinha, porque era muito sobrenatural e não era procurado por mim. Eu me via morrer de desejo de ver a Deus, e não sabia onde mais procurar essa vida verdadeira a não ser na morte. Vinham-me uns ímpetos grandes desse amor que, embora não fossem tão insuportáveis quanto os de que já falei,11 nem de tanto valor, me deixavam sem saber o que fazer: nada me satisfazia, eu não cabia em mim, e sentia verdadeiramente que a alma me era arrancada.

Ó artifício soberano do Senhor! Que meios tão delicados usáveis com Vossa escrava miserável! Vós Vos escondíeis de mim e, ao mesmo tempo, me púnheis, com o Vosso amor, numa morte tão saborosa que a alma jamais quisera sair dela.

9. Quem não tiver experimentado esses ímpetos tão grandes não os poderá entender, pois não se trata de um desassossego do coração, nem de devoções muito comuns que parecem sufocar o espírito e inundar o nosso íntimo. Estas são uma oração inferior, devendo-se evitar semelhantes emoções, procurando-se, com suavidade, recolher a alma e fazê-la calar-se, como se faz com as crianças que choram aceleradamente, parecendo perder o fôlego, mas que logo se acalmam quando lhes damos água.

O mesmo devemos fazer; que a razão procure estabelecer o controle, para que a natureza não se intrometa aqui. Deve-se mudar a consideração, introduzindo o temor de que nem tudo seja perfeito, podendo haver uma grande parti­cipação da parte sensível. Que ela cale essa criança com um amoroso afago que a faça amar de modo suave, e não, como se diz, açodadamente.

Cumpre recolher o amor no íntimo, não permitindo que ele seja como a pa­nela que ferve em demasia porque há lenha demais e se derrama toda. Mo­de­re--se a causa de todo esse fogo, abrandando as chamas com lágrimas suaves, e não amargas como as que vêm das devoções sensíveis e que causam muito mal. Eu as tive algumas vezes no início, e ficava confusa e com o espírito cansado, levando um ou mais dias para conseguir voltar à oração. Por isso, é necessária muita discrição no começo para que tudo tenha suavidade e para que o espírito aprenda a agir interiormente, procurando evitar a todo custo as coisas exteriores.

10. Os ímpetos de que falo são muito diferentes. Não somos nós a pôr a lenha, parecendo antes que, estando o fogo já aceso, logo somos lançados dentro dele para nos queimar. A alma não procura a dor dessa chaga da ausência do Senhor; em vez disso, fincam-lhe uma seta no mais profundo das entranhas e do coração, deixando-a sem saber o que fazer ou querer. Ela bem entende que quer a Deus, mas a seta parece capaz de levar a alma a perder--se de si por amor a este Senhor e a entregar a própria vida por Ele. Não é possível encarecer nem exprimir o modo como Deus chaga a alma, nem o tormento enorme que isso provoca, deixando-a fora de si. Essa dor é, no entanto, muito deliciosa, não havendo deleite na vida que possa ser comparado com ela. A alma desejaria, como eu disse,12 morrer sempre desse mal.

11. Essa dor e essa glória juntas me deixavam desatinada, sem conseguir entender como era possível. Oh, o que é ver uma alma ferida! A alma entende e se declara ferida por causa tão excelente e vê claramente que nada fez para que surgisse esse amor, mas que caiu sobre ela uma pequena centelha do grande amor que o Senhor lhe tem, fazendo-a arder por inteiro. Quantas vezes me recordo, quando estou assim, do versículo de David: Quemadmodum desiderat cervus ad fontes aquarum!13 Parece-me vê-lo cumprido ao pé da letra em mim!

12. Quando isso não ocorre com muito ímpeto, parece que algo se aplaca ou, ao menos, a alma busca remédio, por não saber o que fazer, em algumas penitências. Mas ela não sente as penitências, e derramar sangue do corpo não dói mais do que se este estivesse morto. Ela busca todos os meios para fazer alguma coisa que sinta por amor de Deus; mas a primeira dor14 é tão grande que não conheço tormento corporal capaz de dissipá-la. Como não está nisso a solução, esses remédios são muito fracos para mal tão elevado; aplacam-se algumas coisas quando se pede a Deus a cura, pois a única que a alma vê é a morte, porque ela espera fluir plenamente do sumo Bem. Outras vezes, o ímpeto é tão veemente que nada se pode fazer, ficando o corpo inteiro despedaçado. Não se podem mover os pés nem os braços e, se se estiver de pé, cai-se sentado como objeto sem vida. O peito mal pode respirar, e a alma dá uns gemidos baixinhos, por lhe faltarem forças, mas bem altos em termos de sentimento.

13. Quis o Senhor que eu tivesse algumas vezes esta visão: eu via um anjo perto de mim, do lado esquerdo, em forma corporal,15 o que só acontece raramente. Muitas vezes me aparecem anjos, mas só os vejo na visão passada de que falei.16 O Senhor quis que eu o visse assim: não era grande, mas pequeno, e muito formoso, com um rosto tão resplandecente que parecia um dos anjos muito elevados que se abrasam. Deve ser dos que chamam querubins,17 já que não me dizem os nomes, mas bem vejo que no céu há tanta diferença entre os anjos que eu não os saberia distinguir.

Vi que trazia nas mãos um comprido dardo de ouro, em cuja ponta de ferro julguei que havia um pouco de fogo. Eu tinha a impressão de que ele me perfurava o coração com o dardo algumas vezes, atingindo-me as entranhas. Quando o tirava, parecia-me que as entranhas eram retiradas, e eu ficava toda abrasada num imenso amor de Deus. A dor era tão grande que eu soltava gemidos, e era tão excessiva a suavidade produzida por essa dor imensa que a alma não desejava que tivesse fim nem se contentava senão com a presença de Deus. Não se trata de dor corporal; é espiritual, se bem que o corpo também participe, às vezes muito. É um contato tão suave entre a alma e Deus que suplico à Sua bondade que dê essa experiência a quem pensar que minto.

14. Nos dias em que isso acontecia, eu ficava como que abobada; não queria ver nem falar com pessoa alguma, mas ficar abraçada ao meu sofrimento, que era para mim uma glória maior do que todas as das coisas criadas.

Isso me acontecia algumas vezes quando o Senhor desejava que me viessem esses arroubos tão grandes, e eu, mesmo estando entre pessoas, não podia resistir a eles. Para meu pesar, isso começou a ser divulgado. Desde que os tenho, não sinto tanto esse tormento, mas apenas a dor de que falei antes, não me lembro onde,18 que é muito diferente em muitas coisas e de maior valor. Quando começa esta dor de que falo agora, parece que o Senhor arrebata a alma e a leva ao êxtase, não havendo como ter mágoa ou padecer, porque o deleite logo vem.

Bendito seja para sempre Aquele que tantas graças concede a quem tão mal corresponde a tão grandes benefícios.

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