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terça-feira, 17 de novembro de 2009

cap.39-ss

Capítulo 39

Continua a tratar das grandes graças que o Senhor lhe tem concedido. Afirma que Ele lhe prometeu fazer pelas pessoas o que ela Lhe pedisse. Fala de algumas ocasiões especiais em que Sua Majestade fez esse favor.

1. Estando eu, certa vez, importunando muito o Senhor para que fizesse uma pessoa — a quem eu devia obrigações e de quem tinha pena — recuperar a visão, quase toda perdida, receei que, devido aos meus pecados, o Senhor não me ou­visse. Ele me apareceu como de outras vezes,1 e começou a me mostrar a chaga da mão esquerda, tirando com a direita um grande cravo que estava nela. Parecia-me que, ao lado do cravo, tirava carne. Ele me deixava perceber a grande dor que sentia, o que me deixava muito condoída. Disse-me que, tendo suportado aquilo por mim, melhor faria o que eu Lhe pedisse, prometendo-me que não deixaria de fazer o que eu Lhe pedisse, pois sabia que eu só pediria o que fosse conforme à Sua glória, e que por isso atenderia à minha súplica daquela hora.

Ele me mostrou que, mesmo quando eu não O servia, nunca deixara de atender ao que eu Lhe pedia, atendendo às minhas súplicas para além do que eu sabia pedir, e que o faria muito melhor agora, pois tinha certeza do meu amor. Portanto, que eu não duvidasse de Suas promessas. Creio que em menos de oito dias o Senhor restituiu a visão àquela pessoa. O meu confessor logo o soube. Pode ser que isso não se devesse às minhas orações; mas, como tinha tido essa visão, eu fiquei com a certeza de que Ele me fizera esse favor e Lhe dei muitas graças.

2. Em outra ocasião, uma pessoa estava muito mal de uma dolorosa enfermidade que, por não conhecê-la, não nomeio aqui.2 Ela sofria há dois meses dores tão insurpotáveis que quase se despedaçava. Meu confessor, que era o Reitor3 de quem tenho falado, foi vê-la; ele ficou muito angustiado e disse-me que não deixasse de ir vê-la, pois era pessoa a quem eu podia visitar, um parente meu. Fui e tive tamanha piedade que comecei a pedir de modo importuno pela sua saúde ao Senhor. Vi claramente, sem nenhuma dúvida, a graça que me foi concedida; porque, no dia seguinte, a pessoa estava totalmente livre da dor.

3. Eu estava certa feita com enorme pesar, pois sabia que uma pessoa a quem devia muitas obrigações queria fazer uma coisa contra Deus e contra sua própria honra, já estando muito determinada a isso. Era tamanha a minha aflição que eu não sabia o que fazer; parecia já nada haver que a demovesse. Supliquei a Deus que a fizesse mudar de opinião, com toda a sinceridade, mas, enquanto não O via, a minha dor não se aliviava. Nesse estado, fui a uma capela bem afastada,4 pois há várias neste mosteiro, e, estando numa onde Cristo está atado à coluna, roguei-Lhe que me concedesse essa graça. Ouvi-O falar-me em voz muito suave, muito semelhante a um murmúrio. Eu me arrepiei toda, pois isso me deixou assombrada. Eu queria compreender o que Ele me dizia, mas foi tamanha a rapidez que não o pude.

Passado o assombro inicial, que foi curto, fiquei com um sossego, um gozo e um deleite interior tamanhos que me espantei com o fato de o mero ouvir uma voz (pois eu a ouvi, e com os ouvidos corporais, sem entender palavra) produzir tal efeito na alma. Assim, concluí que o que eu pedira seria atendido, e toda a angústia que eu sentia se dissipou, como se o meu desejo já estivesse realizado, como depois o foi. Contei isso a meus confessores, que, na época, eram dois religiosos muito instruídos e servos de Deus.5

4. Veio ao meu conhecimento que uma pessoa que estava decidida a servir muito verdadeiramente a Deus e que tivera oração por alguns dias, tendo recebido de Sua Majestade muitas graças, abandonara a oração por causa de certas situações bem perigosas nas quais se envolvera e de que ainda não se afastara. Isso me infundiu um imenso pesar, por ser ela pessoa a quem eu muito devia e queria. Creio que passei mais de um mês suplicando a Deus incessantemente que a voltasse para si.

Estando um dia em oração, vi um demônio perto de mim; ele, com muita raiva, despedaçou uns papéis que tinha na mão. Isso me deu grande consolo, pois me pareceu que o que eu pedira fora feito. E assim foi, pois mais tarde soube que a pessoa se confessara com grande contrição e passara a se dedicar a Deus com tanta fidelidade que, espero em Sua Majestade, há de avançar sempre muito. Bendito seja Ele por tudo. Amém.

5. Acontece muitas vezes de Nosso Senhor tirar almas de pecados graves e levar outras a uma maior perfeição devido a súplicas minhas. No tocante a tirar almas do purgatório e outras coisas especiais, são tantas as graças que o Senhor me concede, mais em termos da saúde das almas do que da dos corpos, que seria tedioso contá-las todas. Isso é uma coisa notória, havendo inúmeras testemunhas. Logo depois que isso acontecia, eu ficava muito envergonhada, pois não podia deixar de crer que o Senhor o fazia atendendo à minha oração — sem falar em Sua bondade, que é o principal. Mas são tantos os fatos, e tão conhecidos por outras pessoas, que não me aflijo em crer nisso e louvo Sua Majestade. Fico, no entanto, confusa ao ver que Lhe devo mais; isso, a meu ver, faz crescer o desejo de Servi-Lo e de avivar o amor que Lhe tenho.

O que mais me espanta é que, quando o Senhor percebe que as coisas que peço não convêm, por mais que eu queira e me esforce, não posso pedi--las com a mesma força, o mesmo zelo e o mesmo favor com que peço outras coisas que Sua Majestade me concede. Sinto poder pedir muitas vezes e com insistência favores que o Senhor me faz; quando não observo bem as coisas, Ele as apresenta a mim para que eu as distinga.

6. É grande a diferença entre esses dois modos de pedir, e não sei bem como explicar. Porque certas coisas, embora eu peça (pois não deixo de me esforçar ao suplicá-las ao Senhor, mesmo que não sinta o fervor que há em outras e mesmo que o assunto muito me toque), me trazem a língua como que travada, e eu, embora queira falar, não o consigo e, ainda que o faça, percebo não ser entendida. Em outras, é como se eu falasse clara e distintamente a quem vejo que me ouve de boa vontade. Aquelas são pedidas como que em oração vocal, por assim dizer; estas, numa contemplação tão sublime que o Senhor se mostra de uma maneira que nos faz ver que nos entende, que Se alegra com o nosso pedido e que vai nos conceder a graça.

Bendito seja Ele para sempre, que tanto dá e tão pouco recebe de mim. Porque, Senhor meu, que faz quem não se desfaz por inteiro por Vós? E quanto, quanto, quanto — eu podia repetir mil vezes — me falta para isso! Só por isso eu não devia querer viver, embora haja outras causas, pois não vivo de acordo com o que Vos devo. Com quantas imperfeições me vejo! Com que relaxamento em Vosso serviço! Certo é que, algumas vezes, eu gostaria de estar sem sentidos para não perceber tanto mal em mim. Que Aquele que tudo pode o remedie!

7. Estando eu na casa daquela senhora de que já falei,6 era constante a necessidade de sempre levar em conta a vaidade presente em todas as coisas da vida, pois eu era muito estimada e festejada, e porque me ofereciam muitas coisas a que eu podia me apegar se pensasse em mim mesma. Eu, no entanto, pensava Naquele que tem a verdadeira visão de tudo, para que Ele não me negasse a Sua mão…

8. Por falar em “verdadeira visão”, lembro-me dos grandes sofrimentos que passam as pessoas a quem Deus mostra o que é a verdade ao se envolverem com as coisas na terra, onde a verdade está tão encoberta, como me disse uma vez o Senhor. Muitas coisas que escrevo aqui não vêm da minha cabeça, sendo ditas por esse meu Mestre celestial. Em especial, quando declaro: “Ouvi isto” ou “Disse-me o Senhor”. Tenho muito cuidado para não pôr nem tirar uma única sílaba. Quando não me lembro bem de tudo, eu escrevo como se eu mesma tivesse dito, bem como porque às vezes eu mesma disse. Não digo que o que é meu seja bom, pois sei que não há em mim o que o seja; eu assim classifico o que o Senhor, sem que eu o mereça, me transmite. Por isso, considero “dito por mim” o que não me foi permitido ouvir em revelação.

9. Mas ai, Deus meu! Quantas vezes desejamos, nas coisas espirituais, fazer nossos próprios julgamentos, distorcendo a verdade, como se tratássemos de coisas do mundo! Que pretensão a nossa, querendo medir o nosso aproveitamento pelos anos em que nos dedicamos à oração, como se quiséssemos impor limites Àquele que dá ilimitadamente os Seus dons quando quer, e que pode conceder, em meio ano, mais a uma alma do que a outra em muitos! Eu tenho visto isso tantas vezes em tantas pessoas que me abismo de que alguém possa duvidar.

10. Creio que não se enganará nisso quem tem o dom de discernir espíritos e recebeu do Senhor a verdadeira humildade. Quem assim é avalia pelos efeitos, pela determinação e pelo amor, recebendo do Senhor luz para fazê--lo. Considera o crescimento e o aproveitamento das almas, e não os anos, pois pode ter alcançado em meio ano mais do que outro em vinte, já que, como eu disse, o Senhor dá a quem quer e a quem melhor se dispõe a receber.

Vejo agora chegar a esta casa umas moças bem novas;7 mal Deus as tocou, dando-lhes um pouco de luz e de amor — isto é, mal provaram os regalos que Ele brevemente lhes concedeu —, elas logo corresponderam a Ele e não viram impedimentos, porque, desdenhando refeições, elas se trancam em casa, sem renda, como quem só avalia a vida nos termos Daquele por quem sabem ser amadas. Deixam tudo, não querem ter vontade e não temem se descontentar com tanta clausura e austeridade. Juntas, oferecem-se a Deus em sacrifício.

11. Com grande boa vontade reconheço que, nesse aspecto, elas têm vantagens sobre mim. E eu devia ter vergonha diante de Deus; o que Sua Majestade não conseguiu comigo na multidão de anos desde que comecei a ter oração e desde que Ele começou a me fazer graças consegue delas em três meses — e, em alguns casos, até em três dias —, fazendo-lhes muito menos favores do que a mim, embora lhes pague com generosidade. Elas, sem nenhuma dúvida, não estão descontentes com o que têm feito por Ele.

12. Para que nos humilhássemos, eu gostaria que nos lembrássemos dos muitos anos que temos de profissão e que as pessoas têm de oração; façamos isso com esse fim, e não para afligir os que num curto tempo avançam muito, fazendo-os voltar atrás para seguir o nosso passo, nem obrigar os que voam como águias, com as graças que Deus lhe concede, a andar como frangos amarrados. Pelo contrário, voltemos os olhos para Sua Majestade e, se virmos essas pessoas com humildade, deveremos deixá-las soltas, pois o Senhor, que tantos favores lhes faz, não as deixará cair.

Elas se entregam a Deus baseadas na verdade da fé que conhecem. E não havemos nós de entregá-las a Ele, em vez de preferir medi-las pelas nossas medidas, avaliá-las de acordo com o nosso pouco ânimo? Não vamos agir assim. Se não alcançamos os grandes efeitos que ocorrem nelas nem a sua determinação — que sem experiência mal podemos entender —, humilhemo--nos em vez de condená-las. Porque, sem isso, parecemos visar ao bem do próximo e terminamos por perder o nosso, deixando passar a ocasião que o Senhor nos proporciona para nos humilhar e ver o que nos falta. Essas almas devem estar muito mais desapegadas do mundo e unidas a Deus, visto que Sua Majestade tanto se aproxima delas.

13. Não entendo nem desejo entender outra coisa: prefiro a oração que em pouco tempo produz efeitos muito grandes (que logo são percebidos, pois não é possível deixar tudo, só para contentar a Deus, sem ser movido por um grande amor) à que em muitos anos não levou a alma a estar mais determinada no último dia do que no primeiro a fazer por Deus coisas ínfimas como grãos de sal, que não têm peso nem volume — parecendo poder ser levados no bico de um pássaro —, e que consideramos grandes atos e mortificações. Damos importância a certas coisas insignificantes que fazemos pelo Senhor; lastimo que nos demos conta delas, mesmo que sejam muitas. Eu sou assim: a cada passo, esqueço-me das graças.

Não digo que Sua Majestade não as valorize muito, porque é bom; mas eu gostaria de não fazer caso delas, nem perceber que as faço, porque elas nada são. Perdoai-me, Senhor meu, e não me culpeis, pois com alguma coisa hei de me consolar, já que em nada Vos sirvo. Se eu Vos servisse em grandes coisas, nem sequer perceberia as ninharias. Bem-aventurados os que Vos servem com obras grandes! Se de algo valer a inveja que tenho deles e o meu desejo de imitá-los, não ficarei muito atrás em contentar-Vos; contudo, Senhor meu, nada valho. Vós, que tanto me amais, ponde em mim o valor.

14. Num destes dias, a fundação ficou totalmente concluída, pois chegou um Breve de Roma8 permitindo que a casa não tenha renda. Aconteceu-me de, estando consolada de ver a obra assim concluída e pensando nos sofrimentos por que tinha passado — e louvando o Senhor, que de alguma maneira quisera servir-se de mim —, considerar todas as coisas até então decorridas. Vi que, em cada coisa em que eu parecia ter feito algo, havia muitas faltas e imperfeições, e, por vezes, pouco ânimo e fé minúscula. Vejo que se cumpriu tudo o que o Senhor prometera a respeito desta casa, mas até agora não tinha conseguido crer de todo que se cumpririam todas as promessas feitas pelo Senhor sobre ela, embora também não pudesse duvidar.

Não consigo explicar como era isso. Por um lado, eu julgava muitas vezes impossível, mas, por outro, não podia duvidar, isto é, crer que a obra não se realizaria. Por fim, descobri que, quanto ao bem, o Senhor fizera Sua parte, e, quanto ao mal, eu dera a minha contribuição. Por isso, deixei de pensar nessas coisas, e gostaria de não me recordar delas para não deparar com tantas faltas minhas. Bendito seja Aquele que de todas essas faltas extrai o bem quando assim o deseja. Amém.

15. Digo, pois, que é um perigo contar os anos de oração, porque, mesmo com humildade, creio que pode ficar uma tentaçãozinha de pensar que se merece alguma coisa pelos serviços prestados. Não digo que não se mereça, nem que não se vá ser bem-recompensado; mas qualquer pessoa espiritual que pensar merecer esses regalos de espírito pelos muitos anos de oração por certo não chegará ao ponto mais alto.

Não basta conseguir que Deus nos tenha conduzido pela mão para que não O ofendamos como o fazíamos antes de começar a ter oração? Queremos ainda, como se diz, exigir direitos na justiça? Isso não me parece profunda humildade; talvez seja, mas eu o considero atrevimento, porque, embora a minha não seja muita, também nunca ousei fazer tal exigência. Pode ser que, como nunca O servi, também nunca tenha pedido isso; talvez se O tivesse servido, eu viesse a querer, mais do que todos, que o Senhor me pagasse.

16. Não afirmo que, se a sua oração for humilde, a alma não vá crescendo nem Deus deixe de recompensá-la. Mas é preciso esquecer esses anos, porque tudo quanto podemos fazer de nada vale em comparação com uma gota de sangue que o Senhor derramou por nós. Se, ao servi-Lo mais, mais Lhe devemos, que recompensa é essa que pedimos? Pagamos um centavo da dívida e recebemos em troca mil ducados. Pelo amor de Deus, abandonemos esses juízos que só a Ele pertencem. Essas comparações nunca são boas, mesmo quando aplicadas às coisas da terra, quanto mais àquilo que só Deus conhece — como bem o mostra Sua Majestade ao pagar tanto aos últimos como aos primeiros.9

17. Escrevi estas três últimas folhas tantas vezes e em tantos dias — porque tive e tenho, como disse,10 pouco tempo livre — que ia me esquecendo do que comecei a narrar. Eis a visão: estando em oração, vi-me sozinha num grande campo, cercada de muita gente de todas as espécies. Tive a impressão de que todos tinham armas nas mãos para me agredir; uns tinham lanças, outros, espadas, adagas e outras armas. Eu não podia escapar sem me pôr em risco de morte e não contava com ninguém do meu lado. Meu espírito estava nessa aflição, e eu não sabia o que fazer de mim; então, levantei os olhos na direção do céu e vi Cristo. Ele não estava no céu, mas bem acima de mim, no ar, estendendo-me a mão e amparando-me de tal modo que eu não tinha temor de toda aquela gente, nem as pessoas, embora quisessem, podiam me fazer mal.

18. Essa visão que parece sem fruto tem me feito um grande bem, pois vim a entender o seu significado. De fato, pouco depois, quase sofri um ata­que semelhante, vindo a saber ser aquela visão uma imagem do mundo: tudo quanto há nele parece portar armas para ferir a triste alma. Não vamos falar dos que pouco servem ao Senhor, nem das honras, riquezas, prazeres e outras coisas semelhantes, que, é evidente, enredam ou ao menos procuram enredar a alma não prevenida. Refiro-me aos amigos, aos parentes e, o que mais me causa espanto, a pessoas muito boas. Todos esses mais tarde me atormentaram tanto que eu não sabia como me defender nem o que fazer. E todos julgavam que faziam bem.

19. Oh! Valha-me Deus! Se eu contasse os vários sofrimentos de toda espécie que tive nessa época — depois do que contei —, que bela ocasião para nos acautelarmos e esquecermos por inteiro do mundo! Essa foi, creio eu, a maior perseguição de todas as que sofri. Sim, repito, em certos momentos vi-me tão cercada que o único remédio era erguer os olhos ao céu e chamar por Deus. Eu me lembrava bem do que contemplara naquela visão; isso muito me serviu para que eu não confiasse em ninguém, porque só Deus é estável. Como o Senhor já me revelara, sempre havia, a mando Seu, quem me desse a mão, visando apenas agradar ao Senhor. Assim agistes, Senhor, para sustentar o pouquinho de virtude que eu tinha em desejar servir-Vos. Sede para sempre bendito!

20. Em outra ocasião, eu estava muito inquieta e confusa, sem poder me recolher, envolvida numa árdua luta, numa enorme batalha interior; meu pensamento se dirigia a coisas imperfeitas, a ponto de me parecer que eu não estava com o desapego que costumo ter. Vendo-me assim tão ruim, temi que as graças que o Senhor tinha me concedido fossem ilusões; eu estava, em suma, com a alma envolta numa grande escuridão.

Estando eu nesse padecer, o Senhor começou a me falar, dizendo-me que não me afligisse. Vendo-me nesse estado, eu compreenderia quão miserável eu seria se Ele se afastasse de mim e que, enquanto estamos nesta carne, não há segurança. Ele me permitiu compreender a validade desta batalha diante da recompensa a ser ganha, e tive a impressão de que Ele tinha pena dos que vivem neste mundo. Ele me disse que não pensasse que Se esquecera de mim; nunca me deixaria, mas eu precisava fazer tudo o que pudesse. Ele me disse isso com uma compaixão e ternura, e com outras palavras em que me fazia uma grande graça, que não tenho termos para descrever.

21. Sua Majestade tem me dito muitas vezes, mostrando grande amor por mim, estas palavras: Já és minha, e Eu sou teu. Eu sempre costumo Lhe dizer e, a meu ver, com sinceridade: pouco me importo comigo, Senhor, mas apenas Convosco. As palavras que Ele me dirige e os regalos que me concede me deixam tão confusa que, quando me lembro de quem sou, como já disse outras vezes11 e ainda digo algumas ao meu confessor, penso que é preciso mais coragem para receber essas graças do que para suportar os piores sofrimentos. Quando isso acontece, eu me esqueço de minhas obras e vejo apenas que sou ruim, sem o trabalho do intelecto, numa sensação que às vezes me parece sobrenatural.

22. Acometem-me por vezes uns anseios tão grandes de comungar que nem sei explicar. Certa manhã em que chovia muito, parecendo que o tempo não era bom para sair, estando eu fora do meu mosteiro, estava tão tomada por aquele ímpeto que, se apontassem lanças para o meu peito, creio que me atiraria contra elas, quanto mais contra a água. Chegando à igreja, veio-me um grande arroubo. Tive a impressão de ver os céus abertos, e não apenas uma entrada como já ocorreu de outras vezes.12 Foi-me apresentado o trono que já vi algumas vezes, como informei a vossa mercê, e outro acima dele; neste, de uma maneira que não sei descrever, entendi estar a Divindade, embora nada visse.

Ele parecia estar sustentado por uns animais, cuja significação já me foi explicada. Imaginei que fossem talvez representações dos evangelistas.13 Não vi como era o trono nem quem estava nele, mas apenas uma grandíssima multidão de anjos. Eles me pareceram incomparavelmente mais belos do que todos os que tenho visto no céu. Fico a imaginar se serão serafins ou querubins, pois a glória destes parece ser superior, e eles dão a impressão de estar inflamados. Há, repito, muita diferença entre eles.14

A alegria de que me senti inundada não pode ser descrita de nenhuma maneira, nem a pode imaginar quem não a experimentar. Entendi estar ali, junto, tudo o que se pode desejar, mas nada vi. Disseram-me — não sei quem — que eu podia compreender ali que nada podia entender e ver o nada que era tudo comparado com aquilo. Mais tarde, a minha alma ficava envergonhada só de pensar que podia se deter em alguma coisa criada ou, o que seria pior, se afeiçoar a ela, porque tudo me parecia um formigueiro.

23. Comunguei e assisti à missa, nem sei como. Pareceu-me que só se passara pouco tempo. Fiquei espantada quando o relógio deu as horas e vi que tinha passado duas naquele arroubo e glória. Mais tarde, eu me maravilhava ao ver como, vindo o fogo do verdadeiro amor de Deus, pois parece vir de cima (porque, por mais que eu o queira, o procure e me desfaça por ele, nada sou nem posso fazer para conseguir uma única centelha sua, a não ser quando Sua Majestade o deseja dar, como eu já disse15), o homem velho é totalmente consumido com as suas faltas, fraquezas e misérias.

Tal como a fênix, que, como li,16 depois de queimada, renasce das próprias cinzas, assim também a alma, depois disso, se transforma, tendo desejos diferentes e uma grande força. Ela não parece ser a mesma de antes, recomeçando, com pureza renovada, a trilhar o caminho do Senhor. Quando supliquei a Sua Majestade que assim fosse e que eu começasse a servi-Lo de novo, Ele me disse: Boa comparação fizeste; procura não te esqueceres dela para buscares ir sempre melhorando.

24. Estando outra vez com a mesma dúvida de que há pouco falei,17 se essas visões eram mesmo de Deus, o Senhor me apareceu e me disse, com rigor: Ó filhos dos homens, até quando sereis duros de coração? Acrescentou que eu examinasse bem em mim uma coisa: se me entregara de todo a Ele ou não; que, se assim tinha feito, e era Sua por inteiro, acreditasse que Ele não deixaria que eu me perdesse.

Fiquei muito aflita com aquela exclamação. Ele me disse, com grande ternura e carinho, que eu não me perturbasse, pois Ele já sabia que, se fosse por mim, eu não deixaria de tudo suportar para servi-Lo. Ele me prometeu fazer tudo o que eu quisesse. E foi assim que se fez o que eu Lhe suplicava então. Prosseguindo, o Senhor disse que eu devia ver o amor por Ele que, dia após dia, ia aumentando em mim, para assim perceber não serem as visões obra do demônio. Eu nem devia pensar que Ele fosse permitir ao inimigo tamanho domínio sobre as almas dos Seus servos, nem condições para dar a clareza de compreensão e a paz que eu tinha. Fez-me compreender que eu agiria mal se não acreditasse nas tantas pessoas, e tão capacitadas, que diziam que era Deus.

25. Estando uma vez rezando o salmo Quicumque vult,18 foi-me explicado o modo pelo qual Deus é um só em três Pessoas com tanta clareza que eu fiquei abismada e muito consolada. Isso muito me favoreceu no maior conhecimento da grandeza de Deus e de Suas maravilhas, e, quando penso na Santíssima Trindade, ou quando ouço falar dela, tenho a impressão de que entendo como isso pode ser, o que me dá imenso contentamento.

26. Num dia da Assunção da Rainha dos Anjos e Senhora nossa, quis o Senhor fazer-me o seguinte favor: num arroubo, apresentou-me Sua subida ao céu e a alegria e solenidade com que Ela foi recebida, bem como o lugar onde está. Eu não saberia dizer como ocorreu isso. O meu espírito teve uma enorme exultação ao contemplar tão imensa glória. Isso deixou em mim grandes efeitos, fazendo-me desejar cada vez mais suportar grandes sofrimentos e servir a essa Senhora, que tanto o mereceu.

27. Estando num colégio da Companhia de Jesus,19 vi, quando os irmãos da casa comungavam, um pálio resplendente acima de suas cabeças. Isso aconteceu duas vezes. Quando outras pessoas comungavam, eu não o via.

Capítulo 40

Continua a narrar os grandes favores que o Senhor lhe concedeu. Diz que de alguns deles é possível extrair uma doutrina muito boa. Afirma que, como tem dito, a sua principal intenção, depois de obedecer, foi descrever as graças que podem ser de proveito para as almas. Diz que, com este capítulo, acaba o relato de sua vida. Dedica esse relato à glória do Senhor. Amém.

1. Estando uma vez em oração, fui invadida por tamanha felicidade que, sendo indigna de tal bem, comecei a pensar que merecia muito mais estar naquele lugar que eu tinha visto preparado no inferno para mim, porque, como venho dizendo,1 nunca me sai da memória a sensação que ali tive. Ao considerar isso, senti a alma inflamar-se mais, vindo-me um arroubo de espírito que não sei descrever. Eu parecia ter o espírito imerso naquela Majestade que de outras vezes percebi.

Compreendi nessa Majestade uma verdade que é a plenitude de todas as verdades; mas não sei descrever como, porque nada vi. Disseram-me (não sei quem, mas percebi que era a mesma Verdade): Não é pouco o que faço por ti, sendo uma das coisas em que muito me deves; porque todo mal que vem ao mundo decorre de não se conhecerem as verdades da Escritura com clareza, da qual nem uma vírgula ficará por cumprir.2 Pareceu-me que eu sempre tinha acreditado nisso e que todos os fiéis o crêem. O Senhor me disse: Ai, filha, quão poucos me amam de verdade! Se Me amassem, Eu não lhes encobriria meus segredos. Sabes o que é amar-Me com verdade? Entender que tudo o que não é agradável a Mim é mentira. Verás com clareza isso que agora não entendes pelo fruto que sentirás em tua alma.

2. E assim ocorreu, seja o Senhor louvado; desde então, considero tão vaidoso e mentiroso tudo o que vejo que não está voltado para o serviço de Deus que eu não saberia exprimir até que ponto o entendo nem o pesar que sinto diante dos que estão em trevas com relação a essa verdade. Com isso, obtive outros benefícios que vou narrar, embora muitos deles eu não saiba descrever. O Senhor me disse aqui uma palavra particular de enorme graça.3 Não sei como foi isso, porque nada vi; mas fiquei de uma maneira que nem posso descrever: surgiram em mim uma grande força e uma verdadeira determinação de cumprir com todo o empenho a mínima palavra da divina Escritura. Creio que não deixaria de enfrentar nenhum obstáculo para fazê-lo.4

3. Essa Verdade divina, que me foi apresentada sem eu saber como nem por quem, deixou impressa em mim uma verdade que me faz respeitar Deus de modo inteiramente novo, porque dá um conhecimento de Sua Majestade e do Seu poder que é impossível descrever; só posso dizer que esse dom é grande coisa. Fiquei com uma imensa vontade de só falar coisas muito verdadeiras que estejam acima das coisas do mundo, começando por isso a sofrer por viver nele.

Essa graça infundiu em mim grande ternura, deleite e humildade. Parece--me, sem que eu saiba como, que o Senhor muito me concedeu aqui. De maneira nenhuma suspeitei que fosse ilusão. Embora nada visse, compreendi o grande benefício que há em não considerar senão as coisas que nos aproximam de Deus e, assim, compreendi o que é estar uma alma na verdade na presença da própria Verdade.5 Mediante isso, compreendi que o Senhor é a própria Verdade.

4. Todas essas coisas me foram reveladas por palavras ou sem elas.6 Quando sem palavras, a compreensão era às vezes ainda mais clara do que quando havia palavras. Aprendi enormes verdades sobre essa Verdade, mais do que se tivesse sido ensinada por muitos eruditos. Creio que de forma alguma eles poderiam imprimir assim no meu espírito, nem me explicar tão claramente, a vaidade do mundo.

Essa Verdade é em si mesma verdade, não tendo princípio nem fim. Todas as outras verdades dependem dessa Verdade, assim como todos os demais amores, desse Amor, e todas as outras grandezas, dessa Grandeza. Mas o que digo é, em comparação com a luz com que o Senhor me explicou isso, obscuro. E como brilha o poder dessa Majestade que em tão breve tempo deixa um proveito tão grande, imprimindo essas verdades na alma!

Ó Grandeza e Majestade minha! Que fazeis, Senhor meu todo-poderoso? Vede a quem concedeis tão soberanos favores! Não vos dais conta de que esta alma foi um abismo de mentiras, uma imensidão de vaidades, e tudo por minha culpa; e de que, apesar de me terdes dado uma natureza que abomina a mentira, eu mesma me obriguei a lidar com muitas coisas a partir da mentira? Como se tolera, Deus meu, como se permite que tão grande favor e graça possam ser dados a quem tão mal os tem merecido?

5. Estando uma vez nas Horas com todas as irmãs, a minha alma se recolheu de imediato e deu-me a impressão de ser um claro espelho.7 Não havia parte posterior, nem lados, nem alto, nem baixo que não fosse claridade; e, no centro, foi-me apresentado Cristo Nosso Senhor da maneira como costumo vê--Lo.8 Eu parecia vê-Lo em todas as partes da minha alma claro como um espelho; e esse espelho, não sei como, também era feito todo do próprio Senhor, através de uma comunicação muito amorosa que não sei descrever.

Sei que essa visão me traz grande proveito cada vez que me lembro dela, em particular quando acabo de comungar. Compreendi que, quando a alma está em pecado mortal, esse espelho se cobre de densa névoa e fica muito escuro; o Senhor não pode se refletir nele nem O podemos ver, embora Ele esteja sempre presente, dando-nos o ser.

No tocante aos hereges, é como se o espelho estivesse quebrado, o que é muito pior do que apenas obscurecido. É enorme a diferença entre ver e explicar essas coisas, pois não há palavras que bastem para tanto. Mas disso tenho obtido muitos benefícios, infundindo-me uma grande angústia ao pensar nas vezes em que, com minhas faltas, obscureci a minha alma de uma maneira que não me permitia ver esse Senhor.

6. Essa visão me parece benéfica para as pessoas que se dedicam ao recolhimento,9 ensinando-as a considerar o Senhor no mais íntimo de sua alma, pois essa consideração nos envolve mais e dá muito mais frutos do que se O considerarmos fora de nós, como eu já disse.10 Em alguns livros de oração, diz-se ser aí que se deve buscar a Deus; o glorioso Santo Agostinho, em especial, diz que nem nas praças, nem nos contentamentos, nem em todos os lugares onde O buscou O encontrou como dentro de si. Isso é com certeza o melhor, já que não é preciso ir ao céu, nem procurar mais longe nem fora de nós mesmos; fazer estas últimas coisas cansa o espírito e distrai a alma, e sem dar tantos frutos.

7. Quero dar um aviso a quem tem grandes arroubos a respeito do que ocorre neles. Passado o momento em que a alma se encontra em união (em que as faculdades estão totalmente absortas, o que dura pouco, como eu já disse11), acontece-lhe de ficar recolhida e até sem condições de voltar a si, mas as duas faculdades, a memória e o intelecto, ficam quase frenéticas, delirando.

Isso acontece algumas vezes, como digo, principalmente no início. Creio que isso decorre do fato de a nossa fraqueza natural não suportar tanta força de espírito, o que leva ao debilitamento da imaginação. Sei que isso acontece com algumas pessoas. Nessas ocasiões, parece-me melhor que se esforcem por deixar a oração, recuperando em outro momento aquilo que então perdem. Elas não devem insistir, pois poderão provocar muito mal. A experiência indica que é muito acertado verificar quanto a nossa saúde pode agüentar.

8. Em tudo são necessárias a experiência e a direção, porque, chegando a alma a esse estado, surgirão muitas ocasiões em que é imperativo ter alguém com quem o tratar. Se, tendo buscado um diretor, a pessoa não o achar, o Senhor não lhe faltará, pois não faltou a mim, sendo eu quem sou. De fato, encontram-se poucos mestres, acredito eu, que tenham alcançado a experiência de coisas tão elevadas; não a tendo, em vão procuram ajudar a alma sem a deixar inquieta e aflita. Mas isso também o Senhor leva em conta, sendo assim melhor tratar disso, como eu já disse,12 com um confessor digno.

Eu talvez esteja repetindo tudo, porque a minha memória não ajuda. Especialmente quando se é mulher, é muito importante dizer tudo ao confessor. O Senhor concede essas graças muito mais a elas do que aos homens, como me disse o santo Frei Pedro de Alcântara e como eu mesma observei. Para ele, nesse caminho elas vão mais longe do que eles; ele apresentava excelentes razões, todas em favor das mulheres, que não é preciso repetir aqui.

9. Estando uma vez em oração, foi-me apresentado muito brevemente (sem que eu visse uma coisa formada, mas numa representação muito clara) como se vêem todas as coisas em Deus e como todas elas estão encerradas nele por inteiro. Não sei descrevê-lo, mas a imagem ficou muito impressa na minha alma, sendo essa uma das grandes graças que o Senhor me concede, uma das que mais me deixaram confusa e envergonhada quando me lembrei dos pecados que cometi. Acredito que, se o Senhor quisesse que eu visse isso em outra época, e se permitisse essa visão aos que O ofendem, nem eu nem eles teríamos coragem nem atrevimento para o fazer.

Parece-me que vi o que vou dizer, embora não o possa afirmar, digo desde já, que de fato vi alguma coisa. Mas algo devo ter visto, já que posso fazer essa comparação;13 mas tudo ocorre de modo tão sutil e delicado que o intelecto não o pode alcançar. Talvez seja eu quem não sabe entender essas visões, que não parecem imaginárias, embora algumas devam conter um quê de imagem. Mas, como isso ocorre com a alma em êxtase, as faculdades não conseguem reproduzir o que se vê tal como o Senhor lhes apresenta e lhes permite provar.

10. Digamos, portanto, que a Divindade é apresentada como um diamante muito claro, muito maior que o mundo inteiro, ou como um espelho — como eu já disse ao falar da outra visão,14 embora, nesta, tudo seja tão superior e sublime que não sei como lhe fazer jus. Nesse diamante, vemos tudo o que fazemos, pois ele encerra tudo em si, não havendo nada que exista fora de sua imensidade.

Foi um espetáculo maravilhoso ver nesse claro diamante, em tão breve espaço de tempo, tantas coisas juntas. Como lastimo, cada vez que me lembro disso, ter visto coisas tão feias como os meus pecados refletidas naquela claridade translúcida. Diante dessa lembrança, nem sei como posso resistir; fico tão envergonhada que não sei onde me esconder.

Quem dera se pudesse explicar isso aos que cometem pecados muito grandes e desonestos, para que se lembrassem de que não ficam ocultos e de que Deus, com razão, os sente, visto que cometemos esses pecados na presença de Sua Majestade, sendo grande o desacato com que O ofendemos! Vi como é justo merecer o inferno por um único pecado mortal. É gravíssima coisa cometê-lo diante de tão grande Majestade, à qual muito repugnam coisas semelhantes. Dessa maneira, vemos ainda mais a Sua misericórdia, porque, vendo que sabemos tudo isso, ainda assim nos suporta.

11. Isso me tem feito pensar: se uma visão como essa deixa a alma tão espantada, como será no dia do juízo, quando essa Majestade se mostrar bem claramente a nós e virmos o quanto O ofendemos? Valha-me Deus, que cegueira esta em que tenho vivido! Muitas vezes fico abismada com o que tenho escrito, e vossa mercê deve espantar-se apenas com o fato de eu ainda viver depois de ver essas coisas e a mim mesma. Bendito seja para sempre Quem tanto me tem suportado.

12. Estando certa vez em oração, muito recolhida e envolta em suavidade e quietude, senti-me rodeada de anjos e muito próxima de Deus. Comecei a rogar a Sua Majestade pela Igreja. Veio-me a compreensão do grande proveito que certa Ordem religiosa traria nos últimos tempos e da força com que seus filhos haveriam de sustentar a fé.15

13. Eu estava em oração perto do Santíssimo Sacramento quando me apareceu um santo cuja Ordem está um tanto decaída. Tinha nas mãos um grande livro, que abriu, dizendo-me que lesse umas palavras escritas em letras grandes e muito legíveis: Nos tempos vindouros, esta Ordem florescerá; haverá muitos mártires.16

14. De outra vez, estando no coro durante as Matinas, vi diante dos meus olhos seis ou sete religiosos dessa mesma Ordem — ou assim me pareceu — com espadas nas mãos. Isso significava, penso eu, que eles hão de defender a fé; porque mais tarde, quando eu estava em oração, meu espírito foi arrebatado, e eu parecia estar num enorme campo onde muitos lutavam; os combatentes dessa Ordem se batiam com grande ânimo. Seus rostos estavam formosos e muito abrasados; eles deixaram muitos caídos, vencidos, e outros mortos. Tive a impressão de que a batalha era contra os hereges.

15. Tenho visto algumas vezes este glorioso Santo,17 que tem me dito algumas coisas e agradecido minhas orações pela sua Ordem, prometendo me encomendar ao Senhor. Não nomeio as Ordens, para que as outras não fiquem ofendidas; se o Senhor quiser que se saiba, Ele mesmo as nomeará. Mas cada Ordem, ou cada membro, tinha de fazer com que, através de si, o Senhor os fizesse tão ditosos que pudessem servir à Igreja num momento de tão grande necessidade. Felizes as vidas que por isso se sacrificarem!

16. Uma pessoa me pediu que eu suplicasse a Deus para que Ele lhe dissesse se seria serviço Seu aceitar um bispado.18 Quando eu acabava de comungar, disse-me o Senhor: Quando entender com toda a verdade e clareza que a genuína autoridade é não possuir coisa alguma, ele o poderá aceitar. Isso significa que quem se destina às prelazias de modo algum deve desejá-las ou querê-las, ou, ao menos, não deve procurá-las.

17. Essas e muitas outras graças foram e são concedidas pelo Senhor a esta pecadora, parecendo-me desnecessário detalhá-las, pois, pelo que eu já disse, é possível conhecer a minha alma e o espírito que o Senhor tem infundido em mim. Bendito seja Ele para sempre, que tanto cuidado tem tido comigo.

18. Disse-me Ele certa feita, consolando-me com muito amor, que eu não me afligisse, porque nesta vida não podemos estar sempre num mesmo estado. Numas ocasiões, eu teria fervor e, em outras, estaria sem ele; numas, teria desassossego e, noutras, quietude e, em outras ainda, tentações. Contudo, eu devia confiar Nele e nada temer.

19. Um dia, eu estava pensando se seria apego gostar de estar com as pessoas com quem trato da minha alma e ter afeição pelos que considero servos fiéis de Deus, pois me consolava com eles. O Senhor me disse que, se um enfermo que está correndo risco de morte julgar que um médico lhe dá saúde, não teria virtude de sua parte ser-lhe grato e ter amizade por ele? Que teria sido de mim sem a ajuda dessas pessoas? Conversar com os bons não prejudica, mas as minhas palavras sempre deveriam ser ponderadas e santas, e eu não deveria deixar de tratar com eles, pois isso antes me traria proveito que prejuízo.

Essas palavras muito me consolaram, porque algumas vezes, julgando haver apego, eu penso em deixar de lado esses relacionamentos. O Senhor sempre me aconselha em todas as coisas, chegando a me dizer como me relacionar com os fracos e com algumas pessoas. Ele jamais se descuida de mim; às vezes, sofro por me ver tão incapacitada para o Seu serviço e obrigada a perder um tempo maior do que eu gostaria com um corpo tão fraco e ruim como é o meu.

20. Estando em oração, chegou a hora de ir dormir. Eu estava com muitas dores, esperando o vômito costumeiro.19 Vendo-me tão prejudicada pelo corpo e vendo o espírito querendo tempo para si, fiquei tão perturbada que comecei a chorar, muito angustiada. Isso aconteceu muitas vezes, levando-me a ficar aborrecida comigo mesma, beirando o desprezo por mim. Mas, em geral, percebo que não me odeio o bastante nem recuso o que me parece necessário. Queira o Senhor que eu não tome muito mais do que é preciso! É bem provável que eu o faça.

Nessa ocasião de que falo, o Senhor me apareceu, consolando-me muito, dizendo que eu fizesse essas coisas por amor a Ele e a tudo suportasse, pois a minha vida ainda era necessária. Assim, desde que me determinei a servir com todas as forças a esse Senhor e consolador meu, não há ocasião em que Ele, embora me deixe padecer um pouco, não me console muito depois, o que tira os meus méritos de desejar sofrimentos.

Agora, não acho outro motivo para viver, além do sofrimento. E é isso o que peço a Deus com todo o empenho, dizendo-Lhe, por vezes: Senhor, só peço para mim o morrer ou o padecer. Fico consolada ao ouvir soar o relógio, pois tenho a impressão de que isso me aproxima um pouco mais de ver a Deus, tendo aquela hora da minha vida se extinguido.

21. Em outras ocasiões, é tal o meu estado que não me sinto viver nem pareço ter vontade de morrer. Fico com um tédio e um acabrunhamento em tudo, como eu disse,20 muito freqüentes por causa dos meus grandes sofrimentos interiores. E, tendo o Senhor desejado tornar públicas as graças que me faz, como Ele mesmo o previra há alguns anos, eu muito me afligi, e não é pouco o que tenho padecido até agora, como o sabe vossa mercê, porque cada um o interpreta a seu modo.

Consola-me saber que isso não ocorreu por minha culpa; porque tenho tido muito cuidado e grande reserva em não o contar senão a meus confessores ou a pessoas a quem eles o tenham comunicado. E ajo assim não por humildade, mas porque, como já disse,21 tenho vergonha de contá-lo até aos confessores. Agora, graças a Deus, embora falem muito de mim com bom zelo, havendo ainda os que temem ter relações comigo e até me confessar, e outros que me dizem muitas coisas, como vejo que o Senhor quis dar dessa maneira um corretivo a muitas almas (porque tenho visto isso com clareza e me recordo de quanto passaria pelo Senhor em benefício de uma só alma), pouco me importa o que dizem de mim.

Não sei se contribui para isso o fato de Sua Majestade ter-me posto neste lugar22 tão afastado, onde vivo como se já tivesse morrido. Eu pensava que ninguém mais se lembrasse de mim, mas não foi assim, pois sou obrigada a falar com algumas pessoas; contudo, como estou num local onde não podem me ver, creio que o Senhor já me trouxe a um porto que, espero em Sua Majestade, é seguro.

22. Como já estou fora do mundo, com poucas e santas companheiras, olho tudo de cima e nenhuma importância dou ao que se possa falar ou saber de mim; isso vale muito menos do que o mínimo proveito que uma alma possa obter. Desde que estou aqui, quis o Senhor que todos os meus desejos estejam voltados para isso. Ele tornou a minha vida uma espécie de sonho em que o que vejo não parece ter realidade: não vejo em mim nenhum contentamento nem pesar significativos.

Se alguma coisa me deixa pesarosa, é tal brevidade com que passa que fico abismada; o sentimento que fica em mim é como uma coisa sonhada. Isso é a pura verdade, porque, mesmo que depois eu queira me alegrar com um contentamento ou me afligir com um pesar, não está em minhas mãos fazê-lo, tal como não estaria nas de uma pessoa sensata angustiar-se ou rejubilar-se com um sonho. Isso acontece porque o Senhor já despertou a minha alma e a afastou daquilo que, por eu não estar mortificada nem morta para as coisas do mundo, me provocava tantos sentimentos. Sua Majestade não quer que a minha alma volte a ficar cega.

23. Assim vivo agora, senhor e padre meu.23 Suplique vossa mercê a Deus que me leve para Si ou me mostre como servi-Lo. Queira Sua Majestade que este manuscrito traga proveito a vossa mercê, porque, devido ao pouco tempo de que disponho, me custou algum trabalho. Mas bendito trabalho, se conseguir dizer algo que leve alguém, ao menos uma vez, a louvar o Senhor. Com isso eu me consideraria recompensada, mesmo que vossa mercê logo o queimasse.

24. Contudo, eu não gostaria que isso ocorresse sem que o vissem as três pessoas que vossa mercê sabe,24 que são e têm sido meus confessores. Se o que digo de nada vale, é bom que eles percam a visão favorável que têm de mim; se vale alguma coisa, sei que eles, que são bons e instruídos, verão de onde vem e louvarão Quem o disse por mim.

Que Sua Majestade sempre conduza vossa mercê pela mão e o torne um santo tão grande que, com sua luz e espírito, ilumine esta pessoa miserável, pouco humilde e muito atrevida que ousou pôr-se a escrever sobre coisas tão sublimes. Queira Deus que eu não tenha errado nisso, pois tive a intenção e o desejo de acertar e obedecer, pretendendo que, por meu intermédio, se louvasse um pouco o Senhor, coisa que Lhe suplico há muitos anos.

Como me faltam as obras, cometi a temeridade de tentar dar ordem à minha vida desorganizada, embora não tenha tido mais cuidado nem tempo do que o que foi necessário para fazer este relato. Contei apenas, com toda a lisura e verdade que estavam ao meu alcance, o que ocorreu comigo.

Queira o Senhor, que é poderoso e, se quer, pode, que em tudo eu faça a Sua vontade, não permitindo que se perca esta alma que Ele, com tantos artifícios e de tantas maneiras, tem tirado inúmeras vezes do inferno e trazido para Si. Amém.

JHS

1. O Espírito Santo esteja sempre com vossa mercê, amém.1

Não seria impróprio encarecer a vossa mercê este serviço para obrigá-lo a ter muito cuidado de me encomendar a Nosso Senhor, pois, pelo que tenho passado ao me ver retratada e ao trazer à lembrança tantas misérias minhas, eu bem o posso fazer. É verdade que senti mais por falar dos favores que o Senhor me tem feito do que das ofensas que tenho cometido contra Sua Majestade.

2. Fiz o que vossa mercê me mandou; fui extensa,2 mas com a condição de que vossa mercê faça o que prometeu, rasgando o que lhe parecer ruim. Eu não tinha acabado de lê-lo, depois de escrito, quando vossa mercê o mandou buscar. Pode ser que algumas coisas estejam maldescritas e outras repetidas, porque o meu tempo tem sido tão pouco que nem reli o que ia escrevendo. Suplico a vossa mercê que o emende e o faça copiar, se tiver de mandá-lo ao Padre Mestre Ávila,3 pois talvez alguém reconheça a letra.

Eu desejo muito que ele o veja, pois com essa intenção comecei a escrever; se ele achar que sigo um bom caminho, ficarei muito consolada, porque já não há nada que eu possa fazer de minha parte. Em tudo faça vossa mercê como melhor lhe parecer, vendo a quanto está obrigado diante de quem assim lhe confia a sua alma.

3. A de vossa mercê eu encomendarei por toda a vida a Nosso Senhor. Por isso, apresse-se em servir Sua Majestade para me fazer uma graça, pois vossa mercê verá, pelo que aqui escrevi, quão bem é empregada a vida de quem se entrega por inteiro, como vossa mercê começa a fazer, a Quem tão sem limites se entrega a nós.

4. Bendito seja Ele para sempre. Espero em Sua misericórdia que eu e vossa mercê nos encontremos onde vejamos mais claramente as grandezas que Ele nos concedeu, e onde para todo o sempre vamos louvá-lo, amém.

Este livro foi concluído em junho, no ano de 1562.4

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