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terça-feira, 17 de novembro de 2009

cap.30 a 38

Capítulo 30

Retoma a narração de sua vida e diz como o Senhor remediou muitos dos seus sofrimentos por trazer ao lugar onde ela estava o santo Frei Pedro de Alcântara, da Ordem do glorioso São Francisco. Trata das grandes tentações e sofrimentos interiores que por vezes a acometiam.

1. Vendo o pouco ou nada que podia fazer para não ter esses ímpetos tão grandes, comecei a temê-los; porque não conseguia entender como podiam estar juntos a dor e o contentamento;1 sabia que era possível dor corporal e alegria espiritual, mas ficava perturbada com um sofrimento espiritual tão excessivo ao lado de um imenso prazer.

Eu não parava de tentar resistir, mas tinha tão pouca força que às vezes me cansava. Eu me amparava na cruz, procurando defender-me Daquele que com ela nos amparou a todos. Eu percebia que ninguém me entendia, o que era claro para mim, mas não ousava dizê-lo senão ao meu confessor, pois, do contrário, daria provas de não ter humildade.

2. Quis o Senhor remediar boa parte do meu sofrimento, e por algum tempo todo ele, ao trazer a este lugar o bendito Frei Pedro de Alcântara, a quem já mencionei e a cuja penitência me referi.2 Além disso, garantiram-me que ele portou durante vinte anos um cilício de folhas de lata. Ele é autor de uns libretos de oração escritos em castelhano, hoje muito divulgados; trata-se de livros muito proveitosos, escritos por alguém que muito a praticou para os que a têm.3 Ele guardou a primeira Regra do bem-aventurado São Francisco com todo o rigor, além de ter feito o que já foi dito.

3. A viúva serva de Deus de que já falei,4 amiga minha, soube que estava por aqui esse eminente homem. Ela conhecia a minha necessidade, pois teste­munhava minhas aflições e muito me consolava, porque era tanta a sua fé que não podia deixar de crer ser espírito de Deus o que todos os outros diziam ser o demônio. Além disso, sendo pessoa de ótimo entendimento e muito dis­­creta, a quem o Senhor concedia muitas graças na oração, quis Sua Majes­t­a­de esclarecê-la no que os doutos ignoravam. Meus confessores davam-me licença para que contasse a ela algumas coisas, por ser muito merecedora de con­fiança. Às vezes, ela recebia parte das graças que o Senhor me concedia, com avisos muito proveitosos para a sua alma.

Sabendo da presença do Frei Pedro, ela obteve licença do meu Provincial, sem nada me dizer, para que eu passasse oito dias em sua casa, com maior facilidade de contato. Nesta e em algumas igrejas,5 falei com ele muitas vezes na sua primeira vinda a Ávila. Contei-lhe resumidamente a minha vida e meu modo de proceder na oração, com a maior clareza que pude (porque isso sempre consegui, tratando com toda a clareza e verdade com aqueles a quem conto as coisas da minha vida; até os primeiros movimentos eu gostaria de tornar públicos e, nas coisas mais duvidosas e suspeitosas, eu chegava a dar-lhes argumentos contra mim), abrindo-lhe minha alma sem duplicidade nem subterfúgios.

4. Quase desde o início eu vi que ele me entendia por experiência, o que era tudo de que eu precisava, porque, na época, não sabia me entender como agora nem como me exprimir — porque, mais tarde, Deus me permitiu entender e descrever as graças que Sua Majestade me concede —, e era necessário, para me entender por inteiro e dizer o que era, que a pessoa tivesse passado pela mesma coisa. Ele muito me iluminou porque, ao menos nas visões que não eram imaginárias, eu não podia entender o que acontecia e, no tocante às que eu via com os olhos da alma, também havia muito mistério. Porque, como eu disse,6 eu só julgava importantes as que se vêem com os olhos corporais, e estas eu não tinha.

5. Esse santo homem me deu muita luz e muito me explicou. Disse-me que não me angustiasse, mas louvasse a Deus e me convencesse de que era espírito de Deus e que, excetuando a fé, não podia haver coisa mais verdadeira nem mais digna de crédito. E ele se consolava muito comigo e muito me favorecia e agraciava, revelando desde então ter muita estima por mim, informando-me das suas coisas e negócios. Vendo-me com os desejos que ele já possuía em forma de obras — pois o Senhor me dava esses anseios muito intensos — e com tanto ânimo, alegrava-se em tratar comigo. Isso porque, para uma alma a quem Deus elevou a esse estado, não há prazer nem consolo que se igualem a encontrar quem parece ter recebido do Senhor o início disso. Na época, pelo que posso julgar, eu não devia ter muito mais do que isso, e queira o Senhor que eu o tenha agora.

6. Ele teve muita compaixão de mim. Disse-me que uma das maiores provações da terra era aquela que eu sofrera, que é a contradição dos bons, e que ainda me restava muito por sofrer, porque sempre tinha necessidade e não havia nesta cidade quem me entendesse. Ele falou que conversaria com o meu confessor e com uma das pessoas que mais me faziam sofrer, o fidalgo casado de que já falei. Este, por ser grande a sua amizade por mim, era quem mais me atacava; sendo alma temerosa e santa, e tendo visto que eu, até há pouco tempo, era tão ruim, não se tranqüilizava por inteiro. E assim o fez o santo varão, falando com os dois e dando-lhes explicações para que ficassem tranqüilos e não me inquietassem mais. O confessor não tinha necessidade disso, mas o fidalgo precisava tanto que ainda assim não sossegou inteiramente,7 mas a conversa serviu para que ele não me amedrontasse tanto.

7. Combinamos que eu lhe escreveria sobre o que me acontecesse dali por diante e de nos encomendarmos mutuamente a Deus. Era tanta a humildade de Frei Pedro que ele levava em conta as orações desta miserável, o que me causava grande confusão. Ele me deixou com um consolo e um contentamento imensos, ordenando-me que continuasse a orar com segurança sem duvidar da presença de Deus. Afirmou que, se tivesse alguma dúvida, eu deveria contar tudo ao confessor, a fim de viver tranqüila; para maior segurança, eu deveria contar tudo.

Mas eu também não podia ter essa segurança total, porque o Senhor me conduzia por um caminho de temor, o que me permitia voltar a crer que era ação do demônio quando alguém me dizia. Assim, ninguém conseguia me infundir temor nem segurança de uma maneira que me fizesse dar mais crédito ao que se dizia do que àquele que o Senhor infundia em minh’alma. Por isso, embora tendo ficado muito consolada e tranqüilizada por esse Santo, eu não acreditei nele a ponto de ficar livre do medo, em especial quando o Senhor me deixava nos sofrimentos de alma que vou relatar agora. Mesmo assim, fiquei muito consolada. Não me cansava de dar graças a Deus e a meu glorioso pai São José, que a meu ver fora quem enviara o Santo, que era Comissário Geral da Custódia de São José.8 Eu me encomendava muito a São José e a Nossa Senhora.

8. Acontecia-me algumas vezes — o que ainda acontece, embora com menor freqüência — sentir enormes sofrimentos interiores, ao lado de tormentos e dores corporais tão violentos que eu não tinha alívio.

Outras vezes, eram males corporais mais graves que, não sendo acompanhados pelos da alma, eram suportados por mim com alegria; mas, quando vinha tudo junto, a dor era tamanha que eu não sabia o que fazer. Eu me esquecia de todas as graças que o Senhor me dera, restando apenas uma vaga lembrança, semelhante a um sonho, para dar pena; porque, nessas circunstâncias, o intelecto fica entorpecido, trazendo mil dúvidas e suspeitas, dando a impressão de que eu não conseguira entender, de que talvez estivesse enganada. Eu pensava: não era suficiente que eu estivesse enganada, sem enganar os bons? Via-me tão ruim que julgava que todos os males e heresias surgidos eram causados pelos meus pecados.

9. Tratava-se de uma falsa humildade que o demônio inventava para me tirar a paz, tentando levar a alma ao desespero. Agora, já tenho tanta experiência com as coisas do demônio que ele, percebendo que o entendo, já não costuma me atormentar tantas vezes. Quando o demônio age, percebemo-lo com clareza na inquietação e no desassossego com que ele começa, na agitação que traz à alma enquanto dura a sua ação, e na obscuridade e na aflição que ele deixa, ao lado da aridez e da pouca disposição para a oração e para fazer algum bem. Ao que parece, ele afoga a alma e amarra o corpo para que de nada aproveite.

Porque a verdadeira humildade, mesmo que nos faça ver que a nossa alma é ruim e nos leve a sofrer ao ver o que somos, fazendo-nos lamentar com sinceridade a nossa maldade, gerando sofrimentos grandes como os de que já falei,9 e que são sentidos de verdade, não vem com alvoroço nem desassossega a alma, não a obscurece nem lhe traz secura. Em vez disso, a verdadeira humildade traz graças à alma, e tudo ocorre ao contrário da falsa: com quietude, com suavidade, com luz.

A alma, embora sofra, se conforta ao ver o grande favor que Deus lhe faz ao dar-lhe essa dor e o bom emprego desta. Ela fica condoída por ter ofendido a Deus, mas ao mesmo tempo se alegra com o pensamento de Sua misericórdia. Ela tem luz para confundir a si mesma e louva Sua Majestade por tê-la suportado tanto.

Na humildade vinda do demônio, não há luz para nenhum bem, parecendo que Deus leva tudo a ferro e fogo, considerando somente Sua justiça. A alma, embora acredite que há misericórdia, porque o demônio não há de ter tanta força a ponto de fazê-la se perder, não fica consolada; pelo contrário, quando vê tanta misericórdia, ela tem aumentado o seu padecimento, pois vê que está obrigada a maior gratidão.

10. Tudo isso é uma das mais penosas, sutis e dissimuladas invenções do demônio que conheço, razão por que quis avisar vossa mercê para que, diante da tentação, tenha vossa mercê alguma luz e o reconheça, caso ele deixe intacto o intelecto para que isso aconteça. Não pense vossa mercê que isso depende dos estudos e do saber, já que, embora eu não os tenha, depois de ter saído dessa situação, bem vejo que é desatino. O que entendi é que o Senhor quer, permite e dá licença ao demônio, como lha deu para tentar Jó,10 se bem que a mim, sendo pessoa ruim, ele não o faça com o mesmo rigor.

11. Aconteceu-me isso um dia antes da véspera de Corpus Christi, festa da qual sou devota, embora nem tanto quanto deveria. Dessa vez, só durou até o dia, enquanto outras ocorrências duraram oito ou quinze dias, e até três semanas — não sei se mais do que isso —, em especial durante as Semanas Santas, que costumavam me trazer muitas consolações na oração. De repente, o intelecto se compraz com coisas tão pueris que, em outras circunstâncias, seriam motivo de riso. Ele me faz vagar por onde quer, numa grande perturbação. A alma fica aprisionada, sem controle sobre si e sem condições de pensar em outra coisa além dos disparates que o demônio lhe traz. Trata-se de coisas sem importância, que não se definem nem desaparecem, servindo apenas para oprimir a alma a ponto de deixá-la fora de si.

Nesses casos, ocorre-me pensar que os demônios fazem de bola a alma, sem que ela consiga furtar-se ao seu poder. O que se sofre aqui é impossível de descrever. A alma procura socorro e Deus permite que ela não o encontre, deixando-lhe apenas a razão do livre-arbítrio, mas obscurecida. Creio que ela deve ter os olhos quase tapados, como alguém que passou muitas vezes por um caminho de dia e o percorre à noite, e que, pelo que viu antes, sabe onde pode tropeçar, porque passou por ali de dia e procura se precaver dos perigos. Assim ocorre com a alma que, para não ofender a Deus, parece guiar-se pelo costume. Deixemos de lado o apoio do Senhor, que é o mais importante.

12. Nessas ocasiões, a fé está tão amortecida e adormecida quanto as outras virtudes, embora não perdida, pois a alma acredita no ensinamento da Igreja. Vocalmente, ela age, mas sente, por outro lado, que está sendo esmagada e entorpecida, pois tem a impressão de que conhece a Deus de maneira muito vaga. O amor que ela tem é tão pequeno que, quando ouve falar de Deus, escuta como se acreditasse ser Ele porque a Igreja o ensina, mas não se recorda do que experimentou Dele em si.

Ir rezar só causa mais aflição, ocorrendo o mesmo com buscar a solidão, pois o sofrimento que se sente, sem saber de onde vem, é insuportável. Tenho para mim que há nisso uma imagem fidedigna do inferno, que é de fato assim, pelo que o Senhor me deu a entender numa visão; porque a alma se queima por dentro, sem saber quem lhe pôs fogo nem por onde ele entrou, tampouco fugir dele nem como apagá-lo. Buscar remédio na leitura equivale ao es­forço de quem não sabe ler. Aconteceu-me certa feita de ir ler a vida de um santo para ver se me acalmava e me consolava com aquilo que ele padeceu. Li quatro ou cinco vezes várias linhas e, embora estivesse em castelhano, eu en­tendia menos no fim do que no início, e por isso parei de ler. Isso se passou muitas vezes, mas me recordo particularmente dessa.

13. Do mesmo modo, conversar com alguém é pior; porque o demônio incu­te um espírito de ira tão desagradável que deixa a impressão de que que­remos matar todos, de maneira incontrolável. Já é grande esforço o au­to­con­trole — ou talvez seja o Senhor quem controla quem está assim — para que não se diga nem se faça contra o próximo coisas que o prejudiquem e que ofendam a Deus.

Quanto a procurar o confessor, muitas vezes me acontecia o que direi; embora santos como o eram aqueles com quem tratei e trato, eu ouvia palavras e reprimen­das tão ásperas que, mais tarde, quando lhes repetia suas pa­lavras, eles também ficavam espantados e diziam ter fugido do controle. De fato, embora prometessem não repeti-lo quando me vissem com tais sofrimentos de corpo e de alma, para não ficarem depois com compaixão e escrúpulo, determinando-se a consolar-me com piedade, eles não o podiam. Não diziam más palavras — isto é, coisas que ofendessem a Deus —, mas ainda assim proferiam as palavras mais ásperas que podiam vir da boca de um confessor. Eles deviam querer mortificar--me, e eu, embora outras vezes me alegrasse e tivesse paciência para suportá--lo, não o conseguia nessas ocasiões, porque, então, tudo era tormento para mim.

Vinha-me o temor de os estar enganando. Eu os procurava e os avisava com muita convicção que se precavessem de mim, pois era possível que eu os estivesse iludindo. Eu bem sabia que não o faria por querer, nem lhes mentiria, mas tinha medo de tudo. Disse-me um deles certa feita, entendendo a tentação, que não me afligisse, porque, ainda que eu o quisesse enganar, ele tinha capacidade suficiente para impedi-lo.11 Isso me deixou com muitas consolações.

14. Algumas vezes — quase sempre, ao menos era o mais comum —, depois de comungar, eu descansava. Não era raro que, aproximando-me do Sacramento, no mesmo instante12 ficasse tão boa, de alma e de corpo, que eu me espantava. Ao que parece, num átimo se desfaziam todas as trevas da alma e, raiando o sol, eu percebia as bobagens a que me havia entregado. Outras vezes, bastava uma palavra do Senhor — por exemplo: Não te aflijas; não tenhas medo, como eu já disse13 — para que eu ficasse curada de todo, como se não tivesse tido nada. O mesmo ocorria quando me vinha alguma visão. Eu me consolava com Deus; queixava-me a Ele por consentir que eu padecesse tantos tormentos. Mas era boa a recompensa, pois quase sempre vinha depois uma grande abundância de graças.

Tenho a impressão de que a alma sai do cadinho como o ouro, mais re­finada e límpida para ver em si o Senhor. Assim, esses sofrimentos, que antes pareciam insuportáveis, tornavam-se pequenos; se forem para a maior glória do Senhor, a alma deseja tornar a passar por eles. Por mais dolorosos que sejam as tribulações e perseguições, se as passarmos sem ofender ao Senhor e alegrando-nos por sofrê-las por Ele, tudo será para o nosso maior proveito, embora eu não as suporte como deveria, mas muito imperfeitamente.

15. Também me vinham, e vêm, sofrimentos de outro tipo, parecendo ser tirada a possibilidade de pensar em coisas boas ou de desejar fazê-las. O corpo e a alma me parecem inúteis e pesados, mas não há outras tentações e desassossegos, mas sim um desgosto, que não se sabe de onde vem, e nada contenta a alma. Eu procurava fazer boas obras exteriores para me ocupar meio à força, e sei bem o pouco valor que tem uma alma quando a graça se oculta. Isso não me causava muito sofrimento, porque ver a minha baixeza me trazia alguma satisfação.

16. Há ocasiões em que me vejo incapaz de concentrar o pensamento em Deus ou em alguma coisa boa; não consigo ter oração, mesmo estando em solidão, mas sinto que conheço a Deus. Vejo que o intelecto e a imaginação são o que me prejudica aqui, pois tenho a impressão de que a vontade está boa e pronta para todo bem; mas o intelecto14 está tão perdido que se assemelha a um louco furioso que ninguém pode controlar. Só consigo acalmá--lo pela duração de um Credo. Algumas vezes, rio e percebo a minha miséria; fico a contemplar o intelecto para ver até onde vai e, glória a Deus, nunca, nem por exceção, ele procura coisas ruins, mas sim assuntos que pouco importam, como o que há a fazer aqui, ali ou em outro lugar.

Nesses momentos, conheço mais a enorme graça que o Senhor me concede quando mantém esse louco controlado em perfeita contemplação. Imagino o que ocorreria se me vissem nesse desvario as pessoas que me consideram boa. Lamento ver a alma em companhia tão ruim; fico desejando vê-la livre e, assim, digo ao Senhor: quando, Deus meu, verei a minha alma unida e entregue a Vosso louvor de maneira que todas as suas faculdades se regozijem? Não permitais, Senhor, que ela seja ainda mais despedaçada, pois me parece que vejo seus pedaços espalhados por todos os lados!

Passo por isso com muita freqüência; algumas vezes, bem compreendo que isso se deve em grande parte à pouca saúde corporal. Lembro-me muito do prejuízo que o primeiro pecado nos causou e penso que veio daí o sermos incapazes de gozar de tanto bem em um ser. Em mim pelo menos assim é, porque, se não tivesse tido tantos pecados, eu seria mais constante no bem.

17. Passei também por outro grande sofrimento: como todos os livros que tratam de oração que eu lia me pareciam compreensíveis, pensei que o Senhor já me tinha dado o entendimento e que eu não precisava deles; assim, eu não os lia mais, preferindo vidas de santos, já que ver-me tão longe do modo como eles serviam a Deus me beneficiava e animava, embora eu julgasse ser pouca humildade pensar que já tinha chegado a ter aquela oração. Não podendo deixar de pensar dessa maneira, eu ficava muito aflita, até que homens de saber e o bendito Frei Pedro de Alcântara me disseram para desdenhar esses pensamentos.

Tenho certeza de que nem comecei no serviço de Deus, mas nas graças recebidas de Sua Majestade estou próxima de muitas pessoas boas; sou a própria imperfeição, exceto nos desejos e no amor, pois nestes últimos tenho certeza de que o Senhor me favoreceu para que eu O pudesse servir em algo. Tenho plena convicção de que O amo, mas me desconsolo diante das minhas obras e das inúmeras imperfeições que vejo em mim.

18. Outras vezes me acomete uma estupidez da alma — eu digo que é — que me dá a impressão de que não faço bem nem mal, mas ando por ver andar os outros, como se diz: sem pesar e sem glória, nem viva nem morta, sem prazer nem sofrer. Parece que não se sente nada. Eu penso que a alma anda como um jumentinho que pasta e que se sustenta porque lhe dão de comer, comendo quase sem sentir. Porque a alma nesse estado não deve estar sem comer algumas grandes graças de Deus, já que, tendo vida tão miserável, não é para ela um peso viver, e o seu ânimo não arrefece; no entanto, não se sentem movimentos nem efeitos para que a alma o entenda.

19. Isso me parece agora navegar com ares muito serenos, andando muito sem saber como. Porque nas outras maneiras de que falei são tão grandes os efeitos que a alma quase alcança de imediato sua melhoria, já que os desejos logo fervem, e ela nunca acaba de se satisfazer. Isso acontece com os grandes ímpetos de amor de que falei,15 que atuam nas pessoas a quem Deus os dá. É semelhante a umas fontezinhas que tenho visto brotar: nunca cessa de haver movimento na areia, empurrada por elas para cima. Este exemplo ou comparação me parece compatível com o estado das almas que aqui chegam: o amor sempre está borbulhando e pensando no que fará. Ele não cabe em si, assim como na terra aquela água parece não caber, borbulhando sempre.

A alma fica assim com freqüência, sem sossego nem controle com o amor que tem, com o qual já está embebida; quisera que os outros bebessem, pois a ela a água não faz falta, para que a ajudassem a louvar a Deus. Quantas vezes me recordo da água viva de que o Senhor falou à samaritana. Por isso, tenho muita afeição por aquele Evangelho; e sempre a tive, sem entender como entendo agora este bem, desde muito pequena, tendo suplicado muitas vezes ao Senhor que me desse daquela água. Eu tinha a cena no meu quarto, registrando o momento em que o Senhor chegou ao poço, com este letreiro: Domine, da mihi aquam.16

20. Isso parece também um fogo grande que, para não se apagar, precisa ser sempre alimentado. Assim são as almas a que me refiro: mesmo que lhes custasse muito, gostariam de trazer lenha para que a chama não se apagasse. É tal a minha miséria que até me contentaria se lhe pudesse lançar algumas palhas, o que me acontece muitas vezes; de umas rio, em outras muito me canso. O movimento interior me incita a servir adornando as imagens com raminhos e flores, varrendo, arrumando um oratório e fazendo outras coisas insignificantes — pois para mim não sirvo — que me deixam confusa.

Quando fazia alguma penitência, eu fazia tão pouco e de tal maneira que, se o Senhor não levasse em conta a boa vontade, eu mesma considerava insignificante, chegando a rir de mim. Pois não têm pouco trabalho as almas a quem Deus dá, pela Sua bondade, este fogo do Seu amor em abundância quando lhes faltam forças corporais para fazer algo por Ele; é um imenso sofrimento porque, como lhes faltam meios para lançar alguma lenha nesse fogo, sendo elas capazes de morrer para que ele não se apague, elas vão se consumindo interiormente e se tornando cinzas. Desfazem-se em lágrimas e se abrasam, padecendo muito tormento, se bem que saboroso.

21. Louve muito o Senhor a alma que, tendo chegado aqui, receba dele forças corporais para fazer penitência ou conhecimento, talentos e liberdade para pregar, confessar e levar almas a Deus. Uma alma assim não sabe nem compreende o bem de que dispõe se não tiver aprendido por experiência o que é nada poder fazer no serviço do Senhor e receber sempre muito. Bendito seja Ele por tudo e rendam-Lhe glória os anjos, amém.

22. Não sei se ajo bem ao apresentar tantos detalhes. Como vossa mercê man­dou me dizer outra vez que eu não receasse me estender e que nada omitisse, vou tratando com clareza e sinceridade de tudo aquilo que me vem à lembrança. E ainda assim deixo muita coisa de lado, para não ocupar um tempo ainda maior — e tenho tão pouco tempo, como eu disse,17 talvez sem obter nenhum proveito.

Capítulo 31

Fala de algumas tentações exteriores e aparições que o demônio produzia nela, bem como dos tormentos que lhe infligia. Trata também de algumas coisas muito boas, como aviso para pessoas que seguem o caminho da perfeição.

1. Desejo falar, já que falei de tentações e perturbações interiores e secretas que me eram causadas pelo demônio,1 de outras quase públicas em que a sua presença não podia ser ignorada.

2. Eu estava certa vez num oratório e me apareceu, do lado esquerdo, uma figura abominável; percebi especialmente a boca, porque falava: era horrível. Parecia que lhe saía do corpo uma grande chama, muito clara, sem nenhuma sombra. Disse-me, aterrorizando-me, que eu me livrara de suas garras, mas que voltaria a elas. Fiquei com muito temor e fiz o sinal-da-cruz como pude. Ela desapareceu, mas logo voltou. Isso me aconteceu por duas vezes. Não sabendo o que fazer, peguei da água benta que ali havia e lancei--a para onde essa figura se encontrava. Ela nunca mais voltou.

3. Em outra ocasião, o demônio me atormentou durante cinco horas com dores e desassossegos interiores e exteriores tão terríveis que pensei não poder suportar. As pessoas que estavam comigo ficaram espantadas e não sabiam o que fazer, nem eu a que recorrer. Costumo, quando as dores e o mal corporal são muito intoleráveis, fazer atos interiores como posso, suplicando ao Senhor que, se for do Seu agrado, me conceda paciência e me deixe sofrer assim até o fim do mundo.

Nessa ocasião, vendo um padecimento tão rigoroso, procurei refugiar-me nesses atos e na determinação de resistir. Quis o Senhor que eu percebesse que era o demônio, já que vi ao meu lado um negrinho bem abominável, ran­gendo os dentes como se estivesse desesperado ao perceber que, em vez de ganhar, perdia. Eu, ao vê-lo assim, ri-me e não tive medo. Estavam ali algumas irmãs a quem eu não podia recorrer e que não sabiam como aliviar tanto tormento. Eram grandes os golpes que ele me fazia dar, levando-me, sem que eu pudesse resistir, a bater o corpo, a cabeça e os braços. O pior era o desassossego interior, que de forma alguma me permitia descansar. Eu não me atrevia a pedir às irmãs água benta, para não assustá-las e para que não percebessem do que se tratava.

4. A partir de muitos fatos, obtive a experiência de que não há coisa de que os demônios fujam mais, para não voltar, do que da água benta. Eles tam­bém fogem da cruz, mas retornam. Deve ser grande a virtude da água benta. Minha alma sente particular e manifesta consolação quando a tomo. É certo que tenho quase sempre um alívio que eu não saberia explicar, uma espécie de deleite interior que me conforta toda a alma. Não se trata de ilusão nem de coisa que só aconteceu uma vez, mas sim de algo freqüente que tenho observado com cuidado. Digamos que seja como se a pessoa estivesse com muito calor e sede e bebesse um jarro de água fria, sentindo todo o seu corpo refrescar. Penso em quão importante é tudo o que a Igreja ordena, e alegra--me muito ver que tenham tanta força as palavras que comunica à água para que esta fique tão diferente da comum.2

5. Como, pois, não cessasse o tormento,3 eu disse às pessoas que, se não fossem rir, eu pediria água benta. Trouxeram-na e me aspergiram com ela, mas não adiantou; lancei-a na direção onde estava o demônio, e ele se foi de imediato e o mal desapareceu por inteiro como se fosse retirado por uma mão, muito embora eu estivesse cansada como se tivesse sido espancada com muitos paus. Foi muito proveitoso ver que o demônio, se já faz tanto mal a uma alma e a um corpo que não lhe pertencem, quando o Senhor o permite, muito mais faria se eles fossem definitivamente seus. Isso renovou o meu ânimo de livrar-me de companhia tão ruim.

6. Há pouco tempo me aconteceu o mesmo, embora não tenha durado tanto nem ocorrido na presença de pessoas; pedi água benta, e as pessoas que entraram depois que os demônios tinham partido (eram duas monjas dignas de crédito que de nenhuma maneira mentiriam) sentiram um cheiro muito ruim, como se fosse de enxofre. Eu não o senti, mas durou tanto que pôde ser percebido.

Em outra ocasião, estando no coro, caí em profundo recolhimento. Afastei--me dali para que não percebessem, mas todas as que estavam ali perto ouviram grandes pancadas no lugar onde eu estava e, ao meu lado, ouvi vozes como que combinando alguma coisa, mas não entendi nada, pois estava mergulhada na oração; também não tive medo. Isso sempre acontecia quando o Senhor me concedia a graça de, por meu intermédio, beneficiar alguma alma.

Também me aconteceu o que vou narrar agora (e disso há muitos testemunhos, em especial daquele que agora me confessa,4 que o viu escrito numa carta; sem que eu lhe dissesse qual a pessoa referida na carta, ele bem sabia quem era):

7. Veio a mim uma pessoa que há dois anos e meio estava num pecado mortal dos mais abomináveis de que tenho notícias e que, por todo esse tempo, não o confessava nem se emendava e dizia missa. Embora confessasse outros, dizia que este não o podia, por ser coisa muito feia. Tinha grande desejo de redimir-se, mas não tinha forças para isso. Fiquei muito triste e com muita pena ao ver que se ofendia a Deus dessa maneira. Prometi-lhe suplicar muito a Deus para que Ele o corrigisse e fizesse com que outras pes­soas Lho pedissem, pois eram melhores que eu. Eu escrevia a ele por intermédio de uma pessoa a quem ele me dissera que eu podia entregar as cartas.

Com a primeira carta, ele se confessou, pois Deus quis (pelas muitas pessoas tão santas que haviam dirigido súplicas a Ele, pessoas a quem eu o encomendara) fazer tal misericórdia com essa alma; e eu, embora miserável, fazia o que estava ao meu alcance com muito cuidado. Ele me escreveu que melhorara tanto que havia dias sem recaída; mas que era tão grande o tormento trazido pela tentação que lhe parecia estar no inferno. E me pedia que o encomendasse a Deus. Voltei a encomendá-lo às minhas irmãs, por cujas orações o Senhor deveria conceder-me esse favor, e estas desempenharam a tarefa com muito ânimo. Tratava-se de uma pessoa que ninguém devia identificar. Supliquei a Sua Majestade que se aplacassem aqueles tormentos e tentações e que viessem contra mim aqueles demônios, desde que eu nada fizesse contra Deus. Assim, passei um mês acossada por enormes tormentos. Foi nessa ocasião que aconteceram as duas coisas de que falei.5

8. O Senhor foi servido, pois, como me escreveram, os demônios o deixaram. Eu lhe dei conta do que passara naquele mês, sua alma recobrou forças, e ele ficou totalmente livre, nunca se fartando de dar graças a Deus — e a mim, como se eu tivesse feito alguma coisa, quando na verdade fora o crédito que eu tinha de receber favores do Senhor que lhe trouxera benefícios. Ele me disse que, quando se via aflito, lia minhas cartas e ficava livre da tentação, ficando muito espantado com o que eu padecera e com o modo como ele se livrara. Eu também me espantei, e teria sofrido muitos outros anos para ver aquela alma liberta. Seja louvado por tudo o Senhor, pois muito poder tem a oração dos que O servem, como creio que o fazem nesta casa6 minhas irmãs. Vendo que eu as estimulava, os demônios se lançaram ainda mais contra mim, e o Senhor, devido aos meus pecados, permitia a sua ação.

9. Naquela época, pensei certa noite que iam me estrangular; lançamos muita água benta, e vi uma multidão demoníaca se afastando, como se caísse de grande altura. São tantas as ocasiões em que esses malditos me atormentam, e tão pouco o medo que agora tenho deles, por saber que não podem se mexer se o Senhor não lhes der licença, que eu cansaria vossa mercê, e a mim, se as contasse.

10. Que isso seja útil ao verdadeiro servo de Deus, que assim vai desdenhar os espantalhos com que os demônios desejam nos causar temor. Saibam que, quanto mais os desprezamos, tanto menor fica a sua força e tanto mais senhora de si fica a alma. Sempre resta algum grande proveito, que não vou descrever para não me estender; direi somente o que me aconteceu numa noite de Finados: estando num oratório, tendo rezado um noturno, eu dizia umas orações muito devotas — que estão no fim do nosso Breviário —, quando o demônio se pôs sobre o livro para que eu não acabasse de fazê-las. Persignei-me e ele desapareceu. Quando recomecei, ele retornou. Creio que por três vezes o tentei, só o consegui quando lancei água benta. Tão logo acabei, vi que saíram algumas almas do purgatório, almas cuja expiação pouco faltava para se completar e que o demônio, pensei eu, pretendia perturbar.

Poucas vezes vi o demônio em forma corporal, sendo comum vê-lo sem nenhuma forma, como na visão que descrevi antes, na qual não há forma sensível, embora se perceba com clareza a sua presença.7

11. Também quero relatar algo que muito me espantou; estando num dia da Santíssima Trindade completamente arrebatada no coro de certo mosteiro, vi uma grande contenda entre demônios e anjos. Não pude entender o que significava aquela visão. Não se passaram quinze dias e entendi quando irrompeu certa desavença entre pessoas de oração e muitas outras que não o eram. Isso causou graves prejuízos à casa, tendo sido uma batalha que muito durou e trouxe farto desassossego.

Outras vezes, eu via uma densa multidão deles ao meu redor, estando eu cercada por uma grande claridade que não lhes permitia a aproximação. Entendi que Deus me guardava para que não chegassem a mim de um modo que O ofendesse. Pela minha experiência, entendi que era uma verdadeira visão. Com efeito, já compreendi o pouco poder que tem o demônio quando não estou contra Deus, e quase não o temo; de nada valem suas forças se ele não vê almas entregues e covardes, pois só assim mostra seu poder.8

Por vezes, nas tentações de que falei,9 eu tinha a impressão de que todas as vaidades e fraquezas de tempos passados voltavam a despertar em mim, que bem fazia em me encomendar a Deus. Vinha então o tormento de pensar que tudo em mim vinha do demônio. Isso só passava quando o confessor me acalmava; porque, para mim, quem recebia tantas graças do Senhor não podia sequer ter um primeiro movimento de mau pensamento.

12. Eu também ficava muito angustiada, e ainda fico, ao ver que me consideram muito, em especial pessoas importantes, e que falam muito bem de mim. No tocante a isso, sofri bastante e ainda sofro. Quando isso acontece, concentro-me de imediato na vida de Cristo e dos santos, tendo a impressão de que ando ao contrário, pois eles só encontraram desprezo e injúrias. Isso me faz ficar temerosa, e quase não ouso erguer a cabeça, desejando não ser vista, o que não faço quando me atingem perseguições, porque, então, a alma está tão senhora de si, ainda que o corpo padeça e eu também me ressinta, que não sei como pode ser. Mas assim é; nas tribulações, a alma parece estar no seu reino, trazendo tudo sob os pés.

Era comum que isso me acontecesse, durando muitos dias. Na época, parecia-me virtude e humildade, mas vejo com clareza agora que era tentação (um frade dominicano, muito instruído, me esclareceu sobre isso) pensar que as graças que o Senhor me concede viriam a ser conhecidas e ter um sofrimento tão excessivo a ponto de inquietar muito a alma. Isso chegou a tal ponto que, analisando-o, penso que estaria mais disposta a ser enterrada viva do que a sofrê-lo; por essa razão, quando comecei a não poder resistir, mesmo em público, aos grandes recolhimentos ou arroubos, eu ficava depois muito coberta de vergonha, não desejando ser vista por ninguém.

13. Estando eu muito fatigada disso, o Senhor me perguntou por que eu te­mia, se, nesse caso, só havia duas alternativas: murmurarem de mim ou lou­varem a Ele. Deus dava a entender que os que acreditavam nele O louvariam e os que não acreditavam me condenariam, sendo eu inocente, e que essas duas coisas representavam ganhos para mim, motivo pelo qual eu não devia me afligir. Isso me deixou bastante sossegada e me consola quando me vem à mente. A tentação atingiu um tal grau que eu quis sair deste lugar e ir para um mosteiro, muito mais fechado que aquele em que estava, de cujos rigores ouvira falar.10 Também era um convento da minha Ordem, e muito distante. Meu consolo seria estar onde não me conhecessem, mas o confessor nunca me permitiu.

14. Esses temores também me tiravam em larga medida a liberdade de espírito, mas depois vim a entender que não eram verdadeira humildade, visto que me inquietavam tanto. E o Senhor me ensinou esta verdade. Se estivesse determinada e convencida de que nenhuma coisa boa vinha de mim, mas de Deus, assim como não me custava ouvir louvar outras pessoas (eu até gostava e me consolava muito por ver manifesta aí a presença de Deus), tam­pouco me custaria que Ele mostrasse em mim as Suas obras.

15. Também cheguei a outro extremo, que foi suplicar a Deus — e numa oração particular — que, quando alguma pessoa pensasse bem de mim, Sua Majestade lhe declarasse meus pecados para que ela visse com quão poucos méritos meus Ele me concedia graças, desejo que tenho sempre muito vivo. Meu confessor me disse que não agisse dessa maneira; contudo, até há pouco tempo, quando via que alguém pensava muito bem de mim, eu usava de ro­deios e outros recursos para revelar-lhe meus pecados e, com isso, me sentia descansada. Também me ordenaram ter muito escrúpulo nisso.

16. Vejo que isso não provinha da humildade, mas da tentação, de uma tentação que gerava muitas outras. Eu achava que enganava a todos e, se bem que seja verdade que as pessoas se enganam ao pensar que há algum bem em mim, não era minha intenção fazê-lo, nem nunca o pretendi; é o Senhor que, com algum objetivo, o permite. Mesmo com os confessores, só tratei do assunto quando havia necessidade, e sempre com grande cuidado.

Todos esses temorezinhos, aflições e sombras de humildade eram uma grande imperfeição, e falta de mortificação, percebo-o agora. Porque uma alma que se abandona por completo nas mãos de Deus é indiferente ao mal e ao bem que falam dela, se entender de verdade — caso o Senhor a queira agraciar com essa compreensão — que nada tem de si. Ela confia naquele que lhe dá tantos bens, pois saberá mais tarde por que Ele os revela, prepara-se para a perseguição, que é certa nos tempos de hoje quando o Senhor quer que se saiba que alguma pessoa recebe dele semelhantes favores.11 Para uma alma como essa, há mil olhos, enquanto para mil almas de outra natureza não há um único.

17. Na verdade, não há poucas razões para temer, e esse devia ser o meu temor; não a humildade, mas a fraqueza. De fato, uma alma que, com a permissão de Deus, passa a ser alvo dos olhos de todos tem condições de se preparar para ser mártir do mundo: se ela não desejar morrer para ele, ele mesmo lhe dará a morte. Com certeza não vejo nele nada que me pareça útil, a não ser não consentir nos bons faltas que, à força de murmúrios, não sejam corrigidas.

Afirmo que é preciso ter mais ânimo, se não se é perfeito, para seguir o caminho da perfeição do que para sacrificar a vida; porque a perfeição não é alcançada num instante, a não ser que o Senhor deseje conceder o privilégio particular de tal graça. O mundo, ao ver a pessoa começar a trilhar esse caminho, deseja que ela logo alcance a perfeição e, depois de muitos quilômetros, ao ver uma falta que talvez seja virtude, faz com que a condenem pessoas que cometem a mesma falta, e que até estão viciadas nela, julgando o outro por si.

O mundo não lhe permite comer, nem dormir, nem, como dizem, respirar. E quanto mais a alma o tem em boa conta, tanto mais parece esquecer que ainda está no corpo mortal e que, por mais perfeita que a considerem, ela ainda está sujeita a muitas misérias da terra, por mais que as tenha sob os pés. Assim, como eu digo, é preciso muito ânimo, já que a pobre alma, nem bem começou a andar, já a querem obrigar a voar; nem bem venceu as paixões, e já se espera que em ocasiões de perigo seja perfeita como os santos confirmados na graça.

É para louvar o Senhor o que se passa nessas circunstâncias, bem como de cortar o coração; porque são inúmeras as almas que recuam, pobrezinhas que não sabem a que recorrer. E creio que assim teria ocorrido com a minha se o Senhor, tão misericordiosamente, não fizesse todo o trabalho por ela. E, mesmo que Ele, com Sua bondade, tenha me tomado a Seu cargo, vossa mercê sabe que a minha vida tem sido um constante cair e levantar.

18. Eu gostaria de saber explicá-lo, porque acredito que aqui se enganam muitas almas que aspiram a voar antes de receber de Deus asas. Creio que já fiz essa comparação,12 mas ela cabe aqui. Vou tratar disso porque vejo algumas almas muito aflitas por essa razão. Elas começam com grandes desejos, fervor e determinação de avançar na virtude, e algumas deixam por Ele todas as coisas exteriores. Contudo, vendo em outras pessoas mais avançadas na perfeição virtudes muito grandes que lhes são concedidas pelo Senhor, virtudes que não podemos conseguir por nós mesmos; vendo em todos os livros de oração e contemplação coisas que temos de fazer para nos alçar a essa dignidade, mas que não conseguem praticar logo, elas se desconsolam.

Trata-se de ensinamentos como estes: não devemos nos incomodar que falem mal de nós, contentando-nos até mais do que quando falam bem; devemos desprezar a honra, desapegar-nos dos parentes de maneira tal que, se não têm oração, não queiramos tratar com eles e até nos cansemos com a sua pre­sença; e muitas outras coisas dessa espécie, que constituem, pelo que sei, antes bens sobrenaturais ou contrários à nossa inclinação natural, que só podem ser concedidos por Deus. Que essas almas não se fatiguem e esperem no Senhor, pois o que agora têm em desejos Sua Majestade fará com que tenham em obras, desde que perseverem na oração e façam quanto estiver ao seu alcance. De­vido à nossa fraqueza natural, é muito necessário ter grande confiança e não de­sanimar nem pensar que, se nos esforçarmos, deixaremos de alcançar a vitória.

19. E, como tenho muita experiência nesse assunto, direi algo para alertar vossa mercê; não pense, embora lhe pareça acertado, ter adquirido a virtude sem antes experimentá-la pelo seu contrário.13 Devemos sempre duvidar e não nos descuidar enquanto vivermos; pois com muita facilidade nos apegamos se, como digo, não estiver concedida de modo pleno a graça de perceber o que tudo é e que nesta vida só há muitos perigos. Há alguns anos, eu tinha a impressão de que não só estava desapegada dos meus parentes, mas de que me cansava com a sua convivência, e, de fato, sua conversa não me interessava. Surgiu certo assunto de muita importância e tive de tratar com uma irmã minha de quem muito gostava antes, e embora na conversa, apesar de ela ser melhor que eu, eu não me entendesse com ela (porque, como o seu estado é diferente, sendo mulher casada, não podíamos conversar os assuntos que me agradavam, e porque eu, sempre que podia, ficava sozinha), vi que seus sofrimentos eram compartilhados por mim, muito mais do que os do próximo, e que eu sentia até certa preocupação.14 Entendi então que não estava tão livre quanto pensava e que ainda necessitava fugir das ocasiões para que essa virtude que o Senhor tinha começado a me conceder pudesse crescer. Desde então, com o Seu favor, tenho procurado agir assim.

20. Devemos considerar muito importante uma virtude quando o Senhor começa a nos agraciar com ela e de nenhuma maneira devemos colocar-nos em perigo de perdê-la. Isso se aplica a coisas que atingem a reputação e a muitas outras; creia vossa mercê que nem todos os que pensamos estar desapegados de tudo o estamos de fato, sendo imperativo nunca descuidar disso. E qualquer pessoa que se perceba presa a algum ponto de honra, se quiser aproveitar, acredite em mim e livre-se desse apego, por ser ele uma corrente que nenhuma lima quebra, a não ser com a ajuda de Deus, obtida na oração e em muito esforço de nossa parte. Isso me parece um empecilho neste caminho, causando-me espanto o dano que faz.

Vejo algumas pessoas santas em suas obras, que são tão grandes que deixam as pessoas abismadas. Valha-me Deus! Por que ainda se encontra na terra uma tal alma? Como não está ela no auge da perfeição? Que é isto? Quem detém a quem tanto faz por Deus?15 Oh, ela está presa a um ponto de honra…! E o pior é que não quer entender que o está e, às vezes, o demônio a convence de ser obrigada a conservar esse apego.

21. Acreditem em mim, creiam pelo amor do Senhor nessa formiguinha que Ele quer que fale! Se não for tirado, esse defeito será como uma lagarta; talvez não estrague a árvore inteira, restando algumas virtudes, se bem que todas carcomidas. A árvore não é frondosa, não medra nem deixa medrar as que estão perto de si, porque a fruta que dá de bom exemplo nada tem de sã e pouco vai durar. Eu digo muitas vezes16 que, por menor que seja, o ponto de honra é como o canto acompanhado por um órgão que toca um trecho ou compasso errado, desafinando toda a música. Trata-se de coisa que em toda parte muito prejudica a alma, mas que, neste caminho de oração, gera pestilência.

22. Procuramos juntar-nos com Deus e queremos seguir os conselhos de Cristo, carregado de injúrias e de falsos testemunhos, desejando conservar íntegros a nossa honra e o nosso crédito? Se sim, não poderemos chegar lá, pois essas duas coisas não seguem o mesmo caminho. O Senhor se aproxima da alma quando nos esforçamos e procuramos renunciar ao nosso direito em muitas coisas. Dirão alguns: “Não tenho em que aplicar isso nem me surgem oportunidades”. Acredito que quem mantiver essa determinação não verá o Senhor permitir a perda de bem tão precioso; Sua Majestade lhe propiciará tantas ocasiões para obter essa virtude que a pessoa as julgará excessivas. Mãos à obra.

23. Quero falar das insignificâncias e bagatelas que fazia quando comecei, ou pelo menos de algumas delas: as palhinhas que, como tenho dito,17 atiro ao fogo, por não ser capaz de ir além disso. O Senhor tudo recebe; bendito seja para sempre!

Entre as minhas faltas estava o pouco conhecimento da salmodia, dos procedimentos do coro e do modo de oficiar; isso ocorria devido ao meu descuido e preocupação com muitas vaidades, mesmo vendo outras noviças que podiam me ensinar. Eu não lhes perguntava nada, para que não percebessem que pouco sabia. Vinha-me logo a idéia do bom exemplo, o que é muito freqüente. No entanto, Deus me abriu um pouco os olhos, e eu, mesmo sabendo, por menor que fosse a dúvida que tivesse, consultava as meninas. Com isso, não perdi a honra nem o crédito; pelo contrário, quis o Senhor, a meu ver, dar-me doravante uma memória melhor.

Eu não sabia cantar direito. Sentia tanto se não tinha estudado o que me mandavam (e não por cometer uma falta diante do Senhor, o que seria virtu­de, mas por causa das muitas pessoas que me ouviam) que, por puro amor--pró­prio, me perturbava a ponto de dizer muito menos do que sabia. Mais tarde, tomei a resolução de, quando não o sabia muito bem, dizer que nada sabia. No início, foi doloroso, mas depois passei a gostar disso. Desse modo, a partir do momento em que já não me importava o fato de perceberem a mi­nha ignorância, passei a cantar muito melhor. É que a negra honra antes me impedia de fazer bem o que devia, essa honra que cada qual põe onde quer, e que eu colocava nessas coisas.

24. Essas pequenas coisas, que nada são — sendo eu ainda menos, visto me incomodar com elas —, pouco a pouco se traduzem em atos. Com essas pequenas decisões, que vão sendo reforçadas por Deus, já que vêm dele, nós O ajudamos a conseguir coisas maiores. Assim é que, em termos de humildade, por exemplo, vendo que todas progrediram na virtude, exceto eu18 — porque nunca servi para nada —, passei a recolher e dobrar as capas das irmãs que saíam. Eu tinha a impressão de servir àqueles anjos que ali louvavam a Deus. Fiz isso até que, não sei como, vieram a saber, o que me deixou bem confusa, visto que a minha virtude não chegava a suportar a revelação dessas coisas, e não por humildade, mas para que não rissem de mim diante de ações tão desimportantes.

25. Ó Senhor meu! Que vergonha é ver tantas maldades e contar uns grãos de areia que ainda não eram levantados da terra para Vosso serviço, mas que estavam envoltos em mil misérias! Debaixo dessas areias de Vossa graça19 ainda não brotava a água que as fizesse subir. Ó Criador meu, quisera ter alguma coisa importante para relatar, em meio a tantos males, pois narro as grandes graças que recebi de Vós. Assim, Senhor meu, não sei como pode suportá-lo o meu coração nem como poderá, quem isto ler, deixar de me desprezar ao ver tão mal correspondidos favores tão imensos; e não tenho vergonha de me referir a esses serviços, que são, afinal, meus.

Sim, Senhor meu, tenho vergonha, mas de não ter para contar senão atos tão minúsculos, para que quem os fizer grandes tenha esperança; porque, se os meus parecem ter sido levados em conta pelo Senhor, tanto melhor Ele acolherá esses outros. Queira Sua Majestade dar-me o favor de eu não ficar para sempre no princípio. Amém.

Capítulo 32

Trata de como o Senhor quis conduzi-la em espírito ao lugar do inferno que ela, por seus pecados, tinha merecido. Dá uma idéia do que lhe foi apresentado ali. Começa a tratar da maneira como se fundou o mosteiro de São José, onde ela agora se encontra.

1. Havendo já muito tempo desde que o Senhor começara a me conceder muitas das graças de que falei1 e outras muito grandes, certo dia, estando em oração, vi-me de repente, sem saber como, no inferno. Entendi que o Senhor queria que eu visse o lugar que os demônios tinham preparado para mim ali e que eu merecera pelos meus pecados.2 Isso durou muito pouco tempo, mas, mesmo que eu vivesse muitos anos, parece-me impossível esquecer. A entrada me pareceu um longo e estreito túnel, semelhante a um forno muito baixo, escuro e apertado; o solo dava a impressão de conter uma água igual a uma lama muito suja e de odor pestilencial, havendo nele muitos répteis daninhos; havia no fundo uma concavidade aberta numa parede, parecida com um armário, onde fui colocada, ficando bastante apertada. Tudo isso é agradável em comparação ao que senti ali. Isto que digo está muito aquém da verdade.

2. O que senti parece ser impossível de definir de fato e de entender; mas senti um fogo na alma que não sei como explicar. As dores corporais eram tão insuportáveis que mesmo os tantos sofrimentos que tive nesta vida, que foram graves e, segundo os médicos, os maiores que se podem passar aqui (por exemplo, quando se encolheram todos os meus nervos e fiquei paralítica,3 sem falar de outros tantos padeceres de diversas espécies, alguns, como eu disse,4 causados pelo demônio), não foram nada em comparação com elas, ainda mais que percebi que elas seriam sem fim, incessantes.

Na verdade, em comparação com a agonia da alma, que é um aperto, um afogamento, uma aflição tão intensa, unida a um descontentamento tão desesperado e angustioso, que as palavras não podem descrever, tudo isso é insignificante. Porque dizer que é igual à sensação de que estão sempre arrancando a alma é pouco, pois isso seria equivalente a ter a vida tirada por alguém; nesse caso, no entanto, é a própria alma que se despedaça. Não sei como fazer jus com palavras ao fogo interior e ao desespero que se sobrepõem a gravíssimos tormentos e dores. Eu não via quem os provocava, mas os sentia queimando-me e retalhando. Mesmo assim, tenho a impressão de que aquele fogo e aquele desespero interiores são o pior.

3. Quando se está num lugar tão pestilento, sem poder esperar consolo, não se pode ficar sentado nem deitado, nem há lugar para isso, pois me puseram naquela espécie de buraco feito na parede; entre essas paredes, que espantam a visão, somos apertados e ficamos como que sufocados. Não há luz, mas sim trevas escuríssimas. Não entendo como pode ser que, não havendo luz, vê-se tudo que possa causar padecimento.

Nessa ocasião, o Senhor não quis que eu visse mais coisas do inferno; mais tarde, tive outra visão de coisas assombrosas sobre o castigo de alguns vícios. Vê-las me mostrou quão espantosas eram, mas, como não sentia o sofrimento, não tive tanto temor. Na visão referida, no entanto, foi vontade do Senhor que eu sentisse verdadeiramente os tormentos e aflições no espírito como se o corpo os estivesse padecendo. Não sei como isso aconteceu, mas bem entendi ser um grande favor e que o Senhor desejava que eu visse com os meus próprios olhos aquilo de que a Sua misericórdia me livrara. Porque uma coisa é ouvir dizer ou ter pensado sobre os diferentes tormentos (o que eu fizera poucas vezes, já que pelo temor a minha alma não era levada muito bem), ou saber pelos livros que os demônios supliciam e infligem outras torturas, e outra é passar por isso. Em uma palavra, saber disso e vivê--lo são tão diferentes quanto o desenho o é da realidade; queimar-se aqui na terra é dor muito leve em comparação com o fogo de lá.

4. Fiquei tão abismada, e ainda o estou quando escrevo, apesar de já se terem passado quase seis anos,5 que me parece ter o corpo enregelado de medo. A partir de então, não me lembro de ocasiões em que padeça sofrimentos ou dores e não considere um nada tudo o que se pode passar na terra, o que me dá a impressão de que, em parte, nos queixamos sem razão. Por isso, repito ter sido essa uma das maiores graças que o Senhor me concedeu, pois me trouxe grandes proveitos, tanto para que eu perdesse o temor das tribulações e contradições desta vida como para que me esforçasse por padecê-las e dar graças ao Senhor por ter me livrado, como é agora minha convicção, de males tão perpétuos e terríveis.

5. Desde então, como eu disse, tudo me parece fácil diante de um momento em que se tenha de sofrer o que lá padeci. Fico aturdida ao pensar que, tendo lido muitas vezes livros onde se explica algo das penas do inferno, eu não as temesse nem as tomasse pelo que são. Onde estava eu? Como podia ter descanso estando num caminho que me conduzia a lugar tão ruim?

Bendito sejais, Deus meu, para sempre! E como me tem parecido6 que me amáveis muito mais do que eu a mim mesma! Quantas vezes, Senhor, me livrastes de cárcere tão tenebroso e quantas eu, contra a Vossa vontade, voltava para ele!

6. Isso também criou em mim uma grande compaixão pelas muitas almas que se condenam (em especial dos luteranos, que já eram, pelo batismo, membros da Igreja) e intensos ímpetos de salvar almas, pois tenho a impressão de que, para livrar uma só delas de aflições tão graves, eu voluntariamente enfrentaria muitas mortes. Se vemos aqui uma pessoa de quem gostamos de modo especial passar por um grande sofrimento ou dor, a nossa própria natureza nos impele à compaixão e, se a sua aflição for grande, tanto maior será a opressão do nosso coração. Assim sendo, ver uma alma imersa eternamente no sumo sofrimento, quem o pode suportar? Não há coração que veja isso sem compadecer-se, porque, se aqui, sabendo que a vida um dia vai acabar e que de qualquer maneira não é longa a sua duração, ainda assim somos movidos a tanta compaixão, quão maior não será o nosso desassossego diante dessa dor que não se acaba, infligida às tantas almas que o demônio leva consigo a cada dia!

7. Isso também me faz desejar que, numa coisa tão importante, não nos contentemos com fazer menos que tudo o que pudermos; não deixemos nada por fazer, e que o Senhor seja servido de nos dar graças para isso. Por outro lado, considero que, embora tão ruim, eu algo fazia para servir a Deus e não fazia certas coisas muito comuns no mundo, visto que, afinal, passava por grandes enfermidades e com muita paciência dada pelo Senhor. Eu não tinha inclinação para murmúrios, nem para falar mal dos outros, assim como, creio eu, não podia querer mal a ninguém, não tinha cobiça nem, pelo que me lembro, inveja, de modo a cometer ofensa grave contra o Senhor. Isso ocorria porque, embora tão ruim, eu costumava temer sempre a Deus; mesmo assim, vi o lugar que os demônios tinham preparado para mim, e é verdade que, considerando as minhas culpas, ainda julgava merecer maior castigo.

Contudo, digo que era um tormento terrível, sendo muito perigoso que uma alma que a cada passo cai em pecado mortal fique satisfeita, sossegada ou contente. Pelo amor de Deus, devemos evitar as ocasiões, e o Senhor nos ajudará, como me ajudou. Que Sua Majestade nunca tire a Sua mão para que eu não volte a cair, pois já vi onde iria parar. Não o permita o Senhor, por quem Sua Majestade é. Amém.

8. Estando eu (depois de ter visto essas e outras grandes coisas e segredos que o Senhor, por quem é, quis me mostrar da glória que será concedida aos bons e do castigo que recairá sobre os maus) em busca de maneiras de fazer penitência de tanto mal e de alcançar o mérito de obter tanto bem, desejava fugir das pessoas e afastar-me de uma vez por todas do mundo; meu espírito não sossegava, mas não era um desassossego inquieto, e sim delicioso. Via-se com clareza que isso vinha de Deus e que Sua Majestade concedera à alma calor para que ela saboreasse outros manjares mais suculentos do que aqueles que comia.

9. Imaginando o que poderia fazer por Deus, pensei que a primeira coisa era seguir o chamamento que Sua Majestade me fizera para ser religiosa, respeitando a minha Regra com a maior perfeição possível. E, embora na casa onde eu estava houvesse muitas servas de Deus, sendo Ele bem servido nela, por causa de uma grande necessidade as monjas saíam muitas vezes e passavam períodos em lugares onde, com toda a honestidade e religião, podiam estar. Por outro lado, a Regra não fora estabelecida com o seu rigor inicial, sendo respeitada de acordo com o que era costume na Ordem, seguindo-se a Bula de Mitigação.7 Havia também outros inconvenientes, parecendo-me demasiado o bem-estar, visto ser a casa grande e agradável.

Mas o problema das saídas, embora eu fosse uma que muito saía, era o maior para mim, porque algumas pessoas a quem os prelados não podiam dizer não gostavam de me ter em sua companhia; elas importunavam os prelados, que me mandavam ir. Assim, por seguir as ordens, eu ficava pouco no mosteiro. O demônio devia ter a sua parte, impedindo-me de ficar em casa, porque, quando ficava, eu transmitia a algumas irmãs aquilo que me ensinavam os religiosos com quem eu tratava, o que trazia grande proveito.

10. Certa feita, estando na companhia de uma pessoa, disseram a mim e a outras que se quiséssemos ser monjas à maneira das Descalças, seria talvez pos­sível fundar um mosteiro.8 Eu, como o desejava, comecei a tratar disso com aquela senhora minha companheira,9 a viúva que, como eu disse, tinha o mesmo desejo. Ela começou a esboçar planos para obter recursos, planos que agora vejo não serem muito viáveis, parecendo-nos que eram devidos ao nosso desejo. Mas eu, por outro lado, estando muito contente na casa em que estava,10 que me agradava muito, assim como a cela que ocupava, que muito me servia, ainda me detinha. Contudo, combinamos de encomendar muito a Deus o nosso plano.

11. Certo dia, depois da comunhão, Sua Majestade me ordenou expressamen­te que me dedicasse a esse empreendimento com todas as minhas forças, prome­tendo-me que o mosteiro não deixaria de ser feito e dizendo que ali seria muito bem servido. Disse-me que devia ser dedicado a São José; esse Santo glorioso nos guardaria uma porta, e Nossa Senhora, a outra; Cristo andaria ao nosso lado, e a casa seria uma estrela da qual sairia um grande resplendor. Além disso, embora as religiões11 estivessem relaxadas, eu não devia pensar que Ele era pouco servido nelas, pois o que seria do mundo se não houvesse religiosos? O Senhor me ordenou ainda que revelasse tudo ao meu confessor e que lhe rogasse, em Seu nome, que não se opusesse ao projeto nem criasse obstáculos a ele.

12. Teve tal impacto essa visão, e tais efeitos as palavras que o Senhor me dirigiu, que não tive como duvidar de que era Ele. Fiquei muito pesarosa porque, em parte, imaginei os grandes desassossegos e sofrimentos que isso me custaria. Por outro lado, eu já vivia muito contente no meu convento; embora tratasse do assunto como antes, já não tinha tanta determinação nem certeza de que o projeto se realizaria. Nesse ponto, contudo, eu me sentia pressionada e, como via que começava a surgir um grande desassossego, estava em dúvida sobre o que faria. Mas foram tantas as vezes em que o Senhor voltou a me falar disso, exibindo-me tantas causas e razões, que eu via ser convincentemente Sua vontade que não mais me atrevi a não contá--lo ao meu confessor, a quem relatei por escrito tudo o que acontecera.12

13. Ele não teve coragem de me dizer claramente que eu não levasse o projeto adiante, mas via que não era viável nos termos da razão natural, já que havia pouquíssimas ou quase nenhuma possibilidade de a minha companheira, que era quem o havia de levar a efeito, conseguir recursos. Ele me disse que eu me entendesse com o meu prelado e que fizesse o que ele mandasse. Eu não tratava com o prelado dessas visões, mas a senhora em questão lhe disse que desejava fazer o mosteiro; e o Provincial13 concordou plenamente, visto que era amigo de tudo o que é da religião, dando-lhe todo o apoio necessário e dizendo-lhe que tomaria o mosteiro sob sua jurisdição. Eles trataram dos recursos necessários e do nosso desejo de haver no máximo treze14 religiosas na casa, por várias razões.

Antes de começarmos a tratar do negócio, escrevemos ao santo frei Pedro de Alcântara, relatando tudo o que acontecia; ele nos aconselhou a seguir em frente e nos deu seu parecer sobre todos os assuntos.15

14. Tão logo se soube do projeto do lugar, caiu sobre nós uma enorme perseguição cujo relato levaria muito tempo: choveram insinuações e risadas, bem como afirmações de ser um disparate. Diziam-me que eu estava bem na minha casa, perseguindo tanto minha companheira a ponto de deixá-la aflita. Eu não sabia o que fazer; em parte, parecia-me que tinham razão. Quando eu estava muito fatigada, encomendando-me a Deus, Sua Majestade começou a me consolar e animar. Ele me disse que, através daquilo, eu veria o que tinham passado os santos fundadores das religiões, devendo passar por tribulações muito maiores do que eu podia imaginar, mas que não devíamos ter medo.

Ele acrescentou algumas palavras que eu devia transmitir à minha companheira, e o que mais me espantava era que logo ficávamos consoladas pelo que tínhamos sofrido e com ânimo suficiente para resistir a todos. Na realidade, entre as almas de oração e até na própria cidade, não havia quase ninguém que na época não se opusesse a nós nem considerasse tudo um enorme desatino.

15. Foram tantas as insinuações e o alvoroço no meu mosteiro que o Provincial julgou impossível ter de enfrentar a todos, razão por que mudou de opinião e retirou o seu apoio. Ele afirmou que a renda não era suficiente, além de pouco segura, bem como muitos os nossos opositores. Ao que parece, devia estar coberto de razão. O fato é que retrocedeu e cancelou a licença. Quanto a nós, veio-nos a impressão de que esses eram os primeiros golpes, o que nos trouxe muito pesar; sofri em especial por ver o Provincial opor-se, visto que, se assim não fosse, eu teria como me desculpar diante dos outros. E já não queriam absolver a minha companheira caso ela não desistisse do projeto, dizendo-lhe que tinha a obrigação de interromper o escândalo.16

16. Ela foi procurar um erudito, grande servo de Deus, da Ordem de São Domingos, contando-lhe todos os eventos.17 Isso aconteceu antes de o Provincial recusar a licença, já que, em todo lugar, não tínhamos quem se dispusesse a nos favorecer, razão por que diziam que íamos adiante por puro capricho. Essa senhora relatou tudo ao santo homem, falando-lhe da renda advinda de suas propriedades, pedindo-lhe com fervor que nos ajudasse, visto ser ele o religioso mais instruído do lugar, havendo poucos mais sábios do que ele em sua Ordem.

Contei-lhe tudo o que pretendíamos fazer e falei de algumas das razões que nos moviam; não recorri a revelações, apresentando-lhe as razões naturais, por­que queria que ele nos desse a sua opinião de acordo com estas últimas. Ele nos pediu um prazo de oito dias para responder e nos perguntou se nos dispúnhamos a fazer o que ele dissesse. Respondi-lhe que sim; mesmo afirmando, e creio que o cumpriria (porque na época não via como levar o projeto adiante), nunca deixei de acreditar no êxito do nosso empreendimento. Minha companheira tinha mais fé; ela nunca se disporia a abandonar o projeto por coisa alguma que lhe dissessem.

17. Eu, como disse, julgava impossível que a casa não viesse a ser fundada, tamanha a minha crença na verdade da revelação, pois não lhe daria fé se ela contrariasse a Sagrada Escritura ou as leis da Igreja, que somos obrigados a cumprir…18 Porque, embora me parecesse que de fato era vontade de Deus, se aquele douto me dissesse que não podíamos levá-lo a efeito sem ofendê-Lo e sem contrariar a consciência, creio que logo me afastaria daquilo ou procuraria outra solução; mas o Senhor só me dava uma alternativa: a fundação.

Mais tarde, aquele servo de Deus me confessou que tivera a firme determinação de tudo fazer para nos dissuadir, pois já chegara aos seus ouvidos o clamor do povo, sendo também seu o parecer de que o projeto era um disparate. Sabendo-se que o tínhamos procurado, enviou-se um emissário para avisá-lo de que visse o que fazia e pedir que não nos ajudasse. Quando ele começou a ponderar sobre a resposta que nos daria, examinando o empreendimento, a nossa intenção, o modo de vida e de prática religiosa que queríamos estabelecer, concluiu que isso muito serviria a Deus e que não podia deixar de ser feito. Por isso, ele nos respondeu que nos apressássemos a concluí-lo e nos indicou os meios e o modo de proceder; disse que, apesar de os recursos serem poucos, sempre se podia esperar em Deus. Afirmou também que todos os opositores deveriam procurá-lo, que ele se encarregaria de responder — e ele de fato sempre nos ajudou, como mais tarde vou dizer.19

18. Com isso, ficamos muito consoladas, e também porque algumas pessoas santas, que antes eram contrárias a nós, já estavam mais aplicadas, havendo até algumas que nos ajudavam. Entre estas últimas estava o fidalgo santo20 que já mencionei, o qual, virtuoso como era, percebia estar o nosso projeto inteiramente baseado na oração, embora acreditasse que os meios fossem difíceis e quase inviáveis; mesmo assim, ele achava que podia ser coisa de Deus, advinda do próprio Senhor. Era por certo Deus que o movia, tal como movera o Mestre, o clérigo servo de Deus que, como eu disse, foi o primeiro a quem falei;21 esse Mestre é um modelo para todos, pessoa que Deus tem para remédio e proveito de muitas almas, e que também já vinha em minha ajuda.

Estando as coisas nesse pé, e sempre com a ajuda de muitas orações, compramos uma casa em um bom lugar, embora pequena. Isso em nada me incomodava, pois o Senhor me dissera que começasse como pudesse e mais tarde veria o que Sua Majestade havia de fazer22 — e quão bem o tenho visto! Assim, embora reconhecesse que a renda era pouca, eu tinha fé no Senhor, que haveria de nos favorecer e prover tudo por outros meios.

Capítulo 33

Continua a falar da fundação do mosteiro do glorioso São José. Explica que lhe deram ordens de não se envolver nela, relata o tempo em que obedeceu e algumas provações que teve, dizendo como o Senhor a consolava nisso.

1. Quando os negócios estavam a ponto de se resolver, visto que, no dia seguinte, seriam lavradas as escrituras, nosso Padre Provincial mudou de opinião.1 Pelo que vi depois, creio que ele foi movido por inspiração divina; porque, sendo tantas as orações, o Senhor ia aperfeiçoando a Sua obra e determinando que se fizesse de outro modo. Quando o Provincial não quis admitir a fundação, o meu confessor me ordenou que não mais me envolvesse nisso.2 Mas o Senhor sabe dos grandes sofrimentos e aflições que me tinha custado ter levado o empreendimento até esse ponto. Como ele foi abandonado e as coisas ficaram assim, confirmou-se mais a opinião de tratar-se de disparate de mulheres, aumentando os murmúrios sobre mim, embora tudo tivesse sido feito até então com a concordância do Provincial.

2. A opinião do meu mosteiro3 sobre mim não era das melhores, pois eu queria fazer um mosteiro de clausura mais estrita. As pessoas diziam que eu as ofendia, pois ali também se podia servir a Deus, havendo religiosas melhores que eu. Diziam também que eu não tinha amor pela casa e que melhor seria que procurasse obter recursos para ela do que para outra obra. Umas pensavam que eu devia ser lançada no cárcere;4 umas poucas faziam uma tímida defesa de mim. Eu bem via que em muitas coisas elas tinham razão e por vezes justificava a sua conduta, embora, como não pudesse falar do essencial, que era ter recebido ordens do próprio Senhor, não soubesse o que fazer, deixando assim de falar de outras coisas. O Senhor muito me agraciava porque, em tudo isso, não me deixava inquieta; deixei a obra de lado com muita facilidade e contentamento, como se até então não tivesse feito nenhum esforço. Ninguém pôde acreditar nisso, nem mesmo as almas de oração que tinham relação íntima comigo; pensava-se que eu estava muito confrangida e confusa, o que era a opinião do meu próprio confessor. Quanto a mim, tendo certeza de ter feito tudo o que podia, não mais me sentia obrigada a fazer esforços para cumprir a ordem do Senhor, ficando na casa em que estava muito contente e satisfeita. Se bem que jamais pudesse deixar de acreditar que a casa seria fundada, eu não via os meios para isso nem sabia como nem quando a obra se realizaria, mas achava que viria a existir.

3. O que me causou muito sofrimento foi ter recebido do meu confessor, como se eu tivesse feito coisa contra sua vontade (verdade é que o Senhor devia querer que também desse lado, que mais dores haveria de causar, eu não deixasse de receber sofrimentos), num momento em que uma multiplicidade de perseguições deveriam merecer dele, a meu ver, uma palavra de consolo, uma carta em que dizia perceber, diante do que ocorrera, que a obra não passava de sonho. Na carta, ele me ordenava que doravante desistisse do assunto e não mais falasse dele, devido ao escândalo e a tantas outras coisas lamentáveis.

Isso foi para mim mais lamentável do que todas as outras aflições juntas, dando-me a impressão de que, se eu fora causa e agente de ofensas a Deus, e se as visões que tivera eram uma ilusão, toda a oração que eu tinha era um engano, e eu estava perdida e errada. Isso me afligiu de modo tão extremo que fiquei toda perturbada e muito agitada. Mas o Senhor, que nunca me faltou, e que em todas as provações que me atingiram me consolou e animou muitas vezes — não cabendo relatá-las aqui —, me disse que eu não devia me afligir, que muito O servira, em vez de ofendê-Lo, naquele empreendimento e que obedecesse ao confessor, não me manifestando por enquanto, até que chegasse o momento de retomá-lo. Fiquei tão consolada e contente que toda a perseguição que me moviam me pareceu insignificante.

4. Nesse ponto, o Senhor me ensinou o imenso bem que é passar por so­frimentos e perseguições por Ele, porque foi tanto o aumento do amor de Deus que vi em minha alma, ao lado de muitas outras coisas, que fiquei espantada. Isso me faz não poder deixar de desejar tribulações. As outras pessoas pensavam que eu estava envergonhada, e eu de fato estaria se o Senhor não me tivesse favorecido com tanto desvelo ao me conceder graça tão grande. Por essa época, comecei a ter aqueles ímpetos de amor a Deus já referidos5 e arroubos maiores, embora me calasse e não contasse a ninguém os ganhos que obtinha. O santo varão dominicano6 também tinha a mesma certeza minha de que a casa seria fundada; e, como eu não queria me envolver no assunto para não desobedecer ao meu confessor, ele o negociava com a minha companheira, escrevendo a Roma e dando todos os passos necessários.

5. Nesse ponto, o demônio também começou a espalhar, de boca em boca, que eu tinha tido alguma visão sobre o caso; por isso, as pessoas me procuravam, com muito medo, para me dizer que vivíamos tempos ruins7 e que poderiam levantar contra mim falsos testemunhos, denunciando-me aos inquisidores. Achei muita graça e ri, porque nunca tive temor disso, pois bem sabia que, em matéria de fé, eu antes morreria mil vezes do que me oporia a qualquer coisa da Igreja ou a qualquer verdade da Sagrada Escritura. Eu lhes disse que não temessem quanto a isso, pois em estado bem ruim estaria a minha alma se houvesse nela algo que me levasse a recear a Inquisição; se achasse que havia, eu mesma iria procurá-la. Eu disse ainda que, em caso de falsos testemunhos, o Senhor me livraria de tudo e ainda me propiciaria algum benefício.

Procurei o padre dominicano que, como eu disse, era tão instruído8 que eu podia ficar tranqüila diante do que ele me dissesse, e lhe contei todas as visões, o modo de oração e as grandes graças que o Senhor me concedia, com a maior clareza que pude, suplicando-lhe que a tudo examinasse muito bem e me dissesse se havia naquilo algo contra a Sagrada Escritura. Ele me tranqüilizou muito e, a meu ver, tirou algum proveito das minhas confidências, porque, embora fosse já muito bom, doravante se dedicou ainda mais à oração e se recolheu a um mosteiro de sua Ordem, muito mais solitário,9 para melhor poder praticar virtudes, tendo estado ali por mais de dois anos, até que a obediência o tirou dali — o que ele muito lamentou —, visto que as suas qualidades o tornavam necessário em outro lugar.

6. Senti muito quando ele se foi — embora não tenha tentado retê-lo — devido à grande falta que ele me faria. Mas percebi que era para seu proveito porque, estando muito pesarosa com a sua ida, o Senhor me disse que me consolasse e não ficasse assim, pois ele seguia um bom caminho. Quando ele voltou, sua alma tinha aproveitado tanto e avançara a tal ponto no caminho do espírito que ele me disse que não gostaria de ter deixado de ir por nada deste mundo. O mesmo eu podia dizer; porque quem antes me tranqüilizava e consolava apenas com o saber intelectual também passou a fazê-lo com a experiência espiritual, pois tinha muita em coisas sobrenaturais, tendo Deus promovido o seu retorno bem no momento em que viu ser ele necessário para ajudar em Sua obra do mosteiro.

7. Estive, pois, em silêncio, sem tratar nem falar do empreendimento por cinco ou seis meses, e o Senhor nunca me ordenou que o fizesse. Eu não podia saber a causa, mas não perdia a esperança de que o projeto se realizaria. Passado esse tempo, tendo ido daqui o Reitor da Companhia de Jesus, Sua Majestade trouxe outro muito espiritual, com grande ânimo e compreensão e muito douto, e num momento em que eu tinha muita necessidade disso. Porque, como o padre que me confessava era subordinado a um superior e como os jesuítas têm em extremo a virtude de seguir a vontade do seu Maior, esse meu confessor não se atrevia a decidir em algumas circunstâncias, por várias razões, embora entendesse bem meu espírito e desejasse que eu avançasse muito mais. Na época, minha alma já tinha ímpetos tão grandes que muito sofria ao ver-se tão restrita, embora eu de modo algum deixasse de fazer o que ele me mandava.10

8. Estando um dia com uma forte tribulação, pensando que o confessor não acreditava em mim, disse-me o Senhor que eu não me afligisse, pois aquele padecer logo se acabaria. Fiquei muito contente, julgando que não de­moraria muito a morrer, sentindo grande alegria quando me lembrava disso. Depois, vi com clareza tratar-se da vinda desse Reitor de que falei; porque o sofrimento acabou, já que ele nada impedia ao Padre que era meu confessor, dizendo-lhe que me consolasse sem nenhum receio e que não me levasse por um caminho tão árduo, deixando agir o espírito do Senhor. Com efeito, às vezes a minha alma ficava, por assim dizer, quase sem poder respirar de­vido aos grandes ímpetos do espírito.

9. Esse Reitor foi me procurar, e o confessor me ordenou tratar com ele com toda a liberdade e clareza. Eu costumava me sentir muito inibida diante de contatos como esse. Contudo, ao entrar no confessionário, tive um sentimento interior desconhecido que não me lembro de ter sentido antes nem depois com ninguém; não sei descrevê-lo sequer com comparações. Porque foi um prazer espiritual, uma sensação de que aquela alma havia de entender a minha, de que havia entre elas uma afinidade, embora, repito, eu não saiba como.

Não causaria espanto essa alegria pela esperança de ser compreendida se eu já tivesse falado com ele ou recebido informações a seu respeito, mas isso nunca ocorrera. Vi depois que o meu espírito não se enganara; desse relacionamento adveio, sob todos os aspectos, um enorme proveito para os meus empreendimentos e a minha alma. Ele dirige muito bem as pessoas que o Senhor parece ter elevado bem alto, pois não as faz caminhar passo a passo, e sim correr, buscando desapegá-las de tudo e mortificá-las, pois também nisso, como em muitas outras coisas, o Senhor lhe deu um talento fora do comum.

10. Desde que passei a me relacionar com ele, entendi seu estilo e vi ser ele uma alma pura e santa, dotada pelo Senhor de um talento particular de dis­­cer­­nir espíritos, o que muito me consolou. Pouco depois desse contato, o Senhor voltou a me impelir a tratar da questão do mosteiro, mandando-me dizer ao meu confessor e a esse Reitor das muitas razões e motivos para que eles não se tor­nassem empecilhos a isso. Algumas dessas razões causaram impressão, porque o Padre Reitor nunca duvidou, depois de estudar com muito cuidado e so­licitude todos os efeitos que se manifestavam em mim, de que se tratava do es­pírito de Deus. Enfim, por várias razões, eles não se atreveram a me estorvar.11

11. Meu confessor me permitiu outra vez dedicar-me por inteiro à obra. Eu percebia que problemas tinha pela frente, visto estar só e ter muito poucos recursos. Combinamos que tudo se faria em segredo e, assim, fiz que uma irmã minha12 que vivia fora daqui comprasse a casa, e lavrasse a escritura como se fosse para si mesma, com os recursos que o Senhor fez chegar a nós, por certos meios, em quantidade suficiente para a aquisição. Seria extenso narrar aqui como o Senhor foi fazendo isso.

Eu tinha o maior cuidado em nada fazer contra a obediência; mas sabia que, se o dissesse aos meus prelados, tudo se perderia como da vez passada ou até de modo pior. Para conseguir dinheiro, fazer as diligências necessárias, organizar planos e dirigir obras, tive momentos de enorme dificuldade, alguns bem sozinha (minha companheira fazia o que podia, mas podia pouco, e tão pouco que era quase nada, além de permitir que a obra fosse feita em seu nome e com o seu favor; todo o trabalho restante era meu), tendo sofrido de tantas maneiras que agora me espanto de tê-lo podido suportar.

Por vezes, desarvorada, eu dizia: “Senhor meu, como me ordenais coisas que parecem impossíveis? Se eu, mesmo sendo mulher, ao menos tivesse liberdade! Mas, impedida por todos os lados, sem recursos e sem ter aonde buscá-los, mesmo para as despesas do Breve, que posso fazer, Senhor?”

12. Numa ocasião, estando numa necessidade que não sabia resolver, nem tendo com que pagar aos operários, apareceu-me São José, meu verdadeiro pai e senhor, e deu-me a entender que recursos não me faltariam e que eu devia contratá-los. Eu o fiz, sem dispor de um centavo, e o Senhor, por caminhos que espantavam aos que o viam, me forneceu os recursos.13 Comecei a achar a casa muito pequena, e tanto que parecia impossível torná-la um mosteiro; por isso, quis comprar outra (não tinha com que, não havia maneira de fazer a aquisição, nem eu sabia como proceder), situada ao seu lado, também muito pequena para erigir a igreja.

Certo dia, quando eu acabava de comungar, disse-me o Senhor: Já te falei que comeces como puderes. E, exclamando: Ó cobiça do gênero humano, que até a terra pensas que te há de faltar! Quantas vezes dormi ao relento por não ter onde me abrigar! Fiquei pasma e vi que o Senhor tinha razão; fui à casa pequenina, elaborei meus planos e encontrei meios para torná-la um mosteiro regular, se bem que minúsculo. Desisti de comprar mais terras, mas fiz adaptações para que se pudesse viver na casa; tudo era tosco e grosseiro, tendo o suficiente para não prejudicar a saúde; e assim se deve fazer sempre.

13. No dia de Santa Clara, indo comungar, a Santa me apareceu, muito formosa.14 Disse-me que me esforçasse e desse continuidade ao que iniciara, pois teria a sua ajuda. Tomei por ela grande devoção e, em cumprimento de sua promessa, um mosteiro de monjas de sua Ordem15 situado perto deste ajuda a nos sustentar. Além disso, a bem-aventurada Santa elevou pouco a pouco os meus anseios a tamanha perfeição que a pobreza que ela instituiu em seus mos­teiros também está presente neste, e vivemos de esmola. Não me tem custado pou­cos esforços estabelecer com toda a firmeza e autoridade do Santo Padre que não se aja senão assim e que nunca se tenham rendimentos.16 E o Senhor faz mais ainda, talvez atendendo às súplicas dessa bendita Santa, pois, sem que peçamos, nos fornece o necessário com muita fartura. Bendito seja para sempre, amém.

14. Também por esses dias, eu estava na capela de um mosteiro da Ordem do glorioso São Domingos no dia de Nossa Senhora da Assunção17 considerando os inúmeros pecados que em tempos passados confessara naquela casa e outras coisas da minha vida ruim. De repente, veio-me um arroubo tão intenso que quase perdi os sentidos; sentei-me e creio que não vi a elevação nem ouvi a missa, ficando depois envergonhada disso. Enquanto me encontrava naquele estado, tive a impressão de que me cobriam com uma roupa de grande brancura e esplendor. No início, eu não via quem o fazia, tendo percebido depois Nossa Senhora do meu lado direito e meu pai São José do esquerdo adornando-me com aquelas vestes. Eles me deram a entender que eu estava purificada dos meus pecados.

Depois que acabaram de me vestir, estando eu com enorme deleite e glória, tive a impressão de que Nossa Senhora tomava-me as mãos, dizendo--me que lhe dava muito contentamento ver-me servir ao glorioso São José e que eu estivesse certa de que o mosteiro se faria de acordo com o meu desejo, sendo o Senhor e eles dois muito bem servidos ali. Eu não devia temer que nisso viesse a haver quebra, embora a obediência não fosse bem do meu gosto, porque eles nos guardariam, e o seu Filho já nos prometera andar ao nosso lado. Como sinal de verdade, ela me dava uma jóia.

Tive a impressão de que ela me punha no pescoço um colar de ouro muito formoso do qual pendia uma cruz de muito valor. O ouro e as pedras dessa jóia são tão diferentes dos de cá que não há comparação; porque a sua formosura muito difere do que podemos imaginar aqui, não podendo o intelecto compreender de que era a veste nem imaginar a alvura que o Senhor deseja nos apresentar, de tal modo que todas as coisas deste mundo parecem, por assim dizer, um esboço a carvão.

15. Era grandíssima a beleza que vi em Nossa Senhora, embora não tenha podido observar nenhum traço particular seu, mas o conjunto do rosto, estando ela vestida de branco, com enorme resplendor, não do tipo que deslumbra, mas algo suave. Não vi o glorioso São José tão claro, mas percebi a sua presença, como nas visões de que falei, em que não se vêem imagens.18 Nossa Senhora me pareceu muito jovem. Estiveram comigo mais um pouco, estando eu cheia de glória e de júbilo, numa intensidade que eu talvez jamais tenha sentido e que não quisera ver chegar ao fim.

Pareceu-me então vê-los subir ao céu com uma enorme corte angélica. Fiquei com muita saudade, mas tão consolada, enlevada, recolhida em oração e enternecida que por algum tempo permaneci quase fora de mim, sem poder mover-me nem falar. Veio-me um veemente ímpeto de me desfazer por Deus, ímpeto que teve tais efeitos em mim que nunca pude duvidar da verdade de que todo o ocorrido era coisa de Deus. Fiquei consoladíssima e com muita paz.

16. O que a Rainha dos Anjos dissera sobre a obediência19 referia-se ao fato de eu sentir muito não pôr o mosteiro sob a jurisdição da nossa Ordem, pois o Senhor me falara que não convinha fazê-lo. Indicou-me os motivos pelos quais isso de nenhum modo era conveniente, dizendo-me para recorrer a Roma, por certa via que também me indicou, prometendo que faria vir por esse meio as licenças. Isso de fato ocorreu — quando até então nunca chegávamos a uma solução —, e com pleno êxito, quando segui o caminho indicado pelo Senhor.

Considerando-se as coisas que mais tarde sucederam, foi muito conveniente ter-se prestado obediência ao Bispo. Mas, na época, eu não o conhecia, nem sabia que prelado seria; quis o Senhor que ele fosse muito bom e favorecesse bastante esta casa, o que era bem necessário diante da grande conflagração que a envolveu, como mais tarde vou contar,20 levando-a ao estado em que se encontra. Bendito seja Aquele que assim tudo fez, amém.

Capítulo 34

Trata de como foi conveniente ausentar-se nessa época de Ávila. Conta a causa e diz que o seu prelado a mandou consolar uma senhora nobre que se encontrava muito aflita. Começa a narrar o que lhe aconteceu ali e o grande favor que o Senhor lhe concedeu ao servir-se dela para despertar uma pessoa de posição elevada para dedicar-se verdadeiramente ao Senhor. Dessa pessoa lhe vieram, mais tarde, favor e amparo. Trata-se de capítulo digno de nota.

1. Mesmo me esforçando para que não se soubesse da obra, não era possível deixá-la num segredo tamanho que ninguém o percebesse. Algumas pessoas acreditavam e outras não. Eu temia muito que, vindo o Provincial, dissessem a ele algo sobre isso, e fosse proibida de me ocupar da obra, parando todo o trabalho. Mas o Senhor agiu da seguinte maneira: numa cidade grande, a mais de vinte léguas daqui, uma senhora estava muito aflita por causa da morte do marido; estava abalada a tal ponto que se temia pela sua saúde.1 Ela teve notícia desta pecadorazinha, pois o Senhor assim o dispôs; alguém falou bem de mim, o que produziu outros benefícios a partir disso.

Essa senhora conhecia muito o Provincial e, sendo pessoa importante e sabendo que eu estava num mosteiro sem clausura, teve, por inspiração do Senhor, um intenso desejo de me ver, pois lhe parecia poder se consolar comigo, já que sozinha não o podia. Ela logo procurou, por todos os meios, levar-me até lá, tendo enviado um mensageiro ao Provincial, que se en­contrava bem longe. Ele me deu ordem, com preceito de obediência, para partir de imediato com uma companheira. Eu recebi a ordem na noite de Natal.2

2. Essa ordem me perturbou um pouco e me magoou muito quando percebi que a causa de quererem me levar era a crença de que havia em mim algum bem, o que eu, vendo-me tão ruim, não conseguia suportar. Encomendando-me muito a Deus, fiquei todo o tempo das Matinas, ou grande parte dele, tomada por um grande arroubo. O Senhor me disse que não deixasse de ir e não me incomodasse com objeções, porque poucos me aconselhariam sem temeridade. Disse ainda que, embora eu fosse sofrer, isso muito serviria a Deus e que, para os fins do mosteiro, convinha que eu me ausentasse até chegar o Breve.

Acrescentou que o demônio tinha feito uma grande trama para quando o Provincial voltasse; eu nada devia temer, porque Ele me ajudaria. Fiquei muito animada e consolada e disse tudo ao Reitor, que respondeu que eu de modo algum deixasse de ir. Outras pessoas, contudo, me diziam que isso não era admissível, que era invenção do demônio para que lá me atingisse algum mal e que eu devia me comunicar outra vez com o Provincial.

3. Obedeci ao Reitor e, com o que entendera na oração, parti sem medo, embora sentisse grande confusão por ver a que título me levavam e como se enganavam tanto a meu respeito. Isso me fazia importunar mais o Senhor para que não me deixasse só. Um grande consolo meu era o fato de haver uma casa da Companhia de Jesus no lugar para onde ia,3 o que me parecia dar muita segurança, pois estaria sujeita, lá como cá, às suas ordens.

Pela vontade do Senhor, aquela senhora se consolou tanto que passou a ter de imediato pronunciada melhora, consolando-se mais e mais a olhos vis­tos. Isso causou grande impacto porque, como eu disse,4 a sua dor a dei­xava em grande angústia; o Senhor deve ter feito isso pelas muitas orações que faziam por mim as boas pessoas que eu conhecia para que tudo corresse bem. Essa senhora era muito temente a Deus e tão piedosa que a sua grande religiosidade supriu o que me faltava. Ela tomou-se de grande afeição por mim, e eu também gostava muito dela por ver sua bondade.

Mas quase tudo se tornava cruz para mim; porque os regalos me davam um grande tormento, e o fato de me terem tanta consideração me deixava com um imenso temor. A minha alma andava tão encolhida que eu não me atrevia a descuidar dela, nem o Senhor o fazia; porque, enquanto eu estava ali, Ele me fez muitos favores, que me davam tanta liberdade e tanto me faziam menosprezar tudo o que via — e, mais valioso o objeto, maior o meu desprezo — que eu não deixava de tratar com aquelas damas, a quem servir era para mim grande honra, com a naturalidade de quem fosse igual a elas.

4. Obtive disso muito proveito, o que dizia à própria Dona Luisa. Vi que ela era mulher, e tão sujeita a paixões a fraquezas quanto eu, e compreendi como se devem estimar pouco as grandezas humanas e que, quanto maiores as posses, tanto maiores os cuidados e sofrimentos que se têm. Além disso, a preocupação de ter a compostura correspondente ao seu estado não deixa essas pessoas viverem; elas comem fora de hora e de qualquer jeito, porque tudo deve corresponder à dignidade, e não ao temperamento; degustam muitas vezes manjares mais adequados ao seu estado do que ao seu gosto.

Por isso, desprezei totalmente o desejo de ser senhora — Deus me livre, contudo, da má compostura! —, se bem que aquela, apesar de ser das mais importantes do reino, seja talvez insuperável em humildade e afabilidade. Eu tinha pena, e ainda tenho, de vê-la forçada muitas vezes a ir contra suas inclinações para atender às exigências da sua condição. É preciso confiar pouco nos criados, mesmo que, como os dela, sejam bons. Não se deve falar mais com um do que com outro, para que o favorecido não fique malquisto. Trata-se de uma sujeição que me faz afirmar que uma das mentiras do mundo é chamar de senhores pessoas como essas, que não me parecem senão escravas de mil coisas.

5. Quis o Senhor que, durante o tempo em que estive naquela casa, todas as pessoas se aperfeiçoassem no serviço a Sua Majestade, embora eu não estivesse livre de tribulações e invejas da parte de algumas pessoas, devido ao muito amor que a senhora tinha por mim; com certeza pensavam que me movia algum interesse. O Senhor devia permitir que eu tivesse alguns sofrimentos e coisas semelhantes, para que não me embebesse das facilidades que ali havia, e fez com que eu obtivesse de tudo melhoras para a minha alma.

6. Durante a minha estada, chegou um religioso, pessoa muito importante com a qual eu há muitos anos tivera contato.5 Estando assistindo à missa num mosteiro de sua Ordem próximo do lugar onde me encontrava, desejei saber as disposições daquela alma, pois queria que fosse um bom servo de Deus. Levantei-me para lhe falar; como já estava recolhida em oração, julguei que isso seria perder tempo e voltei a me sentar, perguntando a mim mesma o que tinha que ver com aquilo.

Creio que isso aconteceu por três vezes e, finalmente, o anjo bom venceu o mau, e eu fui até ele, que veio falar comigo num confessionário. No início, como há muitos anos não nos víamos, perguntamos sobre a vida um do outro. Eu lhe disse que a minha tinha sido marcada por muitos tormentos de alma. Ele insistiu muito em que eu lhe falasse desses tormentos. Eu lhe disse que não eram para ser sabidos, nem eu os devia contar. Ele respondeu que o padre dominicano de que falei6 — que era muito amigo seu — logo o poria a par de tudo e que por isso eu podia confiar nele também.

7. Na verdade, não estava em suas mãos deixar de me importunar, nem nas minhas, creio eu, deixar de contar-lhe; porque, sendo tanto o pesar e a vergonha que costumo ter quando falo dessas coisas, com ele e com o Reitor de que falei,7 não tive nenhuma dificuldade e até me consolei muito. Eu lhe contei tudo sob segredo de confissão. Ele me pareceu mais esclarecido do que nunca, embora eu sempre o considerasse pessoa de grande compreensão. Percebi os enormes talentos e capacidades que ele tinha para aproveitar muito, caso se entregasse por inteiro a Deus. Porque, de uns anos para cá, não posso ver pessoa que muito me agrade sem desejar vê-la totalmente dedicada a Deus, sentindo ânsias tais que por vezes não posso me conter. Embora deseje que todos sirvam ao Senhor, desejo com muito ímpeto que essas pessoas que me alegram o façam, razão por que muito suplico ao Senhor por elas. Com esse religioso, assim aconteceu.

8. Ele me rogou que o encomendasse muito a Deus, mas nem era preciso, pois eu já não podia fazer outra coisa. Fui para onde costumava ter oração sozinha e comecei a tratar com o Senhor, estando em profundo recolhimento, de uma maneira simples com que muitas vezes, sem saber o que digo, me relaciono com Ele; nesses momentos, é o amor que fala, e a alma fica tão fora de si que não vê a diferença que há entre ela e Deus. Porque o amor que ela sabe que Sua Majestade tem por ela a faz esquecer de si mesma e lhe dá a impressão de estar Nele, e, como se ela e Ele fossem uma coisa só, a faz dizer desatinos. Lembro-me de ter Lhe dito, depois de pedir com muitas lágrimas que pusesse aquela alma a Seu serviço de verdade — porque, embora fosse alma tão boa, eu não me contentava com isso, querendo que fosse muito santa: “Senhor, não me negueis este favor; vede quão boa é essa pessoa para ser nossa amiga”.

9. Ó bondade e grande humanidade de Deus, que não vê as palavras, mas os desejos e a vontade com que são ditas! Como suporta que uma pessoa como eu seja tão atrevida com Sua Majestade? Bendito seja para todo o sempre!

10. Lembro-me de que naquela noite, enquanto orava, tive uma grande aflição ao pensar que talvez me tivesse tornado inimiga de Deus; e, como não podia saber se estava ou não em Sua graça (não que eu desejasse saber, querendo antes morrer para não me ver em vida onde não tinha certeza de estar morta ou viva, porque não podia haver para mim morte pior do que pensar que tinha ofendido a Deus), sentia-me constrangida; eu Lhe suplicava que não permitisse isso, cheia de ternura e derretida em lágrimas.

Então percebi que podia me consolar e ter certeza de estar em graça;8 porque semelhante amor de Deus, as graças que Sua Majestade dava à minha alma e os sentimentos que me inspirava jamais teriam como alvo uma alma que estivesse em pecado mortal. Fiquei confiante de que o Senhor faria o que eu suplicava para essa pessoa. Ele me encarregou de lhe transmitir algumas palavras. Eu o senti muito, pois não sabia como fazê-lo, já que dar recado a uma pessoa é, como eu disse,9 o que mais me custa, em especial quando é preciso dá-lo a alguém que eu não sabia como o tomaria ou se zombaria de mim. Fiquei muito aflita. Depois, persuadi-me tanto que, pelo que me lembro, prometi a Deus que não deixaria de fazê-lo. Contudo, dada a grande vergonha que tinha, eu escrevi as palavras do Senhor e assim as transmiti ao religioso.

11. Foi perceptível, dado o efeito que as palavras produziam nele, tratar--se de coisa de Deus.10 Ele decidiu verdadeiramente dedicar-se à oração, se bem que não de imediato. Como o queria para Si, o Senhor lhe mandava dizer, por meu intermédio, algumas verdades que, sem que eu as entendesse, eram tão a propósito que o espantavam e o dispunham a crer que vinham de Sua Majestade. Eu, embora miserável, suplicava muito ao Senhor que o atraísse por inteiro a Si, e o fizesse desdenhar as alegrias e coisas da vida. E assim — louvado seja Ele para sempre! — o fez, e com tanta intensidade, que cada vez que esse religioso me fala, fico maravilhada; e, se eu não fosse testemunha, duvidaria que em tão breve tempo o Senhor lhe tivesse concedido tão grandes graças e o mantivesse tão ocupado em Deus, pois ele não parece viver para coisas da terra.

Que Sua Majestade o leve pela mão, pois, se for adiante — como espero em Deus que vá, visto conhecer a si próprio sólida e profundamente —, ele há de ser um dos Seus mais notáveis servos e um grande benefício para inúmeras almas. De fato, ele adquiriu em pouco tempo muita experiência em coisas do espírito, um dom que Deus dá quando quer e como quer, pouco importando a antiguidade ou os serviços prestados. Não que essas coisas não ajudem muito, mas é verdade que o Senhor muitas vezes não dá em vinte anos a um a contemplação que concede a outro num único ano. Sua Majestade é quem sabe por quê.

Iludimo-nos ao pensar que os anos nos levam a entender o que de nenhuma maneira se pode alcançar sem experiência; e assim muitos erram, como eu disse,11 querendo discernir espíritos sem ter a capacidade para tanto. Não afirmo que quem não a tiver não governe quem a tem, caso seja douto; isso é possível, desde que siga a via natural, mediante a ação do intelecto, tanto nas coisas exteriores como nas interiores, e que, no tocante às coisas sobrenaturais, siga a Sagrada Escritura. Quanto ao mais, que não se atormente, não pense compreender o que não entende nem afogue os espíritos,12 porque, nesse ponto, um Senhor maior o governa, não estando ele sem superior.

12. Tal pessoa não deve se espantar nem considerar nada impossível — tudo é possível ao Senhor —, procurando antes avivar a sua fé e humilhar--se com o fato de que o Senhor, nesta ciência, talvez torne uma velhinha mais sábia do que uma pessoa muito educada; com essa humildade, a pessoa beneficiará mais às almas e a si mesma do que se fizer as vezes de contemplativo não o sendo. Repito: quem não tem experiência e também não tiver muita humildade para se persuadir de que as coisas que não entende nem por isso são impossíveis pouco ganhará, e ganharão ainda menos as almas que dirige. Se for humilde, a pessoa não deve recear, pois o Senhor não lhe vai permitir que se engane a si nem aos outros.

13. Esse padre que eu disse ter recebido muitas graças do Senhor procurou estudar tudo o que é possível conhecer sobre essa matéria pelo estudo, pois é muito instruído. Ele pergunta a quem tem experiência aquilo que não entende por não tê-la; com isso, é ajudado pelo Senhor, que lhe dá muita fé. Assim sendo, muito tem beneficiado a si e a algumas almas, incluindo a minha.

Pois o Senhor, sabendo em quantos sofrimentos eu me veria, parece ter determinado que, já que havia de levar para Si alguns dos que me dirigiam,13 ficassem outros, que me têm ajudado nas minhas grandes dificuldades e me feito um grande bem. Esse padre foi transformado por inteiro por Sua Majestade, a tal ponto que quase não reconhece a si mesmo, por assim dizer. Deus lhe tem dado forças corporais para a penitência (que ele antes não tinha, vivendo enfermo) e ânimo para tudo o que é bom, o que parece ser um chamamento muito particular do Senhor. Bendito seja Ele para sempre.

14. Creio que todo o bem vem das graças que o Senhor lhe tem concedido na oração, que são bem reais; porque, em algumas coisas, o Senhor já quis que ele tivesse experiência, pois ele sai delas como quem já conhece a verdade do mérito que se acumula ao sofrer perseguições. Espero que, pela grandeza do Senhor, muitos benefícios advenham por meio dele a pessoas de sua Ordem e a ela mesma.

Isso já começa a se manifestar. Tive grandes visões, e o Senhor me disse algumas coisas dignas de admiração a seu respeito e a respeito do Reitor da Companhia de Jesus de quem falei,14 assim como de outros dois religiosos da Ordem de São Domingos, especialmente de um,15 de cujo avanço espiritual, manifesto em obras, o Senhor vem mostrando coisas de que antes me falara. Têm sido muitas, em especial, as revelações acerca do religioso de quem tenho falado.

15. Desejo narrar agora um fato. Eu estava certa vez com ele num lo­cu­tó­rio, e era tanto o amor que a minha alma e o meu espírito percebiam arder nele que eu quase estava absorta; porque considerava o poder de Deus que, em tão pouco tempo, elevara uma alma a estado tão sublime. Eu ficava muito confusa ao vê-lo escutar com tanta humildade algumas coisas de oração de que eu falava e verificava quão pouca era a minha por tratar assim com uma pes­soa como ele, mas o Senhor devia permiti-lo porque eu tinha grande de­sejo de vê-lo adiantar-se muito. Era-me tão proveitoso estar com ele que eu tinha a impressão de que a minha alma recebia um novo ardor para desejar servir ao Senhor, como se eu estivesse começando de novo. Ó Jesus meu, quanto faz uma alma abrasada em Vosso amor! Quanto a deveríamos estimar e suplicar ao Senhor que a deixe nesta vida! Quem tem o mesmo amor de­veria, se pudesse, andar em busca de almas assim.

16. É muito bom para um enfermo encontrar outro acometido pelo mesmo mal; muito consola ver que não se está só; os dois se ajudam mutuamente a pa­decer e a merecer, formando um excelente par pessoas determinadas a ar­riscar mil vidas por Deus e que desejam que lhes sejam oferecidas ocasiões nas quais perdê-las. São como soldados que, para ganhar os despojos e ficar ricos com eles, desejam que haja guerra, certos de que, de outro modo, nada conseguirão, pois esse é o seu ofício.

Oh! Que grande coisa acontece quando o Senhor nos ilumina para entender o quanto ganhamos em sofrer por Ele! E não entendemos isso bem até abandonarmos tudo, porque quem está preso a algo revela gostar desse algo e, se gosta, muito lhe há de pesar deixá-lo, o que torna tudo imperfeito e perdido. Vem a propósito o ditado de que perdido está quem anda atrás do perdido. E que maior perdição, maior cegueira, maior desventura que estimar muito o que nada é?

17. Voltando agora ao que dizia,16 eu estava em grande regozijo contemplando aquela alma, parecendo-me que o Senhor queria que eu visse com clareza os tesouros que tinha posto nela. Vendo a graça que Deus me fizera ao permitir que por meu intermédio — achando-me eu indigna disso — isso acontecesse, eu apreciava ainda mais os favores que o Senhor lhe concedera, muito mais do que se fossem feitos a mim, louvando muito a Deus ao ver que Ele realizava meus desejos e ouvia a minha oração, pois eu queria que o Senhor despertasse pessoas semelhantes.

Minha alma, com uma alegria incontida, saiu de si e se perdeu para mais ganhar. Deixou de lado as considerações e, ao ouvir a língua divina na qual o Espírito Santo parecia falar, levou-me a um grande arroubo que quase me fez perder os sentidos, embora tenha durado pouco. Vi Cristo com enorme majestade e glória, mostrando grande contentamento com o que ali se passava. E foi o que ele me disse, desejando que eu tivesse certeza de que Ele sempre estava presente em semelhantes práticas e visse o muito que Lhe agrada ver-nos regozijar ao falar Dele.

Em outra ocasião, estando ele longe deste lugar, eu o vi ser elevado com muita glória pelos anjos;17 percebi, com essa visão, que a sua alma muito se adiantaria. E assim ocorreu, porque, quando levantaram um falso testemunho contra a sua honra, sendo autor uma pessoa a quem ele muito bem fizera e de quem cuidara em termos de honra e de alma, ele a tudo suportou com muito contentamento, tendo realizado outras obras no serviço de Deus e padecido outras perseguições.

18. Não me parece conveniente ir adiante com isso. Se vossa mercê18 mais tarde julgar oportuno que eu conte mais coisas, já que as conhece, eu o farei para a glória do Senhor. Todas as profecias que me têm sido reveladas sobre esta casa e sobre vários acontecimentos, alguns já referidos e outros de que virei a falar, se têm cumprido. Em alguns casos, três anos antes de se realizarem, elas me foram ditas pelo Senhor. Em outros casos, mais cedo e, em outros ainda, mais tarde. Eu sempre as contava ao meu confessor e à viúva amiga minha com quem tinha licença para falar, como eu disse;19 eu soube que ela o relatava a outras pessoas, e estas sabem que não minto. E que Deus não permita que em coisa alguma, ainda mais em assunto tão grave, eu falte à verdade.

19. Tendo falecido de repente um cunhado meu,20 e estando eu penalizada por ele não ter conseguido confessar-se, recebi na oração a mensagem de que a minha irmã também morreria assim e que eu fosse até lá e a procurasse dispor a estar sempre preparada. Eu o disse ao meu confessor, que não me deixou partir, só o fazendo depois de eu ter recebido o aviso outras vezes, quando me disse que fosse, pois nada se perderia com isso. Ela estava numa aldeia.21 Fui sem lhe dizer nada e, chegando, esclareci-a aos poucos sobre todas as coisas, persuadindo-a a se confessar com freqüência e a ter muito cuidado com a sua alma. Como era boa, ela assim o fez.

Ao fim de quatro ou cinco anos, mantendo sempre esse costume e tendo a consciência em muito boa conta, ela morreu sem que ninguém a visse e sem poder confessar-se. Ainda bem que, como estava acostumada, ela se confessara há pouco mais de oito dias. Quando recebi a notícia de sua morte, essa circunstância muito me alegrou. Ela esteve muito pouco tempo no purgatório. Menos de oito dias depois, ao que parece, quando eu acabava de comungar, o Senhor me apareceu e quis que eu visse como Ele a levava para a glória. Em todos esses anos entre a revelação e a sua morte, aquela nunca me saíra da cabeça nem da memória da minha amiga, que, ao saber do falecimento da minha irmã, veio me ver, muito espantada ao perceber que tudo se havia cumprido. Louvado seja Deus para sempre, que tanto cuida das almas para que não se percam.

Capítulo 35

Continua a falar da fundação do mosteiro do nosso glorioso Pai São José. Conta de que maneira o Senhor ordenou que se viesse a guardar nele a santa pobreza, bem como a razão por que deixou a companhia daquela senhora com quem estava. Fala de algumas outras coisas que aconteceram.1

1. Estando eu com essa senhora de quem falei, em cuja casa passei mais de meio ano, o Senhor ordenou que tivesse notícia de mim uma beata de nossa Ordem, que residia a mais de setenta léguas daqui e fez um grande rodeio para vir a mim.2 O Senhor a movera, no mesmo ano e mês que a mim, a fundar outro mosteiro da nossa Ordem; com esse desejo, ela vendera tudo o que tinha e fora a Roma, a pé e descalça, requerer o Breve para a fundação.

2. É mulher de muita penitência e oração, a quem o Senhor agraciava com muitos favores, tendo-lhe aparecido Nossa Senhora, que lhe mandou realizar essa obra. Diante de mim, ela progredia tanto em servir ao Senhor que eu tinha vergonha de estar em sua presença. Ela me mostrou os despachos que trazia de Roma e, nos quinze dias que passou comigo, estabelecemos como haveríamos de fazer esses mosteiros.

Até falar com ela, eu não sabia que a nossa Regra — antes de ser mitigada —3 determinava que nada possuíssemos. Eu nunca pensei em fundá--lo sem rendas, pois pretendia que não tivéssemos cuidado com aquilo de que precisávamos para viver, sem considerar as muitas preocupações envolvidas pelas posses. Essa bendita mulher, sendo ensinada pelo Senhor, tinha um bom entendimento, sem saber ler, do que eu, tendo lido tanto as Constituições, ignorava. O que ela me disse me pareceu bom, embora eu tivesse receio de que não o consentissem, mas que dissessem ser um desatino e que eu não devia fazer uma coisa que fizesse padecer outras pessoas por minha causa.

Se eu estivesse sozinha, nada me teria detido e, pelo contrário, teria grande contentamento com a perspectiva de guardar os conselhos de Cristo Nosso Senhor, porque Sua Majestade já me dera grandes desejos de pobreza. Por isso, eu não duvidava de que isso fosse o melhor para mim; porque havia dias em que desejava que o meu estado possibilitasse pedir esmolas por amor de Deus, e não ter casa nem qualquer outra coisa.

Mas eu temia que, se o Senhor não desse às outras esses desejos, elas vivessem descontentes e que resultasse daí alguma distração, porque eu via alguns mosteiros pobres e pouco recolhidos, sem compreender que eram pobres devido à falta de recolhimento e que a pobreza não era a causa da distração. Esta, pelo contrário, não faz ninguém mais rico, nem falta Deus jamais a quem O serve. Ou seja, a minha fé era fraca, o que não ocorria com essa serva de Deus.

3. Como costumava fazer, pedi a opinião de várias pessoas sobre isso, mas quase ninguém pensava assim, nem o confessor, nem os eruditos a quem me dirigi. Eles me apresentavam tantas razões que eu não sabia o que fazer, porque, como já sabia que a pobreza era um aspecto da nossa Regra, e considerando-a uma atitude mais perfeita, eu não podia me convencer a ter renda. Quando ocorria de eu me persuadir com os argumentos que ouvia, ao voltar à oração e olhar Cristo na cruz tão pobre e desnudo, não suportava a idéia da riqueza; eu Lhe suplicava com lágrimas que fizesse as coisas de maneira que eu me visse tão pobre quanto Ele.

4. Eu achava muitos inconvenientes em ter renda e via ser isso causa de tanta inquietação e distração que vivia a discutir com os eruditos. Escrevi sobre isso ao dominicano4 que nos ajudava; ele me respondeu por escrito, em duas folhas plenas de teologia e argumentos, opondo-se à idéia, dizendo-me que muito ponderara sobre o assunto. Eu lhe respondi que, para não seguir o meu chamamento, o voto de pobreza que tinha feito e os conselhos de Cristo com toda a perfeição, eu não queria me aproveitar da teologia, renunciando ao benefício dos seus conhecimentos.

Quando eu achava alguma pessoa que me ajudasse, muito me alegrava, contando para isso com o grande auxílio daquela senhora em cuja casa estava;5 algumas, desde o princípio, me diziam concordar com o meu intento, mas, depois de ponderarem mais, encontravam tantos inconvenientes que terminavam por se opor a isso outra vez. Eu lhes respondia que, já que mudavam de opinião com tanta rapidez, eu preferia seguir seu primeiro parecer.

5. Nessa época, quis o Senhor, atendendo aos meus apelos, que o santo Frei Pedro de Alcântara viesse à casa daquela senhora, que ainda não o conhecia. Como amava verdadeiramente a pobreza, que observava há tanto tempo, ele bem conhecia os tesouros que ela contém, razão por que muito me ajudou e me ordenou que de modo algum deixasse de levar adiante o que pretendia. Tendo obtido essa opinião e esse apoio, vindos de quem melhor os podia dar, visto ter um conhecimento fundado em larga experiência, decidi não consultar mais ninguém.6

6. Estando um dia encomendando muito o caso a Deus, disse-me o Senhor que de forma alguma deixasse de estabelecer o mosteiro na pobreza, por ser essa a vontade do Seu Pai e Sua, e que me ajudaria. Isso aconteceu num arroubo tão intenso e que teve efeitos tão fortes que não pude duvidar de que fosse obra de Deus.

Em outra ocasião, disse-me Ele que a confusão estava na renda, acrescentando muitas coisas em louvor da pobreza e me dando a garantia de que o necessário para viver não falta a quem O serve — falta que eu, como disse, nunca temi. Do mesmo modo, o Senhor mudou também o coração do padre Presentado,7 isto é, do religioso dominicano que me escrevera dizendo que não fizesse o mosteiro sem renda. Eu já estava muito contente por ter sabido disso e ter obtido tais opiniões; parecia-me possuir toda a riqueza do mundo a partir do momento em que me decidira a viver só por amor de Deus.

7. Nessa época, meu Provincial8 levantou o preceito de obediência que me impusera para estar com aquela senhora, deixando a meu critério partir ou permanecer algum tempo. Aproximavam-se as eleições em meu mosteiro, e me avisaram que muitas monjas desejavam me dar o cargo de prelada, algo que, só de pensar, me trazia tamanho tormento que eu antes me determinaria a sofrer por Deus qualquer martírio para não ter de aceitá-lo; nenhum artifício seria capaz de me persuadir do contrário. Isso porque, na minha opinião, deixando de lado o enorme trabalho, por serem muito numerosas9 as religiosas, eu nunca gostei de nenhum cargo nem de muitas outras coisas, sempre tendo recusado quando me ofereciam, visto achar que aí havia perigo para a consciência. Assim, entoei louvores a Deus por não me achar no mosteiro. Escrevi a minhas amigas para que não votassem em mim.

8. Eu estava muito contente por não me achar em meio àquele alvoroço quando o Senhor me disse que de forma alguma deixasse de ir, pois, se eu de­sejava cruz, havia uma excelente à minha espera, que eu não deveria desprezar, devendo partir com ânimo, pois Ele me ajudaria, e sem demora. Sofri muito com isso e só chorava, pensando que a cruz seria ser prelada, algo que, como eu disse, não podia me convencer de nenhuma maneira que fosse bom para minha alma, nem considerava razoável tal coisa.

Contei-o ao meu confessor, que me mandou partir de imediato, pois claro estava ser uma oportunidade de maior perfeição, acrescentando que, como fazia grande calor e eu só precisava estar lá na hora das eleições, ficasse ainda uns dias para que a viagem não me fizesse mal; mas o Senhor, que tinha ordenado outra coisa, prevaleceu, pois era grande o desassossego que eu sentia, sofrendo ainda por não poder ter oração, além de sentir que faltava ao que o Senhor mandara, estando ali, ao bel-prazer e regalada, sem querer me oferecer para o trabalho. Eu julgava que por certo minhas promessas a Deus não passavam de palavras, que, podendo estar onde havia mais perfeição, não o fazia; que, se fosse preciso morrer, morresse! Além disso, a minha alma estava aflita, e o Senhor me tirava todo o prazer da oração.

Enfim, eu me encontrava em tal estado, e com um tormento tão grande, que supliquei à senhora que me fizesse a gentileza de deixar-me partir, visto que também o meu confessor, ao me ver assim, me dissera que eu devia ir, pois Deus o movia tal como a mim.

9. A senhora sentiu tanto a minha partida que me causou mais um sofrimento. Muito lhe custara obter licença do Provincial, depois de muito importuná--lo, para estar comigo. Considerei um enorme favor que ela me permitisse ir, levando-se em conta o que sentia. Ela, sendo muito temente a Deus e ouvindo de mim que podia prestar-Lhe um grande favor, fazendo por Ele muitas outras coisas, ao me deixar ir, além de ter recebido de mim a esperança de voltar a estar comigo outra vez, não criou empecilhos, embora muito sofresse.

10. Eu já não temia ir, porque entendia que era para maior perfeição e serviço de Deus. Com o contentamento que obtenho de contentá-Lo, venci o pesar de deixar aquela senhora, que eu via tão contristada, bem como outras pessoas a quem eu muito devia, especialmente meu confessor, que era da Companhia de Jesus,10 e com o qual eu me dava muito bem. Mas, quanto maiores as consolações que eu perdia pelo Senhor, tanto maior o prazer que tinha por perdê-las.

Eu não podia entender como era possível abrigar no peito sentimentos tão contrários: regozijar-me, consolar-me e alegrar-me com o que me deixava a alma pesarosa. É que, ali, eu estava consolada e em sossego, dispondo de tempo para muitas horas de oração, e via que me punha num fogo, já que o Senhor me dissera11 que uma grande cruz me esperava — se bem que nunca imaginei que ela fosse tão grande como mais tarde comprovei. E, no entanto, parti alegre, pronta para entrar logo na batalha, por ser essa a vontade do Senhor, que me dava a força, incutindo-a na minha fraqueza.

11. Eu não podia, repito, compreender o que ocorria comigo. Surgiu-me esta comparação: se possuo uma jóia ou coisa que me dá grande alegria e venho a saber que a deseja uma pessoa de quem gosto mais do que de mim e a quem quero contentar mais do que a mim mesma, dá-me grande prazer ficar sem o que tenho para satisfazer essa pessoa. E, como essa alegria de ver o seu prazer excede o meu próprio contentamento, desaparece o pesar que eu devia sentir com a falta da jóia ou coisa que amo e com a perda da satisfação que me dava. O mesmo ocorria naquela situação: embora desejasse sentir ao ver que deixava pessoas que muito sentiam afastar-se de mim, algo que, em outra situação, muito me afligiria, por eu ser naturalmente muito grata, agora, mesmo que quisesse ter pesar, eu não o podia.

12. Ter partido de imediato teve tal importância para o negócio desta bendita casa que não sei como ele teria sido concluído se eu me tivesse detido um único dia. Ó grandeza de Deus! Muitas vezes me espanto quando me lembro dessas coisas e vejo quão particularmente desejava Sua Majestade ajudar-me para que se estabelecesse este cantinho de Deus — pois assim o considero —, esta casa em que Sua Majestade se compraz, como certa vez me disse, quando eu estava em oração, ao falar que esta casa12 era para Ele um paraíso de delícias. Com efeito, Sua Majestade parece ter escolhido as almas que trouxe para cá, almas em cuja companhia vivo com uma confusão muito grande; porque eu não saberia desejá-las tão adequadas para vida de tamanha austeridade, pobreza e oração.

Essas religiosas suportam tudo com muita alegria e contentamento, achando-se cada uma indigna de merecer o lugar que ocupa. Isso ocorre especialmente com algumas que o Senhor tirou de muita vaidade e prazeres do mundo, onde poderiam estar felizes nos termos das leis da terra; Deus lhes deu contentamentos tão maiores aqui que se verifica com clareza que elas receberam cem por um daquilo que deixaram,13 e essas religiosas não se fartam de dar graças a Sua Majestade.

Outras foram transformadas pelo Senhor de bem para melhor. Às de pouca idade, Ele concede forças e conhecimento para que não possam desejar outra coisa e para que entendam que, mesmo estando ainda no mundo, vivem com muito maior descanso por estarem longe de todas as coisas da vida; às de mais idade, e com pouca saúde, Ele sempre concede vigor para que suportem as dificuldades e as penitências como todas as outras.

13. Ó Senhor meu, como mostrais que sois poderoso! Não é preciso buscar razões para o que quereis, porque, acima de toda razão natural, fazeis todas as coisas tão possíveis que levais a entender sem nenhuma dúvida que basta amar-Vos de verdade e abandonar com sinceridade tudo por Vós para que, Senhor meu, torneis tudo fácil. Cabe dizer neste ponto que fingis trabalho em Vossa lei; porque não vejo, Senhor, nem sei como é estreito o caminho que leva a Vós.14 Vejo que é caminho real, e não vereda; caminho pelo qual vai com segurança quem de verdade entra nele. Muito longe estão os recifes e despenhadeiros onde cair, porque as ocasiões também o estão. Senda, e senda ruim, e caminho difícil, considero ser o que de um lado tem um vale muito profundo onde cair e do outro um despenhadeiro. A um mero descuido, os que vão por aí caem e se despedaçam.

14. Quem Vos ama de verdade, Bem meu, vai seguro por um caminho amplo e real, longe do despenhadeiro, estrada na qual, ao primeiro tropeço, Vós, Senhor, dais a mão; não se perde, por uma queda e nem mesmo por muitas, quem tiver amor a Vós, e não às coisas do mundo. Quem assim é percorre o vale da humildade. Não posso entender o que temem as pessoas diante do caminho da perfeição. O Senhor, por quem é, nos mostra quão falsa é a segurança dos que seguem os costumes do mundo sem se darem conta dos manifestos perigos aí existentes, e que a verdadeira segurança está em fazer esforços para avançar no caminho de Deus. Ponhamos os olhos Nele e não tenhamos medo de que esse Sol de Justiça conheça ocaso, pois Ele não nos deixará andar nas trevas para a perdição se não O tivermos deixado antes.

15. Não se teme andar entre leões — parecendo que cada um quer levar um pouco —, leões que são as honras, deleites e contentamentos semelhantes do mundo, enquanto, no caminho da perfeição, o demônio infunde temor até de insetos. Mil vezes me espanto e dez mil vezes gostaria de chorar copiosamente e clamar a todos, tornando pública minha grande cegueira e maldade, para ajudar as pessoas de alguma maneira a abrirem os olhos. Que Aquele que pode, pela Sua bondade, abraça-lhes os olhos e não permita que os meus voltem a ficar cegos. Amém.

Capítulo 36

Prossegue no assunto comentado e conta como se concluiu e fundou o mosteiro do glorioso São José, narrando ainda as grandes contradições e perseguições que houve depois de as religiosas tomarem hábito, bem como os sofrimentos e tentações por que ela passou, revelando que de tudo o Senhor a fez sair vitoriosa para Sua glória e louvor.

1. Tendo partido daquela cidade,1 eu vinha muito contente pelo caminho, determinada a passar por tudo o que o Senhor quisesse com toda a vontade. Na mesma noite em que cheguei aqui, chegou o nosso despacho para o mosteiro com o Breve de Roma, o que espantou a mim e a todos os que sabiam que o Senhor tinha apressado a minha vinda, entendendo a grande necessidade disso e as circunstâncias em que Deus me trouxera, porque encontrei aqui o Bispo, o santo Frei Pedro de Alcântara e outro senhor, grande servo de Deus,2 em cuja casa esse santo homem se hospedava, por ser pessoa em que os servos de Deus achavam proteção e acolhimento.

2. Os dois conseguiram que o Bispo3 admitisse o mosteiro sob sua jurisdição, o que não foi pouco, porque o mosteiro era pobre, mas o Bispo era tão amigo de pessoas que via determinadas a servir ao Senhor que logo se afeiçoou à casa, favorecendo-a. A aprovação desse santo velho e o seu grande em­penho com uns e com outros para que nos ajudassem foram determinantes. Se eu não tivesse vindo naquele momento, como já disse, não sei como a casa teria sido fundada; porque esse santo homem esteve pouco tempo aqui, creio que por menos de oito dias, tendo-os passado muito enfermo. Há bem pouco tempo o Senhor o levou.4 Ao que parece, Sua Majestade o preservara até a conclusão desse negócio, pois há muito tempo — não sei bem, mas creio que há mais de dois anos — ele estava muito doente.

3. Tudo foi feito sob grande segredo, pois só assim seria possível, tanta era a oposição ao projeto, como vimos depois. Quis o Senhor que um dos meus cunhados5 adoecesse enquanto sua esposa estava ausente daqui. Diante de tamanha necessidade, deram-me licença para cuidar dele; assim, nada trans­pareceu, embora algumas pessoas não deixassem de suspeitar, sem contu­do acreditar de todo. Foi uma coisa admirável, pois a doença não durou mais do que o tempo necessário para o negócio. No momento em que ele precisava recuperar a saúde para que eu me desocupasse e a casa ficasse à disposição, o Senhor lha restituiu tão prontamente que o deixou assombrado.

4. Tive bastante trabalho para conseguir a aprovação de várias pessoas, com o enfermo e com os operários, para que a casa ficasse pronta logo e ti­vesse forma de mosteiro, pois faltava muito. E a minha companheira6 não estava aqui, pois nos pareceu melhor que estivesse ausente para dissimular mais o que se passava. Eu, por muitos motivos, via que o sucesso dependia da rapidez. Um desses motivos era o meu temor de que me mandassem voltar ao meu mosteiro.7 Foram tantos os problemas que tive que fiquei a pensar se não seria essa a cruz,8 embora me parecesse que ainda era pouco para ser a grande cruz que, pelo que me dissera o Senhor, eu haveria de suportar.

5. Por fim, estando tudo pronto, foi o Senhor servido que, no dia de São Bartolomeu, algumas religiosas tomassem hábito.9 Pôs-se o Santíssimo Sacramento, e o novo mosteiro do glorioso pai nosso São José foi fundado, cumpridas todas as formalidades requeridas e obtidas as devidas autorizações, no ano de 1562. Eu estava presente à tomada de hábito ao lado de duas outras monjas do nosso convento, que por acaso estavam fora da clausura.10

Como a casa em que se faz o mosteiro era a residência do meu cunhado (que, como eu disse,11 a tinha comprado para melhor disfarçar o empreendimento), eu estava ali com licença, e não fazia nada sem seguir a opinião de pessoas doutas, para não faltar aos deveres da obediência; essas pessoas me diziam que continuasse a trabalhar em prol do mosteiro, embora de maneira secreta e cautelosa para que os meus prelados não soubessem. Se não fizesse assim, a mínima imperfeição que me dissessem haver me faria deixar mil mos­teiros, e mais ainda um.

O certo é que, embora eu desejasse o mosteiro para afastar-me mais de tudo e cumprir a minha profissão e chamamento com maior perfeição e re­colhimento, meus desejos eram acompanhados por um desprendimento que me faria desistir de tudo, como o fiz da outra vez,12 caso percebesse que assim serviria melhor ao Senhor, e tudo com muita tranqüilidade e paz.

6. Para mim, foi como que antegozar a glória ver instalado o Santíssimo Sa­cramento e recebidas quatro órfãs pobres — porque não se exigia dote para aceitar candidatas13 —, todas elas grandes servas de Deus (pois desde o início era nossa intenção aceitar pessoas que, com o seu exemplo, servissem de estímu­lo à concretização do nosso intento de termos vida de grande perfeição e oração). Vi então realizada, de acordo com os meus desejos, uma obra que eu sabia ser para o serviço do Senhor e para a honra do hábito de sua gloriosa Mãe.

Deu-me também grande consolo ter feito o que Deus tanto me recomendara e ter dado a esta localidade mais uma igreja — até então inexistente —, dedicada ao meu glorioso pai São José; não que eu julgasse ter feito alguma coisa para isso, o que nunca me parecia nem parece (sempre entendo que era o Senhor quem o fazia, e aquilo que eu fazia tinha tantas imperfeições que eu devia antes me culpar do que merecer agradecimentos). Mas me alegrava muito ver que Sua Majestade me tomara por instrumento — embora eu fosse tão ruim — para obra tão grande. Assim, estive com tanto contentamento que estava quase fora de mim, absorta na oração.

7. Cerca de três ou quatro horas depois de tudo estar acabado, o demônio me moveu uma guerra espiritual que agora relato. Ele me sugeriu que o que eu fizera podia estar errado e talvez eu tivesse ido contra a obediência ao tê--lo realizado sem que o Provincial me ordenasse. Eu de fato achava que ele ficaria descontente vendo o convento sob a jurisdição do Ordinário, sem que lhe tivesse sido dado aviso prévio. Se bem que, por outro lado, eu também pensava que ele talvez não se importasse, visto que não tinha querido admitir a fundação e considerando que eu continuava sujeita a ele.

Veio-me também a dúvida: estariam contentes as religiosas que viviam em tanta clausura? Faltar-lhes-ia o que comer? Teria tudo sido um disparate? Por que eu me envolvera nisso se já tinha o meu mosteiro? Tudo o que o Senhor me ordenara e as muitas opiniões e contínuas orações que eu fazia há quase dois anos tinham fugido da minha memória como se não tivessem existido. Eu só me lembrava da minha própria opinião, e a fé e outras virtudes estavam em mim, então, suspensas, sem que eu tivesse força para fazer uso delas ou me defender de tantos golpes.

8. O demônio também me sugeria outras coisas: como eu podia me fechar em casa tão pequena e com tantas enfermidades, para sofrer tanta penitência, deixando uma casa tão grande e deleitosa onde sempre vivera contente e tinha muitas amigas, talvez não tendo aqui amigas que me agradassem tanto quanto as de lá? Teria eu me obrigado a muito, estando talvez desesperada, tendo caído num ardil preparado pelo demônio para me tirar a paz e o sossego, impedindo--me de ter oração e levando à perda da minha alma?

Essas e outras coisas o inimigo me apresentava ao mesmo tempo, não estando em minhas mãos pensar em outra coisa; ao lado disso, vinham-me aflição, obscuridade e trevas na alma, de uma maneira que não sei descrever. Ao me ver assim, pus-me diante do Santíssimo Sacramento, embora num estado em que não podia encomendar-me a Ele. Tinha a impressão de ter uma angústia semelhante à de quem agoniza. Não me atrevia a tratar disso com ninguém, ainda mais que nem tinha confessor designado.14

9. Valha-me Deus, que vida tão miserável! Não há contentamento seguro nem coisa que não mude. Há muito pouco tempo, eu não trocaria, a meu ver, a minha alegria por nenhuma outra da terra, e agora a mesma coisa que a causara me atormentava a tal ponto que eu não sabia o que fazer de mim. Quem dera considerássemos com cuidado as coisas da nossa vida, para ver pela experiência quão pouco se devem valorizar os contentamentos e descontentamentos dela.

O certo é que considero esta uma das mais duras provas por que passei na vida. Meu espírito parecia adivinhar os muitos padecimentos que me esperavam, embora nenhum pudesse ser tão grande quanto este, caso tivesse durado. O Senhor, no entanto, não permitiu que Sua pobre serva sofresse muito tempo; assim como o Seu socorro nunca me faltou nas tribulações, também me acudiu dessa vez, dando-me um pouco de luz para que eu visse ser isso coisa do demônio e para que pudesse entender a verdade e perceber que em tudo agia o demônio, desejoso de me aterrorizar com suas inverdades.

Desse modo, fui relembrando minhas grandes determinações de servir ao Senhor e os meus anseios de padecer por Ele; pensei que, se os queria cumprir, não devia procurar descanso, e que, se surgissem sofrimentos, estes eram merecidos e, se descontentamentos, que eu os tomasse como serviço a Deus, pois me serviriam de purgatório. Eu nada tinha a temer porque, se desejava padecimentos, estes bem me serviam, pois na maior contradição estava o maior lucro; e por que15 me haveria de faltar ânimo para servir a Quem eu tanto devia?

Com essas e outras considerações, e esforçando-me por me dominar, prometi diante do Santíssimo Sacramento fazer tudo o que pudesse para obter licença de ficar nesta casa,16 e, podendo fazê-lo em boa consciência, prometer clausura.

10. Tão logo fiz isso, o demônio fugiu num instante, deixando-me sossegada e contente, como desde então tenho estado. Tudo o que se observa nesta casa em termos de clausura, de penitência e de outras coisas é para mim deveras leve e suave; é tão grande a alegria que por vezes penso que não há coisa mais saborosa que eu pudesse escolher na terra. Não sei se se deve em parte a isso o fato de eu ter mais saúde do que nunca, ou se é o Senhor que quer — percebendo ser necessário e justo que eu faça o mesmo que todas — dar-me este consolo para que eu possa a tudo observar, se bem que com certo custo. Mas essa minha força causa espanto em todos os que conhecem as minhas enfermidades. Bendito seja Aquele que tudo dá e por cujo poder tudo é possível!17

11. Fiquei muito fatigada com essa batalha, mas rindo-me do demônio, pois vi com clareza ter sido obra sua. Creio que o Senhor o permitira, porque eu nunca soube nem por um momento o que era o descontentamento de ser monja18 em mais de vinte e oito anos, o que me permitiu compreender a grande graça que Ele me fizera naquilo, assim como tormento de que me livrara. Com aquilo, Ele também quisera que, se eu visse que alguma religiosa estivesse sofrendo o que eu padecera, não me espantasse, mas me apiedasse dela e a soubesse consolar.

Passado isso, eu queria, depois da refeição, descansar um pouco, porque a noite inteira quase não descansara nem tinha deixado, em algumas outras noites, de ter sofrimentos e cuidados, tendo passado todos os dias cheia de fadiga. Contudo, quando souberam no meu mosteiro e na cidade de todo o ocorrido, surgiu um grande alvoroço pelas causas a que já me referi,19 que não deixavam de ter fundamento. A prelada20 logo me ordenou que voltasse imediatamente. Diante dessa ordem, deixei minhas monjas muito pesarosas e logo parti. Bem vi que me esperavam não poucos sofrimentos; mas, como o que estava feito feito estava, pouco me incomodei.

Rezei, suplicando ao Senhor que me favorecesse, e pedindo a meu pai São José que me trouxesse de novo à sua casa, oferecendo a Deus o que ia sofrer e, muito satisfeita por me terem apresentado ocasião de por Ele padecer e poder servi-Lo, fui com a certeza de que me lançariam no cárcere.21 Isso, pensava eu, me traria muito contentamento, pois não precisaria ter de falar com ninguém e descansaria um pouco em solidão, algo de que bem necessitava, pois estava fatigada de falar com tanta gente.

12. Chegando lá, dei minhas explicações à prelada, e esta se aplacou um pouco. Chamaram o Provincial para julgar o meu caso. Tendo ele chegado, fui inquirida, tendo tido grande alegria por padecer um pouquinho pelo Senhor.22 Eu achava que nesse caso em nada ofendera Sua Majestade nem a Ordem, tendo procurado engrandecê-los com todas as minhas forças, morrendo de bom grado por isso, pois todo o meu desejo era que se cumprisse a Regra com toda a perfeição.

Lembrei-me do julgamento de Cristo, vendo que o meu nada era. Confessei minha culpa23 com grande ênfase, pois culpada me considerava quem não soubesse todas as razões do meu procedimento. Depois de me ter feito uma grande repreensão — embora não com o rigor que o delito merecia nem de acordo com o que muitos diziam ao Provincial —, eu não me quis desculpar, pois ia determinada a isso, pedindo antes que ele me perdoasse, me castigasse e não ficasse descontente comigo.

13. Em algumas coisas eu tinha certeza de que me condenavam sem culpa de minha parte, porque me diziam que eu tinha feito aquilo para me exaltar, para ser louvada pelo povo e coisas semelhantes. Em outras, porém, sabia que diziam a verdade, pois alegavam que eu era pior que outras e que, não tendo seguido perfeitamente a observância do meu mosteiro, como podia pensar em guardá-la em outro com mais rigor? Isso escandalizava o povo e era a introdução de novidades. Nada disso me perturbava ou causava pesar, embora eu revelasse tê-los, para que não pensassem que pouco se me dava aquilo que me era dito. Por fim, recebi ordem de, diante das monjas, justificar a minha ação, o que fui obrigada a fazer.

14. Como tinha paz interior e contava com a ajuda do Senhor, expliquei--me de uma maneira que nem o Provincial nem as pessoas ali presentes en­con­traram motivo para me condenar. Quando fiquei só com ele, fui mais clara, e ele ficou muito satisfeito, prometendo-me que, se o negócio fosse adiante, tão logo se restabelecesse a paz na cidade, me concederia licença para voltar ao novo mosteiro. E o Provincial tinha razão, pois a balbúrdia que envolvia to­da a cidade era, como agora direi, enorme.

15. Dois ou três dias depois, reuniram-se alguns regedores com o corregedor e alguns membros do Cabido, resolvendo por unanimidade que de nenhuma maneira se devia tolerar o mosteiro, pois daí adviriam claros danos ao bem público, devendo-se retirar o Santíssimo Sacramento. Disseram que absolutamente não permitiriam a fundação. Reuniram todas as Ordens para dar um parecer, vindo de cada uma dois eruditos; uns se calavam e outros condenavam. Concluíram por fim que se desfizesse imediatamente a casa.

Só um Presentado da Ordem de São Domingos,24 embora contrário — não ao mosteiro, mas à total pobreza —, disse não ser a casa algo que se desfizesse sem mais nem menos, que se ponderasse bem, pois havia tempo para tudo. Afirmou que o caso era da alçada do Bispo, e outras coisas desse gênero, que foram muito proveitosas, pois era tamanha a fúria que foi um milagre não porem logo mãos à obra. É que, na verdade, o convento havia de ser mantido; o Senhor desejava a sua fundação, e pouco podiam todos contra a Sua vontade. Os que se opunham a nós apresentavam as suas razões, movidos por bom zelo e, sem ofenderem a Deus, faziam-me padecer e infligiam sofrimen­tos a todas as pessoas que nos favoreciam. Estas eram poucas, e sofreram muita perseguição.

16. O alvoroço do povo era tanto que não se falava em outra coisa; todos se dedicavam a me condenar, procurando ora o Provincial, ora o meu mosteiro. Eu em nada me afligia com o que diziam contra mim; era como se não o dissessem. O meu temor era que desfizessem a fundação. Isso me deixava com imenso pesar, o mesmo ocorrendo ao ver que as pessoas que me auxiliavam perdiam o crédito e passavam por muitas provações. Quanto ao que diziam contra mim, creio poder afirmar que até me alegrava com isso. E se eu tivesse tido fé bastante, nenhuma alteração teria sentido. Mas qualquer carência numa virtude é suficiente para que todas as outras fiquem entorpecidas.

Assim, fiquei muito magoada nos dois dias em que se reuniram na cidade as juntas de que falei. Estando bem angustiada, disse-me o Senhor: Não sabes que sou poderoso? Que temes? E me assegurou que o convento não se desfaria. Isso me deixou muito consolada. O povo da cidade enviou ao Conselho Real uma informação escrita, vindo deste a ordem de que fosse feito um relato de todo o ocorrido.

17. Começou aqui um grande pleito; porque os representantes da cidade foram à Corte, e fomos obrigados a enviar representantes do mosteiro, mas não havia dinheiro nem eu sabia como agir. Pela Providência do Senhor, meu Padre Provincial nunca me ordenara que se deixasse de tratar do negócio; sendo muito amigo de toda virtude, embora não ajudasse, não queria se opor. Mas não me permitiu, enquanto não tivesse uma idéia clara dos acontecimentos, vir para cá. As servas de Deus estavam sós e faziam mais com suas orações do que eu nas negociações, embora tivesse de empregar bastante diligência.

Às vezes, parecia que tudo falhava, especialmente um dia antes da chegada do Provincial, pois a Priora me mandou não me envolver em nada, o que significava abandonar tudo. Recorri a Deus, dizendo-Lhe: “Senhor, essa casa não é minha; foi feita por Vós. Agora que já não há quem trate dos negócios, fazei-o Vossa Majestade”. Eu estava tão sossegada e sem pesar que parecia ter o mundo inteiro negociando por mim, razão por que considerei o sucesso certo.

18. Um grande servo de Deus, um sacerdote25 que sempre me ajudara, amigo de toda perfeição, foi à Corte tratar do negócio, tendo feito muitos esforços ali. E o santo fidalgo, que já mencionei, também fazia muito, favorecendo-nos de todas as maneiras. Ele teve muitos sofrimentos e perseguições, e, em tudo, eu sempre o tinha e tenho como um pai.

O Senhor infundia tanto fervor nos que nos ajudavam que eles consideravam a nossa causa como se fosse um assunto que lhes interessasse de perto, algo de que dependessem a sua vida e a sua honra — e isso só por acharem que se tratava de servir ao Senhor. Pareceu-me claro que Sua Majestade ajudava o Mestre de que falei,26 que também nos defendeu muito, tendo obtido do Bispo a nomeação como seu representante numa grande junta realizada para tratar do assunto, na qual esteve só contra todos. No final, ele os aplacou sugerindo-lhes certos meios que foram suficientes para os entreter, embora nenhum bastasse para que eles não voltassem a dar a vida, por assim dizer, pela destruição do mosteiro.

O servo de Deus a que me referi foi quem deu os hábitos às noviças e instalou o Santíssimo Sacramento, sendo por isso alvo de grande perseguição. Essa tormenta durou quase meio ano, e seria tomar muito tempo relatar aqui com minúcias as grandes provações que passamos.

19. Admirava-me o fato de o demônio lutar com tanto furor contra umas mulherzinhas, sendo estranho que os nossos opositores considerassem capazes de causar muitos danos à cidade só doze mulheres e a priora, que não devem ser mais, e de vida tão austera; o prejuízo ou erro, se houvesse, atingiria a elas mesmas. Mas dizer que o mosteiro poderia prejudicar a cidade me parecia um absurdo, o que não os impedia de, com boa consciência, encontrar inconvenientes para lhe fazerem oposição.

Por fim, disseram que, se o convento tivesse renda, tolerariam a fundação e permitiriam a sua continuidade. Eu estava tão cansada de ver, mais que o meu, o sofrimento de todos os que me apoiavam, que não me pareceu ruim admitir que houvesse renda até que tudo sossegasse, para mais tarde renunciar a ela. Outras vezes, sendo ruim e imperfeita, eu chegava a imaginar que talvez fosse essa a vontade do Senhor, pois, sem aceitar essa proposta, não poderíamos ir adiante, inclinando-me a fazer o acordo.

20. Estando em oração, na noite anterior ao dia em que se trataria de tudo, e estando o acordo27 prestes a ser firmado, disse-me o Senhor que não o aceitas­se, porque, se começássemos a ter renda, não nos permitiriam mais tarde deixar de tê-la, ao lado de outras coisas. Na mesma noite, apareceu-me o santo Frei Pedro de Alcântara, que já era falecido e que, antes de morrer, me escrevera28 — ao saber da grande contradição e perseguição movidas contra nós — dizendo que se alegrava por ver a fundação provocar tanta oposição; para ele, isso era sinal de que no mosteiro muito se serviria ao Senhor, já que o demônio se empenhava tanto em nos combater. Disse também que de modo algum eu concordasse em ter renda, renovando na carta, por duas ou três vezes, os mesmos argumentos, prometendo-me que, se eu assim fizesse, tudo se realizaria de acordo com a minha vontade.

Eu já o tinha visto duas outras vezes depois de sua morte, testemunhando sua grande glória; por isso, a visão não me causou temor, e sim muito contentamento. Porque ele sempre aparecia com o corpo glorificado, cheio de júbilo, alegrando-me muito vê-lo. Lembro-me de que ele me disse na primeira vez em que o vi, entre outras coisas, que muito se deleitava, que feliz penitência fora a que tinha feito, pois grande recompensa havia alcançado.

21. Como já falei, creio eu, a respeito disso,29 direi apenas que nesta última ele mostrou rigor, dizendo-me apenas que de modo algum eu aceitasse a renda, perguntando-me por que eu não queria seguir o seu conselho. Em seguida, desapareceu. Fiquei atônita e, no dia seguinte, contei o ocorrido ao fidalgo,30 a quem eu para tudo recorria por ser ele tão dedicado. Disse-lhe que não aceitasse de maneira alguma ter renda, mas que deixasse ir adiante o pleito. Ele, que quanto a isso tinha muito mais firmeza do que eu, alegrou-se muito, dizendo--me mais tarde que com muita má vontade estivera tratando do acordo.

22. Depois, outra pessoa,31 grande serva de Deus, movida por bom zelo, propôs, quando o negócio ia bem encaminhado, que se entregasse a questão aos eruditos. Isso me deixou muito desassossegada, porque alguns dos que me ajudavam concordaram. De todas as ciladas do demônio, foi essa a mais indigesta. Mas em tudo contei com a ajuda do Senhor. Narrando assim de maneira sumária, não é possível explicar bem o que ocorreu nos dois anos que separaram o começo desta casa da sua conclusão. A primeira e a última parte do segundo ano foram as épocas mais penosas.

23. Estando a cidade um pouco mais calma, o padre dominicano Presentado, que nos auxiliava, foi muito astucioso em nosso favor. Embora estivesse fora, o Senhor o fez retornar a tempo de nos beneficiar muito, parecendo que Sua Majestade só o fez voltar com esse objetivo, pois ele me disse depois que não tivera motivos para vir, tendo sabido por acaso o que ocorria. Ele permaneceu aqui o tempo necessário. Quando se foi, conseguiu do nosso Provincial licença para que eu viesse a esta casa, ao lado de algumas religiosas — parecendo quase impossível ter sido conseguida tão depressa a permissão —, a fim de iniciar a reza do Ofício divino e ensinar às que lá estavam. O dia em que chegamos foi um enorme consolo para mim.

24. Quando fazia oração na igreja antes de entrar no mosteiro e estando quase em arroubo, vi Cristo que, com grande amor, me recebia e punha em mim uma coroa, agradecendo-me pelo que eu fizera pela Sua Mãe.

De outra vez, quando estavam todas no coro em oração depois das Completas, vi Nossa Senhora cercada de glória com um manto branco, debaixo do qual parecia amparar todas nós. Percebi o elevado grau de glória que o Senhor daria às religiosas desta casa.

25. Quando se começou a rezar o Ofício, o povo começou a ter grande devoção com esta casa. Recebemos mais noviças, e o Senhor começou a mover os que mais nos tinham perseguido para que muito nos favorecessem e dessem esmolas. Assim, foram aprovando o que tanto haviam reprovado e, aos poucos, desistiram do pleito, dizendo-se convencidos de ser a casa obra de Deus, já que, com tanta oposição, Sua Majestade desejara que fosse adiante.

No momento, ninguém julga que não foi acertado estabelecer o convento, estando todos muito solícitos em tudo nos fornecer, sem esmolar nem pedir a ninguém, pois o Senhor os desperta para que venham em nosso auxílio. Assim, vivemos sem que nos falte o necessário, e espero no Senhor que sempre possa ser dessa maneira. Como são poucas as religiosas, estou segura de que, se fizerem o que devem, como Sua Majestade hoje lhes dá a graça para fazer, Ele não lhes faltará, nem elas terão necessidade de se tornar um peso nem de importunar ninguém. Deus vai velar por elas como tem feito até agora.

26. É para mim um grande consolo estar aqui com almas tão desapegadas. Sua preocupação é encontrar meios de avançar no serviço de Deus. A solidão é o seu consolo, e elas não pensam em ver ninguém a não ser para mais se inflamarem no amor do seu Esposo; até o contato com os parentes lhes é penoso. Por isso, não vem a esta casa quem não está voltado para o serviço de Deus, pois nela não encontra consolo nem contenta as religiosas. As monjas só sabem falar de Deus, razão por que só as entende e é entendido quem fala a mesma linguagem. Guardamos a Regra de Nossa Senhora do Carmo, sem mitigação, tal como a redigiu Frei Hugo, Cardeal de Santa Sabina, em 1248, no quinto ano do Pontificado do Papa Inocêncio IV.32

27. Parece-me serão bem empregados todos os problemas que enfrentamos. Agora, ainda que haja algum rigor, porque nunca se come carne a não ser em caso de necessidade, praticando-se o jejum de oito meses e outras coisas pre­sentes na Regra primitiva, as irmãs tudo acham pouco, dedicando--se a outras austeridades que julgamos necessárias para cumprir a Regra com mais per­feição. E espero no Senhor que vá muito adiante o que começamos, como Sua Majestade me prometeu.

28. A outra casa que a beata de que falei procurava fundar33 também re­cebeu o favor do Senhor, estando estabelecida em Alcalá. Também não lhe faltou muita oposição nem ela deixou de passar por grandes provações. Sei que se observa nela todo o rigor dessa primeira Regra nossa. Queira o Senhor que tudo seja para a Sua glória e louvor, e para a honra da gloriosa Virgem Maria, cujo hábito trazemos, amém.

29. Creio que vossa mercê34 ficará enfadado com o longo relato que fiz deste mosteiro. E olhe que ele é muito sucinto diante dos muitos padecimentos envolvidos em sua fundação e das muitas maravilhas que o Senhor tem operado, havendo de tudo isso muitas testemunhas que podem afirmá-lo sob juramento. Assim, rogo a vossa mercê, pelo amor de Deus, que, se re­solver lançar fora o que está escrito agora, ao menos guarde a parte referente ao mosteiro e, depois da minha morte, entregue-a às irmãs que aqui es­tiverem, pois isso muito animará as monjas vindouras a servir a Deus e a pro­curar que a perfeição incial não só não decaia como avance, ao verem o muito que Sua Majestade se empenhou em estabelecer a casa por meio de uma criatura tão ruim e baixa como eu.

E, como o Senhor quis favorecer tão particularmente esta fundação, creio que fará mal e será muito castigada por Deus aquela que começar a relaxar na perfeição por Ele estabelecida aqui desde o início, favorecendo-nos para que o façamos com tanta suavidade. Pois se vê muito bem que é tolerável e que é possível observar as práticas com tranqüilidade. A casa proporciona grande facilidade para que vivam em paz as que quiserem fruir a sós de Cristo, seu Esposo. E isso é o que elas sempre devem querer: viver a sós apenas com Ele. E que não sejam mais de treze. Pelas muitas opiniões que ouço, é isso que convém; sei por experiência que, para se viver com o espírito com que aqui se vive, só de esmolas e sem ter de pedir, não podem ser em maior número.

Nesse aspecto, creiam sempre mais em quem, com grandes sofrimentos e à custa da oração de muitas pessoas, procurou o que seria melhor. O grande contentamento e alegria e a pouca dificuldade que vemos terem todas — nestes anos e desde que estamos nesta casa —, e com muito mais saúde do que costumavam ter, mostram ser isso o mais conveniente. Quem considerar áspero o nosso modo de vida deve culpar a sua falta de espírito, e não o que se observa aqui (porque pessoas delicadas e não saudáveis, tendo o espírito, podem suportá-lo com muita suavidade), devendo ir para outro convento, onde se salvará de acordo com o espírito que o anima.

Capítulo 37

Trata dos efeitos que nela ficavam quando o Senhor lhe concedia alguma graça. Junta a isso uma boa doutrina. Diz que devemos estimar e lutar pela aquisição de mais algum grau de glória e que, pelos bens perpétuos, não nos detenhamos ante dificuldade alguma.

1. Custa-me ter de falar de outras graças que o Senhor me tem dado, além daquelas a que já me referi; e mesmo estas últimas são demasiadas para que se possa crer que Ele as concedeu a pessoa tão ruim. Mas, obedecendo ao Senhor que o ordenou e a vossas mercês,1 direi algumas coisas para a glória de Deus. Permita Sua Majestade que alguma alma se beneficie ao ver que, se a alguém tão miserável o Senhor quis favorecer dessa maneira, quanto mais Ele não fará a quem O servir de verdade, animando-se todos a contentar Sua Majestade, que já nesta vida dá tais provas de amor.

2. Em primeiro lugar, deve-se entender que, nesses favores que Deus faz à alma, há mais e menos glória; porque, em algumas visões, a glória, o prazer e a consolação excedem tanto os que o Senhor dá em outras que me espanto com tanta diferença entre deleites ainda nesta vida. Pois acontece de diferirem tanto os gostos e regalos que Deus dá numa visão ou num arroubo que parece não ser possível haver aqui na terra mais a desejar; assim, a alma não o deseja, nem pediria maior contentamento. É verdade que, depois que o Senhor me fez compreender quão grande é a diferença existente no céu entre o que gozam uns e o que gozam outros, bem vejo que também aqui Ele, quando quer, não põe limites nos seus dons.

Assim, eu não queria que houvesse limites no meu serviço a Sua Majestade, desejando empenhar nisso toda a minha vida, todas as minhas forças e a minha saúde, para não perder, por minha culpa, nem um pouco de maior felicidade. Dessa maneira, digo: se me perguntassem se quero ficar na terra até o fim do mundo com todos os sofrimentos nela existentes e depois me elevar um pouco mais na glória, ou se prefiro, sem nenhum padecimento, ir já gozar uma glória um pouco mais baixa, eu com boa vontade tudo padeceria para fruir um pouco mais de compreensão da grandeza de Deus, pois percebo que quem mais O entende mais O ama e mais O louva.

3. Não digo que não me satisfaria nem me consideraria venturosa por estar no céu, ainda que fosse no último lugar, porque, diante do que me fora pre­parado no inferno, o Senhor já me faria nisso grande misericórdia, e queira Sua Majestade que eu vá para o Seu reino e que Ele esqueça meus grandes pecados! Digo sim que, embora muito me custasse, eu não queria, se pudesse e se o Senhor me desse o favor de muito trabalhar, perder nada por minha culpa. Pobre de mim que, com tantas culpas, tinha perdido tudo!

4. Deve-se observar também que, a cada graça que o Senhor me concedia, de visão ou revelação, a minha alma obtinha algum grande benefício que, em algumas visões, era imenso. Quando vi Cristo, imprimiu-se em mim Sua grandíssima formosura, que ainda hoje está presente; e, para isso, bastava uma única vez, quando são tantas as vezes em que o Senhor me concede esse favor! Muito lucrei com isso: eu tinha uma enorme falta que muitos danos me causou; quando começava a ver que uma pessoa gostava de mim e tinha afinidade com ela, eu passava a ter tanta afeição que ocupava grande parte do tempo pensando nela. Eu não fazia com a intenção de ofender a Deus, mas gostava de vê-la e de pensar nela, bem como nas suas boas qualidades. Isso era uma coisa tão prejudicial que a minha alma muito perdia com ela.

Depois de contemplar a grande beleza do Senhor, nunca mais vi alguém que, comparado a Ele, me parecesse formoso ou me ocupasse o espírito. Basta--me voltar um pouco os olhos para a imagem que guardo na alma para adquirir uma liberdade que, desde então, me faz ter asco de tudo o que vejo; porque nada faz par com as excelências e graças que vi no Senhor. Não há saber nem prazer que eu considere dignos de estima diante do ouvir uma única palavra dita por aqueles lábios divinos — e com que freqüência as tenho ouvido! Considero impossível — desde que o Senhor, pelos meus pecados, não permita que essa memória se apague — que alguém possa me ocupar o pensamento; basta-me lembrar um pouco deste Senhor para disso ficar livre.

5. Aconteceu-me demonstrar amizade por algum confessor; porque, como os considero verdadeiros representantes de Deus, eu me sentia segura. Além disso, creio que é a eles que mais dedico amizade, pois sempre estimo muito os que me dirigem a alma. Eles, sendo tementes a Deus e servos Seus, receavam que eu me apegasse em demasia a eles, embora santamente, e mostravam desagrado. Isso ocorreu depois de eu passar a estar sujeita a obedecer-lhes, porque antes não tinha tanto afeto por eles. Eu ria comigo mesma ao ver como eles se enganavam, se bem que nem sempre lhes dizia com clareza o ponto até o qual eu me sentia e estava desprendida de tudo. Mas os tranqüilizava, e eles, depois de um maior contato comigo, viam quantas graças eu devia ao Senhor, deixando de lado essas suspeitas, que aliás só se manifestavam no princípio.

Vendo o Senhor e falando com Ele com tanta freqüência, vi brotar em mim um amor muito maior por Ele e uma enorme confiança. Eu percebia que, embora fosse Deus, era Homem, alguém que não se espanta com as fraquezas dos homens, que compreende a nossa vil natureza, sujeita a tantas quedas por causa do primeiro pecado, que Ele viera reparar. Mesmo sendo Ele Senhor, posso tratá-Lo como um amigo, pois Ele não é como os que temos na terra por senhores, que põem todo o seu poderio em manifestações exteriores: marcam horas para que as pessoas lhes falem e determinam quem lhes pode falar. Se quem tem com eles algum negócio é um pobrezinho, mais rodeios, favores e sofrimentos são necessários para que deles se aproximem.

E se se quiser falar com o Rei? Nesse caso, é proibida a entrada de quem é pobre e sem brasões, não havendo alternativa, senão recorrer aos mais íntimos, que por certo não são pessoas que estão acima deste mundo, pois estas falam verdades, não devem nem temem, não são feitas para o palácio. Neste, isso não tem uso, devendo-se calar o que parecer mau, e ninguém sequer se atreve a pensar que algo é mau para não ser desfavorecido.

6. Ó Rei da glória e Senhor de todos os reis, Vosso reino não é uma ar­mação de pauzinhos, pois não tem fim! Não se precisa de terceiros para chegar a Vós! Basta perceber Vossa pessoa para logo saber que sois o único a merecer ser chama­do de Senhor, pela majestade que mostrais. Não são precisos acompanhantes nem guardas para que se saiba que sois Rei. Aqui na terra, estando só, um rei não é reconhecido como tal, necessitando de todo um aparato exterior para que isso aconteça, pois do contrário ninguém o teria por nada. Isso acontece porque não vem dele a aparência de poderoso, pois a sua autoridade vem de outros.

Ó Senhor meu! Ó Rei meu! Quem poderia descrever agora Vossa Majestade! Não se pode deixar de ver que sois Imperador, por serdes Vós quem sois. Ver Vossa majestade causa assombro; e mais assombra, Senhor meu, ver ao lado dela Vossa humildade e o amor que demonstrais por alguém como eu. Tão logo perdemos o primeiro espanto e temor de ver a Vossa Majestade, de tudo podemos falar Convosco como quisermos, embora nos fique um temor ainda maior de não mais Vos ofender. Isso, porém, não vem do medo do castigo, Senhor meu, pois este nada importa diante do mal que é Vos perder!

7. Esses são os benefícios dessa visão, sem falar de outros grandes efeitos que ela deixa na alma. Quando esta está iluminada, logo sabe se recebe uma graça de Deus pelos benefícios que dela advêm; porque, como eu já disse,2 às vezes o Senhor quer que fiquemos em trevas, sem ver a luz, não sendo pois de admirar que quem, como eu, se vê tão sem virtudes revele temor. Há pouco tempo, aconteceu-me passar oito dias com a impressão de não haver em mim, nem poder haver, conhecimento da minha dívida para com Deus nem recordação das Suas graças.

Fiquei com a alma tão insensível e absorta não sei em quê, nem como — não com maus pensamentos, mas incapaz de voltar-se para os bons —, que ria de mim mesma e me alegrava ao ver a baixeza de uma alma quando Deus não age continuamente nela. A alma, é verdade, percebe que não está sem Ele, pois o que passa não equivale aos grandes sofrimentos que tenho algumas vezes, como já falei.3 Mas, embora lance lenha e faça o pouco que pode, ela não consegue atear o fogo do amor de Deus. Pela grande misericórdia divina, ainda há alguma fumaça para que a alma entenda não estar a chama de todo apagada. Contudo, só o Senhor pode voltar a acendê-la.

Nesse caso, ainda que a alma se mate de soprar e de arrumar a lenha, parece que tudo abafa o fogo ainda mais. Acredito que o melhor é conformar--se de vez com o fato de nada poder por si só e dedicar-se a outras coisas meritórias, como já aconselhei.4 Talvez o Senhor lhe esteja tirando a oração para que ela se ocupe dessas coisas e venha a saber, por experiência, quão pouco é capaz de fazer.

8. O certo é que hoje me consolei com o Senhor, tendo tido o atrevimento de me queixar de Sua Majestade, dizendo-Lhe: “Como, Deus meu, não é suficiente que me mantenhais nesta vida miserável e que eu, por amor a Vós, passe por isso e deseje viver onde tudo são empecilhos para fruir de Vós, tendo de comer, dormir, tratar de negócios e falar com as pessoas? Bem sabeis, Senhor meu, que isso me causa imenso tormento, que padeço por Vos amar; e, no entanto, nos poucos momentos que me restam para me regozijar Convosco, Vós vos escondeis de mim. Como conciliar isso com a Vossa misericórdia? Como pode suportá-lo o amor que me tendes? Creio, Senhor, que se eu pudesse esconder-me de Vós como Vos escondeis de mim, não o consentiríeis, dado o amor que eu penso e creio que tendes por mim. Vós, porém, estais comigo e sempre me vedes… Isso não pode, pois, ser assim, Senhor meu! Eu Vos suplico que reconheçais ser isto magoar aquela que tanto Vos ama.”

9. Aconteceu-me dizer essas e outras coisas, sempre me recordando quão suave era o lugar que estava preparado para mim no inferno diante do que mereço. Mas, por vezes, o amor tanto me desatina que nem sei quem sou e, em sã consciência, faço essas queixas — e o Senhor tudo suporta. Louvado seja tão bom Rei! Que seria de nós se dirigíssemos aos reis da terra semelhantes atrevimentos? Quanto ao rei, não me espanta que não ousemos falar-lhe, pois lhe devemos reverência, bem como aos senhores principescos. Mas o mundo está de tal maneira que não basta uma vida para aprender as etiquetas, novidades e modos de polidez, se é que se quer usar uma parte dela para servir a Deus.

Diante do que se passa, eu me benzo de admiração. Para falar a verdade, quando me encerrei aqui, eu já não sabia lidar bem com o mundo. Leva-se a mal o mínimo descuido em não se tratar as pessoas de maneira muito superior ao que merecem. Tem-se isso por afronta tão grave que é necessário dar satisfações e justificar a intenção quando se age inadvertidamente. E ainda é preciso pedir a Deus que as pessoas as aceitem!

10. Repito que eu por certo não sabia viver, chegando a minha pobre alma a se cansar. De um lado, ela vê que lhe ordenam ter sempre o pensamento ocupado em Deus, devendo mantê-lo Nele para se livrar de muitos perigos. Por outro lado, percebe que não pode se descuidar das coisas do mundo, para não correr o risco de ofender os que têm sua honra posta em melindres. Isso me deixava com muita fadiga, e eu nunca acabava de dar satisfações, já que não podia, por mais que o tentasse, deixar de cometer muitas faltas nessas coisas que, no mundo, são consideradas muito importantes.

E nas Religiões — onde seria justo sermos desculpadas nesses casos —, será verdade que há dispensa quanto a isso? Não, pois dizem que os conventos devem ser lugar de boa educação, e inclusive do seu ensino. O certo é que não posso entender isso. Fico a imaginar se algum santo que disse que os mosteiros deviam ser escola dos que quisessem ser cortesãos do céu não teve as suas palavras deturpadas. Pois não sei como alguém que, por justiça, deve se ocupar continuamente em contentar a Deus e desdenhar o mundo possa se dedicar tanto a agradar aos que nele vivem em coisas tão sujeitas a mudança. Se ao menos fosse possível aprender de uma vez, muito bem; mas, até para o cabeçalho das cartas, já é preciso que haja, por assim dizer, cátedra onde se ensine o que se deve fazer. Porque, quanto a isso, ora se deixa papel de um lado, ora do outro, e, a quem se devia chamar magnífico, deve-se tratar agora por excelência.5

11. Não sei onde isso vai parar, porque ainda não tenho cinqüenta anos6 e, nos que vivi, presenciei tantas mudanças que já não sei viver. O que haverão, pois, de fazer os que nascem agora e viverem muito? Por certo me dão pena as pessoas espirituais que, por algum santo motivo, são obrigadas a viver no mundo, por ser isso uma terrível cruz. Se todas elas pudessem combinar fingir-se de ignorantes e fazer com que os outros as considerassem assim nessas ciências, de muito sofrimento se livrariam.

12. Vejo agora em que tolices me envolvi! Para discorrer sobre as grandezas de Deus, desandei a falar das baixezas do mundo. Pois, se o Senhor me fez o favor de me afastar dele, quero deixá-lo inteiramente; que lidem com ele aqueles que tanto se esforçam para sustentar essas ninharias. Queira Deus que na outra vida, que é imutável, não tenhamos de pagar por elas um alto preço. Amém!

Capítulo 38

Trata de alguns favores que o Senhor lhe fez ao revelar-lhe alguns segredos do céu. Narra outras grandes visões e revelações que Sua Majestade lhe concedeu. Relaciona os efeitos que isso produzia nela e o grande proveito daí resultante para sua alma.

1. Estando uma noite tão doente que queria ser dispensada da oração, peguei um rosário para me ocupar vocalmente, procurando não recolher o intelecto, embora estivesse retirada num oratório. Mas, quando o Senhor quer, pouco valem esses esforços. Mantive-me assim por algum tempo, vindo-me um arroubo de espírito de tamanho ímpeto que não tive como resistir--lhe. Tive a impressão de estar no céu, tendo visto ali, em primeiro lugar, meu pai e minha mãe. E vi coisas tão sublimes — num espaço de tempo breve como o de rezar uma Ave-Maria — que fiquei bem fora de mim, considerando aquilo uma graça grande demais para mim.

Não posso garantir que o tempo tenha sido tão breve; talvez fosse maior, mas a minha impressão era de ser muito pouco. Embora achasse que não, receei que fosse alguma ilusão. Não sabia o que fazer, pois tinha vergonha de levar isso ao meu confessor. Ao que parece, não por humildade, mas por julgar que ele zombaria de mim, dizendo: temos então um São Paulo ou São Jerônimo1 para ver coisas do céu! Justamente por terem esses gloriosos santos passado por coisas assim, era maior ainda o meu temor, e eu só fazia chorar muito, pois achava ser tudo um disparate. Por fim, se bem que muito o sentisse, procurei o confessor, pois jamais ousei omitir alguma coisa, por mais que sofresse em dizê-la, devido ao grande medo de ser enganada. Ele, vendo-me tão aflita, muito me consolou, dizendo-me boas palavras que me tiraram toda a angústia.

2. Com o passar do tempo, o Senhor foi me mostrando mais segredos, o que ainda faz algumas vezes. A alma não pode de maneira alguma ver mais do que lhe é representado, e eu só via, de cada vez, o que Deus queria me mostrar. Porém, via tanto que a menor parcela seria suficiente para deslumbrar e beneficiar muito a alma, levando-a a pouco estimar e considerar as coisas da vida. Eu gostaria de poder explicar um pouquinho do que percebia nessas revelações, mas, ao imaginar como fazê-lo, admito ser impossível.

Só a diferença entre a luz que vemos e a que nos é apresentada nas visões, sendo tudo luz, impede a comparação, pois mesmo o clarão do sol parece apa­­gado diante do fulgor que há ali. Em outras palavras, a imaginação, por mais sutil que seja, não consegue pintar nem esboçar aquela luz, nem coisa alguma das que o Senhor me apresentava, causando-me uma felicidade cujo caráter su­blime está além da descrição. Nesses momentos, todos os sentidos se regozijam em grau tão alto e com tamanha suavidade que as minhas palavras jamais poderiam fazer-lhes jus, razão por que prefiro me calar.

3. Certa feita, fiquei nesse estado por mais de uma hora, tendo o Senhor me mostrado coisas admiráveis, dando-me a impressão de não Se afastar de mim. Ele me disse: Vê, filha, o que perdem os que são contra Mim; não dei­xes de lhes dizer isto. Ó Senhor meu, quão pouco aproveitam minhas palavras aqueles que estão cegos diante das Vossas obras se Vossa Majestade não lhes dá luz! Algumas pessoas que a receberam de Vós muito se beneficiam por conhecer Vossas grandezas; mas, como as vêem, Senhor meu, manifestas em pessoa tão ruim e miserável, é um prodígio enorme que alguém tenha acreditado em mim.

Bendito seja o Vosso nome e bendita a Vossa misericórdia, pois ao menos eu constato em minha alma notória melhora. Ela deseja ficar sempre ali e não voltar a viver, visto ser grande o desprezo por tudo o que há na terra infundido em mim. Tudo me parecia lixo, e vi a que baixeza nos submetemos cuidando de coisas passageiras.

4. Quando fazia companhia àquela senhora de quem já falei,2 veio-me certa feita uma crise no coração (porque, como já disse, muito sofri dele, embora já não sofra). Ela, muito caridosa, mostrou-me jóias de ouro e pedras preciosas, pois as tinha de grande valor, especialmente uma de diamantes muito valiosa. Ela pensava que com isso me alegraria; quanto a mim, ria por dentro e tinha compaixão ao ver as coisas que os homens estimam e ao pensar no que o Senhor tem guardado para nós.

Pensei como me seria impossível, mesmo que eu quisesse me convencer, valorizar aquelas coisas, a menos que o Senhor me privasse da lembrança de outras. Para a alma, isso significa um poder tão grande que só quem o possui pode entendê-lo: trata-se do desapego verdadeiro e natural, que vem sem esforço nosso, pois é dado por Deus. Sua Majestade mostra as verdades eternas de tal maneira que a impressão que deixam em nós nos permite ver com clareza que por nós mesmos não poderíamos obter isso, do modo como o adquirimos, em tempo tão curto.

5. Também passei a ter pouco medo da morte, a qual sempre temi antes disso. Hoje, ela me parece coisa facílima para quem serve a Deus, porque, com ela, a alma se vê, num instante, livre deste cárcere e posta em descanso. Esses arroubos de espírito e a revelação de coisas tão sublimes, feitos por Deus, se assemelham, a meu ver, à saída da alma do corpo — ela se vê, num átimo, de posse de todo esse bem. Deixemos as dores do desenlace, pois pouca relevância devemos atribuir-lhes. Os que amarem a Deus de verdade e tiverem desprezado de fato as coisas desta vida devem morrer mais suavemente.

6. Creio que isso também me serviu muito para conhecer a nossa verdadeira pátria e perceber que aqui na terra estamos de passagem; é grande coisa ver o que há por lá e saber onde vamos viver. Porque, para quem vai viver numa terra, é de grande ajuda, para suportar as agruras do caminho, já saber ser ela um lugar onde se vai viver com sossego. Isso também torna fácil considerar as coisas celestiais e fazer que sejam elas o objeto das nossas conversas. Isso é muito valioso. O simples voltar os olhos para o céu põe a alma em recolhimento, porque, como o Senhor quis mostrar-lhe algo do que há ali, ela pensa naquilo que viu. Com muita freqüência, acompanham-me e me consolam os que sei que lá vivem; são esses que verdadeiramente me parecem vivos, pois os daqui levam a vida tão mortos que o mundo inteiro, por assim dizer, não me faz companhia, em especial quando me vêm aqueles ímpetos.

7. Tudo o que vejo com os olhos do corpo me parece sonho e farsa. O que já vi com os da alma é aquilo que ela deseja; e, como se vê longe dali, considera esta vida a morte. Enfim, é enorme a graça que o Senhor dá a quem permite tais visões; estas trazem um enorme proveito, ajudando muito a alma a carregar sua pesada cruz, já que aqui nada a satisfaz e tudo a aborrece. Se o Senhor não permitisse que nos esquecêssemos das coisas sublimes, embora voltemos a nos lembrar delas, não sei como seria possível viver.

Bendito e louvado seja Deus para sempre! Queira Sua Majestade, pelo sangue que o Seu Filho derramou por mim, já que desejou que eu visse alguma coisa de bens tão grandes e começasse a fruir deles de algum modo, que não me aconteça o mesmo que a Lúcifer, o qual, por sua própria culpa, tudo perdeu. Que Ele, por quem é, não o permita! Não é pouco o temor que tenho algumas vezes, embora seja muito comum que a misericórdia de Deus me dê a segurança de que, tendo Ele me tirado de tantos pecados, não vai querer negar-me a Sua mão para que eu me perca. Suplico a vossa mercê que sempre Lhe peça isso.

8. Mas as graças de que falei não são, a meu ver, tão grandes quanto a que vou relatar agora; digo-o por causa dos grandes efeitos benéficos que ela me causou, destacando-se a grande força que infundiu na alma. Na verdade, considerada por si mesma, cada uma das graças tem tal valor que não é possível compará-las entre si.

9. Certo dia, na véspera do Espírito Santo,3 fui depois da missa a um lugar bem afastado, onde rezava muitas vezes, e comecei a ler num Cartusiano4 sobre essa festa. Quando cheguei aos sinais que devem ter os principiantes, os experientes e os que alcançaram a perfeição para compreenderem se o Espírito Santo está com eles, e tendo lido sobre esses três estados, tive a impressão de que, pelo que podia perceber, Deus, pela Sua bondade, sempre estava comigo.

Comecei a louvá-Lo, lembrando-me de que, da outra vez em que tinha lido o referido trecho, eu estava bem destituída de tudo aquilo — pois isso eu via muito bem —, ao passo que agora sucedia o contrário. Reconheci ser muito grande o favor que o Senhor me fizera. Assim, passei a considerar o lugar que, pelos meus pecados, tinha merecido no inferno; e entoei muitos louvores a Deus, pois me parecia que a minha alma, de tão mudada, mal podia ser reconhecida.

Quando eu fazia essas considerações, veio-me um ímpeto imenso cuja causa não percebi; parecia que a alma queria sair do corpo, não cabendo mais em si nem se achando capaz de esperar tanto bem. Era um ímpeto tão excessivo que eu não o podia controlar, sendo, pois, distinto dos outros. Eu não entendia o que se passava na alma nem o que ela desejava para estar tão alterada. Reclinei-me, pois nem sentada conseguia ficar, já que me faltava toda a força natural.

10. Estando nisso, vejo sobre a minha cabeça uma pomba, bem diferente das de cá, porque não tinha penas e exibia asas de umas conchinhas que lançavam para todos os lados um grande resplendor. Ela era maior do que as pombas comuns, e pareceu-me ouvir o ruído que fazia com as asas. Isso durou talvez o espaço de uma Ave-Maria. A alma já estava de tal maneira que, perdendo-se de si,5 não mais viu a pomba. Na presença de tão bom Hóspede, o espírito se acalmou. A meu ver, a graça tinha sido tão maravilhosa que o desassossegara e abismara. Mas, assim que começou a fruí-la, ele perdeu o medo e, com a felicidade, aquietou-se, ficando em êxtase.

11. Foi grandíssima a glória desse arroubo. Passei o resto da Páscoa tão abobada e estonteada que não sabia o que fazer, nem como cabia em mim tão grande favor e graça. Com o grande gozo interior, eu, por assim dizer, não ouvia nem via. A partir daquele dia, percebi ter tido um grande aproveitamento, tendo aumentado muito o amor de Deus e ficado muito mais fortalecidas as virtudes. Bendito e louvado seja Ele para sempre. Amém.

12. Em outra ocasião, via a mesma pomba acima da cabeça de um padre da Ordem de São Domingos.6 Desta feita, tive a impressão de que os raios e resplendores das asas se estendiam muito mais. Tive a revelação de que ele atrairia muitas almas para Deus.

13. De outra vez, vi Nossa Senhora pondo um manto muito branco sobre o Presentado dessa mesma Ordem,7 de quem tenho falado algumas vezes. Disse-me Ela que, pelo serviço que ele Lhe tinha prestado ao ajudar a fundar esta casa, lhe dava aquele manto como sinal de que doravante manteria a sua alma limpa e não a deixaria cair em pecado mortal. Tenho para mim que isso de fato ocorreu; porque poucos anos depois ele morreu, e a vida que viveu teve tanta penitência e a morte, tanta santidade que, pelo que se pode saber, não há por que duvidar.

Um frade que tinha assistido à sua morte me contou que, antes de expirar, ele disse que tinha Santo Tomás a seu lado. Ele faleceu com grande gozo e vontade de sair deste desterro.8 Ele me tem aparecido algumas vezes, coberto de glória, e dito algumas coisas. Era tão dedicado à oração, quando de sua morte, que, embora tivesse desejado não fazê-la, devido à grande fraqueza em que estava, não o podia, pois tinha muitos arroubos. Pouco antes do evento, enviou-me uma carta perguntando que meios haveria de empregar, porque, assim que acabava de dizer missa, ficava muito tempo em êxtase sem poder evitá-lo. No fim, o Senhor lhe deu a recompensa pelo muito que O tinha servido por toda a vida.

14. Do reitor9 da Companhia de Jesus, a quem mencionei algumas vezes, tenho visto algumas coisas das grandes graças que o Senhor lhe dava, que não narro aqui para não me estender. Certa feita, ele passou por extrema tribulação, sendo muito perseguido e vendo-se deveras aflito. Um dia, quando eu ouvia missa, vi Cristo na cruz no momento da elevação da hóstia. Cristo me disse algumas palavras destinadas a ele, para consolá-lo e preveni--lo do que estava por vir, lembrando-lhe o que Ele tinha padecido em seu favor e advertindo-o de que se preparasse para sofrer. Isso muito o consolou e animou, tendo tudo ocorrido tal como o Senhor me disse.

15. Também tenho visto grandes coisas dos membros da Ordem desse padre, a Companhia de Jesus, e de toda a Ordem junta. Algumas vezes, eu os vi no céu, com bandeiras brancas nas mãos, tendo visto também outras coisas deles que causam muita admiração. Por isso, tenho enorme veneração por essa Ordem, tanto porque me relaciono muito com eles como por ver que a sua vida corresponde ao que o Senhor me tem falado sobre eles.

16. Uma noite, estando eu em oração, o Senhor começou a me dizer algumas palavras, fazendo-me recordar de quão má tinha sido a minha vida, o que me infundiu grande confusão e pesar. Porque essas palavras, embora não sejam ditas com rigor, provocam mágoa e pena a ponto de me desfazerem. Uma única palavra dessas nos permite conhecer a nós mesmos de maneira muito melhor do que o conseguiríamos em muitos dias de consideração da nossa miséria, pois cada um contém em si um cunho de verdade que não se pode contestar.

Ele me representou as afeições que eu tivera outrora com tanta vaidade, dizendo-me que eu deveria ter por grande graça a que me concedia ao querer e admitir que Lhe fosse dedicada uma amizade como a minha, antes tão mal empregada. Em outras ocasiões, fez-me recordar a época em que eu parecia ter por honra contrariar a Sua. Em outras, ainda, instou-me a me lembrar do que eu Lhe devia, porque, quando me concedia graças, maior era o golpe que Ele recebia. Quando cometo alguma falta, o que não é incomum, Sua Majestade me infunde tal luz para que eu a perceba que me deixa, por assim dizer, desfeita. Quando me acontecia ser repreendida pelo confessor e procurar me consolar na oração, nela encontrava a verdadeira repreensão.

17. Voltando ao que dizia:10 o Senhor começou a me trazer à lembrança minha vida ruim, e pensei, debulhada em lágrimas, que Ele, já que, na minha opinião, eu nada tinha feito, estava querendo me fazer algum favor. É que, com muita freqüência, recebo uma graça particular do Senhor depois de me aniquilar interiormente. Creio que o Senhor faz assim para que eu veja bem que estou muito longe de merecê-la.

Pouco depois, o meu espírito foi tomado por tal arrebatamento que senti estar ele quase todo fora do corpo, ou, ao menos, eu não percebia que ele estivesse unido ao corpo. Vi a Humanidade Sacratíssima com uma glória excessiva que eu jamais experimentara. Ele se manifestou, de modo admirável e claro, repousando no seio do Pai. Não sei dizer como foi, porque, sem ver, senti-me na presença daquela divindade. Foi tão forte o abalo que passei muitos dias, pelo que me lembro, sem poder voltar a mim, sempre com a impressão de trazer presente aquela majestade do Filho de Deus, mas de uma maneira diferente da primeira. Essa presença, por mais breve que tenha sido, fica tão impressa na imaginação que não se apaga por algum tempo, resultando daí um grande consolo e muito proveito.

18. Voltei a ter essa visão outras três vezes. Trata-se, a meu ver, da mais sublime visão que o Senhor me permite ter, trazendo consigo enormes benefícios. Ela parece purificar por inteiro a alma, afastando-nos dos nossos sentidos. É uma grande chama que parece abrasar e destruir todos os desejos da vida. Eu, graças a Deus, já não punha desejos em coisas vãs; nessas ocasiões, contudo, ficou ainda mais claro que tudo é vaidade e que de nada valem as grandezas da terra. É um grande ensinamento que leva os nossos desejos à verdade pura; deixa impressa uma reverência que não sei elucidar, mas que muito difere de tudo quanto se pode alcançar aqui. A alma fica muito abismada ao ver como se atreveu, e como outros podem se atrever, a ofender uma Majestade tão sublime.

19. Já falei dos efeitos das visões e de outras coisas, tendo afirmado também11 que há maior ou menor aproveitamento. O desta última visão é enorme. Depois disso, ao me aproximar para comungar, eu me lembrava da imensa Majestade que vira e me dava conta de que era Ele que estava no Santíssimo Sacramento, o que fazia os meus cabelos se arrepiarem e me dava a impressão de estar toda desfeita. Ainda mais que em muitas ocasiões o Senhor ainda permite que eu O veja na hóstia.

Ó Senhor meu! Se não encobrísseis Vossa grandeza, quem se atreveria a unir tantas vezes com uma tão grande Majestade uma coisa tão suja e miserável? Bendito sejais, Senhor! Louvem-Vos os anjos e todas as criaturas, pois assim arranjais as coisas de acordo com a nossa fraqueza, para que, fruindo de graças tão soberanas, não fiquemos espantados diante de Vosso grande poder a ponto de não nos atrevermos sequer a nos regozijar com elas, como pessoas fracas e miseráveis.

20. Poderia acontecer conosco o que se passou com um lavrador — e tenho certeza de ser isso verdade. Ele encontrou um tesouro, vendo-se, de repente, possuidor de riquezas que em muito superavam a sua avareza. Não sabendo como aproveitá-las, ficou com tamanha aflição e preocupação que aos poucos definhou e terminou por morrer. Se tivesse achado o tesouro não todo junto, mas em parcelas, ele teria ficado mais contente do que quando era pobre e não teria perdido a vida.

21. Ó riquezas dos pobres! Como sabeis admiravelmente sustentar as almas! E, sem que elas vejam tão grandes riquezas, pouco a pouco as ides mostrando! Assim, quando vejo, desde aquela visão, uma tão grande Majestade oculta em coisa tão pequena como uma hóstia, não posso deixar de me admirar com tão grande sabedoria. Nem imagino como ousaria me aproximar do Senhor se Ele, que me deu e ainda me dá muitas graças, não me infundisse força e coragem.

Sem Ele, eu também não poderia disfarçar a minha admiração nem me impedir de dizer em altos brados tão grandes prodígios. Pois que sente uma miserável como eu, cheia de abominações e que com tão pouco temor de Deus tem desperdiçado sua vida, ao ver aproximar-se de si este Senhor de tão imensa majestade quando Ele quer que minha alma O veja? Como pode tocar aquele corpo gloriosíssimo, cheio de pureza e carregado de piedade uma boca que tantas palavras proferiu contra Ele? O amor que aquele rosto tão formoso revela com tamanha ternura e afabilidade traz à alma muito mais mágoas e aflições por não tê-Lo servido do que temor da Majestade que nele vê. Mas que poderia eu ter sentido nas duas vezes em que vi o que vou contar?12

22. É certo, Senhor meu e glória minha, que tenho dito que, de alguma maneira, nessas grandes aflições que a minha alma sente tenho feito algo para Vos servir. Ai de mim, que já não sei o que digo, pois quase já não sou eu quem escreve isto! Estou muito perturbada e quase fora de mim, por ter trazido de volta à memória essas coisas. Caso esse sentimento viesse de mim, eu bem poderia, Senhor meu, afirmar ter feito algo por Vós. Como nada fiz, visto que nem um único bom pensamento pode existir se não o dais, eu sou a devedora, Senhor, e Vós, o ofendido.

23. Indo comungar, vi com os olhos da alma,13 com maior clareza do que com os do corpo, dois demônios deveras abomináveis. Tive a impressão de que, com os seus chifres, mantinham presa a garganta do pobre sacerdote. E, na hóstia que ia receber, vi meu Senhor, com a majestade que descrevi, posto naquelas mãos, que percebi com clareza serem transgressoras, compreendendo que aquela alma estava em pecado mortal. Que seria, Senhor meu, ver Vos­sa formosura entre figuras tão abomináveis? Elas estavam como que ame­­drontadas e espantadas diante de Vós, e creio que de boa vontade teriam fugido se Vós lhes tivésseis permitido.

Isso me provocou tamanha perturbação que não sei como pude comungar, e fui tomada de grande temor, pensando que, se fosse visão de Deus, Este não me permitiria ver o mal que se instalara naquela alma. O Senhor me disse que rogasse por ele e que permitira semelhante coisa para que eu enten­desse que força tinham as palavras da consagração e visse que, por pior que seja o sacerdote que as pronuncia, Deus está sempre ali; disse também que o fizera para que eu conhecesse Sua grande bondade, que se põe nas mãos do inimigo só para o meu bem e o de todos.

Vi com nitidez que os sacerdotes estão mais obrigados a ser bons do que os outros e que é uma coisa terrível receber o Santíssimo Sacramento indignamente. Dei-me conta também de que o demônio é senhor da alma que está em pecado mortal. Essa visão me trouxe inúmeros benefícios e fez-me perceber com profundidade o quanto eu devia a Deus. Bendito seja Ele para sempre!

24. Em outra ocasião, ocorreu um fato semelhante que me deixou com imenso terror. Eu estava num certo lugar onde morrera certa pessoa que vivera muito mal por muitos anos, segundo me disseram. Antes de morrer, contudo, passara dois anos enfermo e, ao que parece, se corrigira em algumas coisas. Morreu sem confissão, mas, mesmo assim, não me pareceu que fosse ser condenado. Enquanto o seu corpo era amortalhado, vi muitos demônios o agarrarem, parecendo divertir-se com ele, além de torturá-lo. Isso me encheu de grande pavor, pois eles o passavam uns aos outros com grandes garfos. Quando vi que ele seria enterrado com as mesmas honras e cerimônias concedidas a todos, fiquei pensando na bondade de Deus, que não quisera que aquela alma fosse difamada, deixando encoberto o fato de ela ser Sua inimiga.

25. Fiquei meio atordoada com isso. Durante o Ofício, não vi nenhum demônio; mais tarde, quando o corpo foi sepultado, era tão numerosa a legião demoníaca que o cercava que quase perdi os sentidos, sendo preciso muita determinação para tudo dissimular. Considerei o que fariam com aquela alma se assim dominavam o triste corpo. Quem dera o Senhor permitisse que todos os que estão em mau estado vissem, como eu, aquela coisa horripilante, pois creio que isso seria um grande estímulo para que vivessem bem. Tudo isso me faz ver ainda mais o que devo a Deus e aquilo de que Ele me livrou. Até falar disso com o meu confessor, fiquei muito receosa, pensando se não seria ilusão do demônio para difamar uma alma considerada tão cristã. Na verdade, embora não tenha sido ilusão, sempre tenho temor quando me recordo.

26. Já que comecei a falar de visões de pessoas mortas, quero contar algumas coisas que o Senhor me mostrou de algumas almas. Limitarei os exemplos para não me alongar e porque não vejo muito proveito em fazê-lo.

Disseram-me que morrera um ex-Provincial nosso, na época em outra Província, com quem eu tinha tido relações e a quem devia alguns favores.14 Era pessoa muito virtuosa. Ao saber de sua morte, fiquei muito perturbada, pois temi pela sua salvação, já que ele tinha sido prelado durante vinte anos, o que sempre me inspira temor, pois me parece muito perigoso o encargo de zelar por almas. Com extrema aflição, fui a um oratório. Ofereci em seu be­nefício todo o bem que eu fizera em minha vida, que não era muito, di­zendo ao Senhor que suprisse com os seus méritos o que aquela alma precisava para sair do purgatório.

27. Quando eu estava pedindo isso ao Senhor da melhor maneira que podia, pareceu-me ver o prelado sair da terra, do meu lado direito, e subir ao céu com enorme alegria. Embora fosse bem velho, vi-o com uns trinta anos ou menos, tendo grande resplendor no rosto. Essa visão foi muito breve, mas me trouxe consolação tão extrema que nunca mais sofri pela sua morte, mesmo diante da aflição de muitas pessoas por ele, que era muito querido.

Era tamanho o consolo que invadia minha alma que eu em nenhum momento duvidei de ser boa a visão, isto é, eu tinha certeza de não se tratar de ilusão. (Quando isso aconteceu, não se tinham passado quinze dias de sua morte.) Fiz que o encomendassem a Deus, e também me dediquei a isso, mas não com o fervor com que o teria feito se não tivesse tido aquela visão; porque, se o Senhor me mostra alguma alma assim e depois desejo encomendá--la a Ele, tenho a impressão de dar esmola a um rico. Depois, porque ele morreu bem longe daqui, eu soube da morte que Deus lhe deu; foi de tamanha edificação que todos ficaram admirados com a sabedoria, as lágrimas e a humildade com que ele terminou seus dias.

28. Morrera na casa uma monja, grande serva de Deus,15 há mais ou menos um dia e meio. Durante o Ofício de Defuntos, rezando em sua intenção no coro, eu estava de pé para dizer um versículo com outra monja. Estando no meio, tive a impressão de ver a alma sair das profundezas da terra, no mesmo lugar da visão anterior, e ir para o céu. Essa visão não foi imaginária, como a do Provincial, mas das que não têm imagem, de que já falei,16 que deixam tão pouca dúvida quanto as imaginárias.

29. Morreu também no mesmo convento outra monja. Ela vivera enferma por dezoito ou vinte anos; era muito serva de Deus, jamais faltava ao coro e tinha muitas virtudes. Eu tinha certeza de que lhe sobrariam méritos e de que, tendo passado por tantas enfermidades, não entraria no purgatório. Quando rezava as horas canônicas, antes do seu enterro, passadas pouco mais de quatro horas da morte, percebi que também ela ia para o céu.

30. Estando num colégio da Companhia de Jesus, às voltas com as grandes dores da alma e do corpo que por vezes tenho, eu estava num estado que, segundo me parece, me impedia de ter um único bom pensamento.17 Tinha morrido naquela noite um irmão da casa.18 Quando o encomendava a Deus, como podia, e ouvindo missa em sua intenção rezada por um padre da Companhia, caí em profundo recolhimento e o vi subir ao céu, com muita glória, acompanhado do Senhor. Vi ser aquilo uma graça particular de Sua Majestade.

31. Um frade da nossa Ordem,19 muito bom religioso, estava com grave enfermidade. Durante a missa, entrei em recolhimento e vi que ele morrera e subia ao céu sem passar pelo purgatório. Mais tarde, eu soube que ele falecera na hora em que o vi. Eu me espantei por ele não ter passado pelo purgatório; percebi que, como tinha sido frade e correspondido à sua profissão, aproveitara as Bulas da Ordem para evitar o lugar de expiação.20 Não sei por que entendi assim; creio que foi porque o fato de ser religioso não se traduz por envergar o hábito, isto é, não basta usá-lo para usufruir do estado de maior perfeição que é ser frade.

32. Não vou mais falar dessas coisas, porque, como eu disse,21 não há razão para tal, muito embora sejam muitas as vezes que o Senhor me concede vê-las. Mas, em todas que vi, nenhuma alma deixou de entrar no purgatório, pelo que entendi, exceto a desse padre, a do santo Frei Pedro de Alcântara e a do padre dominicano de que falei.22 De algumas almas, o Senhor quis me mostrar os graus de glória que têm, revelando-me os lugares em que estão. É grande a diferença que há entre umas e outras.23

Um comentário:

  1. Dante na Divina Comédia explica a estrofe 31 do capítulo 38 quando chega na Esfera Lunar...

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