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sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

AS BODAS DO CORDEIRO (14 -9- 1940)-Santa Teresa Benedita da Cruz


“Venerunt nuptiae Agni et uxor eius praeparavit se". (Ap. 19, 7). "Chegaram as Bodas do Cordeiro, e a sua esposa está pronta". Assim Soou em nosso coração as vésperas da profissão, e assim deve ressoar novamente quando solenemente nós renovarmos nossos santos votos. Palavras cheias de mistério que escondem o sentido profundo e misterioso, de nossa santa vocação. Quem é o Cordeiro? ´Quem é a esposa? De qual Banquete de Bodas se trata aqui?

"Vi, no meio do trono e dos quatro animais, no meio dos anciãos, um Cordeiro, que estava de pé, imolado..." (Ap. 5, 6). Quando o vidente de Patmos contemplou este rosto, ainda estava viva nele a memória inesquecível daquele dia junto ao Jordão, quando João, o Batista, mostrou o"Cordeiro de Deus" que tira o pecado do mundo" (Jo 1,29). Então, ele tinha compreendido a Palavra, e agora compreende a imagem. O que caminhou próximo ao Jordão e que tinha se manifestado em vestes brancas, com olhos ardentes e com a espada de Juiz, é Ele o" Primeiro e o Último" (Ap. 1,18). O que levou a plenitude o que os ritos da Antiga Aliança representavam simbolicamente. Quando no maior e mais sagrado dia do ano, o Sumo Sacerdote entrava no Santo dos Santos, no lugar sacratíssimo da presença de Deus, selecionava dois cabritos machos: um, para lançar sobre ele os pecados do povo, e depois soltá-lo no deserto; e outro, para marcar com o seu sangue a Tenda do Tabernáculo e a Arca da Aliança (Lv. 16). Esse era o sacrifício expiatório feito pelo povo. Para si mesmo e pela sua casa o sacerdote deveria oferecer um bezerro em sacrifício e um carneiro em holocausto. Também tinha que aspergir o Trono de Graça com o sangue do bezerro. E ele, escondido aos olhos dos homens, após rezar por si, por sua casa e por todo o povo de Israel, saia fora diante do povo e aspergia o altar, para expiar seus pecados e os do povo. Depois enviava o cabrito ao deserto e oferecia seu próprio holocausto e o do povo, e queimava os restos do sacrifício expiatório antes do acampamento (mais tarde, diante das portas da cidade). Um dia sagrado e grande, era o dia da Reconciliação. O povo esperava em oração e jejum no Santuário. E quando ao anoitecer tudo estava cumprido, havia paz e alegria no coração, porque Deus tinha removido o peso do pecado e tinha dado sua graça.

Porém, o que é que tornou possível a reconciliação? Certamente não foi nem o sangue dos animais decapitados, nem o Sumo Sacerdote da descendência de Aarão – assim o deixou bem claro São Paulo na carta aos Hebreus -, mas a verdadeira vítima de reconciliação, prefigurada em todas as vítimas anteriores prescritas pela lei, e o Sumo Sacerdote, de acordo com a ordem de Melquisedec em cujo lugar estavam os sacerdotes da casa de Aarão. Ele era também o autêntico Cordeiro Pascal, em cujo nome o anjo exterminador passou ao largo em frente às casas dos hebreus, quando castigou os egípcios. O mesmo Senhor deu a entender isso aos seus discípulos, quando comia com eles o Cordeiro Pascal pela última vez, e os ofereceu como alimento.

Mas, por que tinha escolhido o cordeiro como símbolo privilegiado? Por que se mostrou deste modo no trono da eterna glória? Porque ele era livre de pecado e era humilde como um cordeiro; e porque ele veio para se deixar levar como cordeiro para o matadouro (Is 53, 7). Tudo isso João também testemunhou quando o Senhor se deixou prender no Monte das oliveiras e quando se deixou pregar no Gólgota. Lá, no Gólgota, se cumpriu o autêntico sacrifício de reconciliação. A partir de então os antigos sacrifícios perderam a sua eficácia; e logo eles desapareceriam completamente, assim como o antigo sacerdócio, quando o templo foi destruído. Tudo isso João viveu de perto. Por isso não o surpreendia ver o Cordeiro no Trono. Por ele ter sido uma testemunha fiel, também lhe foi mostrada a Esposa do Cordeiro.

Ele viu "a cidade santa, a nova Jerusalém, que desceu do céu do lado de Deus, adornada como uma esposa que é enfeitada para o seu marido" (Ap. 21, 2 e 9 ss.). Assim como o mesmo Cristo desceu do céu à terra, igualmente a sua esposa, a Santa Igreja, tem sua origem no céu: nasceu da graça de Deus e com o Filho de Deus desceu do céu, de modo que está unida a Ele indissoluvelmente. Foi construída com pedras vivas; sua pedra angular foi colocada quando a Palavra de Deus assumiu a natureza humana no seio da Virgem. Naquele momento, entre a alma do Menino Divino e da Virgem Mãe se realizou o vínculo da união mais íntima, conhecida com o nome de matrimônio.

Escondida para o mundo tinha aparecido a Jerusalém celeste na terra. Dessa primeira união esponsal teria que nascer toda pedra viva que quiser fazer parte da poderosa construção, ou seja, toda alma chamada à vida pela graça. A Mãe-esposa chegaria a ser a Mãe de todos os redimidos, como a célula germinal da qual sempre surgem novas células; ela construiria a cidade vivente de Deus. Este mistério escondido foi revelado a São João quando estava com a Virgem Mãe aos pés da Cruz e foi entregue a ela como filho. Alí, a existência visível da igreja começou: tinha chegado sua hora, mas não ainda a sua perfeição. Ela vive, está desposada com o Cordeiro, porém a hora do banquete nupcial festivo só chegará quando o dragão for definitivamente vencido e o último dos remidos tenha levado o seu combate até o final.

Assim como o Cordeiro teve que morrer para ser elevado ao trono da glória, assim o caminho para a glória conduz todos os eleitos para o banquete das bodas através do sofrimento e da Cruz. O que quiser desposar o Cordeiro tem que se deixar pregar com ele na Cruz. Para isto estão chamados todos os que estão marcados com o sangue do Cordeiro, ou seja, todos os batizados. Mas nem todos entendem este chamado e o seguem. Existe um chamado para um seguimento mais estreito, que ressoa mais penetrante no interior da alma e que exige uma resposta clara. É o chamado à vida religiosa, e a resposta, são os santos votos.

Naquele a quem o Senhor chama para deixar os vínculos naturais (família, povo, ambiente), para entregar-se somente a Ele, se destaca o vínculo nupcial com o Senhor com maior força que na multidão dos redimidos. Por toda a eternidade ele tem que pertencer de maneira especial ao Cordeiro, seguindo-o aonde quer que ele vá e devem cantar o hino das virgens que nenhum outro pode cantar (Ap. 14,1-5).

Ao despertar na alma o desejo da vida religiosa é como se o Senhor a desposasse. E se ela se consagra a Ele através dos santos votos e acolhe o"Veni, sponsa Christi" (“Vem esposa de Cristo”), é como se fosse antecipada a festa das bodas celestiais. Mas aqui se trata somente da expectativa pelo alegre banquete eterno. A alegria nupcial da alma consagrada a Deus, e sua fidelidade, tem que ser provada em meio aos combates abertos e escondidos, no cotidiano da vida religiosa. O esposo escolhido por ela é o Cordeiro que foi levado a morte. Se ela quiser entrar com Ele na glória celestial, tem que deixar-se pregar ela mesma na sua Cruz . Os três votos são os cravos. Quanto maior disposição tiver, de estender-se sobre a cruz e pacientemente suportar os golpes do martelo, tanto mais profundamente experimentará a realidade de estar unida com o Crucificado. E o estar crucificada significará para ela a festa das bodas.

O voto de pobreza abre as mãos para deixar cair tudo o que as mantém amarradas. E as sujeita de tal modo que já não podem tender para as coisas deste mundo. Aprisiona as mãos do espírito e da alma: os apetites que sempre se inclinam aos prazeres e aos bens materiais; as preocupações que buscam assegurar a vida terrena em todas suas dimensões; o ativismo que se ocupa com muitas coisas, colocando em perigo a única coisa necessária. Uma vida na abundância e a comodidade burguesa contradizem o espírito da santa pobreza e afastam do pobre crucificado. Nossas irmãs dos primeiros anos da Reforma [1] se sentiam felizes quando lhes faltava o necessário; quando as dificuldades tinham sido superadas e elas possuíam de tudo em abundância, temiam que o Senhor tivesse se afastado delas. Algo não vai bem em uma comunidade conventual quando as preocupações externas tomam tanto tempo e forças para si que deixam em segundo plano a vida interior. E algo não está completamente em ordem na alma de cada religiosa em particular, quando elas começam a tomar conta de si mesmas e a preocupar-se em satisfazer seus desejos e inclinações, em vez de abandonar-se à Divina Providência e aceitar agradecidas o que ela as envia através das irmãs responsáveis. Naturalmente, com isso não se exclui que se faça notar aos superiores sobre aquilo que exige a obrigatória consideração da saúde. Mas uma vez que isto foi feito, é necessário libertar-se de toda e qualquer preocupação. O voto de pobreza visa dar-nos a despreocupação dos pardais e dos lírios, de forma que o espírito e o coração estejam livres para Deus.

A santa obediência sujeita nossos pés para que não andem mais por seus próprios caminhos, mas pelos caminhos de Deus. Os filhos do mundo chamam liberdade o não estar sujeito à vontade de ninguém e não ser impedido de satisfazer os seus próprios desejos e inclinações. Por esse espaço de liberdade eles se lançam em sangrentos combates e sacrificam todos os bens e a vida. Os filhos de Deus entendem por liberdade algo diferente: querem seguir sem dificuldades o Espírito de Deus; e eles sabem que os obstáculos maiores não vêm de fora, mas estão dentro de nós mesmos. A razão e a vontade do homem que gostosamente querem ser seu próprio senhor, não percebem que facilmente se deixam seduzir pelos apetites naturais e se tornam escravos deles. Não há melhor caminho para libertar-nos dessa escravidão e sermos dóceis à moção do Espírito Santo que o caminho da santa obediência. «Na obediência é onde minha alma se sente realmente livre», assim Goethe fazia dizer a heroína de um de seus poemas, que em sua grande maioria são perpassados por um espírito cristão. A autêntica obediência não consiste somente em não transgredir externamente as prescrições da Santa Regra e Constituições, ou dos superiores. Onde realmente tem que haver empenho é na renúncia da própria vontade. Por isso, o que obedece não estuda a Regra e as Constituições para descobrir sutilmente deste modo quanto das chamadas "liberdades" lhes são permitidas, mas para descobrir, cada vez melhor, quantos pequenos sacrifícios lhe são oferecidos a cada dia e a cada hora para progredir na renúncia de si mesmo. Ele assume tudo isso como um jugo suave e uma carga leve, porque sente, por este meio, está mais próximo e profundamente unido com o Senhor, que foi obediente até a morte de Cruz. Os filhos deste mundo consideram este modo de agir inútil, irracional e mesquinho. O Salvador que construiu durante trinta anos seu trabalho diário baseado em tais pequenos sacrifícios, julgará de outra maneira.

O voto de castidade visa libertar o homem de todos os vínculos naturais, para sujeitá-lo à cruz que está acima de toda agitação e libertar seu coração para a união com o Crucificado. Um tal sacrifício não se leva a cabo de uma única vez. Podemos está exteriormente afastados das ocasiões que levam à tentação, porém, na memória e na fantasia podem permanecer ainda muitas coisas que perturbam o espírito e tiram a liberdade do coração. Também, existe o perigo de que no interior dos protegidos muros do convento surjam novos vínculos que impeçam a união total com o coração divino. Com o ingresso na Ordem nos tornamos novamente membros de uma família. Nós deveríamos ver e honrar as nossas superioras e irmãs como cabeça e membros do corpo místico de Cristo. Porém, somos seres humanos e é possível que se misture com um amor sagrado, infantil e fraterno, algo muito humano. Cremos ver nos homens a Cristo, e nós não nos damos conta que nos apegamos humanamente a eles e que corremos o perigo de perder de vista a Cristo. Porém, não é somente a inclinação humana que obscurece a pureza do coração. Muito pior ainda que um amor demasiadamente humano, é o ter um amor muito pequeno ao coração divino. Cada aversão, cada raiva ou cada incômodo que toleramos no nosso coração fecha as portas ao Salvador. As emoções involuntárias se apresentam, naturalmente, sem culpa nossa; porém, uma vez que as admitimos, temos que travar uma luta contra elas; caso contrário nos voltamos contra Deus que é Amor, e trabalhamos em prol do adversário. O hino que cantam as virgens no séqüito do Cordeiro é, com certeza, um canto do mais puro amor.

A Cruz sobe novamente diante de nós. Ela é o sinal de contradição. O Crucificado nos contempla a partir dela: “Também vós quereis abandonar-me?” O dia de renovação dos votos tem que ser sempre o dia de um profundo exame pessoal. Temos sido coerentes com o que uma vez professamos com fervor? Temos vivido como convém a esposas do Crucificado, do Cordeiro imolado? Nos últimos meses nós temos ouvido freqüentemente queixas de que as muitas orações feitas pela paz ainda não surtiram efeito. Que direito temos nós de ser escutadas? Nosso desejo de paz é, sem dúvida, autêntico e sincero. Porém, nasce de um coração completamente purificado? Temos rezado verdadeiramente "em nome de Jesus", isto é, não só com o nome de Jesus na boca, mas no espírito e no sentir de Jesus, buscando a glória do Pai e não a sua própria? O dia em que Deus tiver poder ilimitado sobre nosso coração, nós teremos também teremos poder ilimitado sobre o dele. Se nós tivermos isto presente, nunca iremos condenar homem algum. Porém, nós não devemos ficar desanimadas, se depois de muito tempo de vida religiosa, nós tivermos que dizer para nós mesmas que ainda somos aprendizes e inexperientes. O manancial do coração do Cordeiro não se esgotou. Hoje nós ainda podemos lavar nossas vestes como o fez um dia um dos ladrões no Gólgota. Confiando na força reparadora deste manancial sagrado nos prostremos diante do Trono do Cordeiro e respondamos à sua pergunta: "Senhor, a onde nós iremos? Só tu tens palavras de vida eterna" (Jo 6, 68). Deixai-nos apanhar água das fontes da salvação para nós e para este mundo sedento. Concede-nos a graça de poder pronunciar com um coração puro as palavras da esposa: “Vem! Vem! Vem, Senhor Jesus! Vem logo!”


[1] N.d.t.: aqui he/she está se referindo à Reforma da Ordem do Carmelo levada a cabo por Santa Teresa de Jesus: o Carmelo Teresiano.

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