Mística e Profecia no Carmelo
– na vivência dos leigos e leigas –
O profeta é uma pessoa vocacionada. Recebeu um chamado divino frente a uma realidade necessitada de sua ação, testemunho e palavra; e, por isto, ele “denuncia, sonha e apresenta soluções diferenciadas” [1] à esta realidade. Diante do chamado ele se entrega. Por isto, se pode afirmar que sua vocação nasce de uma experiência de Deus vivo, como fartamente nos relata a Sagrada Escritura. Da mesma forma, a vocação dos cristãos e cristãs leigos nasce de uma experiência que se constitui como um encontro de duas liberdades abrindo-se dialogalmente uma a outra.
O primeiro passo para que isto ocorra é dado por Deus que se coloca diante da pessoa e a convida para estar com Ele. Portanto, não nasce do desejo humano, nem de uma busca racional ou como resultado de exercícios ascéticos, embora tanto o desejo humano, quanto a racionalidade e os esforços pessoais de busca de uma maturidade humana e cristã façam parte da vivência espiritual. Nasce, portanto, da gratuidade divina que se doa totalmente e já na criação deixa sua marca para que todo ser possa lhe experimentar de alguma forma e por meio deste encontro realizar sua condição.
O passo seguinte é a resposta humana ancorada em uma abertura existencial envolvendo totalmente a sua vida. Neste sentido, a base desta experiência é uma acolhida que se apresenta como receptividade ao dom divino em sua gratuidade. Atitude esta que necessita ser cultivada e desenvolvida para se revelar como uma forma de ser propiciadora a que Deus seja na vida e na história do fiel assim como na vida e história da comunidade em que este se insere.
Esta receptividade e abertura radical a Deus vem acompanhada por uma postura de entrega integral do fiel frente à doação divina. É sua resposta a Deus buscando viver o compromisso com Ele em todos os momentos da vida e em todas as situações. E a entrega humana à glória divina implica, necessariamente, um compromisso com a vida das mulheres e homens por Ele amados, pois, como nos afirma Santo Irineu, “a glória de Deus é o homem vivo”. [2] Neste sentido, uma experiência com o Deus vivo não gera nenhum tipo de dualismo fé / vida, espírito / matéria. Antes pelo contrário, nos lança no mundo em atitude de serviço. Como afirma Santa Teresa: “Se contemplar, ter oração mental, ter oração vocal, curar enfermos, servir nas coisas da casa e trabalhar – mesmo nas tarefas mais humildes – é servir ao Hóspede que vem ter conosco, ficando em nossa companhia, comendo conosco e conosco se recreando, que nos importa servi-Lo mais de uma maneira do que de outra?” (Caminho de perfeição, 17,6).
Assim, a experiência de Deus não é uma experiência fragmentada, que abarca apenas o interior das pessoas, mas é uma realidade que envolve a totalidade de quem a vive. Segundo Gustavo Gutiérrez, “não se restringe aos aspectos – assim chamados – religiosos: a oração e o culto. Ela não é algo setorial, mas sim algo de total. É toda a existência humana que se põe em marcha, existência pessoal e comunitária”, [3] gerando uma unidade profunda e centralidade de vida em quem a acolhe, propiciando a capacidade de focar-se no essencial. No caso dos cristãos leigos e leigas, a vocação profética e mística, bem como sua experiência de Deus, deve se associar à sua vida familiar, profissional, cultural e sócio-política.
2. Nova Consciência, nascida da certeza de “Deus conosco” – liberdade interior
A experiência de Deus pode ser caracterizada como sendo a experiência de um “mistério terrível e fascinante”. [4] Nesta perspectiva se pode ler a cena bíblica de Elias no Horeb (I Rs 19,9-14): ao mesmo tempo em que o profeta se sente atraído por aquela manifestação divina – e por isto ele sai da gruta –, também esta lhe é causa de um certo temor que se traduz em respeito, em uma postura de reconhecimento de que se está diante de um poder que lhe é muito superior, inexplicável e incognoscível. Por isto, Elias cobre seu rosto com o manto.
Diante de tal manifestação de poder presente no encontro com o Deus vivo e santo, o ser humano não permanece inerte. Esta vivência o convoca a rever a própria vida, as atitudes e os valores vividos no cotidiano. A conversão se torna necessária e faz parte do processo de compromisso com Deus que move a pessoa na direção de se desenvolver amplamente e se abrir à natureza, aos outros e ao sentido último e radical da existência.
E é sob a ação do Espírito que esta movimentação se realiza. Espírito que é a tradução da palavra hebraica ruah e significa vento, ar, brisa, respiração, hálito, dentre outros sentidos. E como vento ou respiração, indica movimento, mas não um movimento qualquer: é o mover-se da pessoa a partir de “uma energia que existe dentro dela” [5] e a conduz ao desenvolvimento de uma nova consciência acerca de si, do cosmo, da Igreja, da sociedade, da vida e de Deus. Pois o Espírito se encarna em ações comuns da vida humana como “falar, rezar, caminhar, viajar, orientar, cantar, criticar, decidir, ficar alegre, crescer, anunciar, servir etc”. E isto quer dizer que o aspecto extraordinário de sua presença está “escondido no ordinário da vida de cada dia” e é lá que deve “ser descoberto pelo olhar da fé”, sendo que sua ação visa ensinar “como ler a vida e discernir dentro dela o rumo” a ser seguido. [6]
Assim, o encontro com Deus é algo marcante: desinstala, transforma, movimenta. Desencadeia um processo que conduz o fiel a um novo jeito de ser, de olhar e de escutar, propiciando liberdade interior. Esta é extremamente necessária diante da 7sociedade consumista, pautada pelas coisas e que transforma também as pessoas, os relacionamentos e a natureza em coisas; sociedade esta que valoriza a imagem, o espetáculo, o sensacionalismo, as aparências, o ter, o parecer ter e não o ser. Neste tipo de sociedade, a tendência é o império da dispersão, da superficialidade dos relacionamentos, dos valores e das opções de vida. De igual maneira, impera a busca do lucro e o individualismo, relegando-se grande parte da humanidade à condições subumanas de vida. Desta maneira, a solidariedade e os valores comunitários são colocados em segundo plano, havendo a tendência de se viver a vida de forma privatizada, inclusive a própria fé, que também pode perder seu caráter comunitário e de compromisso com a história e a transformação do mundo.
Em meio a esta profunda noite escura de nossos tempos, como em Emaús, Deus também se põe a caminhar junto a nós (Lc 24,13-35), apresentando-se como Emanuel, o Deus conosco (Mt 1,23), diante do qual “nosso coração arde”. Ele nos convida a uma reeducação da própria interioridade para que se descubra formas mais humanas de nos relacionarmos conosco mesmos, com o mundo, as pessoas, as coisas e Deus. Convida-nos a crescer em profundidade, compaixão e abertura ao Mistério que a tudo habita.
3. Justiça e Paz: lutar pela reconstrução de uma convivência social mais justa e mais fraterna
Para a mentalidade bíblica, Deus é aquele que se manifesta, sobretudo, a partir de seus atos, que o caracterizam como uma divindade apaixonada e que sofre pelo ser amado, que sente e é afetado de uma maneira singular pela realidade cósmica e pela realidade das pessoas, assumindo a iniciativa da ação amorosa, criadora e libertadora, pois “os eventos e as ações humanas despertam Nele alegria ou tristeza, prazer ou ira. [...] Ele reage de uma maneira íntima e subjetiva [...]. Como é evidente a partir do ponto de vista bíblico, as obras do homem podem comovê-lo, afetá-lo e contentá-lo”. [7]
Foi assim no Êxodo e o é nos diversos êxodos porque passa a humanidade. Atualmente, a desigualdade social e miséria não parecem estar diminuindo, pois “a globalização acompanhada de mercados livres [...] trouxe consigo uma dramática acentuação das desigualdades econômicas e sociais no interior das nações e entre elas”.[8] Assim, YHWH vê a miséria do seu povo e ouve “o seu clamor por causa dos seus opressores”, pois conhece “suas angústias”. Por isso, desce “a fim de libertá-los da mão dos egípcios e fazê-lo subir daquela terra a uma terra boa e vasta”. (Ex 3,7-8).
A “descida” de YHWH deve ser acompanhada da parte do fiel por duas atitudes transformadoras e que devem caminhar lado a lado e interpenetrar-se, a de Marta e Maria (Lc 10,38-42). [9] A atitude cristã possui, portanto, uma dimensão contemplativa (diálogo com Deus e o eu profundo) e uma dimensão diaconal (compromisso com a justiça, com a solidariedade e as relações fraternas, com a ecologia). Assim, os cristãos leigos e leigas “devem assumir o dever de serem ‘construtores da paz’ (Mt 5,9), tanto com a conversão do ‘coração’, como com a ação em favor da verdade, da liberdade, da justiça e da caridade, que são os fundamentos irrenunciáveis da paz”. [10]
Na vivência contemplativa, a busca da justiça e da paz nos conduz a refletir sobre a colaboração que cada um dá para a manutenção de nossa cultura. Muitas vezes, sem perceber, nos permitimos formas de pensar e comportamentos que se associam diretamente à manutenção do sistema que existe e não à sua crítica e transformação. Basta pensarmos nas atitudes consumistas que são destrutivas do meio ambiente e excludentes. Ou nas atitudes discriminatórias em relação às minorias que muitas vezes perpetuamos em nossas relações de trabalho, familiares e na educação dos filhos. [11]
Em termos diaconais, os cristãos devem se voltar para o mundo, as pessoas, a igreja e a sociedade, conscientes de que a mudança na forma de enxergar a realidade supõe um novo agir. Em termos da justiça e da paz, faz-se necessário que sejamos cidadãos, pois a “caridade que ama e serve a pessoa nunca poderá estar dissociada da justiça”.[12] Diante de milhões de excluídos e da violência, “os fiéis leigos não podem absolutamente abdicar da sua participação na ‘política’, ou seja, da múltipla e variada ação econômica, social, legislativa, administrativa e cultural, destinada a promover orgânica e institucionalmente o bem comum”. [13]
4. Solidariedade: refazer as relações humanas
A construção de uma sociedade justa e pacífica supõe a vivência da solidariedade nas relações humanas, que é a conexão e assistência recíprocas entre pessoas de um mesmo grupo ou grupos distintos. [14] É a “determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum; ou seja, pelo bem de todos e de cada um, porque todos nós somos verdadeiramente responsáveis por todos”. [15] Desta maneira, devemos ser solidários com afro descendentes, indígenas, portadores de alguma deficiência ou doença, imigrantes, excluídos dos processos culturais, educacionais e digitais, idosos, moradores de rua, mulheres violentadas pelo machismo, vítimas da violência e das drogas, sofredores psíquicos, rejeitados pela sociedade, etc.[16]
O modelo para a ação solidária é Jesus Cristo, que se fez carne realizando um verdadeiro êxodo lançando-se na direção dos seres humanos. Assim, Ele nos indica o caminho de realização: assumir a condição humana e sair de si em direção à humanidade dos outros. Pois, “a mística cristã é inseparável de uma ética, de uma práxis de serviço humilde e amoroso que, na contemplação da humanidade de Jesus, aprende os gestos da disponibilidade que sai constantemente de si mesma, [...] pondo-se aos pés dos outros, sobretudo dos mais pobres, oprimidos e marginalizados de toda sorte, para ajudá-los a redescobrir o caminho da vida, da salvação e da ‘saúde’ em plenitude”. [17]
A solidariedade é vivida por meio da busca de promoção da dignidade do ser humano, colocando-o no centro da vida econômico-social, pois toda construção sócio-cultural deve estar a serviço desta dignidade. Por isto, a solidariedade pede “a participação ativa e responsável de todos na vida política, desde os cidadãos individualmente aos vários grupos, sindicatos e partidos”. [18] E isto não é contrário à nossa vocação carmelitana, pois “Ser contemplativo significa fazer da experiência do profano e do político uma experiência de Deus, saber ver Deus na atividade secular e freqüentemente ‘noturna’ dos compromissos temporais, saber encontrar a Jesus como Senhor da História nas ambigüidades da história atual”. [19]
Ao mesmo tempo, a atuação solidária dos cristãos leigos e leigas deve estar presente em seu cotidiano por meio da execução de “seu trabalho com competência profissional, com honestidade humana, espírito cristão”, [20] além da preocupação constante com a constituição de famílias e comunidades solidárias, pois é nestes espaços que se aprende a ser solidário. De igual maneira, urge uma atuação no mundo da cultura, em que se deve “promover uma capilar ação educativa destinada a neutralizar a dominante cultura do egoísmo, do ódio, da vingança e da inimizade e a desenvolver a cultura da solidariedade em todos os níveis”, [21] para propiciar a “globalização da solidariedade” [22] por meio da “inculturação do Evangelho”. [23] Para isto, requer-se uma sólida formação pessoal, capacidade crítica diante das idéias veiculadas socialmente e pelos meios de comunicação e presença nos ambientes culturais.
5. Utopia do Reino: animar a esperança do povo
A sociedade contemporânea é marcada pela perda de muitas utopias e muitos vivem centrados de forma individualista na busca do prazer momentâneo e imediato (hedonismo), agarrados a um materialismo consumista desenfreado, fazendo com que muitas coisas sejam descartáveis e transitórias. Desta forma, valores tradicionalmente sólidos se desmancham no ar. O desencanto cresce e as coisas valem não pelo que são, mas pelo lucro que proporcionam e pelo status que conferem a quem as tem ou usa. Desencantamento que atinge também a natureza, que de criação divina e um bem a ser respeitado e preservado, passa a ser vista apenas como coisa a ser explorada.
Ao mesmo tempo, há uma leitura pessimista dos acontecimentos de nosso mundo: medo da violência, das doenças, do desemprego, da crise, etc. Fatores e riscos que realmente existem, embora muitas vezes o medo sentido seja maior que a ameaça real. [24] Com isto, a consciência dos problemas e dos desafios parecem gerar uma sensação de que não é possível um mundo diferente. Além disso, a forma de se enxergar a realidade muitas vezes não corresponde à totalidade do que está ocorrendo: existem coisas boas nascendo mesmo em meio à tanta situação de morte; existem formas criativas, nem sempre percebidas e valorizadas, de se lidar com os desafios hodiernos.
Num mundo em que tudo parece ruir e que não se vê perspectivas de mudança e no qual muitos acreditam não terem nada a oferecer capaz de mudar o rumo dos acontecimentos, a perplexidade nasce juntamente com a inação e a sensação de impotência. Perde-se a clareza de objetivos, sente-se um desgaste da esperança e vive-se um deserto ou se experimenta a noite. É como cantar a YHWH “numa terra estrangeira” (Sl 136).
É neste mundo que somos convidados a esperar “contra toda esperança” (Rm 4,18), vivendo a espiritualidade do exílio que leva à purificação profunda das motivações da fé, da esperança e do amor e exige um amadurecimento na vivência e prática da fé. Porém, como fazer nascer a esperança em meio a tanta desesperança e quando a Libertação em um sentido mais amplo parece impossível? Um primeiro passo é a convivência em comunidade, pois esta é lugar de resistência, persistência e memória da misericórdia divina e do mútuo apoio. Nela “se experimenta a Libertação nas libertações cotidianas, nos pequenos projetos, na solidariedade localizada, possível e eficaz” [25] e, ao mesmo tempo, são estabelecidas as conversações necessárias para que nossas crenças se sustentem. Uma verdadeira comunidade propicia que cada pessoa seja ela mesma e se sinta parte de algo maior, recuperando sua identidade e sua condição de sujeito capaz de interagir com seu meio.
Por outro lado, junto ao elemento profético da denúncia das injustiças e do que é contrário ao plano divino, deve-se desenvolver a capacidade sapiencial, ou seja, a capacidade de saborear o cotidiano, de redescobrir nas pequenas coisas e nos pequenos gestos presentes nos nossos relacionamentos a misericórdia e cortesia divinas e a gratuidade de muitas pessoas que nos manifestam a gratuidade de Deus. Além disso, é importante que se abram espaços à dimensão celebrativa e festiva da vida, que comemora as vitórias conquistadas, reconhece os passos dados, ainda que pequenos, e busca forças para enfrentar os desafios cotidianos. E isto só é possível por meio do resgate da linguagem simbólica, da beleza, da poesia, da arte.
6. Discernimento: saber distinguir a falsa profecia
Uma característica marcante de nossa contemporaneidade é a da difusão das informações e das imagens. Vivemos num mundo em que as informações circulam com tanta rapidez que muitas vezes não conseguimos acompanhá-las. Ao mesmo tempo, a quantidade de informações sendo veiculadas pelos meios de comunicação é tão grande que não conseguimos nem checar a qualidades das mesmas, o que leva a muitos a aceitarem como corretos e válidos dados pouco confiáveis.
Acerca da imagem, o mesmo fenômeno ocorre. Devido ao papel significativo dos meios de comunicação em nossas vidas, em muitos momentos de nosso cotidiano estamos vendo fotos, figuras, vídeos, desenhos, etc. E como se não bastasse, muitas vezes a mídia trata de forma sensacionalista as imagens, visando chocar, emocionar e seduzir, expondo situações privadas e íntimas das pessoas. Uma conseqüência desta situação é a perda da interioridade, pois tudo é mostrado de forma exibicionista que acaba por banalizar e tornar trivial o que deve ser mantido na intimidade. Esta característica da cultura da imagem gera a sensação de que a totalidade da realidade é mostrada e, com isto, perdemos a capacidade de ir além do visto, de descobrirmos o sentido das coisas e o mistério que a tudo habita,[26] além do enfraquecimento da capacidade reflexiva. Assim, como afirma Comte-Sponville, “na maioria das vezes, passamos ao largo: somos prisioneiros das falsas evidências da consciência comum, do cotidiano, da repetição, do já conhecido, do já pensado, da familiaridade suposta ou comprovada de tudo, em suma, da ideologia ou do hábito”. [27]
Neste sentido, nossa contemporaneidade nos exige que desenvolvamos a capacidade de discernimento, pois, para bem vivermos a fé e o compromisso solidário com a paz e a justiça, devemos ser capazes de discernir que espírito nos guia, se o espírito de Jesus Cristo ou o do consumismo e da nossa própria conveniência.
O discernimento ocorre inicialmente por meio de uma boa capacidade de “ver” e “ouvir”, indo além das aparências e descobrindo os “sinais dos tempos”. Para isto, uma boa formação é necessária, juntamente com as mediações necessárias das ciências. Da mesma forma, é fundamental o autoconhecimento e a autocrítica: saber de nós, de como as coisas nos influenciam, de nossos desejos.
Porém, se faz necessário um passo a mais: o da memória, resgatando os sinais do Espírito Santo em nossa história e na história da comunidade. O resgate da memória é obra do Paráclito, pois não é Ele “que vos ensinará tudo e vos recordará tudo o que eu [Jesus] vos disse”? (Jo 14,26). A recordação nos propicia o reencontro com a própria identidade e o reforço da mesma, nos apontando a prática de Jesus pautada por seu auto-esvaziamento (Fl 2,6-8) e pelo amor (Jo 15,12-14). Ao mesmo tempo, esta recordação pede um contínuo e orante beber das Escrituras Sagradas, assim como da Tradição, pois elas nos fornecerão critérios para julgarmos e avaliarmos nossas ações de acordo com o projeto divino, a realidade, assim como a presença de Deus na história. Dentre estes critérios, podem-se ressaltar os seguintes como sendo sinais da ação do Espírito: Sua ação propicia a participação no mistério de Cristo, origina vida, união e comunhão, equilíbrio, edifica e instrui a comunidade, foca-se no essencial e estabelece prioridades a partir do essencial, protege e dá voz aos mais fracos, faz nascer liberdade e solidariedade, consola e fortalece, gera reconciliação e perdão, é fecunda em frutos de paz, favorece o sair de si em direção ao serviço do outro e envia em missão.
7. Comunidade orante e profética
Finalizando este texto, nos deparamos com o tripé que constitui, em sua unidade, a vocação carmelitana: vida comunitária, orante e de serviço profético-apostólico.
A vida comunitária busca ser imagem da Trindade, “a melhor comunidade”. Nela, todos devem crescer na consciência do igual chamado a uma mesma e digna vocação ao mesmo tempo em que se a vive de formas distintas. É a “unidade na diversidade”. Como nos afirma João Paulo II, “Todos os fiéis, em virtude da sua regeneração em Cristo, compartilham a mesma dignidade; todos são chamados à santidade; todos cooperam para a edificação do único Corpo de Cristo, cada qual segundo sua própria vocação e o Dom recebido do Espírito (cf. Rm 12, 3-8). A dignidade igual entre todos os membros da Igreja é obra do Espírito, está fundada no Batismo e na Confirmação, e é corroborada pela Eucaristia. Mas é também obra do Espírito a multiplicidade de formas. É ele que faz da Igreja uma comunhão orgânica na sua diversidade de vocações, carismas e ministérios”, [28] pois “as vocações à vida laical, ao ministério ordenado e à vida consagrada [...] estão ao serviço umas das outras, em ordem ao crescimento do Corpo de Cristo na história e à sua missão no mundo”. [29]
Ao mesmo tempo, a “unidade na diversidade” deve ser vivida internamente no seio das comunidades de cristãos leigos, de religiosos e de sacerdotes, com todos os elementos necessários para uma vivência comunitária saudável, como a possibilidade de todos se manifestarem e serem o que são em sua singularidade, colaboração para o crescimento mútuo, vivência do perdão, da escuta e do diálogo, equilíbrio entre carisma e instituição, formas dialogais e colegiadas de exercício da autoridade, etc.
Porém, a vida em comunidade só é autenticamente cristã se for orante. E a vida para ser orante envolve mais que práticas isoladas de oração, mas uma vida unificada no diálogo com o Amigo, seja na oração, seja na ação. Assim, no caso dos fiéis leigos, “todas as obras, preces e iniciativas apostólicas, vida conjugal e familiar, trabalho cotidiano, descanso do corpo e da alma, se praticados no Espírito, e mesmo os incômodos da vida pacientemente suportados, tornam-se sacrifícios espirituais agradáveis a Deus, por Jesus Cristo”. [30] Esta é a dimensão sacerdotal da vocação laical que consagra “a Deus o próprio mundo”. [31]
Por isto, “nossas comunidades ‘devem se tornar autênticas escolas de oração, onde o encontro com Cristo não se exprima apenas em pedidos de ajuda, mas também em ação de graças, louvor, adoração, contemplação, escuta, afetos da alma, até se chegar a um coração verdadeiramente ‘apaixonado’. Uma oração intensa, mas que não afasta do compromisso na história”. [32] Assim, comprometidos com a história, os fiéis leigos devem “fazer brilhar a novidade e a força do Evangelho na sua vida quotidiana, familiar e social, e a manifestar, com paciência e coragem, nas contradições da época presente, a sua esperança na glória também por meio das estruturas da vida secular”, ordenando “as coisas criadas para o verdadeiro bem do homem, com uma ação animada pela vida da graça”. Desta forma, “participam do exercício do poder com que Jesus Ressuscitado atrai a si todas as coisas e as submete, com ele mesmo, ao Pai, de forma que Deus seja tudo em todos (cf. I Cor 15, 28; Jo 12, 32)”. [33]
[1] Jacir de Freitas FARIA. Profetas e profetisas na Bíblia. São Paulo: Paulinas, 2006, p. 9.
[2] Santo IRINEU. Contra as heresias. IV, 20,7.
[3] Gustavo GUTIÉRREZ. Beber no próprio poço. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 100.
[4] Rudolf OTTO. O Sagrado. Lisboa: Edições 70, 1992.
[5] Carlos MESTERS. Descobrir e discernir o rumo do Espírito. Uma reflexão a partir da Bíblia. In: Ana Maria TEPEDINO (Org.). Amor e discernimento. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 32.
[6] Id., ibid., p. 26-27.
[7] Abraham J. HESCHEL. Los profetas. T. II. Buenos Aires: Paidos, 1963, p. 172-177.
[8] Eric HOBSBAWN. Globalização, democracia e terrorismo. São Paulo: Cia das Letras, 2007, p. 11.
[9] Sobre a concepção de Santa Teresa a respeito de Marta e Maria, cf. C 17,5-6; 7M 4,12-13; V 22,9. Cf. também a este respeito a bela reflexão de Mestre Eckhart no sermão 86, intitulado “A excelência de Marta sobre Maria”. In: MESTRE ECKHART. O livro da divina consolação e outros textos seletos. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 170-179.
[10] Christifideles laici, 42. Cf. também Evangelii nutiandi, 31.
[11] Sobre alguns valores dominantes em nossa sociedade, cf. Documento de Puebla, 55-62.
[12] Id., ibid., 42.
[13] Id., ibid., 42.
[14] Cf. Nicola ABBAGNANO. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Mestre Jou, 1982.
[15] Solicitudo rei socialis, 38; Christifideles laici, 42.
[16] Cf. Documento de Puebla, 27-43.
[17] Maria Clara L. BINGEMER. Alteridade e vulnerabilidade. São Paulo: Loyola, 1993, p. 87-88.
[18] Christifideles laici, 42.
[19] Segundo GALILEA. O Caminho da espiritualidade. São Paulo: Paulinas, 1985, p.47.
[20] Christifideles laici, 43.
[21] Id., ibid., 42.
[22] Ecclesia in America, 55.
[23] Cf. Evangelii nutiandi, 19-20; Documento de Santo Domingo¸229.
[24] Cf. Sérgio ADORNO & Cristiane LAMIN. Medo, violência e insegurança. In: VVAA. Segurança pública e violência. O Estado está cumprindo seu papel? São Paulo: Contexto, 2006.
[25] Afonso MURAD & Marcial MAÇANEIRO. Espiritualidade como caminho e mistério. São Paulo: Loyola, 1999, p. 69.
[26] Sobre o predomínio da imagem e a anemia simbólica, cf. José María MARDONES. A vida do símbolo. São Paulo: Paulinas, 2006, p. 17-31.
[27] André COMTE-SPONVILLE. O espírito do ateísmo. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 134.
[28] Vita consecrata, 31.
[29] Id., ibid., 31.
[30] Lumen gentium, 34. Cf. também Gaudium et spes, 67.
[31] Christifideles laici, 14.
[32] CNBB. Diretrizes gerais da ação evangelizadora da Igreja no Brasil (2003-2006), 109. Doc. 71.
[33] As últimas citações são da exortação apostólica Christifideles laici, 14.