Carta Sobre A Vida
Contemplativa Ou Escada Dos Monges
Extraído do livro: Lectio
Divina, Ontem e Hoje, Edições Subiaco, 2005 – Tradução de D. Timóteo Amoroso
Anastácio
Esta
carta sobre a Vida Contemplativa ou Escada dos Monges, proveniente do século
XII, é um clássico da espiritualidade monástica, enquanto retoma e sistematiza
os ensinamentos da tradição monástica anterior sobre a lectio divina, e
enquanto guiou gerações de monges nos caminhos da oração interior, como o
testemunha o grande número de manuscritos que chegaram até nós. Seu autor é
Guigo II, nono prior da Grande Cartuxa, que exerceu este cargo entre os anos
1174 e 1180, vindo a falecer em 1188. Escreveu ainda Doze Meditações e um
opúsculo sobre o Magnificat.
A
Escada dos monges, sua obra-prima e também da espiritualidade ocidental, foi
primorosamente traduzida por D. Timóteo Amoroso Anastácio, antigo abade do
Mosteiro de S. Bento da Bahia, diretamente do texto crítico latino, editado por
E. Colledge, O.S.A. e James Walsh, S.J., na coleção Sources Chrétiennes no.
163, Ed. Do Cerf, Paris, 1970, 81-123.
Carta
de Dom Guigo, Cartuxo, ao Ir. Gervásio, sobre a vida contemplativa
I
Ao
seu dileto irmão Gervásio, o irmão Guigo: o Senhor seja o seu deleite.
Amar-te,
irmão, é para mim uma dívida, pois foste tu que, primeiro, começaste a me amar.
E sou obrigado a te responder, porque, anterior, tua carta me convida a
escrever-te.
Proponho-me,
assim, a te transmitir certas coisas que pensei sobre o exercício espiritual
dos monges, a fim de que possas julgar e corrigir meus pensamentos a propósito
de um assunto que tu melhor conheces por experiência, do que eu pela reflexão.
É
justo que eu te ofereça, em primeira mão, as primícias do meu trabalho. Pois
convém que colhas os primeiros frutos da recente plantação que, em louvável
furto, subtraíste à servidão do Faraó e à mole servidão, e colocaste no
exército em ordem de batalha, enxertando sabiamente na oliveira o ramo habilmente
cortado da oliveira selvagem (cf. Sl 144, 2; Ex 13, 14; Ct 6, 3-9 e Rm 11,
17.24)
OS
QUATRO DEGRAUS
II
Um
dia, ocupado no trabalho manual, comecei a pensar no exercício espiritual do
homem. E eis que, de repente, enquanto refletia, se apresentaram a meu espírito
quatro degraus espirituais: a leitura, a meditação, a oração e a contemplação.
Esta
é a escada dos monges, que os eleva da terra ao céu. Embora dividida em poucos
degraus, ela é de imenso e incrível comprimento, com a ponta inferior apoiada na
terra, enquanto a superior penetra as nuvens e perscruta os segredos do céu
(cf. Gn 28, 12).
Estes
degraus, assim como são diversos em nome e em número, também se distinguem pela
ordem e o valor.
Se
alguém examina diligentemente suas propriedades e funções, o que produz cada um
deles para nós, e como diferem e se hierarquizam entre si, achará pequeno e
fácil por sua utilidade e doçura todo o trabalho e esforço que lhes dedicar.
A
leitura é o estudo assíduo das Escrituras, feito com aplicação do espírito.
A
meditação é uma ação deliberada da mente, a investigar com a ajuda da própria
razão o conhecimento duma verdade oculta. A oração é uma religiosa aplicação do
coração a Deus, para afastar os males ou obter o bem.
A
contemplação é uma certa elevação da alma em Deus, suspensa acima dela mesma, e
degustando as alegrias da eterna doçura.
Notada,
assim, a descrição dos quatro degraus, resta-nos ver a função de cada um em
relação a nós.
QUAL
A FUNÇÃO DE CADA UM DOS CITADOS DEGRAUS
III
A
leitura procura a doçura da vida bem-aventurada, a meditação a encontra, a
oração a pede, a contemplação a experimenta.
A
leitura, de certo modo, leva à boca o alimento sólido, a meditação o mastiga e
tritura, a oração consegue o sabor, a contemplação é a própria doçura que
regala e refaz.
A
leitura está na casca, a meditação na substância, a oração na petição do
desejo, a contemplação no gozo da doçura obtida. Para que se possa ver isto de
modo mais expressivo, suponhamos um exemplo entre muitos.
A
FUNÇÃO DA LEITURA
IV
À
leitura, eu escuto: Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus
(Mt 5, 8).
Eis
uma palavra curta, mas cheia de suaves sentidos para o repasto da alma. Ela
oferece como que um cacho de uvas. A alma, depois de o examinar com cuidado, diz
em si mesma: “Pode haver aqui algum bem, voltarei ao meu coração e tentarei, se
possível, entender e encontrar esta pureza. Pois é preciosa e desejável tal
coisa, cujos possuidores são ditos bem-aventurados, e à qual se promete a visão
de Deus, que é a vida eterna, e que é louvada por tantos testemunhos da Sagrada
Escritura.”
Desejosa
de explicar mais plenamente a si mesma esta coisa, começa a mastigar e a
triturar essa uva, e a põe no lagar, enquanto excita a razão a procurar o que é
e como pode ser adquirida tão preciosa pureza.
A
FUNÇÃO DA MEDITAÇÃO
V
Começa,
então, diligente meditação. Ela não se detém no exterior, não para na
superfície, apóia o pé mais profundamente, penetra no interior, perscruta cada
aspecto.
Considera,
atenta, que não se disse: Bem-aventurados os puros de corpo, mas sim, os puros
de coração. Pois não basta ter as mãos inocentes de más obras, se não
estivermos, no espírito, purificados de pensamentos depravados. Isto o profeta
confirma por sua autoridade, ao dizer: Quem subirá o monte do Senhor? Ou quem
estará de pé no seu santuário? Aquele que for inocente nas mãos e de coração
puro (Sl 24, 3-4).
Depois
ela considera quanto o próprio profeta deseja essa pureza, ao orar: Cria em
mim, ó Deus, um coração puro (Sl 51, 12) e ainda: Se olhei a iniqüidade no meu
coração, o Senhor não me ouvirá (Sl 66, 18).
A
meditação pensa em como era o bem-aventurado Jó solicito por essa guarda, pois
dizia: Fiz um pacto com os meus olhos para não pensar em nenhuma virgem (Jó 31,
1). Eis como se dominava o santo homem que fechava seus olhos para não ver o
que é vão, evitando olhar imprudentemente o que depois desejaria contra a sua
vontade.
Depois
de ter refletido sobre esses pontos e outros semelhantes no que toca à pureza
do coração, a meditação começa a pensar no prêmio: Como seria glorioso e
deleitável ver a face desejado do Senhor, mais bela do que a de todos os homens
(Sl 45, 3), não mais abjeta e vil (cf. Is 53, 2), não mais tendo a aparência
com que o revestiu sua mãe, mas envergando a estola da imortalidade, e coroado
com o diadema que seu Pai lhe deu no dia da ressurreição e da glória, o dia que
o Senhor fez (Sl 118, 24).
Ela
concebe que nesta visão haverá aquela saciedade esperada pelo profeta, ao
dizer: Serei saciado quando aparecer a tua glória (Sl 17, 15).
Vês
quanto licor emanou daquela pequena uva, quanto fogo nasceu duma centelha,
quanto se alargou na bigorna da meditação, este pequeno pedaço de metal:
Bem-aventurado os puros de coração, porque verão a Deus!
Mas,
quanto mais poderia alargar-se, se alguém experiente viesse ajudar!
Sinto
como “é fundo o poço”, mas não passo ainda de um noviço rude, que mal cheguei a
tirar poucas gotas.
Inflamada
por esses fachos, incitada por tais desejos, a alma começa a pressentir,
quebrado o alabastro, a suavidade do ungüento. Não é ainda o gosto, mas é já o
cheiro.
Por
esse, a alma compreende quão suave seria experimentar essa pureza, cuja
meditação a faz saber quanta alegria ela dá. Mas que fará ela?
Ardendo
ao desejo de possuí-la, não encontra em si como a pode ter. E quanto mais a
procura, mais tem sede.
Enquanto
se dá à meditação, sua dor aumenta, porque ainda não sente a doçura que a
meditação mostra existir na pureza de coração, mas sem a dar.
Porque
não cabe a quem lê nem a quem medita sentir tal doçura, se não recebe do alto
(Jo 19, 11) esse dom. Ler e meditar é comum tanto aos bons quanto aos maus, e
os próprio filósofos pagãos encontraram, pelo exercício da razão, em que
consiste, em suma, o verdadeiro bem.
Mas,
tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus (Rm 1, 21) e, presumindo
de suas forças, diziam: Venceremos graças à nossa língua, nossos lábios são
nossos (Sl 12, 5). Assim, não mereceram receber o que tinham podido ver.
Perderam-se em seus pensamentos (Rm 1, 21), e a sua sabedoria foi devorada (Sl
107, 27).
A
sabedoria deles tinha as suas fontes no estudo das ciências humanas, e não no
Espírito de sabedoria que é o único a dar a verdadeira sabedoria, isto é, a
ciência saborosa que alegra e nutre, com inestimável sabor, a alma que a
possui. É dela que foi escrito: A sabedoria não entrará na alma perversa (Sb 1,
4).
Esta
procede só de Deus. E como o Senhor deu a muitos a missão de batizar, mas
guardou só para si o poder e a autoridade de perdoar os pecados pelo batismo, o
que levou João a dizer, por antonomásia e de modo preciso: É ele que batiza,
assim também podemos dizer: “É ele que dá sabor à sabedoria, e faz saborosa a
ciência da alma”.
A
palavra é dada a todos; a sabedoria do espírito, que o Senhor distribui a quem
quer e quando quer (cf. 1 Cor 12, 11), a poucos é dada.
A
FUNÇÃO DA ORAÇÃO
VI
Vendo,
pois, a alma que não pode por si mesma atingir a desejada doçura do
conhecimento e da experiência, e que quanto mais se aproxima do fundo do
coração (Sl 64, 7), tanto mais distante é Deus (cf. Sl 64, 8), ela se humilha e
se refugia na oração. E diz: “Senhor, que não és contemplado senão pelos
corações puros, eu procuro, pela leitura e pela meditação, qual é, e como pode
ser adquirida a verdadeira doçura do coração, a fim de por ela conhecer-te, ao
menos um pouco.”
Eu
buscava, Senhor, a tua face, a tua face Senhor, eu buscava (cf. Sl 27, 8);
meditei muito tempo em meu coração, e na minha meditação cresceu um fogo (cf.
Sl 39, 4) e o desejo de te conhecer ainda mais.
Quando
me repartes o pão da Sagrada Escritura, na fração do pão te tornas conhecido
por mim (cf. Lc 24, 35). E quanto mais te conheço, tanto mais desejo
conhecer-te, não já na casca da leitura, mas no sabor da experiência.
Isto
não peço, Senhor, por meus méritos, mas pela tua misericórdia. Confesso-me
indigna pecadora, mas até os cãezinhos comem das migalhas que caem da mesa dos
seus donos (Mt 15, 27).
Dá-me,
pois, Senhor, o penhor da herança futura, uma gota ao menos da chuva celeste,
para arrefecer a minha sede, pois ardo de amor (cf. Ct 2, 5).
EFEITOS
DA CONTEMPLAÇÃO
VII
Com
essas e outras palavras, a alma inflama o seu desejo, mostra assim o que nela
se fez, por encantações invoca o seu Esposo. E o Senhor, cujos olhos são fixos
nos justos e cujos ouvidos estão não só atentos às suas preces (cf. Sl 34, 16),
mas presentes nelas, não espera a prece acabar. Pois, interrompendo o curso da
oração, apressa-se a vir à alma que o deseja, banhado de orvalho da doçura
celeste, ungido dos perfumes melhores.
Ele
recria a alma fatigada, nutre a que tem fome, sacia a sua aridez, lhe faz esquecer
tudo o que é terrestre, vivifica-a, mortificando-a por um admirável
esquecimento de si mesma, e embriagando-a, sóbria a torna.
Como
em certas funções carnais a alma se deixa a tal ponto vencer pela
concupiscência, que perde o próprio uso da razão e o homem se torna todo
carnal, assim, ao contrário, nessa contemplação superior, os movimentos carnais
são de tal modo vencidos e absorvidos pela alma, que a carne não contradiz em
nada ao espírito, e o homem se torna quase todo espiritual.
SINAIS
DA VINDA DA GRAÇA
VIII
Mas,
Senhor, como descobrir quando realizas tudo isso, e qual é o sinal da tua
vinda?
São
por acaso, os suspiros e as lágrimas os mensageiros e testemunhos da consolação
e da alegria? Se assim é, estamos em presença duma nova antinomia e de uma
significação inusitada.
Qual
é, com efeito, a relação entre consolação e suspiros, alegria e lágrimas? Se é
que se podem chamar lágrimas estas lágrimas, e não antes, abundancia
transbordante do orvalho interior derramado do céu, indício da purificação
interior, limpeza do homem exterior.
No
batismo de crianças, a purificação do homem interior é figurada e significada
pela ablução exterior. Aqui, ao contrário, a purificação exterior procede da
ablução interior.
Ó
felizes lágrimas, pelas quais são lavadas as manchas interiores, e as labaredas
do pecado se apagam! Bem-aventurados os que assim chorais, porque rireis (cf.
Mt 5, 5).
Nessas
lágrimas reconhece, ó alma, o teu Esposo, abraça o Desejado, embriaga-te em
torrente de delícias, suga do seio da consolação o leite e o mel. Estes são os
maravilhosos presentinhos e consolos que teu Esposo te distribui e concede,
isto é, tuas lágrimas e suspiros.
Ele
te trouxe nessas lágrimas a poção sob medida, o pão de dia e de noite, aquele
pão que confirma o coração do homem e é mais doce do que o favo de mel.
Ó
Senhor Jesus, se são tão doces essas lágrimas que brotam da tua lembrança e do
teu desejo, quão doce haverá de ser o gozo experimentado em tua visão
manifesta!
Se é
tão doce chorar por ti, quanto mais doce será gozar de ti?
Mas,
por que exprimimos de público tais secretos colóquios? Por que me esforço por
revelar em termos comuns essas inefáveis ternuras? Os que não as
experimentaram, não as compreenderão. Eles as leriam mais claramente no livro
da experiência, onde a unção divina ensina por si mesma (cf. 1Jo 2, 27).
De
qualquer modo, porém, a letra exterior não aproveita ao leitor, pois a leitura
da letra exterior é de pouco sabor, a não ser que uma explicação tire do
coração o sentido interior.
A
GRAÇA SE ESCONDE
IX
Ó
minha alma, prolonguei por muito tempo este discurso. Pois era bom para nós
estar ali, e contemplar com Pedro e João a glória do Esposo, e ficar largo
tempo com ele, se ele quisesse fazer ali não duas, nem três tendas (cf. Mt 17,
4), mas uma só em que estaríamos juntos, e juntos nos deleitássemos.
Mas
eis que já diz o Esposo, deixa-me partir, pois já sobe a aurora (Gn 32, 26), já
recebeste a luz da graça e a visita que desejavas.
Dada,
pois, a benção e mortificado o nervo da coxa, e mudado o nome de Jacó para
Israel (cf. Gn 32, 25-32), o Esposo longamente desejado se retira por um pouco
de tempo, depressa escapa.
Ele
se arreda, tanto em relação à visita de que falei, quanto à doçura da
contemplação. Mas permanece sempre presente, quanto à direção, à graça, à
união.
COMO
A OCULTAÇÃO DA GRAÇA COOPERA PARA O NOSSO BEM
X
Mas
não temas, esposa, não desespere, não penses que és desprezada, se o esposo te
oculta por algum tempo a sua face. Tudo isso concorre ao teu bem (cf. Rm 8, 28),
e ganhas com a partida e com a vinda.
Ele
veio para ti, e é também para ti que ele se afasta. Vem para a consolação,
afasta-se por cautela, a fim de que, a grandeza da consolação não te
ensoberbeça, evitando que a presença contínua do Esposo, te leve a desprezar as
companheiras e atribuas a consolação não à graça, mas à tua natureza.
Esta
graça, o esposo a concede quando quer e a quem ele quer, e não se possui como
direito hereditário. É conhecido o provérbio que diz que a familiaridade
excessiva gera o desprezo. Ele se afasta, pois, para não ser desprezado, se é
demais assíduo, e para que, ausente, seja mais desejado, e desejado seja
procurado com maior ardor, e longamente querido, seja, enfim, achado com maior
alegria.
Além
disso, se nunca faltasse essa consolação, que em relação à futura glória a
revelar-se em nós (cf. Rm 8, 18) é enigmática e parcial, talvez julgássemos que
temos aqui cidadania permanente e procuraríamos menos a futura.
Assim,
para não tomarmos o exílio por pátria, o penhor pelo pleno valor, é que o
Esposo vem de tempo em tempo, ora trazendo consolação, ora a substituindo pelo
leito de doente (cf. Sl 41, 4).
Ele
permite que saboreemos por um pouco de tempo a sua doçura, mas antes que ela
seja plenamente sentida, ele se esvai. Assim, voejando sobre nós de asas
abertas, ele nos provoca a voar (cf. Dt 32, 11), como se dissesse:
Experimentastes um pouco da minha suavidade e doçura, mas, se quereis
saciar-vos plenamente, correi atrás de mim ao odor dos meus perfumes (cf. Ct 1,
3), levantai os corações para o alto onde estou à direita do Pai. Aí me vereis,
não mais em figuras e em enigma, mas face a face, e então, o vosso coração
gozará plenamente, e o vosso gozo ninguém vos tirará (Jo 16, 22).
COM
QUE CUIDADO A ALMA DEVE SE COMPORTAR DEPOIS DA VISITA DA GRAÇA
XI
Mas,
acautela-te, ó esposa. Quando o Esposo se ausenta, não vai para longe. Se não o
vês, ele sempre te vê. Ele é cheio de olhos à frente e atrás (cf. Ez 1, 18).
Jamais podes fugir da sua vista. Tem junto de ti seus enviados, espíritos que
são como que mensageiros muito sagazes, que vejam como te conduzes na ausência
do Esposo, e te acusem diante dele se descobrirem em ti algum sinal de impureza
e de leviandade.
Este
Esposo é cheio de zelo. Se, acaso, acolheres um outro amante, ou te empenhas em
agradar mais a um outro, ele logo se afasta de ti e se une a outras virgens
fiéis.
É
delicado esse Esposo, é nobre, é o mais belo dos filhos dos homens (Sl 45, 3),
e assim, não quer ter uma esposa senão perfeitamente bela. Se ele vir em ti uma
mancha, ou uma ruga, logo desvia o seu olhar.
Ele
não suporta nenhuma impureza. Sê, pois, casta, sê reservada e humilde, para
merecer a visita freqüente do teu Esposo.
Temo
que este discurso se tenha prolongado demais, mas a matéria abundante me
obrigou a isto, assim como a sua doçura. Não prolonguei por minha espontânea
vontade, foi o seu encanto que me arrastou sem sentir.
RECAPITULAÇÃO
DO QUE FOI DITO
XII
Para
que se possa ver melhor em conjunto o que foi dito em forma mais desenvolvida,
vamos recapitulá-lo em resumo.
Assim
como foi notado nos exemplos propostos, podes ver como os ditos degraus se
ligam uns aos outros entre si. E como um precede a outro, tanto no tempo, como
na casualidade.
Qual
primeiro fundamento vem a leitura. Ela fornece a matéria e nos leva a
meditação.
A
meditação, por sua vez, perscruta com maior diligencia o que se deve desejar, e
como que cavando, acha e mostra o tesouro. Mas, como não pode por si mesma
obtê-lo, leva-nos à oração.
A
oração, elevando-se a Deus com todas as suas forças, obtém o tesouro desejável,
a suavidade da contemplação.
Sobrevindo
a contemplação, ela recompensa o trabalho dos três degraus referidos,
embriagando a alma sedenta com o orvalho da doçura celeste.
A
leitura é feita segundo um exercício mais exterior, a meditação, segundo uma
inteligência mais interior; a oração, segundo o desejo; a contemplação passa
acima de todo sentido.
O
primeiro degrau é dos principiantes; o segundo dos que progridem; o terceiro,
dos fervorosos; o quarto, dos bem-aventurados.
COMO
OS MESMOS DEGRAUS SÃO LIGADOS UNS AOS OUTROS
XIII
Estes
degraus são de tal modo ligados, e de tal forma servem uns aos outros, que os
precedentes pouco ou nada aproveitam sem os seguintes, e os seguintes, por sua
vez, nunca ou só raramente, podem ser adquiridos sem os precedentes.
Que
adianta, com efeito, ocupar o tempo em contínua leitura, percorrer os feitos e
os escritos dos santos, se não esprememos o seu suco, mastigando e ruminando, e
não o passamos até ao mais íntimo do coração, engolindo, a fim de por eles
considerarmos diligentemente o nosso estado, e cuidarmos de praticar as obras
daqueles cujos feitos queremos ler freqüentemente?
Mas,
como haveremos de cogitar estas coisas, ou como podemos evitar que, meditando
coisas erradas e vãs, se transgridam os limites constituídos pelos santos Pais,
a não ser que sejamos antes instruídos a tal respeito pela leitura ou pelo
ensino?
O
ensino, de certo modo, se relaciona com a leitura, o que nos leva habitualmente
a dizer que lemos para nós mesmos ou para os outros, mas também o que ouvimos
dos mestres.
Igualmente,
que vale ao homem ver pela meditação o que deve praticar, se não pode fazê-lo
senão pelo auxilio da oração e pela graça de Deus? Porque todo dom excelente e
todo dom perfeito vem de cima e desce do Pai das luzes (Tg 1, 17).
Sem
ele nada podemos, ao passo que ele faz em nós as obras, mas não sem nós. Pois
somos cooperadores de Deus (1 Cor 3, 9), como diz o apóstolo. Deus quer que lhe
supliquemos, quer que abramos à graça que vem e bate à porta, o seio da nossa
vontade, e lhe demos o nosso consentimento.
O
Senhor exigia esse consentimento da Samaritana, quando dizia: chama o teu
marido (Jo 4, 16), como se dissesse: Quero te infundir a graça; aplica o teu
livre arbítrio.
Dela
exigia a oração: Se soubesses o dom de Deus, e quem é que te diz: Dá-me de
beber, serias tu que lhe terias pedido a água viva (Ib. 10).
Inflamada,
pois, pelo desejo, volta-se para a oração, dizendo: Senhor, dá-me desta água, a
fim de que eu não tenha mais sede. Assim, portanto, a palavra do Senhor que
ouvira e depois meditara, a incitou à oração.
Como
haveria de tornar-se solícita na súplica, se antes, a meditação não a tivesse
feito arder? Ou de que lhe serviria a precedente meditação, se a oração
seguinte não obtivesse o que aquela lhe mostrara?
Para
que seja, pois, frutuosa a meditação, é preciso que se lhe siga o fervor da
oração, da qual é como um efeito a doçura da contemplação.
CONSEQUÊNCIAS
DO QUE FOI DITO
XIV
De
tudo isso podemos concluir que a leitura sem a meditação é árida, a meditação
sem a leitura é errônea, a oração sem meditação é morna, a meditação sem oração
é infrutífera.
A
oração com fervor obtém a contemplação, mas a aquisição da contemplação é rara
ou miraculosa sem a oração.
Deus,
com efeito, cujo poder não tem limites, e cuja misericórdia se estende a todas
as suas obras, às vezes suscita das pedras filhos de Abraão (cf. Mt 3, 9).
É o que se dá quando força corações duros e rebeldes a querer. Ele é como o pródigo que, segundo se costuma dizer, “dá o boi com os chifres”, quando vem sem ser chamado e se envolve sem ser procurado.
É o que se dá quando força corações duros e rebeldes a querer. Ele é como o pródigo que, segundo se costuma dizer, “dá o boi com os chifres”, quando vem sem ser chamado e se envolve sem ser procurado.
Embora
tenha isso acontecido a alguns, como a Paulo e alguns outros, não devemos, no
entanto, tentar a Deus presumindo tais dons, mas fazer o que nos compete, isto
é, ler e meditar a lei de Deus, e rogar-lhe que ajude a nossa fraqueza, e veja
a nossa imperfeição. Ele próprio nos ensina a fazer assim, quando diz: Pedi e
recebereis, procurai e achareis, batei e abrir-vos-á (Mt 7, 7). Pois agora o
reino dos céus sofre violência, e são os violentos que dele se apoderam (Mt 11,
12).
Eis,
pois, que as distinções acima assinaladas permitem perceber as propriedades dos
vários degraus, como se concatenam entre si, o que produz em nós cada um deles.
Feliz
o homem que, tendo o espírito vazio de outros cuidados, deseja sempre passar e
repassar por esses degraus. É aquele que, vendendo tudo que possui, compra o
campo em que está escondido o tesouro desejável, que é recolher-se e ver como é
suave o Senhor (cf. Sl 34, 9).
Feliz,
sim, aquele que, exercitado no primeiro degrau, bem atento no segundo, fervente
no terceiro, alçado acima de si no quarto, se eleva cada vez mais forte, por
essas subidas, até ver o Deus dos deuses em Sião (Sl 84, 8).
Bem-aventurado
é aquele, a quem é dado permanecer, ainda que por pouco tempo, nesse último
degrau, e que pode dizer: Eis que sinto a graça de Deus, eis que contemplo com
Pedro e João a sua glória no monte, eis que gozo com Jacó os abraços da bela
Raquel.
Mas
acautele-se ele depois de tal contemplação, para não cair nos abismos por uma
queda desordenada, nem voltar, depois de tão grande visita, aos lascivos atos
do mundo e às seduções da carne.
Como
não pode a fraca ponta da mente humana sustentar mais longamente o esplendor da
verdadeira luz, desça suavemente e com ordem algum dos três degraus pelos quais
subira, e assim, alternadamente, ora em um ora em outro, demores segundo a
moção do livre arbítrio e as circunstancias de lugar e de tempo. A meu ver, ele
estará tanto mais próximo de Deus, quanto mais longe do primeiro degrau. Como
é, infelizmente, frágil e miserável a condição humana!
Vemos,
pois, abertamente, com o auxílio da razão e os testemunhos das Escrituras, que
a perfeição da vida bem-aventurada está contida nestes quatro degraus, e que o
homem espiritual deve estar sempre a exercitar-se neles.
Mas,
quem é que guarda esse modo de viver, quem é ele, e nós o louvaremos? (Eclo 31,
9). Querer, muitos querem, mas fazer é de poucos. Queira Deus que sejamos
desses poucos.
QUATRO
CAUSAS QUE NOS RETRAEM DOS REFERIDOS DEGRAUS
XV
São
quatro as causas que, o mais das vezes, nos desviam desses degraus: uma
necessidade inevitável, a utilidade duma boa ação, a fraqueza humana, a vaidade
mundana.
A
primeira é desculpável; a segunda é tolerável; a terceira é miserável; a quarta
é culpável. E verdadeiramente culpável. A quem, por essa causa, é desviado do
seu propósito, melhor seria não ter conhecido a graça de Deus, do que
retroceder depois de conhecê-la. Que escusa terá do seu pecado?
Não
lhe poderá, acaso, Deus dizer, com razão: Que mais te devia fazer e não fiz?
(cf. Is 5, 4). Não existias e te criei. Tornaste-te servo do diabo e do pecado,
e te redimi. Corrias com os ímpios ao redor do mundo, e te escolhi. Dei-te
graça perante meus olhos e queria fazer em ti a minha habitação, e em verdade
me desprezastes. Não jogaste para trás somente as minhas palavras, mas a mim
mesmo, e andaste em busca das tuas concupiscências.
Mas,
ó Deus bom, suave e manso, doce amigo, conselheiro prudente, ajuda forte, como
é desumano e temerário aquele que te rejeita, e repele do seu coração um
hóspede tão humilde e clemente!
Ó
infeliz e nociva troca, rejeitar o seu Criador e acolher pensamentos maus e
prejudiciais, e entregar tão depressa a pensamentos impuros e ao espezinhar dos
porcos até mesmo aquela câmara secreta do Espírito Santo, que é o fundo do
coração, que pouco antes se dirigia às alegrias celestes! Ainda estão quentes
no coração os vestígios do Esposo, e já ali se intrometem desejos adulterinos.
É
inconveniente e indecoroso para ouvidos que acabam de ouvir palavras que não é
lícito ao homem falar (cf. 2Cor 12, 4), entregar-se tão depressa a fábulas e a
ouvir maledicências. E para olhos que acabam de ser batizados pelas lágrimas
sagradas, de repente se voltar para ver vaidades. Para a língua que acaba de
cantar um doce epitalâmio, e que tinha reconciliado o Esposo com a esposa por
suas palavras inflamadas e persuasivas, e a introduzira no celeiro (cf. Ct 2,
4), de novo se converter às conversas torpes, às leviandades, à urdidura de
dolos, à maledicência.
Não
nos aconteça, Senhor, mas se acaso, por fraqueza humana, recairmos nisso, não
desesperemos, mas de novo recorramos ao Médico clemente que levanta do pó o
indigente e ergue o pobre do monturo (Sl 113, 7). E ele, que não quer a morte
do pecador, voltará a nos curar e salvar.
Já é
tempo de pôr fim a esta carta. Oremos todos ao Senhor que no presente
enfraqueça para nós os impedimentos que nos retraem da sua contemplação; no
futuro, nos liberte inteiramente deles, levando-nos, mediante os referidos
degraus, cada vez mais fortes, a vermos o Deus dos deuses em Sião. (Sl 84, 8).
Ali, os eleitos não experimentarão mais gota a gota nem intermitentemente a
doçura da contemplação. Pois terão, em incessante torrente de gozo, a alegria
que ninguém tirará, e a paz imutável, a paz nele.
E
tu, Gervásio, meu irmão, se do alto, te for dado um dia ascender ao cume desses
degraus, lembra-te de mim e ora por mim, quando for bem para ti.
Assim,
o véu puxe o véu (cf. Ex 26, 33), e aquele que escuta, diga: Vem! (Ap 22, 17).