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domingo, 6 de setembro de 2009


TEMA II

MÍSTICA E PROFECIA NA VIDA DE MARIA, A MÃE DE JESUS

Os sete aspectos básicos da Mística e Profecia no Carmelo

1. O Chamado

2. Aceitação da vocação

3. Denuncia

4. Anuncio

5. Testemunho

6. Dúvidas e Fraquezas

7. Continuidade

Cada um destes sete aspectos pode ser visto e analisado sob os seguintes sete ângulos, para que apareça sua riqueza para a vida da Família Carmelitana na América Latina e Caribe

1. Na Bíblia

2. Nos Fundadores e Fundadoras

3. Nos Santos e Santas

4. Na Pastoral

5. Na Comunidade

6. Na história do Carmelo da AL

7. Na várias idades das pessoas

A Bíblia fala muito pouco de Maria, e Maria, ela mesma, fala menos ainda. Os textos do NT sobre Maria são todos dos evangelhos, menos três: Gálatas (Gl 4,4), Atos (AT 1,12-14), Apocalipse (Ap 12,1-17). Ao todo, a Bíblia conservou apenas sete palavras de Maria:

1ª Palavra: "Como pode ser isso se eu não conheço homem algum!" (Lc 1,34)

2ª Palavra: "Eis aqui a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra!" (Lc 1,38)

3ª Palavra: "Minha alma louva o Senhor, exulta meu espírito em Deus meu Salvador!" Lc 1,46-55)

4ª Palavra: "Meu filho porque nos fez isso? Teu pai e eu, aflitos, te procurávamos" (Lc 2,48)

5º Palavra: "Eles não têm mais vinho!" (Jo 2,3)

6ª Palavra: "Fazei tudo o que ele vos disser!" (Jo 2,5)

7ª Palavra: O silêncio ao pé da Cruz, mais eloqüente que mil palavras! (Jo 19,25-27).

Cada uma destas sete palavras é como uma janela que permite olhar para dentro da vida de Maria e descobrir nela aqueles sete aspectos:

1) Como o chamado de Deus chegava até Maria

2) Como Maria respondia ao chamado e o colocava em prática

3) Como a experiência de Deus levava Maria a denunciar o mal

4) Como Maria anunciava a Boa Nova de Deus aos irmãos e às irmãs

5) Como Maria dava testemunho da presença de Deus

6) Como Maria enfrentava as dúvidas e fazia discernimento

7) Como Maria criava continuidade realizando a sua missão.

Mesmo correndo o risco de algumas repetição, vamos olhar nestes sete espelhos da nossa vida:

1) Como o chamado de Deus chegava até Maria

O chamado de Deus chegava a Maria não em forma de palavras da Bíblia, pois naquele tempo não havia Bíblia nas casas do povo. Só havia Bíblia na sinagoga. Provavelmente, Maria nem sabia ler. Mas ela participava dos encontros da comunidade na sinagoga aos sábados, onde se fazia a leitura orante da Palavra de Deus. Depois, em casa, o povo ruminava a Palavra que tinham ouvido em comunidade e, com ela, procurava iluminar a vida para descobrir nela o chamado de Deus. Eis alguns dos momentos, registrados na Bíblia, que nos deixam entrever como o chamado de Deus chegava até Maria:

1. Através da visita do anjo Gabriel

O anjo Gabriel a saudou: “Ave, cheia de graça, o senhor está contigo!” (Lc 1,28). Maria ficou admirada com esta saudação. O anjo disse para não ter medo e explicou que ela seria a mãe do messias. Maria é realista. Ela confere a proposta do anjo com suas reais possibilidades e diz: “Como pode ser isto, pois não conheço homem!” (Lc 1,34). Novamente o anjo explica. Assim, aos poucos, o chamado de Deus vai se esclarecendo para Maria. Foi assim que ela descobriu o apelo de Deus nas palavras do anjo: conversando e dialogando.

2. Através da notícia da gravidez de Isabel

A visita do anjo Gabriel a Maria é marcada pela necessidade de ajuda a ser dada a Isabel. No início da visita se diz: “No sexto mês” (Lc 1,26), isto é, o sexto mês da gravidez da Isabel. E no fim da visita, se diz que Maria levantou e foi às pressas para a serra da Judéia (Lc 1,39) onde moravam Isabel e Zacarias. Maria ficou três meses com Isabel (Lc 1,56). Maria leu o apelo de Deus na notícia da gravidez da sua prima Isabel, uma senhora já de idade, com parto de risco à vista

3. Através das ordens injustas do império

O recenseamento decretado pelo imperador de Roma (Lc 2,1-5) fez com que Maria e José tiveram de viajar desde Nazaré no Norte até Belém no Sul. Mais de 100 km! Maria, grávida de nove meses, procura estar com José, seu marido, e o acompanha nesta longa viagem. Tempos depois, a matança das crianças de Belém, decretada por Herodes, empregado do império romano, obrigou-os a fugir para o Egito (Mt 2,13-23). Maria sabia descobrir e acolher os apelos de Deus nos fatos da vida, mesmo quando estes eram incômodos e injustos e a faziam sofrer.

4. Através do filho que se perdeu no templo

Voltando para Nazaré, no fim do primeiro dia da viagem, Maria e José descobrem que Jesus não estava na caravana (Lc 2,41-45). Esta situação os obriga a voltar até Jerusalém para encontrar o filho perdido. Foram três dias de busca até reencontra-lo no meio dos doutores (Lc 2,45). Era um apelo de Deus buscar até reencontrar o filho.

5. Através das necessidades das pessoas

Na festa de casamento em Caná, Maria descobre que não havia vinho suficiente para a festa, e toma a iniciativa de encontrar uma solução para o problema. Ela se dirige a Jesus e diz: “Eles não tem mais vinho!” (Jo 2,3). Foi na necessidade do casal de noivos, que Maria percebeu um apelo de Deus.

6. Através do sofrimento do filho

O evangelho de João relata como Maria se mantém em pé perto da Cruz para estar junto do filho (Jo 19,25-27). Jesus pendurado na cruz é um apelo de Deus para Maria. Como Abraão que, em silêncio total oferece seu filho Isaque (Cn 22,1-14), assim Maria em total silêncio oferece seu filho ao Pai.

7. Através da comunidade no Cenáculo

Depois da Ascensão de Jesus, Maria se reúne com os discípulos e discípulas e permanece com eles durante nove dias, rezando, todos unidos no mesmo sentimento, em preparação para a vinda do Espírito de Jesus (At 1,14). Ela percebe e acolhe o apelo de Deus que a convida para viver integrada na comunidade.

2) Como Maria respondia ao chamado e o colocava em prática

Nos capítulos 1 e 2 do seu evangelho, Lucas apresenta Maria como modelo de como as comunidades. devem acolher a Palavra de Deus: ruminá-la e encarná-la na vida; como aprofundá-la e fazê-la crescer; como deixar-se moldar por ela, mesmo quando não a entendem ou quando ela nos faz sofrer. A chave para ler assim estes dois capítulos é dada pelo próprio Lucas nestas palavras de Jesus: “Felizes são aqueles que ouvem a palavra de Deus e a põem em prática." (Lc 11,27-28). Vejamos como Maria ouve a Palavra de Deus e a coloca em prática:

1. Lucas 1,26-38: A Anunciação: "Faça-se em mim segundo a tua palavra!"

Depois que o anjo Gabriel esclareceu o significado da proposta de Deus, Maria não teve dúvida e disse: “Eis aqui a Serva do Senhor”. Ela se abriu e permitiu que a Palavra se encarnasse em sua vida. Saber abrir-se, para que a Palavra de Deus seja acolhida e se encarne em nós.

2. Lucas 1,39-45: A Visitação: "Bem-aventurada aquela que acreditou!"

Duas mulheres grávidas, Maria e Isabel se encontram e conversam sobre os dois filhos crescendo em seus seios. Nesta conversa tão comum e tão profundamente humana entre duas futuras mães, as duas experimentam e acolhem a presença da Palavra. Saber reconhecer e acolher a Palavra de Deus nos fatos da nossa vida.

3. Lucas 1,46-56: O Magnificat: “O Senhor fez em mim maravilhas!”

Quando a experiência de Deus é grande a ponto de ultrapassar a capacidade das palavras, então o recurso para expressar o que se vive é o canto e a poesia. Foi o que Maria fez no encontro com Isabel, quando as duas experimentaram a presença de Deus. O resultado é esse canto tão bonito do Magnificat. Saber rezar e celebrar tudo que acontece na nossa vida.

4. Lucas 2,1-20: O Nascimento: "Ela meditava sobre os fatos em seu coração"

Grávida de nove meses, Maria se encontra a caminho de Belém, dá à luz o seu filho numa estrebaria e usa a manjedoura dos animais como berço para o filho. Os primeiros convidados são os pastores, pessoas marginalizados na sociedade daquela época. A Bíblia informa que Maria meditava sobre estes fatos em seu coração (Lc 2,19). Saber ruminar os fatos da vida para poder descobrir neles todo o seu significado para nossa vida.

5. Lucas 2,21-38: A Apresentação: "Meus olhos viram a tua salvação!"

Maria vai ao templo para apresentar seu primeiro filho. Simeão, um senhor de idade, reconhece e acolhe a presença da Palavra de Deus e canta: “Meus olhos viram a tua salvação!” (Lc 2,30). Os muitos anos de vida purificaram os olhos do velho e ele reconhece o apelo de Deus num menino pequeno nos braços da mãe. O mesmo se diga de Ana, a profetisa (Lc 2,38). E Simeão avisa: "Uma espada vai atravessar sua alma". Saber ser fiel à Palavra mesmo quando ela se torna um “sinal de contradição” )Lc 2,34).

7. Lucas 2,39-52: Aos doze anos no templo: "Então, não sabiam que devo estar com o Pai?"

Os fatos fazem sofrer a Maria e ela desabafa: “Meu filho, por que você isto conosco?” Ela não entende a resposta que lhe foi dita pelo filho: “Por que me procurava? Então não sabia que devo estar nas coisas do meu Pai?” (Lc 2,49). É ruminando que ela procura descobrir o apelo de Deus neste fato doloroso da sua vida.

Estes dois primeiros capítulos do Evangelho de Lucas nos fazem sentir o perfume que envolve o nascimento e a infância de Jesus. Neles, o ambiente é de ternura e de louvor. Do começo ao fim, se louva e se canta a misericórdia de Deus que, finalmente, chegou para cumprir suas promessas. E Deus as cumpre a favor dos pobres, dos anawim, dos que souberam esperar pela sua vinda: Isabel, Zacarias, Maria, José, Simeão, Ana, os pastores.

3) Como a experiência de Deus levava Maria a denunciar o mal

1. Através do Cântico na casa de Isabel

No cântico de Maria (Lc 1,46-55) transparece uma consciência muito clara a respeito da situação de opressão em que o povo era obrigado a viver. Como os profetas Maria denuncia a desigualdade social que gera a pobreza, fruto da injustiça dos ricos. Ela diz: “Ele dispersa os soberbos de coração, derruba do trono os poderosos e eleva os humildes; aos famintos enche de bens, e despede os ricos de mãos vazias!” (Lc 1,51-53). Ela mesma já vive uma amostra do futuro quando diz: “O Todo-poderoso realizou grandes obras em meu favor: seu nome é santo, e sua misericórdia chega aos que o temem, de geração em geração. Ele realiza proezas com seu braço direito” (Lc 1,49-50). Foi o braço direito de Deus que realizou a libertação do povo do Egito. E Maria finaliza dizendo que assim se realizam as promessas de Deus: “conforme prometera aos nossos pais em favor de Abraão e de sua descendência, para sempre” (Lc 1,55).

2. Através da esperança que suscitou no povo perseguido

No Apocalipse aparece uma mulher em dores de parto, ameaçada de morte pelo dragão. A Mulher, Maria, a mãe de Jesus, simboliza a vida, a humanidade, o povo de Deus, as comunidades perseguidas pelo império romano. Simboliza tudo aquilo que fazemos, as pequenas e grandes lutas do dia-a-dia, para melhorar a situação da vida do povo. O Dragão simboliza o império romano, o poder do mal, a morte e os sistemas políticos e econômicos que oprimem e sufocam a vida.

O Dragão está diante da Mulher para devorar o menino que vai nascer. Luta desigual! Humanamente falando, a vida perde para a morte! Pois, o que pode uma mulher em dores de parto, uma pequena comunidade, um círculo bíblico, uma organização do bairro, contra o sistema neoliberal que hoje domina o mundo e ameaça desintegrar a vida no planeta? Mas Deus tomou posição a favor da vida! Evoca a profecia de Gênesis: “Eu porei inimizade entre você e a mulher, entre a descendência de você e os descendentes dela. Estes vão lhe esmagar a cabeça, e você ferirá o calcanhar deles". (Gn 3,15). A cabeça da serpente vai ser esmagada pela mulher, por Maria, a mãe de Jesus.

Deus intervém e defende o menino, defende a Mulher, defende a vida. O menino é Jesus, a descendência da Mulher (Gn 3,15). Ele nasce, vive, morre, ressuscita e sobe ao céu. Diz o Apocalipse: “Nasceu o Filho da Mulher. Era menino homem. Nasceu para governar todas as nações com cetro de ferro. Mas o Filho foi levado para junto de Deus e de seu trono” (Apc 12,5). Este versículo é a descrição mais breve da vida de Jesus! Uma única frase! A ressurreição de Jesus é o novo começo, a nova criação. Ela revela o poder com que Deus enfrenta a serpente, o Dragão, e protege o seu povo. Este era e continua sendo o fundamento da esperança e da coragem dos oprimidos!

3. Através da “Companhia de Maria” que denuncia toda hipocrisia

Na sociedade patriarcal dos judeus, as genealogias traziam somente os nomes dos homens. Por isso, surpreende o fato de Mateus ter colocado quatro mulheres ao lado de Maria entre os antepassados de Jesus: Tamar (Mt 1,3), Raab (Mt 1,5), Rute (Mt 1,5) Betsabéia (Mt 1,6) e Maria, a mãe de Jesus (Mt 1,16). Quem são estas quatro companheiras de Maria? As quatro são estrangeiras, conceberam seus filhos fora dos padrões normais e não satisfaziam às exigências das leis da pureza. Tamar, uma Cananéia, viúva, se vestiu de prostituta para obrigar Judá a ser fiel à lei e dar-lhe um filho (Gn 38,1-30). Raab, Cananéia, era uma prostituta de Jericó. Ela ajudou os israelitas a entrar na Terra Prometida e professou a fé no Deus libertador do Exodo (Js 2,1-21). Betsabea, uma Hitita, mulher de Urias, foi seduzida, violentada e engravidada pelo rei Davi, que, além disso, mandou matar o marido dela (2 Sm 11,1-27). Rute, uma Moabita, uma pobre viúva sem futuro, optou para ficar do lado de Noemi e aderiu ao Povo de Deus (Rt 1,16-18). Esta é a “Companhia de Maria”! Pelo seu modo de agir fora dos padrões tradicionais, estas quatro mulheres questionavam os padrões do comportamento da sociedade daquele tempo. Mas suas iniciativas pouco convencionais deram continuidade à linhagem de Jesus e trouxeram a salvação de Deus para todo o povo. Foi através delas que Deus realizou seu plano de salvação e enviou o Messias prometido. Realmente, o jeito de agir de Deus surpreende, faz pensar e denuncia a hipocrisia moralista!

4) Como Maria anunciava a Boa Nova de Deus

1. Colocando-se a serviço de Deus

Esclarecida pelo anjo Gabriel, Maria responde: “Eis aqui a serva do Senhor. Faça-se em mim segundo a tua palavra” (Lc 1,38). Para os pobres daquela época, a missão do Messias e do Povo de Deus não consistia em dominar os outros como Rei, Doutor, Juiz ou Sumo Sacerdote, mas sim em servir como tinha sido anunciado pelo profeta Isaías (cf. Is 41,8-9; 42,1-4; 49,1-6; 50,4-9; 52,13 a 53,12; 61,1-2). É servindo que Maria anuncia a Boa Nova e irradia a presença libertadora de Deus no meio do seu povo. Mais tarde, Jesus dirá: “Eu não vim para ser servido, mas para servir” (Mc 10,45). Aprendeu de Maria, sua mãe.

2. Visitando sua prima Isabel

O desejo de servir caracteriza a vida de Maria e a vida de tantas outras mães e donas de casas no mundo inteiro. Maria sai de casa e anda mais de 100 quilômetros, a pé, para ajudar sua prima Isabel, senhora já de idade que estava grávida e precisava de ajuda na hora do parto (Lc 1,39-41). E ficou com ela três meses, até a hora do parto (Lc 1,56).

3. Ajudando um casal pobre

Na festa de casamento em Caná (Jo 2,1-12), Maria percebe a falta de vinho. Festa de casamento em lugar pequeno como Caná, era festa de todos e de todas. Faltar vinho era fonte de vergonha para os donos da festa. Se faltava vinho era porque os noivos eram pobres. Maria intervém e consegue resolver o problema. Ela anuncia a Boa Nova do amor de Deus através dos seus atos de serviço amoroso aos pobres.

4. Assistindo ao Filho na hora da morte na Cruz

A mesma atitude servidora marca a presença de Maria ao pé da Cruz. Diante do poder romano que decidiu a morte de Jesus, ela não pode fazer nada. Faz o que está ao seu alcance: a simples presença silenciosa junto do filho, sofrendo com ele (Jo 19,25-27). Maior Boa Nova não se pode imaginar.

5. Rezando pela unidade junto com os apóstolos

A comunidade reunida no Cenáculo é a Comunidade Original, a semente da qual vai nascer a igreja no dia de Pentecostes. Sem comunidade em oração não haveria Pentecostes! Lucas insiste em três coisas que marcam esta Comunidade Original e que devem marcar a vida de todas as comunidades, para que possam anunciar a Boa Nova de Deus: (1) viver em comunhão fraterna, (2) perseverar na oração, (3) ao redor de Maria a mãe de Jesus aguardando a vinda do Espírito Santo (At 1,14).

6. Através da leitura simbólica que os primeiros cristãos faziam de Maria

No Evangelho de João, a Mãe de Jesus aparece duas vezes: nas bodas de Caná (Jo 2,1-5) e ao pé da Cruz (Jo 19,25-27). Nos dois casos ela simboliza o Antigo Testamento que aguarda a chegada do Novo Testamento e nos dois casos, ela contribui para que o Novo chegue. Maria é o elo entre o que havia antes e o que virá depois. Ela anuncia a chegada da Boa Nova de Deus.

Em Caná, no meio da festa, o vinho acabou. A observância das leis da purificação, simbolizada pelos seis potes vazios, tinha esgotado as suas possibilidades. O Antigo Testamento, através da Mãe de Jesus, reconhece seus limites e toma a iniciativa, para que o Novo possa se manifestar: "Eles não tem mais vinho!" (Jo 2,3) Jesus responde: "O que há entre mim e ti? Minha hora ainda não chegou!" (Lc 2,4). A hora de Jesus, a passagem do Antigo para o Novo, é a sua paixão, morte e ressurreição (cf. Jo 13,1). A recomendação da Mãe de Jesus aos empregados é o último grande recado do AT. Daqui para frente é Jesus quem vai dar rumo à vida do povo de Deus: "Façam tudo o que ele lhes disser!" (Jo 2,5). Jesus manda encher de água os seis potes vazios e levar ao mordomo que diz ao noivo: "Todos servem primeiro o melhor vinho. Mas você guardou o melhor vinho até o fim!" (Jo 2,10). Onde antes havia água da purificação para os ritos dos judeus, agora tem vinho bom e abundante para a festa do casamento de Deus com seu povo. Era muito vinho! Mais de 600 litros! O que fizeram com o vinho que sobrou? Estamos bebendo até hoje!

Ao pé da Cruz: Jesus entrega o Discípulo Amado à sua mãe, e entrega sua mãe ao Discípulo Amado. A Mãe de Jesus representa o AT. O Discípulo Amado representa o NT, a comunidade que cresceu ao redor de Jesus, o filho que nasceu do AT, a nova comunidade que se forma a partir da vivência do Evangelho. A pedido de Jesus, o filho, o NT, recebe a Mãe, o AT, em sua casa. Os dois devem caminhar juntos. Pois o Novo não se entende sem o Antigo. Seria um prédio sem fundamento. E o Antigo sem o Novo ficaria incompleto. Seria uma árvore sem fruto.

5) Como Maria dava testemunho da presença de Deus

O relacionamento das pessoas com Deus não se vê, não aparece para fora, mas transparece nas atitudes que tomam, nas palavras que dizem e nas coisas que fazem. Transparece nestes sete espelhos da vida de Maria. Tudo é uma manifestação de como Maria dava testemunho da presença de Deus em sua vida. Os sete espelhos mostram como o chamado de Deus chegava até ela e como ela respondia ao chamado e o colocava em prática; como a experiência de Deus a levava a denunciar o mal; como ela anunciava a Boa Nova de Deus aos irmãos e às irmãs; como enfrentava as dúvidas e fazia discernimento; como criava continuidade realizando a sua missão.

1. Transparece no canto do Magnificat

Basta ler e meditar um pouco as palavras do Cântico de Maria para se dar conta de como era profundo o relacionamento de Maria com Deus: “Minha alma proclama a grandeza do Senhor, meu espírito se alegra em Deus, meu salvador, porque olhou para a humilhação de sua serva” (Lc 1,46-48). É da certeza da presença de Deus em sua vida, que nasce em Maria a humildade de quem reconhece e assume sua dignidade e seu valor: “Doravante todas as gerações me felicitarão” (Lc 1,48).

2. Transparece no silêncio diante de José

Depois que ficou grávida, Maria conservou o silêncio, guardou o segredo de Deus. José não estava sabendo. Ele recebe um aviso do anjo em sonho: "José, filho de Davi, não tenha medo de receber Maria como esposa!" (Mt 1,20). Se José tivesse agido conforme as exigências das leis da época, ele deveria ter denunciado Maria e ela teria sido apedrejada e morta. Mas a justiça de José era maior que a justiça dos escribas e fariseus (cf Mt 5,20). Por ser justo (Mt 1,19), ele não obedeceu às exigências das leis de pureza. Sua justiça levou-o a defender a vida tanto de Maria como de Jesus.

3. Transparece nas palavras ao menino Jesus no Templo

"Meu filho, por que você fez isso conosco? Olhe que seu pai e eu estávamos angustiados, à sua procura." (Lc 2,48). Jesus respondeu: "Por que me procuravam? Não sabiam que eu devo estar na casa do meu Pai?" Mas eles não compreenderam o que o menino acabava de lhes dizer” (Lc 2,48-50). “E sua mãe conservava no coração todas essas coisas (Lc 2,51). Na noite escura da fé, nos momentos do não saber, os místicos experimentam e testemunham a presença de Deus. Foi o que aconteceu com Maria.

4. Transparece no silêncio diante do filho na cruz

“A mãe de Jesus, a irmã da mãe dele, Maria de Cléofas, e Maria Madalena estavam junto à cruz. Jesus viu a mãe e, ao lado dela, o discípulo que ele amava. Então disse à mãe: Mulher, eis aí o seu filho. Depois disse ao discípulo: Eis aí a sua mãe. E dessa hora em diante, o discípulo a recebeu em sua casa. (Jo 19,25-27). Basta contemplar esta cena e sentir na atitude de Maria o testemunho da presença de Deus.

6) Como Maria enfrentava as dúvidas e fazia discernimento

Todos e todas temos momentos na vida em que as fraquezas da nossa condição humana se tornam como neblina que dificulta a visão e exige uma atitude de fé para poder continuar andando mesmo no escuro, sabendo que Deus é maior do que a escuridão que nos envolve. Estes momentos são mais freqüentes e mais comuns do que se pensa. Eles aparecem na vida de Maria:

1. No diálogo com o Anjo Gabriel

Na anunciação, quando a proposta do anjo ultrapassa as possibilidades reais da sua pessoa, Maria pergunta: “Como pode ser? Não tenho marido!” (Lc 1,34) O anjo Gabriel esclarece e ela aceita. É no diálogo sincero que Maria faz discernimento e esclarece suas dúvidas.

2. Na romaria diante da perda do filho

Na peregrinação a Jerusalém, ela perde o filho e experimenta o medo e o não saber. Junto com José, ela volta e enfrenta o problema até reencontrar o filho. E ainda pergunta: “Meu filho, por que você fez isso conosco?” (Lc 2,48) Mas. Ela não entendeu a resposta do filho (Lc 2,50). Nem sempre o discernimento é completo, mas é o suficiente para poder caminhar na escuridão da fé.

3. Na iniciativa dos parentes

Quando os parentes souberam que Jesus tinha tanta atividade que não lhe sobrava tempo para comer, eles saíram para detê-lo, porque diziam: Ele enlouqueceu!" (Mc 3,20-21). Foram até Cafarnaum. Ficando do lado de fora da casa onde Jesus estava, mandaram chamá-lo. Havia uma multidão sentada em torno dele. Disseram-lhe: "Eis que tua mãe, teus irmãos e tuas irmãs estão lá fora e te procuram. Ele perguntou: "Quem é minha mãe e meus irmãos?" E repassando com o olhar os que estavam sentados ao seu redor, disse: "Eis a minha mãe e os meus irmãos. Quem fizer a vontade de Deus, esse é meu irmão, irmã e mãe!" (Mc 3,31-35). Marcos diz que Maria estava junto com os parentes que queriam levar Jesus de volta para Nazaré. Não sabemos qual foi o sentimento de Maria. De qualquer maneira, o discernimento que os parentes queriam fazer, não teve o resultado que eles esperavam, pois Jesus não concordou e não voltou com eles para Nazaré. Fatos assim ajudam a amadurecer e a melhorar o discernimento que se busca.

4. Na palavra do velho Simeão

No templo, Maria ouve o velho Simeão dizer que uma espada de dor iria atravessar o seu coração (Lc 2,35). Uma palavra dita assim com relação ao futuro faz com que Maria vai ter que viver a vida inteira com a ameaça da espada da dor. Nem tudo se clareia na vida. A escuridão faz parte da natureza e da vida. Metade das 24 horas de todos os dias é luz e metade é escuridão.

5. No grupo das mulheres na Via Sacra

São Lucas fala das mulheres que querem dar apoio a Jesus carregando sua cruz (Lc 23,27). Maria devia estar com este grupo de mulheres. O único discernimento que recebem é a Palavra de Jesus que não tirou a dor nem a Cruz: “Não chorem por mim, mas chorem por vocês mesmas e por seus filhos!” (Lc 23,28).

6. Diante do filho na Cruz

No Calvário, diante do filho pendurado na Cruz, sem nenhum alívio, Maria enfrenta a dor, a fraqueza, o desprezo, a condenação, mas continua em pé, sem esmorecer, e sem dizer uma só palavra. A dor é maior. Seu silêncio vale mais que mil palavras (Jo 19,25-27).

7) Como Maria criava continuidade realizando a sua missão

Cada um dos sete livros do Novo Testamento que falam de Maria, a Mãe de Jesus, traz uma sugestão de como deve ser nossa devoção a ela para que esteja em continuidade com o ensinamento da Bíblia e crie continuidade na nossa maneira de viver e praticar o Evangelho:

1. Carta aos Gálatas: Jesus, nascido de uma mulher, nascido sob a lei (Gl 4,4)

* Dizendo que Jesus é "nascido de uma mulher", Paulo afirma a humanidade Jesus. Ele é igual a nós em tudo, menos no pecado. Dizendo que é "nascido sob a lei", ele afirma que Jesus é judeu, capaz de libertar todos que são escravos da lei e de fazer com que possam receber a adoção filial.

* É importante que a devoção a Maria nos leve a ser humanos como Jesus e comprometidos com os que vivem oprimidos, para que possam libertar-se e viver como filhos na casa do Pai, da comunidade.

2. Evangelho de Marcos: Quem é minha mãe? Quem ouve e pratica a Palavra!

* Marcos mostra como Jesus rompe o círculo estreito da família fechada sobre si mesma e como ele procura abri-lo para ouvir e praticar a Palavra de Deus que cria entre nós a dimensão da comunidade.

* É importante acentuar que a verdadeira devoção a Maria deve consistir em “ouvir e praticar a Palavra de Deus” que cria em nós a necessária abertura para a vida em comunidade.

3. Evangelho de Lucas: Maria como símbolo e imagem da Igreja:

* O documento do Concílio Vaticano II, Lúmen Gentium, faz como Lucas: apresenta Maria integrada na vida da Igreja e não separada como se fosse uma grandeza distinta, à parte.

* É importante que nossas Comunidades saibam apresentar a devoção a Nossa Senhora como parte integrante da fé e não como uma devoção separada do resto.

4. Evangelho de Mateus: Maria na companhia de outras quatro mulheres

* A imagem que Mateus nos apresenta de Maria na genealogia de Jesus é bem diferente da imagem tradicional. Maria aparece em companhia com mulheres marginalizadas pela lei, mas devotadas à causa do bem do povo.

* É importante que nossas Comunidades aprendam a viver a devoção a Nossa Senhora como acolhimento às pessoas marginalizadas que são a Companhia de Maria.

5. Evangelho de João: Maria como símbolo do Antigo Testamento

* Maria aparece como representante das esperanças do AT que se realizam em Jesus. Ela sabe reconhecer os limites das tradições do seu povo e faz com que o povo possa descobrir e acolher a chegada da Boa Nova da presença do Reino de Deus em sua vida.

* É importante que, como Maria, nossas Comunidades saibam reconhecer os limites das tradições e saibam apresentar Jesus como a resposta de Deus para as esperanças do povo.

6. Atos dos Apóstolos: Maria como símbolo da unidade

* Maria aparece como símbolo e fator de unidade. Através da oração e da espera do Espírito ela consegue fazer com que as várias tendências existentes na comunidade aprendam a conviver em harmonia.

* É importante que, nas nossas comunidades, a devoção a Nossa Senhora nos ajude a cultivar a unidade e nos leve a criar formas novas de união e de ecumenismo.

7. Apocalipse de João: Maria como defesa da vida dos perseguidos

* Maria aparece como símbolo da fraqueza na qual se revela o poder libertador de Deus em defesa das comunidades perseguidas pelo império romano (e pelo império neoliberal).

* É importante que nossas comunidades saibam descobrir a força de Deus que se esconde na fraqueza e que saibam arrancar a imagem de Maria da mão dos grandes e devolvê-la aos pequenos.

Maria, a m ãe de Jesus, é a mulher que enfrenta e vence o Dragão, símbolo da luta contra as forças da morte em defesa da vida (Apocalipse 12,1-6). Assim ela aparece nas grandes devoções populares em quase todos os países da América Latina: Nossa Senhora de Guadalupe, Nossa Senhora de Lugan, Nossa Senhora do Carmo, Nossa Senhora da Conceição Aparecida. A imagem da Mulher em luta contra o Dragão da maldade também chama a atenção para o lugar central que as mulheres ocupam hoje nas Comunidades Eclesiais de Base, nas lutas populares, na resistência do povo. Elas imitam de perto a atitude de Maria. Deste modo, Maria cria continuidade e nos ajuda a realizar nossa missão.


TEMA III

Congresso da ALACAR

Mística e Profecia no Carmelo: a experiência fundante.

Frei Francisco de Sales A. Batista, O. Carm.

1. A vocação: a experiência do Deus Vivo.

Toda experiência vocacional tem sua origem e princípio em um movimento amoroso plantado por Deus no coração humano que se transforma numa inquietação gerada pela consciência da presença daquele que vive e age na vida e na história das pessoas, impelindo-as a uma resposta generosa que envolve a construção de um ideal. Os primeiros Carmelitas viveram esta experiência quando, mergulhados num contexto um tanto ‘medíocre’ de vivência da fé, buscaram dar vazão a um desejo incontido de radicalidade, e se fizeram peregrinos do absoluto, tentando dar sentido à vida através da incessante busca da face do Deus vivo. Movidos por este desejo de fidelidade radical ao evangelho, eles peregrinaram para a Terra Santa, com o intuito de lá encontrarem o Senhor da terra, descobrirem os seus caminhos, trilharem suas veredas (Sl.24,4), construindo assim o sentido de plenitude para suas vidas dispersas.

O movimento que eles integraram, chamado Peregrinatio Ierosolimitana, tinha como foco principal a busca de um contato quase físico com as fontes mais genuínas da fé, simbolizadas nos lugares marcados pelos feitos e acontecimentos narrados nas Escrituras Sagradas, especialmente aqueles da vida de Jesus. Nestes espaços, eles descobrem a face do Deus vivo e encontram a razão para a inquietação que os movia num processo de êxodo e transformação, cuja meta era a conformação com Cristo na sua vida, paixão, morte e ressurreição. “A terra de Jesus é o espaço que acolhe a epifania do único Deus, o Pai, revelado e manifestado no Filho Salvador, pela potência do Espírito Santo” (Carlo Cicconetti, in Simboli Carmelitani, p. 73).

O Monte Carmelo foi o espaço referencial para o qual os primeiros carmelitas se sentiram convocados a fazer a experiência de encontro com o Deus vivo. É uma realidade carregada de simbolismo e significados, com o poder de revelar a natureza da dinâmica do propósito de vida por eles abraçado e de conferir ao grupo uma identidade:

· O Monte é um jardim onde a vida é exuberante, memorial do jardim primaveril, no qual o ser humano, moldado à imagem e semelhança do Criador, goza de sua familiaridade;

· É o lugar no qual, a beleza, com seus matizes e cores, revela-se como via para a redenção do ser humano, feito íntegro para a experiência do belo;

· É solo profético, marcado pela presença e ação do Profeta Elias, ícone do homem apaixonado por Deus, que vive em sua presença e se deixa consumir de zelo pela causa do Senhor e que se transforma em modelo e guia para a vida de santidade que eles buscavam viver;

· É um memorial do caminho de ascensão para Deus, símbolo da longa jornada empreendida pelo peregrino até à íntima união com o Senhor.

2. Nova consciência nascida da certeza “Deus conosco” – liberdade interior

O Monte Carmelo foi lugar do encontro das aspirações dos corações inquietos dos primeiros carmelitas. O monte fez ecoar em seus corações a voz do deserto, do silêncio como lugar da redenção de suas vidas. Ali, eles deram à luz a um modo de viver que acentuava uma escala de valores diversa daquela apresentada pelas expectativas de felicidade da sociedade na qual eles vivam e da qual se retiraram para salvar suas vidas. Recordavam à Igreja do seu tempo, que o cristão “não tem aqui cidade permanente, mas busca aquela futura” (Heb. 13,14). O silêncio, por eles escolhido, foi o campo de batalha (combate espiritual) para a conquista da terra do próprio coração para Cristo. No retiro do Carmelo, eles recompõem, de forma radical, o tecido da própria humanidade, agora compreendida à luz do mistério do amor de Deus. A montanha deixou de ser um espaço geográfico determinado para ser uma terra de vastas dimensões, o qualificativo da própria experiência interior de ascensão para Deus. O Carmelo será, pois, uma montanha interior que, na jornada para a intimidade com Deus, atuará como lugar da mais profunda solidão e da mais intensa comunhão, enquanto componentes indispensáveis para a ascensão do Carmelita na construção da liberdade interior.

Assim posto, descobre-se o caminho Carmelita, na experiência fundante do Carmelo, passa necessariamente pelo monte, com todos os significados que a espiritualidade e a tradição mística lhe atribuíram. Para os primeiros Carmelitas foi o lugar da parada dos peregrinos, sua Terra Santa, o espaço do encontro que transformou suas vidas, o caminho da subida, da jornada para a comunhão com o Senhor. O Monte confere ao grupo um nome, uma identidade, uma terra. Eles irão levá-lo a todos os recantos por onde se espalharam, fazendo de suas habitações outros “Carmelos”, lugares evocativos da aventura inicial nos quais se custodia, nutre e se desenvolve o dom particular com o qual o Espírito Santo agraciou aqueles que foram os primeiros pais. Eles foram peregrinos, homens inconformados com um modelo de viver a fé que não mais respondia às demandas de sua própria busca. Inquietos e movidos pelo desejo de seguir a Jesus mais de perto, desinstalaram-se, fizeram as rupturas necessárias, construíram o novo e se arriscaram para garantir a autenticidade de sua fé e de sua busca e a liberdade que sonhavam alcançar

3. Justiça e a Paz: lutar pela reconstrução da convivência social mais justa e mais fraterna.

Na experiência original dos primeiros Carmelitas há um propósito fundamental a partir do qual toda a existência é ordenada e a própria dignidade da vida cristã que eles buscavam viver e testemunhar com radicalidade é reconstruída, de forma a transformar-se em força de convocação, oferecendo à Igreja e à sociedade um novo modo de estar no mundo como resposta às demandas da fé. A Regra expressa na atitude de “... in obsequio Ihesu Christi vivere” a perspectiva da nova construção da existência. É ao mesmo tempo um convite e um indicador permanente a partir do qual a qualidade da vida é retomada. “Viver no obséquio de Jesus Cristo” implica assumir uma atitude de seguimento incondicional de Jesus como Mestre, contemplá-lo como modelo sublime da vida que se busca; é abrir-se a uma atitude de imitação, fazendo o que fez Jesus, tendo o seu sentimento, pensando como Ele, amando com o seu coração, agindo com as mãos de Cristo. Os Carmelitas tinham a consciência de que sua razão de ser estava centrada em Cristo e a transformação da vida por eles empreendida tinha como meta a plena configuração em Cristo.

Este processo não é uma simples compreensão da vida que atinge somente o nível da racionalidade. É algo concreto, permeado de mediações, atitudes e valores que expressam de forma vivencial a novidade que foi abraçada. A Regra oferece estes elementos ordenados em um ritmo, com espaços sempre abertos para a ação criadora de Deus que, pelo seu Espírito, irrompe no andar da história. A Vida em comunidade, a solidão, o trabalho, a comunhão de bens, o silêncio que favorece a justiça, o combate espiritual, o serviço desinteressado, a obediência e o discernimento são atitudes permanentes que forjam a construção de uma nova ordem de valores, qualificam as relações e propõe uma forma de vida, ordenada por um justo equilíbrio de forças, que se transforma em anúncio e testemunho para a Igreja e para a sociedade.

4. Solidariedade: refazer o relacionamento humano

Um dado significativo das origens do Carmelo é o fato de não existir a figura de um fundador ou líder carismático que condensa em si a energia carismática inicial que é transmitida aos discípulos que, cativados pelo seu modo de ser, são congregados em torno dele. Deparamo-nos nas origens, com um grupo de eremitas que, reunidos em torno de um propósito comum, colocavam o ideal da primitiva comunidade de Jerusalém (At. 2, 42-47) no centro de sua visão. O ideal da primeira comunidade dos cristãos atua como protótipo e paradigma em todos os movimentos de reforma ao longo da história da Igreja. No tempo do nascimento do Carmelo, quando a imagem Jerusalém despertava o fascínio em peregrinos que ansiavam por uma vida de autêntica fidelidade ao Evangelho, o tipo bíblico da comunidade primitiva inspirou de forma decisiva o ordenamento da comunidade dos primeiros carmelitas, na sua estrutura e valores fundamentais.

A arquitetura da vida e do espaço, na sua dinâmica, era organizada de forma a condensar valores permanentes que visavam responder a um desejo comum de fidelidade radical à proposta do Evangelho. Assim, a comunidade enquanto lugar de vivência da fraternidade tornar-se-á o referencial fundante primordial. A razão da existência do Carmelo deve-se, portanto, a uma comunidade de irmãos que discerniu a vontade de Deus e ordenou a vida através de atitudes e estruturas que respondessem ao propósito de vida por eles abraçado.

Viviam em um local aprazível e solitário, distantes o suficiente uns dos outros; dedicavam o seu tempo à oração e reflexão; liam as Escrituras e procuravam marcar com suas linhas os seus corações; jejuavam; trabalhavam e marcavam suas vidas ao compasso do silêncio; reuniam-se diariamente para a eucaristia e semanalmente para revisar a vida à luz do propósito comum; viviam uma vida de pobreza; seu líder era eleito e morava à porta da habitação comum; acolhiam e serviam àqueles que batiam a sua porta. O ritmo de vida no Monte Carmelo centrava suas existências dispersas através do binômio solidão/comunhão e apaziguava suas mentes confusas, libertando os seus corações das urgências e compulsões do tempo, dispondo-os a uma vida de fraternidade operante que se transformou em sinal e profecia para o mundo dilacerado por discórdias e divisões.

Esta visão original do Carmelo condensa o ideal primeiro de fidelidade que se aninhava no coração daqueles que, advindos de vários lugares e contextos humanos e sociais decidiram formar uma fraternidade. A Regra procurou expressar em suas linhas, através de atitudes muito concretas, uma forma de vida que se transformou no referencial permanente, na fonte de onde todo o Carmelo, na sua diversidade de expressões, busca nutrir-se, enquanto torna histórico em cada tempo o carisma concedido. Enraizados nestes valores permanentes, o Carmelo, em todos os tempos, assume a responsabilidade comum de ser testemunha permanente de uma “fraternidade contemplativa no meio do povo” com todas as conseqüências que esta afirmação encerra.

5. Utopia do Reino: animar a Esperança do povo.

O grupo primitivo do Carmelo é parte de um grande movimento de renovação que toma conta da Igreja e da sociedade no final do Século XII e início do século XIII e que se expressou concretamente numa multiforme presença de formas de vida, que no confronto com o Evangelho, questionavam o modus vivendi da sociedade e da Igreja do seu tempo, e buscavam oferecer novas formas radicais e autênticas de seguimento de Jesus Cristo em resposta às transformações porque passavam a sociedade e a Igreja no seu tempo. Alguns desses movimentos, em sua maioria laicais, acentuavam a pobreza evangélica como razão fundamental de suas aspirações de fidelidade; outros buscavam na solidão dos ermos as raízes da própria fé, recuperando os valores essenciais da vida cristã em confronto direto com a integridade do ensinamento evangélico. Todos, a partir de um novo modo de vida, chamavam atenção de toda a Igreja para um retorno ao essencial e acendiam no coração das pessoas o desejo de conversão e a esperança de uma coerência de vida em conformidade com o Evangelho.

O “lugar” vocacional dos primeiros Carmelitas transforma-se em paradigma para a formação da identidade do grupo, intimamente ligado ao Carmelo e ao Profeta Elias. Este é eleito como figura arquetípica para o dinamismo do modo de vida dos eremitas do Carmelo. Os testemunhos mais antigos relacionam o grupo dos primeiros carmelitas ao Monte e à figura do Profeta. A partir destes referenciais, explicitam o propósito e o fim da vida por eles abraçada. O monge grego Johannes Phokas nos conta em um relato de viagem do ano 1185, que um dos cruzados do ocidente, vindo da Calábria, foi inspirado pelo próprio Profeta Elias a reunir no Monte Carmelo os eremitas que viviam na redondeza, a fim de que se juntassem para uma vida em comum. Também é digno de menção o testemunho de Jacques de Vitry em sua “História Orientalis” sobre a vida dos primeiros Carmelitas e a dignidade de sua vocação: “Outros segundo o exemplo e imitação do santo e solitário homem, o profeta Elias, vivem a solidão, no Monte Carmelo... em pequenas celas, como abelhas do Senhor, produzindo o mel da doçura espiritual” (Ancient Carmelite Texts – Publicação dos Carmelitas Descalços da Inglaterra 1982)

Sob muitos aspectos, o Profeta Elias transforma-se na figura inspiradora referencial para os Carmelitas: sua intimidade com Deus, sua fé, sua experiência de fragilidade, sua ação em defesa da justiça e da dignidade da vida, sua vida em comunhão com os “filhos dos profetas”, serão sempre evocados como referenciais para a novidade de vida que eles buscam testemunhar.

A eleição da Virgem Maria como “Senhora do Lugar”, irmã e modelo da fidelidade desejada, em quem os Carmelitas “contemplam como em perfeita imagem o que esperam e desejam ser na Igreja”, confere um caráter particular à forma de vida dos Eremitas do Carmelo e uma dinâmica própria de familiaridade com Deus e de construção da fraternidade entre os irmãos que, sem dúvida, condensa uma força de profecia e anúncio para a Igreja no seu modo de presença no mundo.

6. Discernimento: saber distinguir a falsa profecia.

Na vida da comunidade carmelita, para além da norma, a Regra atua como poderoso instrumento de animação da vivência autêntica do Carisma. Ela fornece elementos e atitudes para um contínuo discernimento da dimensão testemunhal e profética da vida:

  • A escuta e a meditação quotidiana da Palavra de Deus no recolhimento da cela constrói e dinamiza a qualidade da vida. A Palavra Sagrada deve habitar na boca e no coração do Carmelita, a fim de que tudo seja feito na Palavra do Senhor (Regra 19). A familiaridade com a Palavra sagrada deve marcar a vida de cada Carmelita. A qualidade de nossa resposta ao chamado que Deus nos fez passa necessariamente pela capacidade de nossa familiaridade com a Sagrada Escritura. A freqüência quotidiana à Palavra, através da escuta, meditação, oração, plasmam, a partir do seu interior, o Carmelita que, nutrido com o alimento da Verdade revelada, adquire a sensibilidade divina para marcar o compasso da vida no ritmo da Palavra de Deus.
  • A reunião semanal (regra 15) na qual se trata da observância da vida é outro instrumento permanente de discernimento da qualidade da vida em confronto com os valores perenes e sustentam o edifício da existência da Comunidade Carmelita.
  • O oratório, lugar da oração e da Eucaristia comum, enquanto espaço central na arquitetura do Carmelo fornece o nutrimento necessário para a qualidade da vida que se busca testemunhar. O Carmelita é chamado cada dia da solidão de sua cela para o encontro com os demais ao redor da mesa do Senhor. Lá acontece a verdadeira Koinonia e se descobre a alegria de viver em comunidade como força de testemunho. Para a comunidade carmelita, a eucaristia não é somente um anúncio de fraternidade, mas um sinal visível de sua realização. A participação na mesa Eucarística expressa a unidade de vidas doadas, oferecidas, à semelhança de Jesus que se doou plenamente pela humanidade. “Nisto nós conhecemos o amor: Ele deu sua vida por nós e nós também devemos dar nossa vida pelos irmãos” (1Jo. 3, 16). Da eucaristia vivida nasce a missão e o testemunho com todas as dimensões e horizontes que eles comportam.
  • O combate espiritual, necessário para a construção da autêntica fidelidade ao propósito de seguimento radical de Cristo, expressa o dinamismo da vida que, por um lado, deve estar acompanhado de contínua vigilância, para preservar seus valores fundamentais, e, por outro, deve ser combativo no sentido do enfrentamento permanente de todas as forças que se erguem em oposição ao ideal de vida perseguido.

· A regra recomenda o silêncio como um valor fundamental e espaço para o discernimento e o equilíbrio da qualidade da vida e para a prática da justiça. O silêncio recomendado é a atitude de quem descobriu que em Deus se encerra tudo aquilo que anela o coração humano. Ele é o único que pode curar este vazio do ser humano, que ninguém pode preencher. O cultivo do silêncio contemplativo na vida do Carmelita torna-o capaz de reconstruir-se interiormente e reconstruir o tecido da comunidade de forma mais digna e humana. No silêncio com Deus, aprende-se a escutar e amar aos seres humanos. Desde esse silêncio é mais fácil captar todo o bom, o belo, o digno, o grande que há na vida humana. E é mais fácil também escutar os sofrimentos e a dor da humanidade ferida, pois “é no silêncio que se cultiva a justiça”[1]O verdadeiro silêncio faz o carmelita mais sensível aos medos, anseios e esperanças dos seres humanos. É sua experiência de Deus que o leva a amar mais profundamente a comunidade humana e a ser sinal de esperança no mundo.

· A autoridade do testemunho do Apóstolo São Paulo é apresentada como caminho seguro para um discernimento e para a autenticidade da vida: “... tendes o ensinamento e igualmente o exemplo de São Paulo, apóstolo, por cuja boca Cristo falava, e foi constituído e dado por Deus como pregador e mestre dos gentios na verdade e na fé, o qual se seguirdes, não podereis errar” (Regra 20)

· Os “espaços abertos” presentes em todo o texto da Regra favorecem o dinamismo da vida, permitem uma fidelidade criativa, numa atitude de contínua atenção aos sinais dos tempos e lugares que interpelam e demandam respostas novas que vão para além do texto. “Se alguém, porém, fizer mais do que o prescrito, o Senhor mesmo, quando voltar, o recompensará; seja usada, contudo, a discrição, que é a moderadora das virtudes”. (Regra 24).

7. Comunidade orante e profética.

Fiéis à grande tradição da vida contemplativa, que, na história Igreja, nasce como um movimento marginal de apelo à fidelidade ao Evangelho e volta às fontes mais genuínas da fé, os primeiros Carmelitas, a partir de um estilo de vida centrado na profunda experiência de Deus, são sinais e profecia para a Igreja e para o mundo. A vida de oração e a profecia são realidades que se entrecruzam na experiência do Carmelo e jamais podem ser dissociados. Os primeiros Carmelitas foram uma comunidade orante porque assumiram a audácia profética e foram profetas porque fizeram de sua experiência de comunidade contemplativa uma força de anúncio e testemunho em tempos de profundas e necessárias transformações, sobretudo quando o fosso entre o ideal evangélico e a prática concreta dos cristãos fazia ecoar um grito de redenção para a Igreja. Ofereceram, com a simplicidade de seu modo de vida, um caminho alternativo para a comunidade dos seguidores de Jesus.

Eles não se permitiram ser meros expectadores e simples observadores do mundo no qual viviam e foram capazes de nutrir a esperança, alimentar um sonho e comunicaram de forma contagiante uma visão poderosa da vida capaz de perpassar os séculos e chegar aos nossos dias com o mesmo frescor das origens.

A experiência fundante do Carmelo condensa, pois, uma força simbólica potente. Nossos primeiros pais são memória viva das verdades fundamentais sobre nossa vida enquanto Carmelitas, realidades que, comumente, tendemos a esquecer. São eles, de fato, profetas da única verdade capaz de despertar em nós o desejo de aprender de novo aquilo que realmente devemos ser e recompor a beleza de nossa existência. “Recordemos que nossa vida religiosa tem seus fundamentos entre as rochas do Carmelo e que nossos antigos pais viveram no deserto [...] com grande santidade. Se queremos ser seus legítimos imitadores, amemos a solidão com singular afeto. Com razão se podem aplicar aqui as palavras do profeta Isaías: ‘olhai para a rocha da qual fostes talhados, para a pedreira de onde fostes tirados’(Is. 51,1)” (Diretório dos noviços da Reforma Touronense III,5 )


[1] Regra 21