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quarta-feira, 2 de maio de 2012

Carta Sobre A Vida Contemplativa Ou Escada Dos Monges


Carta Sobre A Vida Contemplativa Ou Escada Dos Monges



Extraído do livro: Lectio Divina, Ontem e Hoje, Edições Subiaco, 2005 – Tradução de D. Timóteo Amoroso Anastácio

Esta carta sobre a Vida Contemplativa ou Escada dos Monges, proveniente do século XII, é um clássico da espiritualidade monástica, enquanto retoma e sistematiza os ensinamentos da tradição monástica anterior sobre a lectio divina, e enquanto guiou gerações de monges nos caminhos da oração interior, como o testemunha o grande número de manuscritos que chegaram até nós. Seu autor é Guigo II, nono prior da Grande Cartuxa, que exerceu este cargo entre os anos 1174 e 1180, vindo a falecer em 1188. Escreveu ainda Doze Meditações e um opúsculo sobre o Magnificat.
A Escada dos monges, sua obra-prima e também da espiritualidade ocidental, foi primorosamente traduzida por D. Timóteo Amoroso Anastácio, antigo abade do Mosteiro de S. Bento da Bahia, diretamente do texto crítico latino, editado por E. Colledge, O.S.A. e James Walsh, S.J., na coleção Sources Chrétiennes no. 163, Ed. Do Cerf, Paris, 1970, 81-123.



Carta de Dom Guigo, Cartuxo, ao Ir. Gervásio, sobre a vida contemplativa

I
Ao seu dileto irmão Gervásio, o irmão Guigo: o Senhor seja o seu deleite.
Amar-te, irmão, é para mim uma dívida, pois foste tu que, primeiro, começaste a me amar. E sou obrigado a te responder, porque, anterior, tua carta me convida a escrever-te.
Proponho-me, assim, a te transmitir certas coisas que pensei sobre o exercício espiritual dos monges, a fim de que possas julgar e corrigir meus pensamentos a propósito de um assunto que tu melhor conheces por experiência, do que eu pela reflexão.
É justo que eu te ofereça, em primeira mão, as primícias do meu trabalho. Pois convém que colhas os primeiros frutos da recente plantação que, em louvável furto, subtraíste à servidão do Faraó e à mole servidão, e colocaste no exército em ordem de batalha, enxertando sabiamente na oliveira o ramo habilmente cortado da oliveira selvagem (cf. Sl 144, 2; Ex 13, 14; Ct 6, 3-9 e Rm 11, 17.24)


OS QUATRO DEGRAUS
     
II
Um dia, ocupado no trabalho manual, comecei a pensar no exercício espiritual do homem. E eis que, de repente, enquanto refletia, se apresentaram a meu espírito quatro degraus espirituais: a leitura, a meditação, a oração e a contemplação.
Esta é a escada dos monges, que os eleva da terra ao céu. Embora dividida em poucos degraus, ela é de imenso e incrível comprimento, com a ponta inferior apoiada na terra, enquanto a superior penetra as nuvens e perscruta os segredos do céu (cf. Gn 28, 12).
Estes degraus, assim como são diversos em nome e em número, também se distinguem pela ordem e o valor.
Se alguém examina diligentemente suas propriedades e funções, o que produz cada um deles para nós, e como diferem e se hierarquizam entre si, achará pequeno e fácil por sua utilidade e doçura todo o trabalho e esforço que lhes dedicar.
A leitura é o estudo assíduo das Escrituras, feito com aplicação do espírito.
A meditação é uma ação deliberada da mente, a investigar com a ajuda da própria razão o conhecimento duma verdade oculta. A oração é uma religiosa aplicação do coração a Deus, para afastar os males ou obter o bem.
A contemplação é uma certa elevação da alma em Deus, suspensa acima dela mesma, e degustando as alegrias da eterna doçura.
Notada, assim, a descrição dos quatro degraus, resta-nos ver a função de cada um em relação a nós.

QUAL A FUNÇÃO DE CADA UM DOS CITADOS DEGRAUS

III
A leitura procura a doçura da vida bem-aventurada, a meditação a encontra, a oração a pede, a contemplação a experimenta.
A leitura, de certo modo, leva à boca o alimento sólido, a meditação o mastiga e tritura, a oração consegue o sabor, a contemplação é a própria doçura que regala e refaz.
A leitura está na casca, a meditação na substância, a oração na petição do desejo, a contemplação no gozo da doçura obtida. Para que se possa ver isto de modo mais expressivo, suponhamos um exemplo entre muitos.

A FUNÇÃO DA LEITURA

IV
À leitura, eu escuto: Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus (Mt 5, 8).
Eis uma palavra curta, mas cheia de suaves sentidos para o repasto da alma. Ela oferece como que um cacho de uvas. A alma, depois de o examinar com cuidado, diz em si mesma: “Pode haver aqui algum bem, voltarei ao meu coração e tentarei, se possível, entender e encontrar esta pureza. Pois é preciosa e desejável tal coisa, cujos possuidores são ditos bem-aventurados, e à qual se promete a visão de Deus, que é a vida eterna, e que é louvada por tantos testemunhos da Sagrada Escritura.”
Desejosa de explicar mais plenamente a si mesma esta coisa, começa a mastigar e a triturar essa uva, e a põe no lagar, enquanto excita a razão a procurar o que é e como pode ser adquirida tão preciosa pureza.

A FUNÇÃO DA MEDITAÇÃO

V
Começa, então, diligente meditação. Ela não se detém no exterior, não para na superfície, apóia o pé mais profundamente, penetra no interior, perscruta cada aspecto.
Considera, atenta, que não se disse: Bem-aventurados os puros de corpo, mas sim, os puros de coração. Pois não basta ter as mãos inocentes de más obras, se não estivermos, no espírito, purificados de pensamentos depravados. Isto o profeta confirma por sua autoridade, ao dizer: Quem subirá o monte do Senhor? Ou quem estará de pé no seu santuário? Aquele que for inocente nas mãos e de coração puro (Sl 24, 3-4).
Depois ela considera quanto o próprio profeta deseja essa pureza, ao orar: Cria em mim, ó Deus, um coração puro (Sl 51, 12) e ainda: Se olhei a iniqüidade no meu coração, o Senhor não me ouvirá (Sl 66, 18).
A meditação pensa em como era o bem-aventurado Jó solicito por essa guarda, pois dizia: Fiz um pacto com os meus olhos para não pensar em nenhuma virgem (Jó 31, 1). Eis como se dominava o santo homem que fechava seus olhos para não ver o que é vão, evitando olhar imprudentemente o que depois desejaria contra a sua vontade.
Depois de ter refletido sobre esses pontos e outros semelhantes no que toca à pureza do coração, a meditação começa a pensar no prêmio: Como seria glorioso e deleitável ver a face desejado do Senhor, mais bela do que a de todos os homens (Sl 45, 3), não mais abjeta e vil (cf. Is 53, 2), não mais tendo a aparência com que o revestiu sua mãe, mas envergando a estola da imortalidade, e coroado com o diadema que seu Pai lhe deu no dia da ressurreição e da glória, o dia que o Senhor fez (Sl 118, 24).
Ela concebe que nesta visão haverá aquela saciedade esperada pelo profeta, ao dizer: Serei saciado quando aparecer a tua glória (Sl 17, 15).
Vês quanto licor emanou daquela pequena uva, quanto fogo nasceu duma centelha, quanto se alargou na bigorna da meditação, este pequeno pedaço de metal: Bem-aventurado os puros de coração, porque verão a Deus!
Mas, quanto mais poderia alargar-se, se alguém experiente viesse ajudar!
Sinto como “é fundo o poço”, mas não passo ainda de um noviço rude, que mal cheguei a tirar poucas gotas.
Inflamada por esses fachos, incitada por tais desejos, a alma começa a pressentir, quebrado o alabastro, a suavidade do ungüento. Não é ainda o gosto, mas é já o cheiro.
Por esse, a alma compreende quão suave seria experimentar essa pureza, cuja meditação a faz saber quanta alegria ela dá. Mas que fará ela?
Ardendo ao desejo de possuí-la, não encontra em si como a pode ter. E quanto mais a procura, mais tem sede.
Enquanto se dá à meditação, sua dor aumenta, porque ainda não sente a doçura que a meditação mostra existir na pureza de coração, mas sem a dar.
Porque não cabe a quem lê nem a quem medita sentir tal doçura, se não recebe do alto (Jo 19, 11) esse dom. Ler e meditar é comum tanto aos bons quanto aos maus, e os próprio filósofos pagãos encontraram, pelo exercício da razão, em que consiste, em suma, o verdadeiro bem.
Mas, tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus (Rm 1, 21) e, presumindo de suas forças, diziam: Venceremos graças à nossa língua, nossos lábios são nossos (Sl 12, 5). Assim, não mereceram receber o que tinham podido ver. Perderam-se em seus pensamentos (Rm 1, 21), e a sua sabedoria foi devorada (Sl 107, 27).
A sabedoria deles tinha as suas fontes no estudo das ciências humanas, e não no Espírito de sabedoria que é o único a dar a verdadeira sabedoria, isto é, a ciência saborosa que alegra e nutre, com inestimável sabor, a alma que a possui. É dela que foi escrito: A sabedoria não entrará na alma perversa (Sb 1, 4).
Esta procede só de Deus. E como o Senhor deu a muitos a missão de batizar, mas guardou só para si o poder e a autoridade de perdoar os pecados pelo batismo, o que levou João a dizer, por antonomásia e de modo preciso: É ele que batiza, assim também podemos dizer: “É ele que dá sabor à sabedoria, e faz saborosa a ciência da alma”.
A palavra é dada a todos; a sabedoria do espírito, que o Senhor distribui a quem quer e quando quer (cf. 1 Cor 12, 11), a poucos é dada.


A FUNÇÃO DA ORAÇÃO

VI
Vendo, pois, a alma que não pode por si mesma atingir a desejada doçura do conhecimento e da experiência, e que quanto mais se aproxima do fundo do coração (Sl 64, 7), tanto mais distante é Deus (cf. Sl 64, 8), ela se humilha e se refugia na oração. E diz: “Senhor, que não és contemplado senão pelos corações puros, eu procuro, pela leitura e pela meditação, qual é, e como pode ser adquirida a verdadeira doçura do coração, a fim de por ela conhecer-te, ao menos um pouco.”
Eu buscava, Senhor, a tua face, a tua face Senhor, eu buscava (cf. Sl 27, 8); meditei muito tempo em meu coração, e na minha meditação cresceu um fogo (cf. Sl 39, 4) e o desejo de te conhecer ainda mais.
Quando me repartes o pão da Sagrada Escritura, na fração do pão te tornas conhecido por mim (cf. Lc 24, 35). E quanto mais te conheço, tanto mais desejo conhecer-te, não já na casca da leitura, mas no sabor da experiência.
Isto não peço, Senhor, por meus méritos, mas pela tua misericórdia. Confesso-me indigna pecadora, mas até os cãezinhos comem das migalhas que caem da mesa dos seus donos (Mt 15, 27).
Dá-me, pois, Senhor, o penhor da herança futura, uma gota ao menos da chuva celeste, para arrefecer a minha sede, pois ardo de amor (cf. Ct 2, 5).


EFEITOS DA CONTEMPLAÇÃO

VII
Com essas e outras palavras, a alma inflama o seu desejo, mostra assim o que nela se fez, por encantações invoca o seu Esposo. E o Senhor, cujos olhos são fixos nos justos e cujos ouvidos estão não só atentos às suas preces (cf. Sl 34, 16), mas presentes nelas, não espera a prece acabar. Pois, interrompendo o curso da oração, apressa-se a vir à alma que o deseja, banhado de orvalho da doçura celeste, ungido dos perfumes melhores.
Ele recria a alma fatigada, nutre a que tem fome, sacia a sua aridez, lhe faz esquecer tudo o que é terrestre, vivifica-a, mortificando-a por um admirável esquecimento de si mesma, e embriagando-a, sóbria a torna.
Como em certas funções carnais a alma se deixa a tal ponto vencer pela concupiscência, que perde o próprio uso da razão e o homem se torna todo carnal, assim, ao contrário, nessa contemplação superior, os movimentos carnais são de tal modo vencidos e absorvidos pela alma, que a carne não contradiz em nada ao espírito, e o homem se torna quase todo espiritual.


SINAIS DA VINDA DA GRAÇA

VIII
Mas, Senhor, como descobrir quando realizas tudo isso, e qual é o sinal da tua vinda?
São por acaso, os suspiros e as lágrimas os mensageiros e testemunhos da consolação e da alegria? Se assim é, estamos em presença duma nova antinomia e de uma significação inusitada.
Qual é, com efeito, a relação entre consolação e suspiros, alegria e lágrimas? Se é que se podem chamar lágrimas estas lágrimas, e não antes, abundancia transbordante do orvalho interior derramado do céu, indício da purificação interior, limpeza do homem exterior.
No batismo de crianças, a purificação do homem interior é figurada e significada pela ablução exterior. Aqui, ao contrário, a purificação exterior procede da ablução interior.
Ó felizes lágrimas, pelas quais são lavadas as manchas interiores, e as labaredas do pecado se apagam! Bem-aventurados os que assim chorais, porque rireis (cf. Mt 5, 5).
Nessas lágrimas reconhece, ó alma, o teu Esposo, abraça o Desejado, embriaga-te em torrente de delícias, suga do seio da consolação o leite e o mel. Estes são os maravilhosos presentinhos e consolos que teu Esposo te distribui e concede, isto é, tuas lágrimas e suspiros.
Ele te trouxe nessas lágrimas a poção sob medida, o pão de dia e de noite, aquele pão que confirma o coração do homem e é mais doce do que o favo de mel.
Ó Senhor Jesus, se são tão doces essas lágrimas que brotam da tua lembrança e do teu desejo, quão doce haverá de ser o gozo experimentado em tua visão manifesta!
Se é tão doce chorar por ti, quanto mais doce será gozar de ti?
Mas, por que exprimimos de público tais secretos colóquios? Por que me esforço por revelar em termos comuns essas inefáveis ternuras? Os que não as experimentaram, não as compreenderão. Eles as leriam mais claramente no livro da experiência, onde a unção divina ensina por si mesma (cf. 1Jo 2, 27).
De qualquer modo, porém, a letra exterior não aproveita ao leitor, pois a leitura da letra exterior é de pouco sabor, a não ser que uma explicação tire do coração o sentido interior.


A GRAÇA SE ESCONDE

IX
Ó minha alma, prolonguei por muito tempo este discurso. Pois era bom para nós estar ali, e contemplar com Pedro e João a glória do Esposo, e ficar largo tempo com ele, se ele quisesse fazer ali não duas, nem três tendas (cf. Mt 17, 4), mas uma só em que estaríamos juntos, e juntos nos deleitássemos.
Mas eis que já diz o Esposo, deixa-me partir, pois já sobe a aurora (Gn 32, 26), já recebeste a luz da graça e a visita que desejavas.
Dada, pois, a benção e mortificado o nervo da coxa, e mudado o nome de Jacó para Israel (cf. Gn 32, 25-32), o Esposo longamente desejado se retira por um pouco de tempo, depressa escapa.
Ele se arreda, tanto em relação à visita de que falei, quanto à doçura da contemplação. Mas permanece sempre presente, quanto à direção, à graça, à união.


COMO A OCULTAÇÃO DA GRAÇA COOPERA PARA O NOSSO BEM

X
Mas não temas, esposa, não desespere, não penses que és desprezada, se o esposo te oculta por algum tempo a sua face. Tudo isso concorre ao teu bem (cf. Rm 8, 28), e ganhas com a partida e com a vinda.
Ele veio para ti, e é também para ti que ele se afasta. Vem para a consolação, afasta-se por cautela, a fim de que, a grandeza da consolação não te ensoberbeça, evitando que a presença contínua do Esposo, te leve a desprezar as companheiras e atribuas a consolação não à graça, mas à tua natureza.
Esta graça, o esposo a concede quando quer e a quem ele quer, e não se possui como direito hereditário. É conhecido o provérbio que diz que a familiaridade excessiva gera o desprezo. Ele se afasta, pois, para não ser desprezado, se é demais assíduo, e para que, ausente, seja mais desejado, e desejado seja procurado com maior ardor, e longamente querido, seja, enfim, achado com maior alegria.
Além disso, se nunca faltasse essa consolação, que em relação à futura glória a revelar-se em nós (cf. Rm 8, 18) é enigmática e parcial, talvez julgássemos que temos aqui cidadania permanente e procuraríamos menos a futura.
Assim, para não tomarmos o exílio por pátria, o penhor pelo pleno valor, é que o Esposo vem de tempo em tempo, ora trazendo consolação, ora a substituindo pelo leito de doente (cf. Sl 41, 4).
Ele permite que saboreemos por um pouco de tempo a sua doçura, mas antes que ela seja plenamente sentida, ele se esvai. Assim, voejando sobre nós de asas abertas, ele nos provoca a voar (cf. Dt 32, 11), como se dissesse: Experimentastes um pouco da minha suavidade e doçura, mas, se quereis saciar-vos plenamente, correi atrás de mim ao odor dos meus perfumes (cf. Ct 1, 3), levantai os corações para o alto onde estou à direita do Pai. Aí me vereis, não mais em figuras e em enigma, mas face a face, e então, o vosso coração gozará plenamente, e o vosso gozo ninguém vos tirará (Jo 16, 22).


COM QUE CUIDADO A ALMA DEVE SE COMPORTAR DEPOIS DA VISITA DA GRAÇA

XI
Mas, acautela-te, ó esposa. Quando o Esposo se ausenta, não vai para longe. Se não o vês, ele sempre te vê. Ele é cheio de olhos à frente e atrás (cf. Ez 1, 18). Jamais podes fugir da sua vista. Tem junto de ti seus enviados, espíritos que são como que mensageiros muito sagazes, que vejam como te conduzes na ausência do Esposo, e te acusem diante dele se descobrirem em ti algum sinal de impureza e de leviandade.
Este Esposo é cheio de zelo. Se, acaso, acolheres um outro amante, ou te empenhas em agradar mais a um outro, ele logo se afasta de ti e se une a outras virgens fiéis.
É delicado esse Esposo, é nobre, é o mais belo dos filhos dos homens (Sl 45, 3), e assim, não quer ter uma esposa senão perfeitamente bela. Se ele vir em ti uma mancha, ou uma ruga, logo desvia o seu olhar.
Ele não suporta nenhuma impureza. Sê, pois, casta, sê reservada e humilde, para merecer a visita freqüente do teu Esposo.
Temo que este discurso se tenha prolongado demais, mas a matéria abundante me obrigou a isto, assim como a sua doçura. Não prolonguei por minha espontânea vontade, foi o seu encanto que me arrastou sem sentir.

RECAPITULAÇÃO DO QUE FOI DITO

XII
Para que se possa ver melhor em conjunto o que foi dito em forma mais desenvolvida, vamos recapitulá-lo em resumo.
Assim como foi notado nos exemplos propostos, podes ver como os ditos degraus se ligam uns aos outros entre si. E como um precede a outro, tanto no tempo, como na casualidade.
Qual primeiro fundamento vem a leitura. Ela fornece a matéria e nos leva a meditação.
A meditação, por sua vez, perscruta com maior diligencia o que se deve desejar, e como que cavando, acha e mostra o tesouro. Mas, como não pode por si mesma obtê-lo, leva-nos à oração.
A oração, elevando-se a Deus com todas as suas forças, obtém o tesouro desejável, a suavidade da contemplação.
Sobrevindo a contemplação, ela recompensa o trabalho dos três degraus referidos, embriagando a alma sedenta com o orvalho da doçura celeste.
A leitura é feita segundo um exercício mais exterior, a meditação, segundo uma inteligência mais interior; a oração, segundo o desejo; a contemplação passa acima de todo sentido.
O primeiro degrau é dos principiantes; o segundo dos que progridem; o terceiro, dos fervorosos; o quarto, dos bem-aventurados.

COMO OS MESMOS DEGRAUS SÃO LIGADOS UNS AOS OUTROS

XIII
Estes degraus são de tal modo ligados, e de tal forma servem uns aos outros, que os precedentes pouco ou nada aproveitam sem os seguintes, e os seguintes, por sua vez, nunca ou só raramente, podem ser adquiridos sem os precedentes.
Que adianta, com efeito, ocupar o tempo em contínua leitura, percorrer os feitos e os escritos dos santos, se não esprememos o seu suco, mastigando e ruminando, e não o passamos até ao mais íntimo do coração, engolindo, a fim de por eles considerarmos diligentemente o nosso estado, e cuidarmos de praticar as obras daqueles cujos feitos queremos ler freqüentemente?
Mas, como haveremos de cogitar estas coisas, ou como podemos evitar que, meditando coisas erradas e vãs, se transgridam os limites constituídos pelos santos Pais, a não ser que sejamos antes instruídos a tal respeito pela leitura ou pelo ensino?
O ensino, de certo modo, se relaciona com a leitura, o que nos leva habitualmente a dizer que lemos para nós mesmos ou para os outros, mas também o que ouvimos dos mestres.
Igualmente, que vale ao homem ver pela meditação o que deve praticar, se não pode fazê-lo senão pelo auxilio da oração e pela graça de Deus? Porque todo dom excelente e todo dom perfeito vem de cima e desce do Pai das luzes (Tg 1, 17).
Sem ele nada podemos, ao passo que ele faz em nós as obras, mas não sem nós. Pois somos cooperadores de Deus (1 Cor 3, 9), como diz o apóstolo. Deus quer que lhe supliquemos, quer que abramos à graça que vem e bate à porta, o seio da nossa vontade, e lhe demos o nosso consentimento.
O Senhor exigia esse consentimento da Samaritana, quando dizia: chama o teu marido (Jo 4, 16), como se dissesse: Quero te infundir a graça; aplica o teu livre arbítrio.
Dela exigia a oração: Se soubesses o dom de Deus, e quem é que te diz: Dá-me de beber, serias tu que lhe terias pedido a água viva (Ib. 10).
Inflamada, pois, pelo desejo, volta-se para a oração, dizendo: Senhor, dá-me desta água, a fim de que eu não tenha mais sede. Assim, portanto, a palavra do Senhor que ouvira e depois meditara, a incitou à oração.
Como haveria de tornar-se solícita na súplica, se antes, a meditação não a tivesse feito arder? Ou de que lhe serviria a precedente meditação, se a oração seguinte não obtivesse o que aquela lhe mostrara?
Para que seja, pois, frutuosa a meditação, é preciso que se lhe siga o fervor da oração, da qual é como um efeito a doçura da contemplação.

CONSEQUÊNCIAS DO QUE FOI DITO
     
XIV
De tudo isso podemos concluir que a leitura sem a meditação é árida, a meditação sem a leitura é errônea, a oração sem meditação é morna, a meditação sem oração é infrutífera.
A oração com fervor obtém a contemplação, mas a aquisição da contemplação é rara ou miraculosa sem a oração.
Deus, com efeito, cujo poder não tem limites, e cuja misericórdia se estende a todas as suas obras, às vezes suscita das pedras filhos de Abraão (cf. Mt 3, 9).
É o que se dá quando força corações duros e rebeldes a querer. Ele é como o pródigo que, segundo se costuma dizer, “dá o boi com os chifres”, quando vem sem ser chamado e se envolve sem ser procurado.
Embora tenha isso acontecido a alguns, como a Paulo e alguns outros, não devemos, no entanto, tentar a Deus presumindo tais dons, mas fazer o que nos compete, isto é, ler e meditar a lei de Deus, e rogar-lhe que ajude a nossa fraqueza, e veja a nossa imperfeição. Ele próprio nos ensina a fazer assim, quando diz: Pedi e recebereis, procurai e achareis, batei e abrir-vos-á (Mt 7, 7). Pois agora o reino dos céus sofre violência, e são os violentos que dele se apoderam (Mt 11, 12).
Eis, pois, que as distinções acima assinaladas permitem perceber as propriedades dos vários degraus, como se concatenam entre si, o que produz em nós cada um deles.
Feliz o homem que, tendo o espírito vazio de outros cuidados, deseja sempre passar e repassar por esses degraus. É aquele que, vendendo tudo que possui, compra o campo em que está escondido o tesouro desejável, que é recolher-se e ver como é suave o Senhor (cf. Sl 34, 9).
Feliz, sim, aquele que, exercitado no primeiro degrau, bem atento no segundo, fervente no terceiro, alçado acima de si no quarto, se eleva cada vez mais forte, por essas subidas, até ver o Deus dos deuses em Sião (Sl 84, 8).
Bem-aventurado é aquele, a quem é dado permanecer, ainda que por pouco tempo, nesse último degrau, e que pode dizer: Eis que sinto a graça de Deus, eis que contemplo com Pedro e João a sua glória no monte, eis que gozo com Jacó os abraços da bela Raquel.
Mas acautele-se ele depois de tal contemplação, para não cair nos abismos por uma queda desordenada, nem voltar, depois de tão grande visita, aos lascivos atos do mundo e às seduções da carne.
Como não pode a fraca ponta da mente humana sustentar mais longamente o esplendor da verdadeira luz, desça suavemente e com ordem algum dos três degraus pelos quais subira, e assim, alternadamente, ora em um ora em outro, demores segundo a moção do livre arbítrio e as circunstancias de lugar e de tempo. A meu ver, ele estará tanto mais próximo de Deus, quanto mais longe do primeiro degrau. Como é, infelizmente, frágil e miserável a condição humana!
Vemos, pois, abertamente, com o auxílio da razão e os testemunhos das Escrituras, que a perfeição da vida bem-aventurada está contida nestes quatro degraus, e que o homem espiritual deve estar sempre a exercitar-se neles.
Mas, quem é que guarda esse modo de viver, quem é ele, e nós o louvaremos? (Eclo 31, 9). Querer, muitos querem, mas fazer é de poucos. Queira Deus que sejamos desses poucos.


QUATRO CAUSAS QUE NOS RETRAEM DOS REFERIDOS DEGRAUS

XV
São quatro as causas que, o mais das vezes, nos desviam desses degraus: uma necessidade inevitável, a utilidade duma boa ação, a fraqueza humana, a vaidade mundana.
A primeira é desculpável; a segunda é tolerável; a terceira é miserável; a quarta é culpável. E verdadeiramente culpável. A quem, por essa causa, é desviado do seu propósito, melhor seria não ter conhecido a graça de Deus, do que retroceder depois de conhecê-la. Que escusa terá do seu pecado?
Não lhe poderá, acaso, Deus dizer, com razão: Que mais te devia fazer e não fiz? (cf. Is 5, 4). Não existias e te criei. Tornaste-te servo do diabo e do pecado, e te redimi. Corrias com os ímpios ao redor do mundo, e te escolhi. Dei-te graça perante meus olhos e queria fazer em ti a minha habitação, e em verdade me desprezastes. Não jogaste para trás somente as minhas palavras, mas a mim mesmo, e andaste em busca das tuas concupiscências.
Mas, ó Deus bom, suave e manso, doce amigo, conselheiro prudente, ajuda forte, como é desumano e temerário aquele que te rejeita, e repele do seu coração um hóspede tão humilde e clemente!
Ó infeliz e nociva troca, rejeitar o seu Criador e acolher pensamentos maus e prejudiciais, e entregar tão depressa a pensamentos impuros e ao espezinhar dos porcos até mesmo aquela câmara secreta do Espírito Santo, que é o fundo do coração, que pouco antes se dirigia às alegrias celestes! Ainda estão quentes no coração os vestígios do Esposo, e já ali se intrometem desejos adulterinos.
É inconveniente e indecoroso para ouvidos que acabam de ouvir palavras que não é lícito ao homem falar (cf. 2Cor 12, 4), entregar-se tão depressa a fábulas e a ouvir maledicências. E para olhos que acabam de ser batizados pelas lágrimas sagradas, de repente se voltar para ver vaidades. Para a língua que acaba de cantar um doce epitalâmio, e que tinha reconciliado o Esposo com a esposa por suas palavras inflamadas e persuasivas, e a introduzira no celeiro (cf. Ct 2, 4), de novo se converter às conversas torpes, às leviandades, à urdidura de dolos, à maledicência.
Não nos aconteça, Senhor, mas se acaso, por fraqueza humana, recairmos nisso, não desesperemos, mas de novo recorramos ao Médico clemente que levanta do pó o indigente e ergue o pobre do monturo (Sl 113, 7). E ele, que não quer a morte do pecador, voltará a nos curar e salvar.
Já é tempo de pôr fim a esta carta. Oremos todos ao Senhor que no presente enfraqueça para nós os impedimentos que nos retraem da sua contemplação; no futuro, nos liberte inteiramente deles, levando-nos, mediante os referidos degraus, cada vez mais fortes, a vermos o Deus dos deuses em Sião. (Sl 84, 8). Ali, os eleitos não experimentarão mais gota a gota nem intermitentemente a doçura da contemplação. Pois terão, em incessante torrente de gozo, a alegria que ninguém tirará, e a paz imutável, a paz nele.
E tu, Gervásio, meu irmão, se do alto, te for dado um dia ascender ao cume desses degraus, lembra-te de mim e ora por mim, quando for bem para ti.
Assim, o véu puxe o véu (cf. Ex 26, 33), e aquele que escuta, diga: Vem! (Ap 22, 17).







quinta-feira, 12 de abril de 2012

Ser Leigo na Igreja do Século XXI.


   Celebração do aniversário de 10 anos de fundação
da Comunidade do Carmelo Secular de Tremembé – SP.

         Tema: Ser Leigo na Igreja do Século XXI.

1.      Nossa Vocação de Construtores da História.


Karl Rahner, um renomado teólogo católico, afirmou que “o Cristão do século XXI ou será místico ou não será cristão”. O homem espiritual torna-se um místico quando vive e comunica a sua comunhão com Deus numa tríplice dimensão: com Deus, consigo mesmo e com o seu semelhante. A capacidade da comunicação da vida interior ou comunicação de interioridades é um dom, um carisma que o Senhor dá àqueles que se tornam garimpeiros da alma. Como dizia Jacques Maritain: “Sou um rabdomante com o ouvido colado à terra para captar o murmúrio das nascentes escondidas, o imperceptível cicio das germinações invisíveis. E ainda como todo cristão (...) um mendigo do céu travestido de homem do nosso século[1]. Os místicos são esses rabdomantes do infinito, são “mendigos do céu revestidos da humanidade”, são homens e mulheres buscadores de Deus pela fé.
     E para que essa experiência saia do âmbito ideal e se torne um projeto encarnado e vivido na história e no tempo, porque não se pensar numa Pastoral da Espiritualidade que forme Escolas de Oração para a formação de discípulos missionários, que possam constituir pessoas cheias do Espírito Santo a fim de que eles exerçam os diversos ministérios das nossas comunidades?   
    
     Este fato não pode se apresentar como uma novidade, porque na comunidade de Jesus de Nazaré o primado da oração foi sempre uma exigência sine qua non (essencial) para a inserção do discípulo no seu grupo, elemento indispensável para ser enviado em missão. Porque não organizar de forma sistêmica, programada e estruturada a Pastoral da Espiritualidade e através das Escolas de Oração formar discípulos missionários que possam trabalhar nos vários âmbitos das atividades pastorais?

Neste vasto panorama da experiência de Deus através da oração, emergem vários grupos de formas, características e identidade muito diversas umas das outras, uns mais tradicionais, porém com nuances de novidades, outros mais vanguardistas no seu modo de ser e agir e expressar a fé; outros são mais apostólicos, outros mais contemplativos, mas entre todas essas diferenças, nota-se um desejo comum e sincero entre eles, que é o de servir cada vez mais e melhor o evangelho e a Igreja.

Neste sentido vemos a grande importância da contribuição das Escolas de Espiritualidade[2] como Escolas de oração para a formação dos fiéis leigos. Para este novo tempo, precisamos de uma nova evangelização, e para isso, de uma Igreja renovada e sempre atualizada nos seus métodos e uma estratégia de atuação pastoral que possa ver-julgar e agir na ótica de Jesus de Nazaré.

Para esta empreitada é necessário que o corpo todo trabalhe junto, os fiéis com seus padres, os padres com os seus bispos, os bispos seus coirmãos bispos, enfim todos os bispos com seus fiéis em torno do irmão maior, o Bispo de Roma.  Uma Igreja que seja expressão de unidade, comunhão numa única fé a serviço do evangelho.

Os discípulos de Jesus pediram para o seu mestre: “Mestre ensina-nos a orar”. Assim também pedem os grupos de fiéis leigos de qualquer seguimento pastoral de uma comunidade, o pedido é sempre o mesmo: “Padre: Ensina-nos a orar”, para que possamos trabalhar e servir mais e melhor, pede o povo de Deus. Pedem também os bispos para que se criem em diversos âmbitos da nossa atuação pastoral as chamadas: Escolas da Palavra, Escolas de Oração, Escolas Catequéticas, Escolas Missionárias a nível paroquial e diocesano. 

De alguma parte alguém poderá perguntar: Mas o que se deve esperar de uma Escola de Oração numa comunidade? Espera-se a formação daquilo que mais a igreja local e particular mais necessita para o serviço do anúncio do evangelho: Discípulos missionários. Um discípulo missionário sem a experiência de Deus através da oração é como se diz no âmbito empresarial: “É mão de obra não especializada”.

Formar discípulos fortes na oração, que tenham a fé como cimento de sustentação da sua atividade pastoral e uma sólida e séria espiritualidade no seguimento de Jesus de Nazaré, para que firme cada vez uma identidade própria do nosso “ser Igreja” e possam anunciar e servir o evangelho da vida com maior autenticidade. Neste sentido interpreto a Oração, a Palavra de Deus, a Catequese e a Missão, como uma escada de ascensão que nos elevará seguros para Deus e nos ajudará a alcançar a plenitude da maturidade da vida cristã.

Ser discípulo missionário para servir o evangelho da vida em nome da Igreja é algo exigente. Não basta ter somente ter boa vontade, porque no discipulado não se improvisa. A caridade cristã não pode se transformar em altruísmo, a luta pela justiça e a paz excede a prática do bem, a fraternidade e solidariedade cristã não podem se tornar uma atitude particular e ocasional, enfim na Escola de Oração se aprende a ser um irmão universal através das ações de Jesus de Nazaré.

A Escola de Oração busca garimpar discípulos missionários nas próprias comunidades. A adesão e participação na vida da comunidade eclesial não é tornar-se membro de um grêmio ou um clube social, ser discípulo missionário é tornar-se um homem e uma mulher de fé, radicados numa forte e comprometedora experiência de oração que nos lança para missão.

Em geral o termo Escola de Oração vem compreendido com reducionismos, como se fosse um grupo de oração com um estilo, método e identidade próprios. A Escola de Oração é algo muito diferente daquilo que chamamos de grupos de oração, ela está intimamente ligada às grandes linhas da espiritualidade e  tem uma estreita ligação com a catequese e a missão evangelizadora da Igreja, seja das crianças, jovens e adultos. Possui uma característica sistemática de organização e desenvolvimento de temas e estudos e momentos de exercícios para a práxis da oração, seja de forma individual e comunitária.

2.   Desafios e perspectivas.

Uma necessidade e exigência muito comum entre aqueles que buscam servir o evangelho de maneiras e formas tão diversas em nossas comunidades, é para que sejamos mais práticos e acessíveis quando falamos sobre o tema da oração. Noto que, falar simplesmente sobre o tema da oração não é suficiente, é necessário ensinar o povo de Deus a orar. Precisamos passar do discurso sobre a oração para a prática da oração. E ainda, passar da oração, para a práxis pastoral, concreta, vivencial e encarnada nas realidades da vida humana.

É na perspectiva da nossa exposição que devemos nos abrir para este vasto e amplo horizonte temático e refletirmos juntos os diversos problemas e perspectivas da oração cristã:

1.        O aspecto Teológico e Pastoral da oração pessoal e comunitária.
2.        A relação entre a Palavra de Deus e a Liturgia, seu conteúdo, forma e vivência encarnada na vida.
3.        A necessidade de uma pedagogia para oração como “Iniciação mistagógica à oração”, ou Escolas de
       Oração.

É de suma importância que o desenvolvimento de um estudo e conhecimento temático sobre o tema da oração, vá conduzindo a pessoa passo a passo ao crescimento espiritual na vida cristã a fim de atingir uma maior maturidade e adesão da fé que professa. Este processo é um caminho de perfeição da vocação cristã é um meio que possibilita uma maior abertura da vivencia e da prática da santidade.

Em diversos âmbitos da nossa atuação eclesial, em todas as pastorais e movimentos é de se admirar o interesse pela oração, existe uma grande busca da práxis da oração. Atualmente me parece que é mais fácil ensinar o povo de Deus a trabalhar e a servir pastoralmente a comunidade, do que ensiná-los a rezar. Afirmo que, se na nossa atuação pastoral, “Marta e Maria” não andarem de mãos dadas nesta empreitada, se elas não caminharem juntas, estaremos trabalhando ou orando em vão. O trabalho pastoral sem oração é altruísmo, a oração sem trabalho pastoral é alienação.

Devemos ter em conta que o caminho da oração é uma coisa árdua e exigente. Infelizmente encontramos pessoas que param nos primeiros momentos da vida de oração, buscam somente o diletantismo oracional e ao se empanturrarem do mel da experiência inicial de Deus, logo se cansam. O autêntico homem e mulher de oração devem tornar-se primeiramente como abelhas operárias na fabricação do néctar divino, para depois poder saboreá-lo, isto é adentrar no dinamismo da obra Espírito Santo.

Existe ainda outro perigo, que sem uma pedagogia da oração orientada para o crescimento na vida espiritual, ela acabe se tornando apenas um modismo passageiro, que venha somente preencher um espaço do vazio humano existencial, sem deixar sua marca de interpelação na Igreja.

Neste ponto é de suma importância ter o máximo de cuidado para que esses novos buscadores de Deus pela oração e servidores dos irmãos pela prática da caridade cristã, não abandonem este exigente caminho transformando-o numa corrente espiritual de modismo passageiro, por não terem tido a capacidade de equilibrarem suas dificuldades no caminho a percorrer, e esses novo peregrinos de Deus na oração, acabem abandonados a margem das primeiras dificuldades.

Para superarmos este desafio é necessário recorrermos aos exemplos bíblicos dos grandes amigos de Deus na oração. Apresentar a História da Salvação na experiência e na perspectiva dos grandes orantes da bíblia, cujo ápice atinge a sua plena revelação manifestada no Filho de Deus. Jesus de Nazaré, modelo e mestre de oração e de uma oração perseverante e constante, viveu a prática da oração desde o início até o término da sua missão redentora. É assim que a Introdução Geral sobre a Liturgia das Horas vai apresentá-lo:

“Toda a sua atividade cotidiana está muito ligada à oração. Mais ainda, toda sua ação brotava dela, retirando-se ao deserto e ao monte para orar, levantando-se muito cedo ou permanecendo até a quarta vigília e passando a noite em oração a Deus. Até o fim da vida, já próximo da Paixão, na última ceia em sua agonia e na cruz, o divino Mestre nos ensina que a oração foi sempre a alma de seu ministério messiânico e o termo pascal da sua vida”[3]

Esta citação é de máxima importância, pois nos apresenta a estreita relação entre: Oração Vida Mistério Pascal de Jesus. A perspectiva da oração cristã hoje, deve ser interpretada nesta mesma perspectiva de unidade de relação, como numa escada de ascensão que nos leva à Deus:
 

                                                                                                   Caridade: Ressurreição e Reino de Deus.
                                                                Esperança: Paixão e morte Martírio.
                                         Fé: Oração e vida Ministérios


Esta escada de ascensão é uma experiência que se realiza não de forma destacada e divida entre si, mas integrada e cíclica, vivida em diversos momentos da nossa vida. As virtudes teologais é a força propulsora de ascensão que leva a alma à plena comunhão com Deus.

A nascente primordial da oração está fundada na experiência vivencial do cristão numa relação dialógica com o Pai no mistério pascal do seu Filho (Paixão, Morte e Ressurreição) do qual fomos assinalado pelo batismo.

Finalmente a oração seja pessoal ou comunitária são pequenos elos interligados dessa grande corrente que chega até nós como expressão perseverante da Igreja orante. A atitude orante da Igreja antes de ser uma resposta a uma necessidade moral ou uma qualidade constitutiva de fidelidade oracional cotidiana é essencialmente uma expressão de amor e fidelidade ao Mistério da Revelação numa atenta espera da realização do Reino.

Fidelidade a Revelação e perseverança na oração é nisto que consiste a verdadeira perspectiva da oração cristã, ela une o reino de Deus à cidade dos homens no espaço e no tempo através da Palavra e da Liturgia. A oração dá força e dinamismo para a ação da Igreja, e a faz perdurar no tempo a existência da vida cristã.

Diante destas questões e perspectivas teológicas, buscaremos também recuperar o ensinamento essencial dos grandes mestres da oração da Igreja e aprofundar um pouco mais a sua compreensão convergindo seus ensinamentos na relação ente:

1.        Vida no Espírito Santo Espiritualidade.
2.        Oração Litúrgica Oração Comunitária.
3.        Oração e Contemplação Oração Pessoal.
4.        Itinerário cristão Pastoral e Missão.
5.        Experiência Mística Total Consagração.

Sobre a vida de oração surge uma voz autorizada, Hurs Von Balthasar, sua teologia recebeu o nome de "Teologia de joelhos" porque esta é profundamente ligada à oração contemplativa e intensamente ligada à fé em busca da compreensão guiada pelo coração e o ensinamento da Igreja. Nesta perspectiva surgem ainda novidades e tendências sobre a oração:

c  A valorização do corpo na oração.
c  Integração harmônica da sensibilidade para atingir a pacificação.
c  Interiorização dos sentidos.
c  Técnicas para maior concentração psicológica em torno da Palavra de Deus,
       através de uma imagem, um Ícone ou um fato da vida.
c  A oração como finalidade terapêutica, curativa e libertadora.
c  Maior valorização do silêncio profundo e pleno como expressão de acolhida e resposta.
c  Uma maior abertura ao guia espiritual e a redescoberta da sua importância no crescimento da vida
       de oração.

       Segue ainda outras contribuições sobre a vida de oração:

c  Integração de todas as dimensões da pessoa: psico-físico-espiritual.
c  Atenção para o consciente e inconsciente.
c  Silêncio mental.
c  Uso do mantra ou de jaculatória.
c  A respiração como experiência de oração profunda.
c  Experiência do inefável[4],
c  Visualização = Memória.
c  Transferência da oração para o dinamismo vital: força, bem estar,
        cura, libertação, ascesi, e empenho.

A redescoberta da “oração do coração” ou como também é conhecida de “oração continua” com a invocação do nome de Jesus. Nascida entre o povo pobre e simples e de forma quase devocional, esta oração tem comprovada eficácia, mas necessita ser fundamentada e explicada a partir da teologia ocidental e apresentada através de uma apropriada pedagogia da oração, para que esta altíssima forma de orar possa ser também integrada a oração litúrgica, a ascese e as atividades da vida cotidiana e não sejam somente aplicadas às modalidades da vida monástica.

Neste sentido surgem novas propostas e formas encontradas nos grandes mestres da espiritualidade como Teresa de Jesus e João da Cruz com a “Oração de recolhimento” uma forma de contemplação a partir da comunicação amorosa de Deus à alma. A escola Teresiana de oração tem como centralidade da sua oração a busca da união da alma com Deus através da Humanidade de Cristo, não tanto pelo intelecto, mas pelo afeto e pela amizade.

Este novo método aponta sempre como centralidade a busca da interioridade através das mediações externas para o absoluto interno, passar do discurso para o silêncio, da razão para o afeto, isto é, racionalizar segundo o esquema bíblico judaico de oração, "pensar com o coração", passar da Palavra de Deus ao Deus da Palavra.

Se existe uma deficiência atual da oração está no seu muito falar, outra limitação está em querer transformar a meditação num momento de análise racional do objeto e do conteúdo da meditação procedendo como um arqueólogo catalogador das coisas do espírito. Mas restam ainda no coração humano uma sede insaciável na busca das coisas do alto e o desejo de recuperar a unidade do homem constituído imagem e semelhança de Deus que foi retalhada e dividida pelo pecado. O coração humano neste mundo conturbado e barulhento ainda tem fome de silêncio que é a máxima expressão da acolhida da voz de Deus. A resposta definitiva à esta procura está numa mais forte experiência de comunhão e de comunicação pessoal com Deus. 


Frei Geraldo Luis Boletini ocd. freigeraldo@yahoo.com.br
Frade Carmelita Descalço – colaborador no Centro Teresiano de Espiritualidade em São Roque/SP na Pastoral da Espiritualidade em encontros e Retiros Espirituais.


[1] Jacques Maritain, in Por um humanismo cristão, pg 42, Editora Paulus.
[2] Escolas: Agostiniana, Beneditina, Carmelitana, Dominicana e Franciscana.
[3] Introdução Geral sobre a Liturgia das Horas (I.G.L.H) nr 4.
[4] Experimentar aquilo que não se pode nomear ou descrever em razão de sua natureza, força, beleza indizível, indescritível.

sábado, 31 de março de 2012

Seguindo os passos de oração com Sta. Teresa




 Introdução

Respondendo ao convite lançado pelo I Definidor da nossa Ordem, diria que os alicerces edificados pela santa madre Teresa, estão prontos para edificarmos as moradas as quais ela quis fazermos habitar.
Para mim, o livro das Fundações é o II livro da Vida é um convite para mim, para que também eu cante as misericórdias e a providência que Deus operou em Teresa e no princípio da reforma. Graças as Fundações sabemos como o Espírito Santo foi actuando em Teresa; e graças as Fundações Temos em primeira mão o testemunho ocular (Teresa) daquilo que foi, a difícil tarefa da reforma da Ordem, e sobre tudo o convento de Duruelo que eu pessoalmente muito estimo e claro, como em todas as suas obras, deixa-nos transparecer sempre a sua determinada determinação, apoiada sempre sobre as alavancas da obediência, da fraternidade, da gratuidade e do amor de umas para com aos outras. É como que o livro dos actos dos apóstolos, mas, na versão de Teresa.

Se para Teresa a vida religiosa é uma opção profunda de fé configurada com Cristo na cruz (F 28, 43), então exige de mim uma entrega sem reservas, buscando sempre a perfeição cristã dando provas do amor de Deus como ela mesma diz em (F 5, 15). Por isso, sinto-me omprometido com as missões, a recomeçar com Teresa aquelas aventuras de Medina del Campo (F 3); Malagón (F 9); Valladolid (F 10); Duruelo (F 13-14); Toledo (F 15); Prestrana (F17); Salamanca (F 18); Alba de Tormes (F 20); Segovia (F21); Beas (F 22); Sevilha (F 23); Villanueva de la Jara (F 28); Palencia (F29) e de Soria (F 30). Ela ensina-me com as Fundações, a percorrer caminhos cujo fim é a liberdade em Deus!


Parece-me que a missão da Igreja e portanto do Carmelo é de sair ao encontro das necessidades e angústias espirituais dos homens deste tempo e deste contexto cultural. Assim sendo, julgo que santa Teresa hoje e mais do que nunca dá resposta a essas necessidades ao pedir-nos que fixe-mos os olhos em Cristo. De facto, Cristo é caminho seguro! Se ontem Teresa percorreu com meios rudimentares aqueles lugares, com muito maior razão poço hoje percorre uma distância ainda maior e alcançar um número de povos sem fim. Mas desta vez seria por Angola. De Norte a Sul, do mar ao Leste. Sem temer dificuldades, sem esperar comodidades, tenho fé que o mesmo espírito que animou Santa Teresa é o mesmo que me anima a mim também. Então não há razão para temer. Antes pelo contrário. Em comunhão com este mesmo espírito, quero convosco dar graças a Deus, pela minha consagração nesta família fundada por Santa Teresa; pelo ministério que me foi confiado; por Deus me ter escolhido no número dos seus ministros. Continuai a rezar comigo a Deus, por Teresa.


Seguindo os passos de oração com Sta. Teresa I

Quando Santa Teresa entrou para o convento da Incarnação de Ávila (1536), pouco tempo depois, isto é, após dezoito meses no convento, sobreveio-lhe uma grave crise de padecimentos físicos que a obrigaram a voltar para casa do pai. Regressou ao convento em 1538, e durante dezassete anos levou a vida exemplar duma freira de observância mitigada, guardando a sua Regra, frequentando o locutório, onde era frequentemente procurada por causa da sua graça e humorismo.
A oração de Teresa durante mais de dezanove anos como freira foi árida e penosa, e apesar de todas as suas amizades ou talvez, com maior pro¬priedade, por causa delas, a sua vida afigurava-se-lhe vã e sem uma finalidade. Tinha quarenta anos, a idade em que normalmente os melhores anos da mulher já passaram, quando começou a viver a vida para que Deus a criara.

Poucos meses depois de ler a história emocionante da conversão de Santo Agostinho, nas suas «Confissões», que a impressionaram vivamente, sentiu-se impelida a orar diante de Cristo, preso à coluna (). Fora um destes momen¬tos da graça em que o Criador se compraz em agir instan¬taneamente na vontade da criatura e traçar à sua vida novo rumo. Quando Teresa saiu do oratório, um só caminho lhe faltava percorrer: o «Caminho da Per¬feição», que é o caminho do amor e da renúncia.

O Amor apoderou-se dela e nada mais ansiava agora que submergir-se neste amor e aproximar-se cada vez mais do Amante divino. Assim começa também o amor humano: um olhar, uma palavra, e o fogo logo se ateia e o amante quer estar só com a amada. Mas uma vez que o matrimónio foi consumado, os amantes não querem ficar sós por muito tempo, pois todo o amor tem por fim ser frutífero. Passada a lua-de-mel, uma árdua tarefa surge: a família aumenta e os primeiros arroubos esquecem-se. Contudo, o amor lança suas raízes cada vez mais profundas na alma e, purificada pelas dores e provações sofridas em comum, faz com que a união se robusteça e se revele por vezes até na assimilação dos traços físicos do marido e da esposa. O mesmo se passa com o amor divino; normalmente desenvolve-se pouco a pouso, crescendo em intensidade e firmeza, e no que respeita a estes estados sucessivos e conducentes à vida mística, Santa Teresa não teve ainda quem a ultrapassasse na lúcida descrição deles. Cava os alicerces muito fundos, construindo o alto edifício do Castelo Interior na rocha da humildade e do desprendimento das criaturas, um desprendimento que «não se adquire removendo o corpo, mas pela resolução da alma de abraçar o bom Jesus, de buscar tudo n'Ele e de esquecer tudo o mais».

A verdadeira humildade é o requisito da contem¬plação, que, por sua vez, aumenta na medida do progresso na mesma contemplação.

Entretanto, a mesma humildade é uma virtude que pode correr o risco de ser fingida e falsa. No tempo de Teresa, a oração contemplativa era tida em suspeita, afigurando-se um favor extraordinário, que era não só perigoso receber e muito mais desejar. A humildade exigia (assim se pensava) que um tal dom devia ser rejeitado. A própria Santa sofreu gravemente da parte de directores que, reputando-a uma doente da imaginação, ordenaram-lhe que renunciasse à sua maneira de fazer oração e de se manter distante do Senhor, que não deseja senão ser amado das Suas criaturas.

Foi assim que o Senhor a ensinou a tratar com Ele, desde que a visão do mesmo Senhor, preso à coluna, açoutado e vertendo sangue, lhe inflamou a alma de amor. Esta a razão também por que passa, rapidamente, pelas primeiras três «moradas» do Castelo Interior, entretida com a meditação e a oração de quietude e, como que impaciente por chegar ao primeiro estado da vida mística, por ser ele a vida de amor puro.

 Seguindo os passos de oração com Sta. Teresa II

Antes de Santa Teresa descrever a ascensão da alma até Deus, nenhum escritor espiritual se ocupara propo¬sitadamente dos estados intermediários da via mística, a que chama a oração de quietude e a oração unitiva. Entre a oração (meditação) praticada pela maioria das pessoas devotas e os êxtases dos santos, havia uma região a que ninguém se dera ainda ao incómodo de investigar.
Mas, na ordem normal da vida interior, apesar de haver, claro está, excepções, a alma é erguida ao estado extático, somente após um período prolongado nos graus inferiores da contemplação.

Mal Santa Teresa se consagrou totalmente a uma vida de perfeição, Deus concedeu-lhe, de novo, a oração de quietude e de união unitiva, que lhe haviam sido conferidas no primeiro período de fervor e, seguida¬mente, retiradas durante dezoito anos de penosa aridez e de distracções.

Recordemos a célebre transverberação do seu coração com um dardo incandescente, cravado por um serafim; os transportes violentos e frequentes levitações e, como remate deste estado extático, o famoso êxtase de Sala¬manca, depois do qual volveu a si com as palavras tão frequentemente citadas: «Morro porque não morro».

Tudo isto é muito difícil de compreender se não tivermos constantemente presente que todos os fenó¬menos exteriores dos estados místicos mais sublimes são pura e simplesmente acidentais, que a única e grande realidade consiste em os místicos viverem pelos dons do Espírito Santo e, designadamente, pelo dom da Sapiência.

E isto torna-se ainda mais patente no último estado da vida contemplativa, quando os fenómenos físicos cessam quase por completo, em virtude de o corpo se ter habituado às visitas divinas. A alma entra agora na estabilidade do Casamento Místico, a estado máximo que pode ser atingido aqui na terra, antes de a cari¬dade, substância da contemplação, ser consumada na visão beatífica.

A nota dominante deste estado, a «Sétima Morada», é a paz, uma paz que nem a dor nem as vicissitudes são capazes de perturbar. A alma «não sente observa a Mística nem aridez, nem qualquer perturbação inte¬rior, como nas moradas anteriores, mas um recolhimento constante e suave de Nosso Senhor, porque, aqui, Ele e a alma gozam-se mutuamente, em profundo silêncio».

Eis o estado da alma quando o maior dos mistérios cristãos, a vida divina da Santíssima Trindade, lhe é revelada de modo especialíssimo.

Os efeitos da união transformante são ainda mais maravilhosos do que os das outras Moradas, pelo facto de produzirem «um esquecimento tão completo de nós mesmos, que a alma parece realmente não existir e só deseja ser tida na conta de nada». Ao mesmo tempo, a sua sede de sofrimento aumenta, embora seja menos violenta, e «sente grande alegria interior quando perseguida».

Os dons do Espírito Santo completaram a sua obra; a árvore podada e inoculada pelo divino jardineiro pro¬duz frutos cem por cento.


fonte de pesquisa >: 
http://teresadejesus.carmelitas.pt/noticias/noticias_view.php?cod_noticia=388