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sábado, 31 de março de 2012

Seguindo os passos de oração com Sta. Teresa




 Introdução

Respondendo ao convite lançado pelo I Definidor da nossa Ordem, diria que os alicerces edificados pela santa madre Teresa, estão prontos para edificarmos as moradas as quais ela quis fazermos habitar.
Para mim, o livro das Fundações é o II livro da Vida é um convite para mim, para que também eu cante as misericórdias e a providência que Deus operou em Teresa e no princípio da reforma. Graças as Fundações sabemos como o Espírito Santo foi actuando em Teresa; e graças as Fundações Temos em primeira mão o testemunho ocular (Teresa) daquilo que foi, a difícil tarefa da reforma da Ordem, e sobre tudo o convento de Duruelo que eu pessoalmente muito estimo e claro, como em todas as suas obras, deixa-nos transparecer sempre a sua determinada determinação, apoiada sempre sobre as alavancas da obediência, da fraternidade, da gratuidade e do amor de umas para com aos outras. É como que o livro dos actos dos apóstolos, mas, na versão de Teresa.

Se para Teresa a vida religiosa é uma opção profunda de fé configurada com Cristo na cruz (F 28, 43), então exige de mim uma entrega sem reservas, buscando sempre a perfeição cristã dando provas do amor de Deus como ela mesma diz em (F 5, 15). Por isso, sinto-me omprometido com as missões, a recomeçar com Teresa aquelas aventuras de Medina del Campo (F 3); Malagón (F 9); Valladolid (F 10); Duruelo (F 13-14); Toledo (F 15); Prestrana (F17); Salamanca (F 18); Alba de Tormes (F 20); Segovia (F21); Beas (F 22); Sevilha (F 23); Villanueva de la Jara (F 28); Palencia (F29) e de Soria (F 30). Ela ensina-me com as Fundações, a percorrer caminhos cujo fim é a liberdade em Deus!


Parece-me que a missão da Igreja e portanto do Carmelo é de sair ao encontro das necessidades e angústias espirituais dos homens deste tempo e deste contexto cultural. Assim sendo, julgo que santa Teresa hoje e mais do que nunca dá resposta a essas necessidades ao pedir-nos que fixe-mos os olhos em Cristo. De facto, Cristo é caminho seguro! Se ontem Teresa percorreu com meios rudimentares aqueles lugares, com muito maior razão poço hoje percorre uma distância ainda maior e alcançar um número de povos sem fim. Mas desta vez seria por Angola. De Norte a Sul, do mar ao Leste. Sem temer dificuldades, sem esperar comodidades, tenho fé que o mesmo espírito que animou Santa Teresa é o mesmo que me anima a mim também. Então não há razão para temer. Antes pelo contrário. Em comunhão com este mesmo espírito, quero convosco dar graças a Deus, pela minha consagração nesta família fundada por Santa Teresa; pelo ministério que me foi confiado; por Deus me ter escolhido no número dos seus ministros. Continuai a rezar comigo a Deus, por Teresa.


Seguindo os passos de oração com Sta. Teresa I

Quando Santa Teresa entrou para o convento da Incarnação de Ávila (1536), pouco tempo depois, isto é, após dezoito meses no convento, sobreveio-lhe uma grave crise de padecimentos físicos que a obrigaram a voltar para casa do pai. Regressou ao convento em 1538, e durante dezassete anos levou a vida exemplar duma freira de observância mitigada, guardando a sua Regra, frequentando o locutório, onde era frequentemente procurada por causa da sua graça e humorismo.
A oração de Teresa durante mais de dezanove anos como freira foi árida e penosa, e apesar de todas as suas amizades ou talvez, com maior pro¬priedade, por causa delas, a sua vida afigurava-se-lhe vã e sem uma finalidade. Tinha quarenta anos, a idade em que normalmente os melhores anos da mulher já passaram, quando começou a viver a vida para que Deus a criara.

Poucos meses depois de ler a história emocionante da conversão de Santo Agostinho, nas suas «Confissões», que a impressionaram vivamente, sentiu-se impelida a orar diante de Cristo, preso à coluna (). Fora um destes momen¬tos da graça em que o Criador se compraz em agir instan¬taneamente na vontade da criatura e traçar à sua vida novo rumo. Quando Teresa saiu do oratório, um só caminho lhe faltava percorrer: o «Caminho da Per¬feição», que é o caminho do amor e da renúncia.

O Amor apoderou-se dela e nada mais ansiava agora que submergir-se neste amor e aproximar-se cada vez mais do Amante divino. Assim começa também o amor humano: um olhar, uma palavra, e o fogo logo se ateia e o amante quer estar só com a amada. Mas uma vez que o matrimónio foi consumado, os amantes não querem ficar sós por muito tempo, pois todo o amor tem por fim ser frutífero. Passada a lua-de-mel, uma árdua tarefa surge: a família aumenta e os primeiros arroubos esquecem-se. Contudo, o amor lança suas raízes cada vez mais profundas na alma e, purificada pelas dores e provações sofridas em comum, faz com que a união se robusteça e se revele por vezes até na assimilação dos traços físicos do marido e da esposa. O mesmo se passa com o amor divino; normalmente desenvolve-se pouco a pouso, crescendo em intensidade e firmeza, e no que respeita a estes estados sucessivos e conducentes à vida mística, Santa Teresa não teve ainda quem a ultrapassasse na lúcida descrição deles. Cava os alicerces muito fundos, construindo o alto edifício do Castelo Interior na rocha da humildade e do desprendimento das criaturas, um desprendimento que «não se adquire removendo o corpo, mas pela resolução da alma de abraçar o bom Jesus, de buscar tudo n'Ele e de esquecer tudo o mais».

A verdadeira humildade é o requisito da contem¬plação, que, por sua vez, aumenta na medida do progresso na mesma contemplação.

Entretanto, a mesma humildade é uma virtude que pode correr o risco de ser fingida e falsa. No tempo de Teresa, a oração contemplativa era tida em suspeita, afigurando-se um favor extraordinário, que era não só perigoso receber e muito mais desejar. A humildade exigia (assim se pensava) que um tal dom devia ser rejeitado. A própria Santa sofreu gravemente da parte de directores que, reputando-a uma doente da imaginação, ordenaram-lhe que renunciasse à sua maneira de fazer oração e de se manter distante do Senhor, que não deseja senão ser amado das Suas criaturas.

Foi assim que o Senhor a ensinou a tratar com Ele, desde que a visão do mesmo Senhor, preso à coluna, açoutado e vertendo sangue, lhe inflamou a alma de amor. Esta a razão também por que passa, rapidamente, pelas primeiras três «moradas» do Castelo Interior, entretida com a meditação e a oração de quietude e, como que impaciente por chegar ao primeiro estado da vida mística, por ser ele a vida de amor puro.

 Seguindo os passos de oração com Sta. Teresa II

Antes de Santa Teresa descrever a ascensão da alma até Deus, nenhum escritor espiritual se ocupara propo¬sitadamente dos estados intermediários da via mística, a que chama a oração de quietude e a oração unitiva. Entre a oração (meditação) praticada pela maioria das pessoas devotas e os êxtases dos santos, havia uma região a que ninguém se dera ainda ao incómodo de investigar.
Mas, na ordem normal da vida interior, apesar de haver, claro está, excepções, a alma é erguida ao estado extático, somente após um período prolongado nos graus inferiores da contemplação.

Mal Santa Teresa se consagrou totalmente a uma vida de perfeição, Deus concedeu-lhe, de novo, a oração de quietude e de união unitiva, que lhe haviam sido conferidas no primeiro período de fervor e, seguida¬mente, retiradas durante dezoito anos de penosa aridez e de distracções.

Recordemos a célebre transverberação do seu coração com um dardo incandescente, cravado por um serafim; os transportes violentos e frequentes levitações e, como remate deste estado extático, o famoso êxtase de Sala¬manca, depois do qual volveu a si com as palavras tão frequentemente citadas: «Morro porque não morro».

Tudo isto é muito difícil de compreender se não tivermos constantemente presente que todos os fenó¬menos exteriores dos estados místicos mais sublimes são pura e simplesmente acidentais, que a única e grande realidade consiste em os místicos viverem pelos dons do Espírito Santo e, designadamente, pelo dom da Sapiência.

E isto torna-se ainda mais patente no último estado da vida contemplativa, quando os fenómenos físicos cessam quase por completo, em virtude de o corpo se ter habituado às visitas divinas. A alma entra agora na estabilidade do Casamento Místico, a estado máximo que pode ser atingido aqui na terra, antes de a cari¬dade, substância da contemplação, ser consumada na visão beatífica.

A nota dominante deste estado, a «Sétima Morada», é a paz, uma paz que nem a dor nem as vicissitudes são capazes de perturbar. A alma «não sente observa a Mística nem aridez, nem qualquer perturbação inte¬rior, como nas moradas anteriores, mas um recolhimento constante e suave de Nosso Senhor, porque, aqui, Ele e a alma gozam-se mutuamente, em profundo silêncio».

Eis o estado da alma quando o maior dos mistérios cristãos, a vida divina da Santíssima Trindade, lhe é revelada de modo especialíssimo.

Os efeitos da união transformante são ainda mais maravilhosos do que os das outras Moradas, pelo facto de produzirem «um esquecimento tão completo de nós mesmos, que a alma parece realmente não existir e só deseja ser tida na conta de nada». Ao mesmo tempo, a sua sede de sofrimento aumenta, embora seja menos violenta, e «sente grande alegria interior quando perseguida».

Os dons do Espírito Santo completaram a sua obra; a árvore podada e inoculada pelo divino jardineiro pro¬duz frutos cem por cento.


fonte de pesquisa >: 
http://teresadejesus.carmelitas.pt/noticias/noticias_view.php?cod_noticia=388 


segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Rabi’a al-’Adawiyya e Teresa de Jesus: a busca do Amado de forma intensa e gratuita


Rabi’a al-’Adawiyya e Teresa de Jesus: 

Rabi’a al-’Adawiyya introduziu no universo sufi a concepção de amor gratuito pelo Amado. Já Teresa abriu-se para o Mistério por meio de uma vida de oração, entendida como “vida de amizade com o Amado”, explica Carlos Frederico Barboza de Souza

Por: Moisés Sbardelotto

Mulher ou homem: isso não importa para se “viver a experiência radical de encontro com o Mistério Profundo”. Para Carlos Frederico Barboza de Souza, professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas, “o que é primordial na vida mística é a capacidade de abertura, de receptividade e acolhimento ao Totalmente Outro, ao Mistério Absoluto que a tudo constitui. E para isso não importam questões de gênero”.
Porém, é necessário “o desenvolvimento de novos paradigmas capazes de recuperar a singularidade – e de certa forma, sua irredutibilidade – da experiência dessas mulheres”, um verdadeiro “resgate da mística na perspectiva feminina”, defende, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.


Essa via feminina se expressa em mulheres que experimentam o “Mistério profundo do Real como acolhida, ternura, receptividade, entrega, fragilidade (não no sentido pejorativo, mas como fruto do reconhecimento profundo e radical da condição humana), sombra, silêncio, criatividade, misericórdia”: como Rabi’a al-’Adawiyya e Teresa de Jesus, dois marcos da mística no islamismo e no cristianismo, respectivamente, analisadas nesta entrevista.


Rabi’a al-’Adawiyya foi uma das figuras mais significativas da primeira fase do sufismo e “sua singularidade no universo sufi é ter introduzido a concepção do amor gratuito, desinteressado, pelo Amado”. Já Teresa, a partir de um “cansaço interior”, irá se abrir para “a busca de um novo estilo de vida mais coerente consigo mesma e seus questionamentos”, por meio de uma vida de oração, entendida como “vida de amizade com o Amado”. E ambas “acabaram encontrando-se com o Amado, a quem dedicam um amor total e exclusivo, chegando à opção celibatária”. Em ambas, também, pode-se 
encontrar “a busca do Amado de forma intensa e gratuita”.



Carlos Frederico Barboza de Souza é doutor em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF, professor de Cultura Religiosa e Ecumenismo e Diálogo Inter-Religioso da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas e coordenador do Anima PUC Minas, Sistema Avançado de Formação. Também é autor do livro A mística do coração (Edições Paulinas, 2010) e da coleção de Ensino Religioso Construindo a vida (Editora Fumarc). 



Confira a entrevista.



IHU On-Line – Em sua opinião, qual a importância, hoje, de se retomar o estudo e a reflexão da mística a partir da experiência feminina?


Carlos Frederico Barboza de Souza – Penso que muitas considerações podem ser feitas sobre esse assunto. A primeira é que, para muitos místicos, viver a experiência radical de encontro com o Mistério Profundo independe de se ser homem ou mulher: “No estado místico não há diferença entre eles [homens e mulheres], não são diferentes na ‘unidade da existência’ (wahdat al-wujud). Na ‘unicidade de Deus’ (tawhid) que coisa resta da existência do Eu e do Tu? Como poderia haver, então, diferença entre homem e mulher?” . Assim, o que é primordial na vida mística é a capacidade de abertura, de receptividade e acolhimento ao Totalmente Outro, ao Mistério Absoluto que a tudo constitui. E para isso não importam questões de gênero. Entretanto, essa concepção desqualifica os estudos e reflexão da mística a partir da experiência feminina? Creio que não, pois, se por um lado pode-se pensar que, para esta experiência, o que vale são as atitudes humanas frente ao Sagrado, por outro lado, penso ser importante complexificar esta relação entre masculino, feminino e a mística, pois as questões referentes aos homens e mulheres, feminino e masculino, de alguma maneira permeiam as vivências envolvendo as experiências místicas e suas possibilidades na vida humana.
Assim, numa sociedade machista, caracterizada pela leitura masculinizada da vida e que se constituiu de forma patriarcal, impedindo muitas vezes as vozes das mulheres de expressarem seus dizeres mais íntimos, singulares e originais, nessa sociedade há a tendência de se reprimir, também no nível da espiritualidade e da mística, as vozes femininas. Como afirma Constance FitzGerald, em 1699, a marginalização da linguagem dos místicos “possui uma afinidade simbólica com a marginalização das mulheres e a negligência do Espírito. Não tenha dúvida de que o silenciamento da contemplação estava/está diretamente relacionado com o lugar das mulheres na sociedade, o papel da consciência na religião e na política, o medo da inspiração direta do Espírito e o transformativo e rebelde caráter da contemplação” . Isso porque o processo de marginalização das mulheres e o fato de se considerá-las como seres de segunda categoria em muitas sociedades impediram a muitas mulheres de desenvolverem autoconfiança a ponto de lhes permitir um profundo amadurecimento espiritual e na vida mística e, sobretudo, de desenvolver uma voz singular e única a partir da qual sua experiência pode se concretizar, ser ouvida, compreendida e comunicada.
A repressão da mulher e, consequentemente, das expressões da feminilidade presentes em homens e mulheres se traduzem, de alguma maneira, numa repressão no nível da experiência mística ou de aspectos dela, exigindo de quem se dispõe a caminhar por esta trilha que tenha, além do grande esforço a ser feito em se superar e superar suas forças egoicas que lhe impedem a abertura radical ao Totalmente Outro, que se deparar com a dificuldade de não ter em seu repertório, desenvolvido e amadurecido, todo o potencial que a feminilidade pode lhe propiciar em termos da realização de uma vida mística.



Perspectiva feminina


Dessa maneira, torna-se de grande importância o resgate por parte das tradições místico-religiosas, das mulheres que, de alguma forma, viveram profundamente esse tipo de experiência. E isso não se faz sem o estudo e a redescoberta dessas mulheres. E estudos como esses serão ricos se não forem simplesmente leituras pautadas por uma lógica masculina de ler as tradições místicas, formas construídas em meio a séculos de patriarcalismo. Exige-se, sobretudo, o desenvolvimento de novos paradigmas capazes de recuperar a singularidade – e, de certa forma, sua irredutibilidade – da experiência dessas mulheres. Se formos capazes disso, penso que o resgate da mística na perspectiva feminina propiciará – e já tem propiciado – maneiras criativas e inusitadas desse tipo de vivência se revelar, possibilitando novas linguagens e novas traduções da experiência do Real, fornecendo um repertório rico com que esse – de forma infinita, inesgotável e inabarcável em sua totalidade – possa ser reconhecido em suas infinitas manifestações na história humana. Assim, o resgate da mística na perspectiva feminina possibilitará novos e inusitados acessos ao Mistério Profundo que a tudo habita.


Além do mais, as vivências místicas realizadas por muitas mulheres resgatam dimensões fundamentais e profundas de todos os seres humanos, sendo mais uma das possíveis e ricas manifestações com que a humanidade pode se expressar. Nesse sentido, retomar o estudo e a reflexão da mística a partir das experiências femininas pode possibilitar a integração com as expressões masculinas dessas vivências. Isso, por si só, pode colaborar com os próprios homens na descoberta de dimensões femininas de suas vivências místicas, elemento muito comum em muitos místicos, sendo João da Cruz um exemplo claro: chama a atenção que em seu Cântico espiritual e no poema da Noite escura, a personagem que busca o Amado é uma mulher. Dessa forma, pode-se pensar na existência de uma via feminina que pede reconhecimento, aberta a homens e mulheres que experimentam o Mistério profundo do Real como acolhida, ternura, receptividade, entrega, fragilidade (não no sentido pejorativo, mas como fruto do reconhecimento profundo e radical da condição humana), sombra, silêncio, criatividade, misericórdia (é interessante observar como misericórdia, em árabe, possui a mesma raiz linguística que útero, lugar que protege a gestação de uma vida nova), etc. Por fim, com Ibn ‘Arabi, tendo a pensar e reconhecer que, se a receptividade perfeita é um dos atributos da mística feminina, “a atividade de Deus se observa mais claramente nas mulheres” .



IHU On-Line – Uma das figuras mais importantes do misticismo islâmico foi uma mulher, Rabi’a al-’Adawiyya? Quem foi ela e como se deu a sua abertura à experiência mística?


Carlos Frederico Barboza de Souza – Rabi’a al-’Adawiyya foi uma das figuras mais significativas da primeira fase do sufismo, sendo que muitos sufis a citaram com frequência. Sua singularidade no universo sufi é ter introduzido a concepção do amor gratuito, desinteressado, pelo Amado. Entretanto, de sua vida, cercada por lendas, pouco se sabe. A principal fonte sobre ela foi sua auxiliar, ‘Abda, que registrou muitos de seus ditos e atos.



Rabia al-Qaysiyya al-’Adawiyya al-Basriyya – seu nome completo – nasceu na cidade de Basra, hoje situada ao sul do país que denominamos Iraque. Nasceu entre 713 e 718 do calendário cristão (entre 95 e 98 do calendário islâmico), em uma família paupérrima, sendo sua quarta filha. Daí seu nome Rabi’a, que em árabe significa “a quarta”.

Na adolescência, torna-se órfã de pai e mãe e acaba sendo vendida para uma pessoa que provavelmente a leva para Damasco, onde servirá em regime de escravidão, submetendo-se a serviços pesados. Nesse ambiente, um homem desconhecido por ela se encanta e tenta molestá-la. Diante disso, ela foge e faz uma oração: “Senhor, eu sou uma estrangeira, uma órfã, prisioneira e até me tornei escrava, mas o que me preocupa é saber se tu te comprazes ou não se comprazes em mim”. E nesse instante ela ouviu uma voz que lhe disse: “Não te entristeças, porque no paraíso os que te forem próximos te olharão e te invejarão devido ao lugar por ti ocupado” . A partir dessa experiência, Rabi’a descobre sua vocação da entrega amorosa total e incondicional a Deus, retorna à casa de seu patrão e passa a levar uma vida dedicada à oração e jejum, buscando a união com Deus (wasl).



Mais tarde, após adquirir sua liberdade novamente, Rabi’a retorna a Basra, onde vai morar numa casa simples fora da cidade, para dedicar-se integralmente à sua busca espiritual. Mora na companhia de ‘Abda, que é uma discípula que se colocou a seu serviço. Distanciando-se da visão majoritária presente no Islã, opta por uma vida celibatária: “O matrimônio é necessário para quem tem escolha. Quanto a mim, não tenho escolha; sou do meu Senhor e vivo à sombra dos seus mandamentos” . Não demorará muito para sua casa se tornar lugar de “peregrinação”, onde muitos – inclusive sábios – irão lhe consultar e ouvir seu falar de Deus. Daí que sua vida será muito marcada por tempos dedicados à oração e tempos dedicados à orientação espiritual.



Puro e gratuito amor

Sua concepção acerca da oração situa-se dentro da tradição sufi, que insiste na oração contínua e na educação para esta prática por meio do dhikr, que é a repetição dos nomes divinos – acompanhada, muitas vezes, com exercícios de introspecção baseados na postura corporal, respiração, recitações, etc. – no intuito de recordar contínua e cordialmente de sua presença: “Recorda continuamente o Seu nome” . Com isso ela visava uma vida de intimidade com Deus, pois “tudo tem um fruto. E o fruto do reconhecimento é aproximar-se de Deus” .


Aqui nos deparamos com o elemento que mais chama a atenção em sua mística: a busca do puro e gratuito amor: “Amo-te com dois amores: um é fruto da minha paixão e o outro porque Tu és digno de ser amado. No primeiro, penso em Ti, excluindo qualquer outro. No segundo, Tu mesmo te desvelas a mim, para que eu te veja” . Na linha da gratuidade amorosa, uma história ficou famosa e retrata bem sua experiência: “Um dia, nas ruas de Basra, ela foi perguntada por que estaria carregando uma tocha em uma mão e um jarro na outra, e ela respondeu: ‘Eu quero jogar fogo no Paraíso e despejar água no Inferno, pois assim esses dois véus desaparecerão e se tornarão claros os que adoram a Deus por amor, não por medo do Inferno ou pela esperança do Paraíso” . Dessa maneira, nos ditos de Rabi’a depreende-se uma concepção de um Deus próximo e íntimo, terno e amoroso, que, sem perder sua transcendência, torna-se presente na sua vida e a acompanha continuamente.




Rabi’a morre em Basra, com quase 90 anos, depois de um processo de envelhecimento e adoecimento. Mesmo assim, não perde sua lucidez e afirma: “Todo o bem que hás decretado para mim neste mundo, dê-o aos seus inimigos; e tudo que hás decretado para mim no Paraíso, concede-o aos teus amigos. Eu aspiro somente a Ti” .



IHU On-Line – Por outro lado, que fatos históricos – pessoais ou sociais – fizeram aflorar ou despertar a experiência mística no caso de Teresa de Jesus?


Carlos Frederico Barboza de Souza – As experiências místicas, embora possam muitas vezes estar relacionadas a situações históricas vividas pelo/a místico/a, têm em sua subjetividade as causas do seu despertar. E isso é claro em Teresa de Jesus.



Teresa de Ahumada nasce em 1515, na cidade de Ávila, Espanha. De uma família de comerciantes e, tendo ficado órfã de mãe aos 14 anos, aos 20 anos entra para o mosteiro das Carmelitas da Encarnação. Quatro anos depois tem uma doença grave que a leva à Becedas, onde tem contato com um tio que lhe introduz em algumas práticas da vida de oração. Em seguida, em 1543, aos 28 anos, perde seu pai.

Após a morte de seu pai, ela passa a se dedicar com mais intensidade à oração, porém, a duras penas, de modo que se pode dizer que, nos 10 anos seguintes, ela oscilou entre a busca intensa da oração e a acomodação e dispersão, associados aos momentos em que passava no locutório com pessoas da sociedade abulense, entretida e distraída com conversas fúteis. Foi um período de grande luta entre a mediocridade que caracterizava algumas de suas posturas e costumes e a coerência de vida e profundidade por ela almejada.



Além disso, o ambiente do mosteiro da Encarnação em nada lhe favorecia a vivenciar um ambiente de maior interiorização, visto que nele moravam muitas irmãs (quase 200); não havia um clima orante, mas necessidades financeiras que favoreciam a saída de irmãs por alguns períodos para se instalarem em casas de pessoas ricas – pelo menos nestas casas teriam sustento e não onerariam os parcos recursos do mosteiro – e, por fim, mantinha-se neste mosteiro a divisão de classes sociais muito presente na sociedade espanhola daquele tempo, havendo monjas que possuíam empregadas domésticas particulares e mantinham seus títulos de nobreza, situação que em muito prejudicava o centramento na vida espiritual e a prática da fraternidade no contexto da comunidade. Essa época na vida de Teresa é caracterizada como um período de crise acerca de sua vocação fundamental na vida, marcado pela experiência de uma grande e solitária luta em busca de seu caminho.



A grande mudança nesta situação vai ocorrer em 1554. Nesse ano, em seu relato autobiográfico – Livro da Vida – ela narra o seguinte: “A minha alma já estava cansada e, embora quisesse, seus maus costumes não a deixavam descansar” (Vida 9,1). Como se depreende desse relato, em sua subjetividade Teresa experimentava um cansaço interior, o que lhe abrirá para a busca de um novo estilo de vida mais coerente consigo mesma e com seus questionamentos.



Cristo e Agostinho

Além disso, dois eventos – ambos narrados no Livro da Vida – são importantes. No primeiro deles, ela se depara, ao entrar num oratório do Mosteiro da Encarnação, com uma imagem de Cristo chagado e ela o narra assim: “Aconteceu-me de, entrando certo dia no oratório, ver uma imagem guardada ali para certa festa a ser celebrada no mosteiro. Era um Cristo com grandes chagas que inspirava tamanha devoção que eu, de vê-lo, fiquei perturbada, visto que ela representava bem o que Ele passou por nós. Foi tão grande o meu sentimento por ter sido tão mal-agradecida àquelas chagas que o meu coração quase se partiu; lancei-me a seus pés, derramando muitas lágrimas e suplicando-lhe que me fortalecesse de uma vez para que eu não O ofendesse mais” (Vida 9,1). Essa experiência lhe foi tão marcante que ela afirmou que não se levantaria dali enquanto sua “súplica não fosse atendida” (Vida 9,3).


O segundo evento importante, nesse mesmo ano de 1554, foi a publicação em Salamanca das Confissões, de Santo Agostinho . Teresa leu-as com intensidade e paixão, identificando-se com a busca de Agostinho: “Começando a ler as Confissões, tive a impressão de me ver ali” (Vida 9,8). Houve uma empatia tão grande com ele que chegou a afirmar que, quando se deparou com a “sua conversão e li que ele ouvira uma voz no jardim, senti ser o Senhor quem me falava, tamanha foi a dor do meu coração. Passei muito tempo chorando, com grande aflição e sofrimento” (Vida 9,8).



A partir dessas experiências, a vida de Teresa sofre uma guinada e muda completamente. Fazendo uma breve interpretação da estrutura do Livro da Vida, pode-se pensar assim: nos capítulos iniciais (até o capítulo 7), ela narra sua vida em família, sua formação e seus altos e baixos na busca da oração; no capítulo 8 ela define o que é oração: “Para mim, a oração mental não é senão tratar de amizade – estando muitas vezes tratando a sós – com quem sabemos que nos ama” (Vida 8,5). Aqui ela já dá o seu tom sobre a oração: vida de amizade com o Amado. Em seguida vem o capítulo 9, indicando verdadeiro divisor de águas em sua vida, onde ela vai narrar sua experiência que passa para a história como uma experiência de conversão; após esse, o capítulo décimo indica sua mudança e a seguir ela interrompe a narrativa da sua vida, introduzindo um pequeno tratado sobre a oração (capítulos 11 a 21).



Nesse tratado, ela apresenta uma metáfora, comparando a vida de oração a um jardim e as formas de irrigá-lo, articulando a ação humana e a divina no irrigar. Na verdade, trata-se da explicação de quatro graus de oração, indo do grau em que mais esforço pessoal se tem – que é o tirar a água de um poço puxando-a por meio de um balde (1) e passando pela utilização de roldanas (2) e a captação da água de um rio (3) – até o grau em que não se precisa fazer esforço, pois a própria chuva irriga o jardim (4). Esse é o tipo de oração mais mística, em que a pessoa se coloca em atitude de total receptividade e recolhimento das suas potências e paixões diante do Mistério divino, que a inunda totalmente. A partir da explicação dos quatro graus da oração, Teresa se detém em narrativas acerca das graças místicas recebidas (capítulos 22 a 31) para, logo em seguida, narrar a fundação do Carmelo de São José de Ávila, início da Reforma (verdadeira e singular Fundação) Teresiana que dará origem à Ordem dos Carmelitas Descalços. Ou seja, há uma Teresa antes da oração (até o capítulo 8) e outra depois da oração (do capítulo 10 em diante), cujo fruto maior será sua obra de fundadora.



Teresa continua sua vida de profunda experiência do Mistério e se dedica a fundar mosteiros, em sua maioria femininos;também participa e colabora com fundações de frades. Vive uma vida de intensa atividade e contatos. Morre em Alba de Tormes aos 15 de outubro de 1582, deixando três grandes obras: Livro da Vida; Caminho de Perfeição; e Castelo Interior ou Moradas.



IHU On-Line – É possível estabelecer uma relação entre Rabi’a al-’Adawiyya e Teresa de Jesus a partir de suas experiências místicas?


Carlos Frederico Barboza de Souza – Sim, é possível estabelecer paralelos entre ambas, resguardando a singularidade de cada uma e a irredutibilidade de suas experiências, assim como de suas pertenças religiosas, pois uma era muçulmana e a outra era cristã. Ou seja, é importante não se perder de vista o que David Tracy  chamará de a existência de “similaridades na diferença”.
Ambas foram órfãs e já na infância experimentaram uma busca por Deus. E passando por diversos dissabores vivenciaram algum tipo de experiência fundante – o que não é exclusividade delas, mas trata-se de um elemento presente em muitos místicos –, que as modificou e lhes abriu para uma intimidade profunda com o Real. Dessa forma, acabaram encontrando-se com o Amado, a quem dedicam um amor total e exclusivo, chegando à opção celibatária – o que no caso de Rabi’a extrapola a tradição islâmica, que valoriza o casamento de forma muito significativa. Assim, em ambas se pode encontrar a busca do Amado de forma intensa e gratuita; e também se percebe uma semelhança nas diferentes etapas espirituais percorridas por elas rumo à união mística. E esse amor gerou comportamentos e atitudes de amantes, registrados na busca intensa que ambas vivenciaram por meio de buscas de orientação e vivências comunitárias, forte ascese, vigílias, momentos intensos de oração, graças místicas, cultivo da solidão, etc. Desenvolvem uma linguagem esponsal e apaixonada pelo Amado e sua busca de união com ele se baseia na condição amorosa do Amado que sai de si em busca da Amada, objeto de seu amor. Por isso em ambas é comum a linguagem amorosa dos esposos, que trocam carícias e anseiam pela presença e entrega mútuas.



Por fim, um último elemento comum entre elas que seria importante ressaltar é que, devido a esta trajetória intensa de busca, de experiências e de interlocuções com pessoas de seu entorno, elas vêm a se tornar grandes orientadoras espirituais e muito requisitadas inclusive por lideranças religiosas de suas épocas. E seus escritos, apesar de datados e serem elaborados dentro de contextos históricos específicos, adquirem uma dimensão de universalidade, sendo capazes de falar a leitores e “buscadores” de outras épocas, religiões e contextos socioculturais distantes dos delas, além de comunicarem certo “calor”, na linguagem de João da Cruz, aos que os leem.



IHU On-Line – Rabi’a e Teresa estão separadas por quase um século. A partir dessa diferença, qual foi a relação dessas místicas com a cultura, a teologia e a sociedade do seu tempo?


Carlos Frederico Barboza de Souza – Rabi’a vive em um período de mudanças muito intensas na história das sociedades islâmicas: ela se encontra entre a grande transição da dinastia dos omíadas para a dos abássidas. Períodos como esses, de grande transição, são marcados por convulsões e verdadeiras revoluções no pensamento, nas artes e na teologia.
Em termos históricos, os abássidas, que governarão o Império Islâmico de 750 a 1258 do calendário cristão, mudarão a capital do império de Damasco para Bagdá. Com isso, a região da Mesopotâmia se converterá em um grande centro da cultura árabe, abrindo-se às mais diversas manifestações culturais, filosóficas e artísticas. Basra, cidade em que nasce Rabi’a, também conhecerá um grande florescimento cultural, sendo referência inclusive nas ciências religiosas: a sua grande mesquita se converterá numa pequena universidade com duas especializações: as ciências literárias e as ciências jurídicas.
Rabi’a bebe deste ambiente e, embora não seja propriamente uma intelectual, vai se encontrar com muitos mestres de sua época, de quem muito aprende e, mais tarde, orientará. Pautada em seu ambiente histórico e cultural, ela desenvolverá uma relação profunda e singular com o Islã e sua teologia, sendo capaz de deixar sua marca em ambos, sendo a primeira mística a introduzir o elemento do amor puro e desinteressado por Deus no meio do austero e ascético ambiente vivido pelos sufis de sua época. Essa sua concepção influenciará muitos mestres sufis posteriores, como Jafar al-Sadiq , Dhu’n Nun , ‘Attar  – que possui um relato sobre sua vida – e Rûmî, que também reconta histórias por ela contadas. Junto a esse elemento amoroso, também acabará por direcionar o sufismo na direção de uma busca da união mística com o Real.
Teresa também possuiu um fecundo diálogo com sua cultura (cf. a obra de Tomás Álvarez, 100 fichas sobre Teresa de Jesus, que em seus capítulos iniciais faz essa contextualização da obra e vida de Teresa com a Espanha do século XVI). É capaz de criticar os valores de sua sociedade, como o culto da honra e as leis relativas à pureza de sangue, a busca desenfreada pelo dinheiro, a busca incessante dos deleites, assim como a forte divisão de classes sociais: “Nunca, jamais a priora ou qualquer uma das irmãs poderá chamar-se de dona” (Constituições 9,13). Da mesma forma, dá voz e decisão às mulheres em seus mosteiros e insiste para que estudem, coisa não muito valorizada em sua época, de modo que não concebe a estrutura de seus Carmelos sem uma boa biblioteca para “alimento espiritual” das monjas. Ao mesmo tempo, sua preocupação em fundar seus mosteiros é de prestar um serviço à sua igreja e sociedade por meio da oração. É claro que também absorveu pensamentos característicos de sua época. Apesar de apontar para alguma valorização da mulher, em seus escritos aparece uma concepção de certa inferioridade da mulher em relação aos homens. Também manifesta uma concepção cristã que lida com dificuldade com a reforma protestante, sobretudo com o luteranismo, ao mesmo tempo em que tem grandes preocupações com os índios que poderão morrer nas Américas sem o batismo.



Porém, apesar disso tudo que aponta para sua pertença a uma determinada época e história, Teresa, com sua rica personalidade e inteligência, acabou oferecendo uma síntese importante para a espiritualidade de seu tempo, juntamente com outros místicos do Século de Ouro espanhol, sobretudo, João da Cruz e Inácio de Loyola : “Na obra dos grandes místicos espanhóis vemos, pois, realizar-se um equilíbrio entre tendências opostas, que não somente interessam à experiência religiosa, mas que valem para a vida cultural em geral: submeter a sensibilidade a uma disciplina para não deixar-se levar a uma adesão ao que é simplesmente confuso e vago; construir uma técnica intelectual que permita ir mais adiante dos estados distintos sem perder-se nas regiões turvas da vida afetiva; controlar a inspiração pela análise; inventar um método em vez de contentar-se com fiar-se no instinto; conciliar experiência pessoal e vida coletiva” .



IHU On-Line – No atual contexto contemporâneo, em sua opinião, qual o papel da mística e da espiritualidade? É possível que o ser humano do século XXI se abra novamente para o lado místico da existência?


Carlos Frederico Barboza de Souza – Sobre o papel da mística e da espiritualidade na sociedade contemporânea: inicialmente penso que há uma tendência a banalizar essa dimensão tão fundamental nas vivências das tradições religiosas. Hoje muita coisa vira consumo e meio de satisfação intimista, evidenciando o risco de a mística se perder nessa busca de autossatisfação egocêntrica em que o centro é o próprio ser humano e não o Mistério Real. Junto a tal concepção, percebe-se também uma forma de compreender a mística como algo da ordem da produção humana, fruto de um ambiente preparado para gerar sentimentos de êxtase provocados por rituais e elementos exteriores ao sujeito humano e ao Real. Penso que isso tudo descaracteriza a mística, que se fundamenta, sobretudo, numa busca profunda e intensa de abertura ao Mistério Sagrado, gerando um autoesquecimento, desapego e atitudes reais de compromisso com o Real e com as pessoas.



Quanto ao papel da mística, penso que ela pode nos humanizar ao ajudar a relativizar o que não é essencial. Nesse sentido, nos ajuda a ser mais críticos em relação a todo comportamento superficial que nos cerca, comportamentos que não nos abrem ao amor, ao compromisso e à solidariedade, seja com Deus, seja com outros seres humanos e a natureza. De igual forma, a experiência mística ajuda a superar a dispersão e a falta de concentração e integração que muitos de nós sofremos nesta sociedade fragmentada e dispersa. Nesse sentido, penso que a mística é muito útil em termos de autoconhecimento, pois o que entra no Mistério e nele se aprofunda conhece profundamente a miséria de que é feito e a fragilidade de sua própria condição humana, ao mesmo tempo em que reconhece sua riqueza e percebe-se de forma positiva como amado e acolhido por Alguém ou Algo para além de toda obscuridade que possa estar vivendo.



Dessa maneira, penso que a mística pode gerar experiências de potencialização das capacidades humanas e de sutilização das próprias percepções, gerando um olhar para além do costumeiro, do corriqueiro, como afirma Comte-Sponville  no livro O espírito do ateísmo : devemos descobrir o mistério “por trás da fingida transparência das explicações. Na maioria das vezes passamos ao largo: somos prisioneiros das falsas evidências da consciência comum, do cotidiano, da repetição, do já conhecido, do já pensado, da familiaridade suposta ou comprovada de tudo, em suma, da ideologia ou do hábito”. Assim, creio que a mística nos ajuda a ir além das falsas impressões, da necessidade de ver tudo, obrigando-nos a desenvolver o encantamento que nasce da descoberta da dimensão simbólica da vida. Por isso muitos místicos foram artistas e souberam poetizar suas experiências com a natureza, a vida e Deus, transformando tudo em poesia. Como escreveu Rainer Maria Rilke : “Se a própria existência cotidiana lhe parecer pobre, não a acuse. Acuse a si mesmo, diga consigo que não é bastante poeta para extrair suas riquezas” (Cartas a um jovem poeta, p. 23).



Quanto ao que é necessário para que as pessoas deem atenção ao lado místico da vida: penso que um primeiro ponto é não ter ilusão do que é a mística. Há uma tendência a enfatizar apenas os momentos alegres que a experiência do Mistério proporciona, mas o que se vê nos relatos dos místicos é que todos se submetem a um longo e doloroso processo de autoconhecimento e desprendimento, para deixar-se transformar pelo Real e, com isso, se submeterem à morte sempre dolorosa de seu “Eu”. A satisfação é presente também, porém, como fruto de um renascer, de um ressignificar a vida, de um permitir-se ser transformado.

E para se entrar nesse caminho, é preciso se cercar de bons orientadores espirituais, pessoas vividas nesse tipo de experiência e que podem nos oferecer indicações dos perigos de engano que se encontram pelo percurso. Dentre esses orientadores, também são úteis se recorrer a livros com relatos de místicos. É o caso de ler as obras de Teresa e João da Cruz, assim como de tantos outros que oferecem pistas interessantes para quem quer perseverar nesta via profunda, como Rûmî, Rabi’a, Mestre Eckart, Teresa do Menino Jesus , Thomas Merton, Charles de Foucauld , Suzuki , Dogen , ‘Attar, etc.
Por fim, é necessária prática insistente e perseverança... mesmo em meio às noites e tempestades, saber que tudo pode ser vivido como encontro com o Real. Não que ele queira e seja responsável por todas as dores do mundo, mas, nestas dores, ser capaz de encontrar uma palavra que enxergue além, por trás das aparências, e que ajude a recobrar o sentido e a beleza do existir e da condição humana.

CARLOS FREDERICO DE SOUZA
Possui mestrado em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2002) e doutorado em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2008). Atualmente é professor Adjunto III da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Tem experiência na área de Ciências da Religião, atuando principalmente nos seguintes temas: espiritualidade, mística, mística comparada, islamismo, sufismo, mística carmelitana, diálogo inter-religioso, joão da cruz, educação e psicanálise.
(Texto informado pelo autor)

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

A pedagogia da oração

A pedagogia da oração

Por Tomaz Alvares, ocd

Como mestra de oração, Teresa teve ocasião muito diversas de exercer seu magistério. Ensinou e introduziu na oração a seu próprio pai, dom Alonso. Em seu mosteiro da Encarnação, iniciou na oração a elevado número de amigas que eram suas admiradoras: "É tão grande o aproveitamento de sua alma nestas coisas..., que mais de 40 monjas tratam em sua casa (mosteiro) de grande recolhimento", testemunha um de seus teólogos assessores (BMV 2,131). Em seu epistolário há cartas de iniciação na oração a seu irmão Lourenço, recém chegado da Américo. No Livro da Vida se entabula constantemente diálogo com !cinco que no momento nos amamos em Cristo" (16,7) e que eram um pequeno grupo de oração formado em torno da autora. Formam parte dele ao menos dois dominicanos, Garcia de Toledo e Pedro Ibáñez, que chegarão a elevados graus de oração, sobretudo o segundo.

Entretanto o grupo de oração em que mais plenamente ela exercitou seu magistério foram as jovens reunidas em seu primeiro Carmelo de São José. Não mais de meia dezena em um princípio. Ao todo doze, ao finalizar o primeiro quinquênio de aprendizagem (F1,1). Característica peculiar delas era o não constituir um grupo ocasional e heterogêneo como os cinco mencionados em Vida. Formavam uma comunidade orante. Mais ainda, comunidade contemplativa, cuja tarefa principal era a oração. Uma autêntica "escola de oração". Para ela escrete Teresa seu manual de pedagogia da oração: o Caminho de Perfeição. Dele recolheremos as idéias básicas da Santa:

a) Antes de tudo, se ora na Igreja e para toda a humanidade inteira. Postulado válido para aquele grupo de contemplativas e para todo aprendiz de oração. A oração criostã não é uma pequena prática confinada no restrito espaço do orante. Passa a ser alento e pulsão do mundo inteiro.

.b) A oração se educa a partir da vida. Requer empenho prévio ou simultâneo no cultivo das virtudes evangélicas. Teresa seleciona três fundamentais: o amor aos irmãos, desapego das coisas, humildade. Porque a amizade com Deus que é a oração, não é viável sem a amizade com os irmãos; não é possível sem liberdade de espírito, e sem disponibilidade à ação de Deus sobre alguém mesmo.

c) Acrescentará todavia dois postulados: "sede da água viva", ou seja, tensão dos desejos; e determinada determinação; não ceder às dificuldades que, certamente, sobrevirão.

d) A melhor partitura de oração é o Pai-Nosso. Nele se aprende e se sintoniza com a oração de Jesus. Aprende-se a interiorizar a própria oração à semelhança da sua.

e) Assim chega o livro ao núcleo central da pedagogia de Teresa, interiorizar a oração à base de uma singela técnica de recolhimento. Expô-la-á nos capítulos 26-29 à base de dois lemas: recolher-se é centrar a atenção em Cristo Senhor dentro de si mesmo. Para isso, o momento melhor é a oração eucarística no ato da comunhão (cc. 33-35).

f) O recolhimento será a melhor disposição para a oração contemplativa de quietude e de união (cc. 31,32).

Ao mesmo tempo em que Teresa expõe esse singelo itinerário pedagógico, introduz em seu ensinamento da oração um elemento novo, de grande importância. Ela se atém ao lema: não falar de oração sem fazê-la. Por isso mesmo, dentro do livro, faz realmente oração diante dos leitores. Desde o primeiro capítulo do Caminho, estes podem constatar por vista de olhos como Teresa ora. Assistem a seu diálogo com o Senhor. Sentem-se envolver nesta pausa de elevação vertical. Comprovam como no livo a vida e a oração se fundem: como vão alternando as palavras de diálogo com o leitor e as dirigidas ao Senhor. Sem solução de continuidade entre umas e outras. Teresa ora pelas necessidades da Igreja. Pelas profanações da eucaristia. Pelo mundo em guerra. Pelas responsáveis de tudo isso. Às vezes suplica, outras vezes invoca ou bendiz ou impreca. Em todo caso, esforça-se para envolver as leitorsas em sua ascensão orante.É o melhor registro da pedagogia de Teresa. Quem lê o livro não só recebe instruções e pautas para o caminho, e não somente sabe como ela ora, mas se sente solidário de sua oração e motivado por ela.

O último recurso magesterial de Teresa consiste em passar da pedagogia à mistagogia da oração.


Santa Teresa, fundadora

Santa Teresa, fundadora

Uma mulher atraente e atraída, forte e vulnerável


Teresa de Cepeda e Ahumada veio à luz em 28 de março de 1515, filha dos piedosos pais Alonso Sánchez de Cepeda e Beatriz Dávila y Ahumada. As primeiras provas de seu fervor religioso herdado dos pais foram a sua fuga de casa para morrer mártir nas terras dos mouros e sua meditação sobre a eternidade. A piedade da infância decairá na adolescência, dando lugar às preferências de toda jovem pelos encantos das relações humanas e dos atrativos mulheris, influenciada pelos devaneios dos romances de cavalaria. Desde cedo pôde constatar sua força atrativa e sua capacidade de liderança, comandando as brincadeiras e centralizando os círculos e as conversas.

Sabia, inteligentemente, ser atraente, utilizando-se de sua simpatia, que ela traduz como desejo de agradar a todos, e teve como mestra neste aprendizado uma parenta de sua idade. Aprendeu a arte da sedução.


À proteção da Santíssima Virgem colocou-se, quando perdeu a mãe, em 1529. Certo de que Maria a protegeria, continuou envolvida em seus passatempos. Preocupado, seu pai resolveu interná-la no mosteiro das monjas agostinianas de Ávila, em 1531. A solidão obrigou-a a encontrar-se consigo mesma. O monólogo é o primeiro passo para um diálogo frutífero. Além da solidão, oportuna companhia, o contato com religiosas sérias abriram-lhe o espírito às dimensões divinas até então encobertas. O desejo de fazer-se consagrada a Deus nasceu-lhe, pela primeira vez. Nem todos se tocam pela própria insatisfação existencial. Isistem em perseguir o mesmo caminho, rumo às mesmas paredes. Teresa descobre a porta ampla. O horizonte que vislumbra do lado de lá, porém, é tão longínquo e misterioso que os efeitos imediatos sentem-se no corpo. Ela somatisa a crise. Enferma volta para casa, quem sabe para tentar recuperar o fio perdido da sua vida, a liga que se rompera em seu espírito. Melhor, fisicamente, vai a Castelhanos de la Cañada, casa de sua irmã mais velha, onde permanece 7 meses. De volta à casa paterna assume, entre 1533 e 1536, a direção de tudo, como mãe e senhora, mulher amadurecida. Em 1536 não consegue segurar-se. Convencendo seu irmão Antônio, fogem de casa. Ela bate no Carmelo da Encarnação, ele na porta dos dominicanos. No Carmelo inicia uma nova vida. Aos poucos vai percebendo que de atraente deve ceder, até ser atraída por Ele, e sua aparente força deu lugar à sua real vulnerabilidade, porta por onde o Cristo entrou em sua vida.


Teresa recebeu o hábito carmelitano em 2 de novembro de 1536 e professou no dia 3 do mesmo mês de 1537, aos 22 anos. Pouco tempo depois de sua profissão, um pouco por causa da nova forma de vida e das graves penitências que se impôs sobre si mesma, e muito pelo drama interior iniciado, ficou gravemente enferma e teve que abandonar temporariamente o mosteiro. A princípios de 1538 mudou-se para um lugar chamado Becedas e depois de alguns meses voltou ao mosteiro, não só com a saúde fraca, mas meio morta e totalmente paralisada. Pouco a pouco ficou restabelecida graças à intercessão de S. José, cuja devoção era popular na Espanha e que se fortalecerá em Teresa desde então.


Sua saúde física restabelecia-se na mesma proporção em que seu espírito se debilitava. Sente-se tíbia até 1553, quando a leitura das confissões de Santo Agostinho e o fatal encontro com uma imagem do Cristo atado à coluna em um dos corredores do mosteiro, tocam-na profundamente e resolvem-lhe o impasse interior. Ela vê nesta experiência sua própria e definitiva conversão (V.9). Este foi o momento em que iniciou seu vôo para as alturas da união com Deus, que se traduziu numa entrega incondicional e valente ao serviço de Deus, que a cumulou de inumeráveis favores e graças. O incremento destes bens foi tão grande e rápido, diz o Pe. Silvério, que em menos de 5 anos havia passado por quase todos os graus do amor e da contemplação infusa, culminando, em 1559, na visita de um querubim que lhe transpassou o coração com um dardo ardente, ferindo-a de amor. Em 1560 comprometeu-se em procurar e fazer sempre o mais perfeito. Inundada da presença transformante de Deus, e diante de tantos fenômenos e graças espirituais, Teresa perturba-se, e busca o auxílio de doutos e santos, que a acalmam e a ajudam a entender o lado humanamente estranho da Graça.


O itinerário místico que Santa Teresa percorre no Carmelo da Encarnação chega à sua natural consequência no desejo de ver a Deus e gozar de sua glória. É este um passo comum nas biografias místicas de relevo. Aos Filipenses São Paulo dirá: "Para mim, de fato, o viver é Cristo e o morrer um ganho" (Fil.1,21). São João da Cruz exprime a ânsia pela glória em sua obra “Chama viva de amor” em que a amada expressa sua incontrolável vontade de que a tela do doce encontro com o amado se rompa. Santa Teresa experimenta a mesma coisa. "Ansiosa de ver-Te, desejo morrer", repete o refrão de um poema seu, entre outros que expressam a mesma realidade. Sua definitiva conversão e o encontro com o Cristo não poderia que suscitar nela o desejo de que tudo acabasse, fazendo com que o normal medo da morte transformasse no medo de não morrer (c. V.29,8 e 10). Todavia àquele que vive em Cristo e experimenta, até o sofrimento, que o tempo se faz breve, acontece-lhe de viver em uma estranha dilatação do próprio tempo.


Para o P. Antônio Sicari, Santa Teresa, em seu caminho espiritual, passou da tensão escatológica à tensão encarnatória. Querendo morrer para viver em Cristo, amadurece ao ponto de viver para Cristo, sendo-lhe um prolongamento de humanidade, servindo-Lhe e fazendo-lhe em tudo Sua Vontade. O amadurecimento espiritual verifica-se quando não lhe interessa mais nem o medo do inferno em que poderá cair, nem o desejo do céu que o Cristo lhe pode dar, mas amá-lo em tudo, viver por Ele e por Ele morrer. É neste sentido que se deve entender o dilema colocado por ela: padecer ou morrer por Cristo.


Como a ressurreição assinala o fim do mundo, a encarnação e a paixão de Cristo prolongam-se no seu corpo eclesial. O instinto escatológico de Teresa deve fazer as contas com a encarnação eclesial.


É este o itinerário narrado no na Vida e nas Relações. O desejo da morte só pode ser aplacado por aquele de sofrer por Ele (cf. V.40,20; R.1,3).


Eventos como a visão do inferno, as notícias da Igreja dilascerada pelo movimento protestante e as missões além-mar no novo mundo descoberto, e outros fatores interiores, levaram Santa Teresa, inspirada continuamente por Cristo, a idealizar um mosteiro onde poucas monjas vivessem ao máximo sua doação ao Senhor, pela Igreja. Ela empenha-se em construí-lo, não sem penas.


O mosteiro, dedicado ao glorioso São José, foi inaugurado no dia 24 de agosto de 1562. Pela manhã uma sineta surda, porém alegre, anunciou aos habitantes de Ávila o nascimento da Reforma Teresiana. Radiantes de felicidade tomaram o hábito de descalças as quatro noviças escolhidas por Santa Teresa: Antônia de Henao (do Espírito Santo), filha espiritual de S. Pedro de Alcântara; Maria de la Paz (da Cruz), criada de D. Guiomar de Ulloa; Ursula de Sevilla (dos Santos), filha espiritual de Gaspar Daza, e Maria de Ávila (de S. José), irmã de Julião de Ávila. O Padre Gaspar Daza celebrou a Santa Missa e depôs no sacrário o SS. Sacramento. Este foi o primeiro de uma enxurrada de mosteiros que ela fundou até o fim de sua vida (17 ao todo), num movimento ainda vivíssimo nos dias de hoje.

Teresa, uma reformadora diferente


Quase todas as reformas das Ordens religiosas nascem, naquele tempo, dos sofrimentos dos reformadores pelas cativas condições e pela vulgarização de experiências que se quer conduzir ao esplendor primitivo. Também Teresa reagiu a uma determinada situação de falha. Mas tal reação foi nela absolutamente secundária na ordem das motivações.


A santa documenta candidamente algumas de suas reações que são absolutamente atípicas para um reformador: “Eu não sabia resolver... porque era contente onde estava, o mosteiro me agradava e havia uma cela ao meu gosto” (V32.10; cf. 32,12). Alguém que se colocasse com mandato divino para colocar ordem nas desordens das Ordens, jamais falaria assim. Não há traços nela de um descontentamento insustentável no andamento das coisas, nem daquela típica insatisfação pelo ambiente ou daquele desejo de excepcional austeridade que estão à base dramática de muitas tentativas de reforma religiosa no século XVI.


Do seu velho mosteiro a Santa tece grandes elogios (cf. V.7,3). Nesta linha devemos entender também a resposta que ela dá em 1581 ao pedido de uma monja que quer fazer parte de seu mosteiro, alegando vida regalada no mosteiro onde estava. Ela não a aceita, por razões jurídicas, e diz que ela pode, e diríamos deveria, ser boa onde está: “Antes de se fundarem estes mosteiros, passei vinte e cinco anos num onde havia cento e oitenta monjas. E, por escrever às pressas, só direi: a quem ama a Deus tudo lhe servirá de cruz e de proveito para a alma. Nada lhe fará mal se andar de sobreaviso, considerando que só Deus e vossa mercê estão nessa casa; e, enquanto não tiver ofício que a obrigue a olhar as coisas, nada se lhe dê de nenhuma delas. Procure antes imitar a virtude que vir em cada Irmã, a fim de mais amá-la e tornar-se melhor, descuidando-se das faltas que nela vir. Isto me aproveitou tanto, que, sendo tão numerosas como disse, não me distraíam mais do que se nenhuma houvesse, antes me eram de proveito. Porque, enfim, senhora minha, em toda parte podemos amar a este grande Deus. Bendito seja Ele, que não há quem nisto nos possa estorvar.” (Carta abril de 1581). Teresa mesma dirá de si que, malgrado tudo, fazia um grande bem em torno (V.32,9). A quantos lamentavam que levava muitas monjas da Encarnação para suas fundações ela respondia que restavam ainda mais de quarenta que poderiam fundar uma nova vida religiosa.


Se de um lado é óbvio que no seu novo mosteiro Teresa buscará cortar os abusos que encontrou na vida carmelitana do seu tempo, e que causaram danos inclusive nela, do outro lado não é igualmente óbvio dizer que esta intenção reformista tenha motivado o nascimento do novo Carmelo.


A opinião geral é a de que Santa Teresa nunca pensou na fundação de uma nova Ordem religiosa, nem sequer pretendeu reformar toda a Ordem do Carmelo como tal. A origem da sua intenção reformadora não vai além do âmbito de seus íntimos desejos de conseguir a própria perfeição e de ajudar a Igreja e as almas, cumprindo fielmente sua vocação.


A Santa não desconhece o concreto, porém não se exaspera diante dele. No livro da Vida estigmatizará com palavras enérgicas o relaxamento dos mosteiros (V.7,5). Tornará sobre o tema com expressões duras no Caminho (cap.12-14). Anos mais tarde, por ocasião de sua peregrinação através da Castilha e das províncias andaluzes, conhecerá algo do desenfreio de certos eclesiásticos (cf. Carta ao Padre Geral J. B. Rubeo, em 18 de Junho de 1575) e sentirá muito, contudo isto nem a escandalizará nem a estimulará a fazer algo para concertar o que está errado. Santa Madre é prática. Os males da Igreja e os perigos que ela corre na sua missão levam-na a fazer “esse pouquinho que posso”, como diria. E o que está ao seu alcance e o que se converteria em seu ideal é seguir os conselhos evangélicos com toda perfeição, juntamente com outras que quisessem segui-la (cf. C. Val.1,1-3), vivendo em plenitude o espírito original do Carmelo tal como ela havia chegado a vislumbrar, com sua marca eminentemente contemplativa, cujo valor evangélico e eclesial supôs compreender com profundidade inigualável, como o compreenderia também frei João da Cruz.


A Santa se limitará a criar um novo estilo de vida em que a realização de seu ideal seja mais facilmente exeqüível, sem que lhe passe nunca pelas mentes a idéia de impô-lo de algum modo a suas irmãs e irmãos de hábito, como advertia o P. José de Jesus Crucificado, para quem "a reforma de Santa Teresa não surgiu como uma espécie de rebeldia, contra a Ordem antiga do Carmelo, nem como uma intenção prévia de reformá-la enquanto tal, já que nem a Santa Teresa – que foi sempre filha fiel e amantíssima de sua Ordem – passou-lhe pelo pensamento semelhante idéia, nem o velho tronco da Ordem, de cuja seiva nutriu em boa parte seu espírito, convertendo-o em vida própria, sofreu alteração alguma de caráter jurídico, disciplinar ou espiritual por causa da Reforma ou por sua influência. Esta surgiu impulsionada por motivos e circunstâncias em parte pessoais e em parte ambientais e sociais, em consonância com o momento histórico e com as peculiares necessidades do tempo, como um movimento novo e vigoroso, destinado, não já a reformar a Ordem do Carmo enquanto tal, senão a instaurar na Igreja uma corrente de vida espiritual profunda e fecunda, que trouxesse um remédio eficaz àquelas necessidades e fosse, ao mesmo tempo, um instrumento eficiente de apostolado ao serviço da Igreja.


É de se notar que este movimento se inicia e desenvolve, não a despeito nem contra a Ordem em cujo seio se produz, senão favorecido e protegido por ela, já que não outra coisa significava, na realidade, senão uma nova e mais eficaz tentativa de melhoramento espiritual, em harmonia tanto com as diretrizes dadas pelos Sumos Pontífices à raiz do concílio de Trento como com os desejos intimamente e de muito tempo sentidos na Ordem mesma".


A idéia reformista, propriamente dita, não pertencia ao núcleo essencial da intuição nem de Santa Teresa nem de São João da Cruz. Ela somente se introduz em sua obra por intromissão do rei Filipe II que quis impor aos carmelitas sua própria reforma, instrumentalizando, para isso, a descalcez. Mas, visto por um ângulo mais largo, Santa Teresa é reformadora no sentido de ter colaborado para apontar à Igreja um caminho de fidelidade à sua própria missão. É assim, como reformadora, que a Igreja a vê. No âmbito minúsculo do Carmelo, ainda que tenha iniciado um movimento inicialmente com caráter renovador, Teresa passa a ser, mais que tudo, fundadora.