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domingo, 6 de setembro de 2009




MÍSTICA E PROFECIA NA PERSPECTIVA DOS SUPERIORES CARMELITAS

I

A VOCAÇÃO: UMA EXPERIÊNCIA DO DEUS VIVO

Como superior que fui por muitos anos e em contato com a realidade da vocação de muitos de meus irmãos pude constatar que a base da mesma, de modos diversos e em diferentes circunstâncias, foi a experiência de Deus a que suscitou neles o desejo de seguir a Jesus. O seguimento de Jesus no centro, o eixo e a chave de sua vocação. “Tem a virtualidade de resumir a totalidade da vida cristã e de evocá-la no concreto de suas vidas. Tem o caráter de norma e também de ânimo a sua realização, de exigência pelo doloroso e de gozoso por haver encontrado a ‘pérola’ de maior valor” (J. M. Castillo).

Em sua vida como cristãos ressoou o chamado de Jesus. Ele é a base de sua consagração – missão na Igreja. De um modo ou de outro Jesus os viu com algo mais que um simples olhar superficial que apenas percebe sua presença. Olhou no fundo de seu coração e ali fez ressoar seu convite. Seu olhar foi um olhar de eleição. Esta exigiu uma decisão feita de confiança e abandono, por sua projeção ao futuro: “ser pescadores de homens”, “levar cada dia sua cruz”, “estar com Jesus”, “ser enviados a pregar” (Mc 3, 13 – 14). Tiveram que deixar muitas coisas para seguir a Jesus: perder seguranças – família, ambiente vital (Mc 1,20); dos bens materiais que trazem garantias na sociedade (Lc 14, 33); da própria lógica, fonte de auto-afirmação (Lc 9,23).

Tiveram que romper gradativamente os vínculos que podiam comprometer o seguimento: o apego às estruturas sociais e a meios humanos (Lc 9, 57 – 62). Requereu superar o medo ante a perseguição, perseverar em meio às dificuldades e contradições (Lc 12, 1 – 12); evitar a cobiça e não preocupar-se excessivamente pela vida (Lc 12, 13 – 31). Abraçar o seguimento foi uma resposta livre ao chamado gratuito. Jesus é que tomou a iniciativa. Ele saiu ao encontro de cada um. O homem, mais que buscar a Deus é por ele buscado. E isto é algo que se foi renovando e segue renovando. Por isso estar atento à escuta da Palavra para pô-la em prática (Lc 8,21).

O seguimento se dá de forma gradual. Vai amadurecendo lentamente nos altos e baixos da resposta humana. Passa por crises. Na fé e no amor confiado que purifica, reconhecem-se e assumem como parte de sua história, as debilidades e infidelidades. O seguimento de Jesus conduz ao compromisso com o projeto de Deus para tronar presente Cristo – Caminho na história da humanidade (Jo 14, 6).

A experiência do Deus vivo faz compreender a gratuidade de seu chamado, fruto de seu amor que vai acompanhado pela garantia de sua fidelidade e misericórdia. Ele elege o que não é, o desprezível (1Cor 1, 26 – 29). A experiência da gratuidade de Deus evita a auto-suficiência e o desalento. Não há espaço para a auto-suficiência porque a eleição é gratuita. Quanto ao segundo pode ser superado ao constatar que Deus está sempre junto do eleito para ajudá-lo e assumir com humildade e responsabilidade a missão que lhe encomenda.

Renovar em nossa vida carmelitana a experiência de Deus que nos chamou é e será sempre fonte de renovação. A cada dia o Senhor volta a chamar e nos apresenta suas exigências. Estamos sempre em sua presença e Ele, que nos elegeu, nos acompanha no cumprimento de nossa missão.

II

NOVA CONSCIÊNCIA NASCIDA DA CERTEZA: “DEUS CONOSCO” – LIBERDADE INTERIOR

Em meu serviço de animação da vida de meus irmãos tenho experimentado a importância que tem a consciência de que em Cristo, em cujo obséquio vivemos. Deus está conosco para levar-nos ao longo da vida liberdade interior que nos capacita para o serviço a nossos irmãos. A liberdade cristã não consiste em alguém fazer o que alguém lhe dita ou por mero capricho. A liberdade cristã é uma liberdade para amar (Gl 5, 13 – 14). É um dom de Deus que faz passar da servidão do pecado e do egoísmo ao seu serviço e do próximo. É ao mesmo tempo uma conquista cotidiana no desenvolvimento e crescimento de nosso ser de novas criaturas em Cristo (Gl 6,15). Justamente porque é também uma conquista, a liberdade cristã tropeça em obstáculos e dificuldades em seu caminho para a maturidade. Tudo o que convida ao ser humano a recair sobre si mesmo, ou encerrar-se sobre si mesmo, a buscar sua segurança em normas e práticas, é um empecilho para crescer na liberdade que Cristo nos trouxe. Também o é todo que se fundamenta no fatalismo e impede à pessoa assumir sua responsabilidade na história como filho/a de Deus de forma irrepetível de sua personalidade.

A liberdade de espírito vai amadurecendo lentamente na vida de cada um. É todo um processo que tem que ir superando a tentação de delimitar o Espírito dentro de uns esquemas imutáveis e repetitivos ao longo do tempo. Como se o Espírito não fosse sempre novo e sua ação se esgotasse num certo tipo de concreções quando ele impulsiona para o futuro. A liberdade de espírito comunica abertura aos caminhos imprevisíveis do Espírito. Propicia a fidelidade criativa (Vita Consecrata, 37).

A liberdade de espírito cresce na medida em que se vai adquirindo uma visão contemplativa da realidade que leva a descobrir a Deus em todas as circunstâncias, a buscar sua vontade nos acontecimentos, a contemplar a Cristo em todas as pessoas e a valorizar devidamente os bens deste mundo em si mesmos e na relação que têm com o definitivo (cf Apostolicam actuositatem, 4).

Do contato assíduo com a Palavra de Deus se obtém a luz necessária para o discernimento pessoal e comunitário que serve para buscar os caminhos do Senhor nos sinais dos tempos. Desse modo os membros do Carmelo podem encontrar como escreve Santa Teresa, “com aquela liberdade de espírito tão apreciada e desejada que têm os perfeitos, onde se acha toda a felicidade que nesta vida se pode desejar, porque, não querendo nada, o possuem no todo.

Nada temem nem desejam na terra, nem os trabalhos e dificuldades as perturbam, nem os contentamentos lhes causam mudança de ânimo. Enfim ninguém lhe tira a paz, porque esta somente de Deus depende. E como a Ele ninguém pode tirar só o temor de perdê-lo pode causar dor e que tudo o mais deste mundo, em sua própria opinião, como se não fosse, porque em nada lhe acrescenta nem diminui em nada para seu contentamento (Fundações 5,7).

A 5ª Assembléia de Aparecida reafirma tudo isso e faz ver que a oração pessoal e comunitária “é o lugar onde o discípulo, alimentado pela Palavra e a Eucaristia, cultiva uma relação de profunda amizade com Jesus Cristo e procura assumir a vontade do Pai. A oração diária é um sinal do primado da Graça mo itinerário do discípulo missionário (cf. Documento de Aparecida, 255 [ DAp]). Ela favorece a liberdade de espírito.

III

JUSTIÇA E PAZ: LUTAR PELA RECONSTRUÇÃO DE UMA CONVIVÊNCIA SOCIAL MAIS JUSTA E FRATERNA.

O amor cristão resume toda a lei e os profetas (cf. Mt 22, 37 – 40). Por isso é o eixo central da vida cristã. A novidade é que, ao falar do amor cristão hoje em dia, percebe-se também sua dimensão social. Nas circunstâncias atuais “não se pode, verdadeiramente, amar o irmão, e, portanto, a Deus, sem comprometer-se pessoal, e em muitos dos casos, em nível de estruturas com o serviço e a promoção dos grupos humanos e dos estratos sociais mais desprovidos e humilhados, com todas as conseqüências que se seguem no plano dessas realidades temporais” (Puebla, 327).

A dimensão social da caridade não se opõe às manifestações individuais e assistenciais – que são necessárias – mas insiste na linha da promoção humana e, sobretudo, na da transformação das estruturas para que se faça justiça aos oprimidos. Em outras palavras, vai à raiz mesma das dominações e opressões sociais. Isto ajudou a aprofundar o sentido do termo “política”, pouco compreendido ou até mesmo rechaçado como oposto à vida cristã. As distinções entre política em sentido amplo e a política partidária vão ajudando a entender a legitimidade e a necessidade deste aspecto da vida humana para o exercício de um amor cristão concreto e eficaz, que luta contra a injustiça, defende os direitos humanos e promove o bem comum.

O Carmelo não pode estar alheio a esse trabalho pela justiça e a paz que deriva do evangelho e é sinal da autêntica oração. De fato, entre evangelização e promoção humana, desenvolvimento e libertação existem vínculos teológicos, antropológicos e evangélicos, como evidenciava a encíclica Evangelli Nuntiandi, de Paulo VI (Cf. EM 31). Experimentar a Deus na interioridade traz também consigo um convite a mudar a história. Lutar por uma sociedade fundamentada no direito e na justiça (Jr 21, 11 – 22, 4). O amor ao próximo possui uma dimensão histórica que se deve concretizar na ação exigida pelas novas circunstâncias sempre em transformação. Hoje são necessárias novas mediações, que dêem ao amor cristão a eficácia que lhe falta em determinadas ocasiões.

As obras de misericórdias enumeradas no texto de Mateus, no qual descreve o juízo final (Mt 25, 31 – 46), devem ser interpretadas, na missão evangelizadora, também em chave social. Dar de comer e beber ao necessitado significa colaborar para que na sociedade se criem fontes de trabalho e estruturas que permitam a todos satisfazer estas necessidades elementares da pessoa humana. Visitar ao enfermo implicaria em trabalhar para que ninguém careça de seguridade social e médica. Preocupar-se com quem está no cárcere deve levar à denúncia da violação dos direitos humanos dos prisioneiros, das torturas que se lhes infligem, das prisões arbitrárias.

O Documento de Aparecida reafirma esta dimensão social do amor ao falar da opção preferencial pelos pobres entre os quais menciona comunidades indígenas e afro-descendentes, jovens sem oportunidade, desempregados, migrantes, nômades, desapropriados, agricultores sem-terra, crianças submetidas à prostituição infantil, milhares de pessoas e de famílias que vivem na miséria, dependentes de drogas, portadores de necessidades especiais, soro-positivo, enfermos de AIDS, vítimas do terrorismo, de conflitos armados e de insegurança cidadã (DAp nº 65).

IV

SOLIDARIEDADE: REFAZER AS RELAÇÕES HUMANAS

Vivemos num mundo dilacerado pelas divisões, ódio, guerras, injustiças. O anúncio da Boa Notícia tem que projetar-se para a conquista de relações humanas como expressão da comunhão que Cristo nos trouxe e que exigiu de seus seguidores. Nossos santos viveram relações humanas baseadas no amor, na aceitação dos outros, na colaboração. Em outras palavras, nos ensinaram a dimensão coletiva que tem a responsabilidade humana. De fato o juízo escatológico versará sobre o amor solidário que evidencia uma fé que sabe reconhecer o rosto de Cristo no irmão, especialmente no mais necessitado e desprotegido. “No entardecer de nossa vida te examinarão no amor” dizia são João da Cruz (Ditos, 59).

Uma característica do mundo atual é a tendência à globalização. Trata-se de um processo que se impõe devido à maior comunicação entre as diversas partes do mundo, levando praticamente à superação das distâncias, com efeitos evidentes nos diversos campos. Do ponto de vista da ética, pode ter uma valorização positiva ou negativa. Há uma globalização econômica que traz consigo certas conseqüências positivas, com forte acento na eficiência e incremento da produção. No entanto, se a globalização se rege pelas meras leis do mercado aplicadas segundo conveniências dos poderosos, leva a conseqüências negativas. Há de se reconhecer ainda os valores positivos que a globalização comporta: não podemos passar por cima dos aspectos negativos dela derivados, como a imposição de novas escalas de valores arbitrários que destroem a riqueza da diversidade cultural (cf. Ecclesia in America, 20).

Com a Igreja somos chamados em nossa missão evangelizadora a trabalhar para estabelecer uma ordem econômica em que não domine somente o critério do lucro, mas também o da busca do bem comum nacional e internacional, a distribuição eqüitativa dos bens e a promoção integral dos povos para contribuir para criar uma verdadeira cultura globalizada da solidariedade que reduza os efeitos negativos da globalização, como são o domínio dos mais fortes sobre os mais fracos, especialmente no campo econômico e a perda dos valores das culturas locais em favor de uma mal entendida homogeneização (cf. Ecclesia in America, 55). Não é possível refazer as relações humanas se não forem criadas estruturas mais justas. Tudo isto não é alheio à evangelização. É necessário estar atentos aos debates e normas internacionais neste ponto.

A Igreja é uma comunidade de seguidores de Jesus. O seguimento tem um selo fortemente comunitário. É na comunidade eclesial onde se recebe, ao longo da história, o chamado a seguir a Jesus Cristo. Ele, presente em meio aos fiéis crentes, repete este gesto de CON–VOCAR e COMUNICAR a seus seguidores diversos carismas para serviço da comunidade. Na multiplicidade dos carismas se dá uma estrutura harmônica. Todos devem ser uma concretização do amor cristão, primeiro fruto e meta, ao mesmo tempo, do seguimento de Jesus Cristo. A comunhão em Cristo e a vocação a formar a comunidade eclesial criam vínculos fraternos entre seus seguidores. A comunhão de corações e a partilhar os bens aparecem como ideal para os cristãos de todos os tempos. O amor ao próximo – irmão deve ser como o de Jesus. A fraternidade cristã, que se origina no chamado ao seguimento encontra no Mestre – Cristo e em seus ensinamentos a expressão concreta da gratuidade, a universalidade e a entrega total que devem caracterizá-la e que hoje exigem de nós um compromisso de solidariedade a partir dos pobres.

V

UTOPIA DO REINO: ANIMAR A ESPERANÇA DO POVO

A esperança cristã não pode reduzir-se à simples espera paciente e resignada da irrupção do definitivo em nossa história humana. O conceito bíblico de esperança ilumina a tensão entre o presente e o futuro que será definitivo. A redenção de Cristo, realizada já, tem ao mesmo tempo uma faceta futura que é objeto de esperança: a redenção se consumará com a ressurreição. À luz do Novo Testamento, a esperança cristã constitui-se da fé, paciência perseverante e ação (cf. Rm 5, 3 – 5) e se apóia na bondade e fidelidade de Deus manifestadas em Cristo, do qual nada nem ninguém nos pode separar (Rm 8, 38 – 39), e na presença do Espírito (Rm 8, 11.23). a esperança cristã arrasta também consigo o universo (Rm 8, 19 – 22).

A dimensão ativa da esperança se orienta ao progresso do ser humano e à libertação e somente através desta ao progresso do mundo, da ciência e da técnica. Tudo deve orientar-se à libertação integral da pessoa humana. A esperança do definitivo não deve debilitar mas, levar à solicitude para transformar o mundo e a sociedade porque isso interessa ao reino de Deus, já misteriosamente presente na terra (cf. Gaudium et Spes, 39). A esperança em sua dimensão social leva a descobrir contemplativamente as sementes de vida e de ressurreição nas coisas de cada dia, nas situações, nas pessoas e em cada um individualmente. Também a experiência da própria pobreza, das próprias limitações e da lentidão das mudanças exige o exercício de uma esperança ativa que vive a tensão da paciência perseverante.

Como carmelitas, à luz da experiência e da doutrina de nossos santos devemos sustentar e animar a esperança do povo. Uma esperança ativa que compromete no trabalho por tornar presente o Reino.

O Documento de Aparecida apresenta a esperança cristã numa dupla perspectiva: de um lado descobre os sinais de esperança e por outro, a coloca na linha do Vaticano II que a associa ao compromisso de trabalhar pelo projeto de Deus, que começa neste mundo e que se consumará quando chegarem os novos céus e a nova terra. Constata-se que juntamente com a fé existe em muitos batizados uma esperança contra toda esperança que produz a alegria de viver, ainda que em condições precárias, porque encontra a Jesus como rocha, paz e vida (DAp, 7.21).

Entre os sinais de esperança que anima a espiritualidade na América Latina e o Caribe está a caridade de tantas pessoas anônimas em meio às injustiças e adversidades. Seu testemunho manifesta a proximidade do poder salvador e libertador do reino de Deus “que nos acompanha na tribulação e que alenta incessantemente nossa esperança em meio a tantas provas” (DAp 30). Na Igreja, “casa e escola de comunhão” como discípulos juntamente com todos os outros membros da Igreja devemos compartilhar, a partir de nosso carisma, “a mesma fé, esperança e amor a serviço da missão evangelizadora para iluminar e infundir alento e inspirar soluções adequadas aos problemas da existência (cf. DAp, 158.333). “No coração e vida de nossos povos é latente um forte sentido de esperança, não obstante as condições de vida que parecem ofuscar toda esperança. Ela se experimenta e alimenta no presente, graças aos dons e sinais de vida nova que se partilha; compromete na construção de um futuro de maior dignidade e justiça e ânsia pelos “novos céus e nova terra” que Deus nos prometeu em sua morada eterna” (DAp 536).

VI

DISCERNIMENTO: SABER DISTINGUIR A FALSA PROFECIA

A espiritualidade do seguimento de Jesus Cristo nos coloca diante dele, Palavra que se fez carne e habitou entre nós, numa atitude de atenção a seus ensinamentos na Escritura e na vida: “para que vocês sejam reconhecidos verdadeiramente como discípulos meus terão que fazer atenção a esta mensagem: conhecerão a verdade e a verdade libertará vocês” (Jo 8,32). Como fiéis somos discípulos e Jesus é o mestre que fala e mostra os planos de Deus. A nós nos cabe aceitar seu testemunho, segui-lo e manifestá-lo profeticamente.

O chamado de Jesus ao seguimento é, ao mesmo tempo, um chamado à missão de testemunhar e anunciar a Boa Nova e a interpelar, a partir de suas exigências, a vida pessoal e social. A narrar João a vocação dos primeiros discípulos (Jo 1, 35 – 51), põe em evidência que eles, convidados por Jesus a ir e ver onde vivia, tiveram uma experiência profunda que levou de imediato a André a chamar outros ao seguimento do Senhor. Testemunha a Pedro o que viu e sugere que faça pessoalmente essa mesma experiência direta de Jesus, que lhe permita conhecê-lo e segui-lo (Jo 1, 40 – 41).

Jesus propõe seu seguimento como um serviço de si mesmo até à morte. Ele mesmo nos dá critérios para distinguir a verdadeira da falsa profecia. Pede que quem se dispuser a abandonar tudo: família, bens, prestígio, seguranças para estar disponível para o anúncio do Reino seguindo-o até à cruz em comunhão de vida com Ele. Cristo Ressuscitado segue presente na história. Seguidores seus, somos chamados a testemunhar sua vida e sua ressurreição (cf. Lumen Gentium, 3), a descobrir os sinais de esperança presentes na vida dos homens. A comunidade de seguidores “é enviada como povo profético que anuncia o evangelho ou discerne as vozes do Senhor na história; anuncia onde se manifesta a presença de seu espírito e denuncia onde opera o mistério da iniqüidade mediante fatos e estruturas que impedem uma participação mais fraternal na construção da sociedade e no gozo dos bens que Deus criou para todos” (Puebla, 267).

A liberdade de espírito se concretiza na parrésia e possibilita viver a dimensão profética da vida consagrada enraizada na missão profética de todo cristão. O profetismo se manifesta no testemunho do absoluto de Deus e dos valores do evangelho; centraliza-se no amor pessoal a Cristo e aos pobres nos quais Ele vive. Vita Consecrata cita a Elias que, na tradição patrística é visto como modelo da vida religiosa monástica porque vivia na presença de Deus e contemplava em silêncio sua passagem, intercedia pelo povo, proclamava a vontade do Senhor, defendia seus direitos e os dos pobres contra os poderosos do mundo (cf. VC 84). Temos aqui o modelo de nosso profetismo.

O mesmo documento assinala com acerto que a verdadeira profecia nasce de Deus e da amizade com Ele, da escuta de sua Palavra nas diversas circunstâncias da história. Por outro lado exige a busca da vontade de Deus, a comunhão eclesial, o discernimento espiritual e o amor pela verdade. Se expressa também na denúncia de tudo aquilo que se opõe ao plano de Deus e na criatividade para encarnar o evangelho na história. Esta se adquire na medida em que vai crescendo o amor a Deus e ao próximo. Nossos místicos são testemunhas e mestres nesse caminho. Tudo isso exige uma profunda liberdade de espírito. A liberdade de espírito como atitude permanente da vida consagrada ajuda a harmonizar as exigências da ordem vigente com as de uma nova ordem; a conciliar as formas institucionais com a renovação requerida pelo Espírito que impulsiona a comunhão, defende a liberdade e comunica a “parrésia” do profetismo.

VII

COMUNIDADE ORANTE E PROFÉTICA

A vida religiosa teve desde o princípio em seu ideal comunitário a imitação da primitiva comunidade cristã de Jerusalém. Nela é possível apalpar sensivelmente o primeiro fruto do Espírito: o amor (Gl 5,22). A comunhão de corações e a partilha dos bens aparecem não somente como características da comunidade de Jerusalém, mas também como ideal para os cristãos de todos os tempos (At 4, 32). A partir da fé comum (At 2,42) o fiéis crentes acolhem a Palavra de Deus que os convoca a unir-se na fraternidade. Esta tem como fruto e exigência por sua vez a KOINONIA ou comunhão com o Pai e com seu Filho Jesus Cristo e entre os fiéis crentes (1Jo 1, 1 – 4). Nela se integram a fé e a vida. Esta comunhão se manifesta externamente na aceitação dos outros, na partilha dos bens, na projeção social do amor. A oração se vive como escuta de Deus para comprometer-se com o irmão. A diversidade de carismas conduz a um serviço mútuo.

Como carmelitas somos chamados a viver pessoal e comunitariamente uma atitude contemplativa. A meta será conseguir integrar a experiência de Deus e a experiência da vida: ser contemplativos na oração e no trabalho evangelizador. Ter uma experiência de Deus na história e nos irmãos que dê sentido aos “tempos fortes” de oração: momentos de maior consciência da presença do Senhor, fonte de criatividade evangélica; espaço interior para o encontro pessoal e íntimo com o Senhor. A oração como atitude de vida leva a descobrir o rosto de Deus na realidade conflitante, nos problemas sociais, na angústia dos pobres nos quais há de “reconhecer os traços sofredores de Cristo, o Senhor, que nos questiona e interpela” (Documento de Puebla, 31; cf. DAp, 65). A contemplação se fundamenta e se dá na história e fazendo história de salvação.

O Vaticano II recordou que todos os cristãos, pelo batismo, participam da função sacerdotal, real e profética de Cristo (cf. Lumen Gentium, 31). Como carmelitas somos chamados a viver a dimensão profética da vida cristã, sublinhando o absoluto de Deus e do Reino para converter-nos com nossa vida em sinais dele na história. Cumpriremos nossa missão profética na medida em que estejamos radicados na experiência do Deus de Nosso Senhor Jesus Cristo, o Deus das bem aventuranças, que faz sair o seu sol sobre bons e maus e faz chover sobre justos e injustos (Mt 5, 45); que ama aos ingratos e maus (Lc 6, 35). O Pai, cujos caminhos não são nossos caminhos (Is 55, 8 – 9), que nos quer transformar em filhos seus, em irmãos uns dos outros e que em tudo concorre para o bem de todos (Rm 8,28). Um Deus que continua revelando-se na realidade na qual está presente e cujo rosto aparece também nas situações de conflito, nos problemas sociais, nos desafios de um mundo secularizado, nos sinais dos tempos e dos lugares. De modo particular, devemos ser, hoje, pessoas que experimentam a presença interpelante de Cristo no ser humano, especialmente nos mais pobres (Mt 25, 31 – 46). Na linha dos profetas bíblicos, somos chamados a aprofundar na experiência de Deus, até que Ele seja uma pessoa viva com a qual nos relacionemos intimamente. Ser profeta não é transmitir verdades ou dogmas mas, sim, comunicar e proclamar a experiência de Deus e suas exigências. Ao vivera oração como um auscultar a Deus para depois comprometer-nos com os irmãos desde o testemunho de nossa fraternidade, poderemos viver esta característica do profeta bíblico e encontraremos na oração como atitude de vida uma força que gera disponibilidade para confrontar os caminhos imprevisíveis do Espírito. Na experiência de nossa pobreza, nos descobriremos sinais frágeis e pobres nos quais se manifesta o poder de Deus.




Os elementos místicos e proféticos no Carmelo na perspectiva de um superior

Joseph Chalmers O.Carm

A vocação é um chamado de Deus que tem sua mediação em e através da situação humana da pessoa chamada. Há muitas razões para entrar na família carmelitana e estas devem ser discernidas desde cedo para que somente aquelas que verdadeiramente buscam a Deus possam continuar a viagem e outros possam receber o apoio para que vejam que talvez outro caminho possa ser mais conveniente para elas. A vocação para ser carmelita é a mesma, independentemente do estado de vida a que se sinta chamado: se no estado laical, à vida religiosa nas suas várias expressões (apostólica/monacal, através dos ministérios ordenados ou não). Claramente a forma em que se viva esta vocação em particular difere consideravelmente de acordo com estado de vida.

Uma pessoa busca a Deus porque teve algum tipo de experiência do Deus vivo; e os formadores em particular são responsáveis por ajudar a cada indivíduo a compreender o significado de sua experiência e a consentir a presença e a ação de Deus em suas vidas. Toda a vida carmelitana é um processo de formação para entender mais profundamente o que Deus está fazendo para que possamos responder com maior plenitude à vontade de Deus. Ninguém se torna carmelita senão a partir do momento em que já se percebe carmelita a partir dos valores plasmados por Deus no mais profundo de seu coração, onde está em sintonia com o projeto Carmelita. Através do processo de formação, o indivíduo ou se compromete mais e com mais força a fazer destes valores as pedras fundamentais de sua vida espiritual ou simplesmente busca a vontade de Deus em outro lugar.

Há diferentes modos de viver o carisma do Carmelo no mundo, mas o fundamental é o mesmo. É uma resposta a Deus que nos chama a viver em obséquio de Jesus Cristo, inspirados pela Virgem Maria e o profeta Elias numa vida de serviço, oração e fraternidade. Estes valores são unidos pela contemplação que é uma intimidade crescente com Deus e Jesus Cristo.

É sempre iniciativa de Deus. Deus chama e nós respondemos. Devemos ajudar às pessoas a escutar porque amiúde Deus vem em formas inesperadas. No Monte Horeb Deus não estava presente no vento forte, no terremoto ou no fogo, mas no soprar de uma brisa leve (1Rs 19,12). Como Maria, a mãe de Jesus, devemos guardar todas estas coisas em nosso coração (Lc 1,19) para que possamos reconhecer a presença do Deus vivo nos acontecimentos, grandes ou pequenos, que sucedem ao nosso lado, e como ela, responder “Eis a serva do Senhor. Faça-se em mim segundo sua Palavra” (Lc 1,38).

I – A nova consciência de que Deus está conosco

O profeta Elias proclamou ao povo que o Deus que havia acompanhado a seus ancestrais da escravidão no Egito à terra prometida pelo deserto; todavia estava com eles. Os primeiros carmelitas foram ao Monte Carmelo com o fim de viver em obséquio de Jesus Cristo na mesma terra deste. Quiseram estar o mais próximo possível e acreditavam percorrer os mesmos caminhos que Ele caminhou ajudaria a manter sua presença sempre à frente de seus pensamentos e corações. A celebração diária da Eucaristia, recomendada em nossa Regra Carmelita, é a celebração da nova aliança, o vínculo de amor entre Deus e seu povo, e que é selada no precioso sangue de Cristo.

No Antigo Testamento a idéia da aliança é uma chave importante para compreender as relações de Deus com a humanidade. Originalmente isto foi um tipo de contrato onde Deus prometeu estar com Abraão, então o povo eleito em sua totalidade prometeu não ter outro deus senão a Deus somente. Na história do povo eleito vemos a impossibilidade dos seres humanos responderem com completa fidelidade à iniciativa de Deus. Finalmente Deus enviou a seu Filho único para estar conosco e, na Eucaristia Ele nos deixou presença permanente.

Maria, conhecida pelos eremitas no Monte Carmelo como a “Senhora do lugar”, fazendo referência a seu Filho, diz aos seus seguidores através dos tempos que “façam tudo o que ele dizer” (Jo 2,5). Ele é o Emanuel, Deus conosco.

No princípio de nossa Regra nós, como todos os cristãos, somos chamados a “viver em obséquio de Jesus Cristo”. Isto inclui a idéia do Evangelho de seguir a Cristo mais vais mais além ao expressar o ideal carmelitano de viver intimamente com Ele. Se distanciamos nossos olhos de Cristo nos perderemos e estou convencido da grande importância da escuta diária da Palavra de Deus pessoal e comunitariamente. O movimento de nossa Regra entre a cela a capela ou mesmo o refeitório é muito importante. A cela representa nossa conversação diária com Deus, que toma lugar no silêncio de nossos corações. Esta conversação íntima com Deus nos dá a fortaleza para oferecer algo à comunidade quando nos reunimos, seja para partilhar nossas vidas na mesa ou na celebração eucarística. Estar com a comunidade nos dá a cada um a fortaleza de buscar a Deus com maior profundidade no silêncio da cela, onde quer esta se encontre. Qualquer coisa que venhamos a fazer, onde quer que estejamos, Deus está conosco.

II – Justiça e Paz

Os carmelitas são muito conscientes do profeta Elias. Ele encontrou a Deus no silêncio do monte Horeb (1Rs 19, 11 – 13) e também proclamou a Palavra de Deus numa situação de grave injustiça, quando o Rei agiu em cumplicidade com sua esposa para assassinar a Nabot e tomar posse de sua vinha (1Rs 21, 1 – 27). Devemos nos esforçar em manter os dois aspectos do profeta em nossas mentes quando o vemos como inspiração para a vida carmelitana.

Os carmelitas vivem em obséquio de Jesus Cristo inspirados pelo profeta Elias e Maria, a Mãe de Jesus. Os valores essenciais de nosso carisma são a oração, o serviço (apostólico, inclusive) e a fraternidade; e se mantém unidos pela contemplação, que é um compromisso o rosto do Deus vivo por meio de cada aspecto da vida. A contemplação é, em última instância, um dom de Deus por meio do qual começamos a ver a criação como se fosse com os olhos de Deus e a amar os que vemos com o coração do mesmo Deus. Isto não é nada “romântico”, platônico, mas verdadeiramente pode até ser muito doloroso quando, juntamente com toda a formosura da criação, nos damos conta de que mais e mais as injustiças desfiguram nosso mundo.

A opção pelos pobres não é um opção para os cristãos, mas é um imperativo se desejamos seguir o caminho de Jesus que veio para proclamar a boa nova dos pobres (Lc 4,18). O trabalho pela justiça e a paz deve fruir de nosso olhar contemplativo e deve constantemente voltar à fonte de toda paz e justiça. Nós temos um Pai no céu e, portanto, somos irmãos e irmãs. É somente em Deus que podemos ver sem distinção e agir sem interesses pessoais. O Papa João Paulo II escreveu no documento Vita Consecrata: “o Cristo que se encontra na contemplação é o mesmo que vive e sofre nos pobres” (VC 82).

O trabalho pela justiça, paz e integridade da criação é parte integral do carisma carmelitano. A forma de vida que levamos, o modo de realizar nosso trabalho é profundamente marcado por nossa vida contemplativa. A oração não é busca de um caminho para sentirmos livres do estresse, mas para formar em nós a mente e o coração de Cristo. Nossa oração então formará nosso trabalho pela justiça e nosso trabalho enriquecerá nossa oração. Veremos que somos parte do mal contra o qual protestamos e pediremos a Deus que nos livre, a nós e a todo o povo, do mal para que os valores do Reino possam penetrar nosso mundo.

III – Solidariedade

Uma parte integral do carisma do Carmelo é o valor da fraternidade. Em nossa Regra, santo Alberto de Jerusalém baseou o que escreveu no que os eremitas propuseram. Eles claramente quiseram viver como comunidade e, portanto, há um tempo para estar a sós com Deus e um tempo para estar juntos. A celebração eucarística e a escuta comunitária da palavra de Deus são grandes ajudas para construir a comunidade. A Eucaristia é a celebração da comunidade, mas, também forma comunidade e por isso merece uma séria preparação. A Eucaristia transforma os indivíduos em comunidade e então nos envia a viver o Evangelho na vida diária.

O trajeto das celas individuais à capela diariamente é um símbolo do esforço que ordinariamente cada um faz para sair de si mesmo para encontrar os outros e com eles fazer comunidade. A fraternidade é um sinal profético de que é possível viver em comunhão, mesmo que haja certo preço a pagar.

O objetivo do itinerário espiritual é que sejamos transformados em Deus. Isto requer uma profunda mudança na maneira de pensar, agir e amar. Nos distanciamos de nossos caminhos humanos normais que por sua natureza são limitados para um caminho divino. Para simplificá-lo nossa vocação é chegar a ser como Deus. Os Padres da Igreja falaram e escreveram muito sobre a divinização do ser humano. Cada aspecto do ser humano há de ser transformado. Normalmente este é um processo longo e lento que, talvez, muito raramente, se completa nesta vida. Percorrer o itinerário espiritual significa manter-se neste processo de transformação. Relacionar-se com outros seres humanos ajuda neste processo de crescimento e transformação porque com ele aprendemos a conhecer-nos mais a nós mesmos e aprender a ter olhos para ver e ouvidos para ouvir.

O processo de transformação também transforma a maneira em que nos relacionamos com os outros na medida em que nos colocamos na mente de Cristo e aprendemos a ver aos outros como Deus vê e amar às pessoas como Deus ama. Deus ama de um modo incondicional e assim a pessoa que é transformada rompe e ultrapassa as barreiras que os seres humanos constroem e que se constituem numa barreira para a fraternidade. Rompidas essas barreiras é possível descobrir que verdadeiramente são irmãos e irmãs.

IV – A esperança do Reino

Os eremitas do Monte Carmelo vieram junto a uma torrente. A esta torrente se chamou como ao profeta Elias e todo o Carmelo se consagrou a seu nome. Um testemunho quase contemporâneo aos primeiros carmelitas comparou-os ao profeta Elias. Quando chegaram à Europa, já que não tiveram nenhum fundador famoso, viram em Elias uma fonte de inspiração e em tempos de crise, quando a existência da Ordem estava ameaçada, pensaram nele como a seu fundador. A experiência do profeta pode ser muito útil para nós. Vivemos num mundo muito diferente, mas igualmente atribulado.

Nossa vida é uma constante peregrinação ao Horeb, para o encontro face a face com Deus. Temos fé forte, mas talvez, em nossas vidas temos sentido algo como o que Elias sentiu no deserto. Depois de uma grande vitória por Deus, mas pouco tempo depois parecia desmoronar-se. Foi ao deserto e desejou a morte (1Rs 19,4). Que processo seguir? Parece que dou um passo adiante e outro atrás. Onde está Deus? Por que nunca o sinto perto nem experimento sua presença como outros parece experimentá-la? Que se passa comigo? A crise é parte de nossa vida, é uma parte dos seres humanos. Não é um mau em si passar por momentos de dúvidas e questionamentos; isto é normal. No entanto, o que importa é como enfrentamos as crises e o que aprendemos com elas. A experiência do fracasso pode ser saudável porque através de nossas experiências podemos ver brevemente quem realmente somos e aprender a confiar em Deus em vez de confiar em nossas próprias forças.

Nosso mundo não dá muita razão à esperança. Diariamente vemos muitas notícias ruins, negativas – extrema pobreza, um mundo em vias de destruição pelo consumismo, guerra e terrorismo, corrupção, política em muitos países, tráfico de seres humanos, seqüestro infantil e muitos assassinatos. Problemas de ordem comunitária, a vida matrimonial e seus valores e nossos ministérios. Talvez a vida comunitária ou a vida matrimonial ou mesmo a Ordem não são o que pensamos quando entramos. Sem sempre respondem a nossas esperanças. Talvez cremos que a Igreja está indo pelo caminho equivocado. A esperança é uma virtude cristã fundamental. Não o mesmo que ter uma perspectiva otimista ou usar lentes de cor. Se nos é solicitada uma cooperação ativa no plano divino, vivendo de acordo com a vontade de Deus como no-lo deu a conhecer Jesus Cristo. Se assim agirmos então, apesar das aparências, “tudo estará bem e todas as coisas estarão bem” (Juliano F Norwich)

Deus teve que enviar seu anjo duas vezes a Elias antes de ele mover-se. Um anjo é mensageiro de Deus. Estes mensageiros vêm em todas as formas e tamanhos. Somos capazes de reconhecer os anjos que Deus nos enviar?

V – Discernimento

Nós carmelitas temos uma profunda consciência que o profeta Elias é nosso pai espiritual. Seu sucessor, o profeta Eliseu, pediu uma dupla porção de seu espírito (2Rs 2, 9 – 12). Os “filhos dos profetas” reconheceram que Eliseu realmente recebeu o que havia pedido (2Rs 2,15). Como puderam reconhecer este fato? Que havia em Eliseu que os convenceu que ele era verdadeiro sucessor do grande profeta Elias? No entanto, Eliseu teve que mandar 50 homens fortes para buscar Elias. Contra seu melhor juízo, Eliseu lhes permitiu ir, sabendo o tempo todo que a busca resultaria em nada já que Elias havia sido arrebatado ao céu (2Rs 2, 16 – 18).

O discernimento é a habilidade de distinguir entre o verdadeiro e o falso profeta. É a habilidade de ouvir a voz calma e pequena de Deus em meio ao ruído da vida diária. É estar em sintonia com os caminhos de Deus e saber quando algo é falso mesmo quando tudo parece correto.

Mesmo que a pessoa ou as palavras possam enganar a muitos quem está em sintonia com Deus conhece a diferença intuitivamente. Como se obtém este dom? Não se pode comprar nem ganhar; somente abrir o coração para recebê-lo como dom de Deus.

Devemos passar tempos com Deus para que nossos sentidos espirituais possam entrar em sintonia, porque é fácil equivocar-se quanto à compreensão da vontade de Deus a nosso respeito ou simplesmente não ser conscientes que Deus está comunicando-se conosco. Como soube o profeta Elias que o mensageiro que veio a ele vinha da parte de Deus? (1Rs 19, 5 – 8). Jezabel também havia enviado um mensageiro para ameaçá-lo. Por que confiou Elias no mensageiro e comeu o que ele colocou diante dele? Podia Jezabel tê-lo envenenado. No entanto, o profeta Elias confiou em seus instintos que o mensageiro vinha da parte de Deus e que estava no caminho correto. A comida e a bebida que o misterioso mensageiro proveio, lhe deu força necessária para retomar o caminho e seguir viagem até o Horeb, o Monte de Deus.

Para ser fiel a Deus e ser uma pessoa de discernimento, devemos permitir que a Palavra de Deus desafie e purifique nossa motivação. O que é falso dentro de nós, a busca de si mesmo, de quem não deseja escutar a voz de Deus e é feliz afogando-se com muitos ruídos – tanto interiores como exteriores. No entanto se estamos buscando a Deus em todas as coisas vamos começar a ser conscientes de nossos motivos e que estes não são sempre totalmente puros. Uma vez que façamos esta importante descoberta não nos deixaremos desorientar facilmente por nossas próprias necessidades e desejos que mascaram a vontade de Deus. Este discernimento é um dom, mas também uma tarefa. Desejas receber este dom e estás disposto aplicá-lo a ti mesmo?

VI – Comunidade orante e profética

Como carmelitas, somos chamados a testemunhar Jesus Cristo por meio do compromisso em formar comunidades orantes e proféticas e fazemo-lo de diferentes modos de acordo com nossa própria vocação. O fato de pessoas de diferentes procedências se reunirem para uma mesma família e não por apegos emocionais ou físicos isso chama a atenção pela razão que subentende e que está por detrás de tudo isso: o motivo pelo qual os Carmelitas se reúnem é Jesus Cristo. Ele nos chamou a cada um de nós por nosso nome e nós respondemos.

Um profeta é alguém que fala em nome do Senhor. Fazer algo assim é um fato audacioso. Uma comunidade é profética quando, com sua vida, proclama a Palavra de Deus. Para poder discernir se um indivíduo ou uma comunidade é verdadeiramente profética, faz-se mister conhecer a vida real daquela pessoa ou comunidade. Está em sintonia com a mensagem do Evangelho? Para poder permanecer em sintonia com o evangelho o indivíduo ou comunidade deve ser orante. Por suposto há uma grande diferença entre proclamar muitas orações e ser orante. Este último significa buscar permanecer em constante comunicação com Deus e não limitar nossa relação com Deus aos momentos particulares, ainda que estes também possam existir.

O movimento na Regra do Carmo entre a cela individual e a capela ou o refeitório nos recorda a importância de passar tempo a sós com Deus, e também tempo de estar juntos com os outros para celebrar nossa vida em comum. Estes momentos estão conectados entre si e cada um afeta a qualidade do outro. Para ser uma comunidade profética devemos ser uma comunidade orante; para ser uma comunidade orante devemos ser indivíduos orantes. Os indivíduos contribuem para a comunidade e a força do grupo dá a cada membro o ímpeto necessário para continuar sua busca de Deus na sociedade.

Em que consiste tua contribuição para a formação de uma comunidade orante? Buscas a Deus em e através de todas as coisas? Estás disposto a comprometer-se com a comunidade?


MÍSTICA E PROFECIA NO CARMELO



-Na prática pastoral dos e das Carmelitas na América Latina-

1. A VOCAÇÃO: A EXPERIENCIA DO DEUS VIVO

Todo texto brota de um contexto. O nosso é o da América Latina, continente único em sua “pluralidade” cultural e, portanto, na percepção do valor religioso, carismático e teresiano. Toda prática evangelizadora deve estar ao serviço do Reino de “Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo” que pela ação do Espírito do Ressuscitado, confessamos “com o coração e os lábios”: “Pai Nosso” e “Nosso Senhor”.

Evangelizar é entrar na dinâmica libertadora do Reino em atitude de esperança comprometida, com gestos solidários que incluam a todos no amplo horizonte do amor compassivo, misericordioso, do “Deus conosco”, e com a força da palavra profética que recria permanentemente o ser humano como “imagem e semelhança de Deus” que se compraz em morar com e em nós.

A vocação natural de todo o Carmelo Teresiano não é outra que a de experimentar na vida, a Deus, como Pai e Amigo. Esta é ao mesmo tempo nossa “missão natural”: ajudar ao ser humano a descobrir que sua máxima dignidade consiste em recuperar salvíficamente “que não se pode contentar com menos que Deus”. A leitura de nossos Santos deve ser leitura místico-profética, orante, da Palavra de Deus.

Nosso apostolado todo deve orientar-se a ajudar a “descobrir a Deus como fonte de plenitude, como libertador, como o Deus da esperança, como Pai-Mãe, como alguém sempre próximo” (Capítulo de Ávila, n. 65), como Amor infinito que nos diviniza.

Nossa vocação se articula na dupla consagração a Deus e a seu povo, e por isso a missão pastoral se orienta na vivencia fiel da plenitude da vocação de todo ser humano na perspectiva evangélica: criaturas filiais e fraternas chamadas à “bem-aventurança”.

Toda ação pastoral deve ser um anúncio profético da alternativa de um Homem Novo, “filho do Homem” e “Filho de Deus”.

Hoje esta alternativa padece de uma “ameaça globalizada” em forma de exclusão e violência. Os habitantes de nosso continente, em sua maior parte, experimentam que sua vocação de seres humanos está em permanente risco.

O compromisso evangelizador dos seguidores missionários, “como a vida de Jesus, em sua obediência e entrega ao Pai, é parábola viva do Deus conosco” (Bento XVI, 2-02.06), deve mostrar-se como um sinal eloqüente de que o Reino de Deus já está entre nós.

A práxis do reino só é possível se nos exercitarmos na leitura evangélica, místico-profética, da realidade apropriada pelos amplos horizontes da humanidade atual. Nessa leitura deve-se assumir os desafios da “alteridade”, “capazes de procurar e escutar a todos, com confiança no Espírito” (CFr. Declaração Final, Terceiro Congresso Americano Missionário CAM3COMLA8, Quito, 17-08-08). Evangelizar hoje também é capacitar para o compromisso ético, “fazer o bem e fazê-lo bem”.

Evangelizar hoje é ocupar-se em colocar a casa em ordem, na responsabilidade ecológica total, incluindo a “morada” interior.

Estes novos horizontes propõem determinações solidárias nas perspectivas do Evangelho que ajudem a recuperar nossa vocação original: “divinamente humana, humanamente divina”. Assim responderemos tanto aos interesses de Deus como aos nossos. Esta foi a Paixão de Cristo, paixão salvadora pela humanidade toda. Esta deve ser a paixão de todo discípulo missionário, de todo consagrado.

2. Nova consciência, nascida da certeza de “Deus está conosco” – liberdade interior.

“A experiência mística de Deus é uma experiência libertadora que leva à pessoa humana a uma abertura, à transcendência e a faz viver a comunhão com Deus, desejo que pulsa no coração humano que, ao mesmo tempo, lhe abre à dimensão libertadora da fé. Na experiência mística pode se realizar, num mundo globalizado, a integração de todas as pessoas e coisas no Todo porque a mística tem um poder humanizador” (cfr. “Caminhar na luz”, Desafios da Mística Teresiana no Terceiro Milênio, Congresso Internacional, Ávila, 7-11-08).

Todo apostolado teresiano é mistagógico. Deve iniciar ajudando a tomar consciência da grandeza, formosura, da “alma” humana, “morada” de Deus. Esta é a verdade na qual devemos andar.

Tomar consciência é assumir a interioridade como “abertura”, como “morada” habilitada para que Deus caiba nela. Onde Deus está, todo está e está todo.

A partir do amplo espaço da “liberdade interior”, os seres humanos se comprometem a construir um lar, onde habitar humanamente, como “filhos”, “irmãos” e “senhores”.

Esta nova consciência deve ir mais além das exigências morais. É dar-se conta que não só as coisas estão mudando, mas que o que está acontecendo diante de nossos olhos é um processo de transformação epocal, que necessariamente nos afeta.

O tomar de consciência atual no distancia das margens do “remorso” e da “culpabilidade”, e nos abre horizontes do compromisso, do nascimento de um Homem Novo que comece a construir uma Terra Nova que torne possível o Céu Novo esperado.

Evangelizar hoje é anunciar a Deus como o desejado e futuro possível do homem.

O profeta de hoje, na perspectiva evangélica, proclama misticamente, que o futuro não apenas é desejado mas possível. Não só estamos trocando de pele, mas temos muita pele para estrear, muitos vôos, “mariposas”, para tentar. O modelo de nossas “transfigurações”, não pode ser outro que Jesus Cristo, morto e ressuscitado. “Quem poderia acreditar? Com que raciocínios poderíamos imaginar que uma coisa tão se razão como é um verme e uma abelha, sejam tão diligentes em trabalhar para nosso proveito e com tanta indústria, e o pobre vermezinho perde a vida na demanda?” (Morada V 2, 2).

A nova consciência tem a ver com nosso amplo espaço interior a partir de onde somos, existimos e nos movemos. Evangelizar mistagogicamente é ajudar a tomar consciência da interioridade, como espaço de liberdade interior, que não se define só porque tem “entradas” e “saídas”, como os espaços comerciais do pós-modernismo, mas porque “ali” nos encontramos a nós mesmos, nos encontramos com o Outro que nos habita, e a partir dali nos encontramos com os outros, os próximos, os que se aproximam de nós e aqueles dos quais nos aproximamos.

Esta consciência nova é espaço de interioridade, de recolhimento, de intimidade, de silêncio que escuta, de solidão aberta à comunhão, de existência como abertura. Valores de índole espiritual daquele que quer seguir a Jesus, o totalmente outro para os outros, segundo o carisma de Teresa de Jesus, Mestra em humanismo.

Evangelizar hoje é fazer tomar consciência “de que jamais acabamos de nos conhecer se não procuramos conhecer a Deus” (Moradas 1, 2, 9), que nos habita e que é a “fonte onde está plantada a árvore de nossa alma” (M I, 2, 5), condição para dar frutos e frutos de vida em abundancia..

Justiça e Paz: lutar pela reconstrução da convivência social

“É necessário sair ao encontro do outro. Temos de anunciar a Boa Nova de Cristo e sua exigência interior a aquele que está excluído e se converteu em alguém descartável. São os crucificados da história com os quais devemos nos sentir solidários e experimentar neles a dor de Cristo que, em comunhão com Ele, se transforma em “pena saborosa” e ajuda a viver os sofrimentos do mundo com um coração cheio de compreensão e misericórdia” (“Caminhar na luz”, Desafios... Ávila, 7-11.08)

Nossa missão de seguidores do “Crucificado por Amor” urge que mística e profeticamente, optemos pelo outro, nos façamos “próximos”, de tal forma que “ao entardecer” quando formos “examinados no amor” não nos surpreendamos: “Senhor, quando te vimos com fome, sede, sem teto, nu, enfermo, sem liberdade numa prisão?...”.

A justiça evangélica tem a ver com o sair da comodidade para buscar alguém que está só e que, humilhado, excluído, descartado, como resto, não pode valer-se por si mesmo. Tem a ver com o “acolher” a partir do coração ao outro que não tem teto, lar, a quem o consumismo de muitos deixou nu. Tem a ver com sempre acrescentar um lugar à mesa porque à porta há sempre Alguém que está batendo, chamando: “dá-me de comer, dá-me de beber”...

Só seremos bem-aventurados como construtores da paz na medida em que nos comprometamos com o gesto cotidiano da solidariedade e da justiça, “O evangelho da paz (...) é obra da justiça, é uma tarefa permanente, é fruto do amor”, nos recordavam os bispos da AL. naquele distante 1968, desde Medellín, Colômbia.

Na missão de justiça e da paz é inescusável o compromisso com a aprendizagem da análise critica, isto é, o discernimento permanente da realidade toda. A realidade não é aquela que “anunciam” os parciais meios massivos de comunicação social...

Evangelizar é denunciar, “apontar” como fizeram sempre os profetas fiéis, os mecanismos perversos que obstaculizam a paz. É anunciar com coragem, “parresia”, que o “u-tópico” é não apenas desejável, mas possível. Nossas comunidades devem esforçar-se para ser espaço de reflexão, oficinas para tecer de novo a trama da convivência fraterna, pacífica e deve treinar a todos para sermos missionários do “shalom” de Deus nas novas fronteira desta humanidade tantas vezes desorientada, ambígua e sem esperança.

A melhor forma de anunciar uma humanidade nova é esforçar-nos na vida fraterna em transparecer relações fundadas no respeito, na verdade, na lealdade, na tolerância, na justiça... que possamos convidar: “Venham e vejam como nos amamos”.

Inclusive o esforço disciplinado de nosso “combate” interior, de nossa “luta por vencer o mal pela força do bem”, de “fazer-nos violência” para conquistar o Reino de Deus deve expressar a certeza de fé de que “Ele, Cristo, Reino de Deus em pessoa, é nossa paz” (Efésios 2, 14).

As “noites escuras” de nossa história contemporânea, quando muitas vezes nos sentimos impotentes diante das estruturas do poder do mal, encontram na experiência e na palavra mistagógica de nossos santos, alento para que com audácia e determinação busquemos novas formas, solidárias, “de ajudar em algo ao crucificado” (M. VII, 3, 6), e a nossos crucificados de agora e daqui.

É impossível e até maliciosamente enganoso sonhar com a paz sem pressupor os combates pela justiça. A utopia do Evangelho sempre brota da Cruz, do martírio.

O Ressuscitado que nos dá sua Paz é o mesmo Crucificado que deu a vida pelos seus para que já não sejam mais escravos, mas amigos.

4.-Solidariedade: refazer as relações humanas

A V Conferência do Espiscopado da A.L. e do Caribe em Aparecida, Brasil, espera que a Igreja deste continente continue sendo “com maior afinco, companheira de caminho de nossos irmãos mais pobres, inclusive até o martírio” (DA 396).

Aparecida fala de uma nova categoria, a exclusão social, que toca em sua raiz “a pertença à sociedade na qual se vive, pois já não se está abaixo, mas se está fora. Os excluídos não são apenas “explorados” mas “supérfluos” e “descartáveis” (DA 65).

O compromisso solidário que brota da fé em Jesus Cristo que veio para inaugurar o Reino da Vida e “sabemos que passamos da morte à Vida porque amamos aos irmãos. O que não ama permanece na morte” (1 João 3, 14) (DA 358), deve ser assumido a partir da perspectiva da Vida através de quatro grandes ações que devem identificar o compromisso histórico dos discípulos missionários hoje: 1.- Viver e irradiar a Vida Nova que brota de Jesus Cristo. Para que todos tenhamos vida superabundante. (Cfr. Aparecida, cap. 7); 2.- Na defesa da dignidade e direitos dos mais vulneráveis e excluídos (cfr. Aparecida cap. 8); 3.- A proteção do primeiro santuário da vida, a família, as crianças, os adolescentes, os jovens, os anciãos (cfr. Aparecida, cap. 9); e 4.- A solidariedade inclusiva que procura a libertação integral de nossos povos, especialmente dos indígenas e afro-descendentes.

Refazer as relações humanas em nosso continente exige que o amor solidário não se reduza a belas teorias sociais. Evangelizar entre nós significa que todo nosso planejamento pastoral se centre no cultivo do encontro permanente feito de serviço fraterno, com gestos visíveis, com acompanhamento respeitoso a fim de que os mais débeis se façam sujeitos das transformações urgentes da situação atual (cfr. NM 49; DA 394). Ser solidário evangelicamente é exercer a DIAKONIA que surge da consagração batismal. Somos filhos do mesmo Pai. Fomos resgatados da escravidão do pecado com o preço da vida do Primogênito. Todos somos chamados a ser templos do Espírito para o “louvor de sua glória”. Este é o fundamento de nossa dignidade. Somos Sacerdotes, Profetas e Reis em Jesus Cristo, Salvador e Senhor.

A missão do Carmelo Teresiano como experiência de comunhão com Deus, mística, é ao mesmo tempo experiência de solidariedade profunda com todo o humano. É impossível ser “amigos fortes de Deus”, e não sê-lo de seus amigos, seus filhos, especialmente “os mais pequenos”. A autêntica mística cristã é solidária, é profética e no sentido mais original, é política, isto é, está ao serviço do bem total do ser humano. Se não nos ocupamos da criatura humana concreta falaríamos mal do Deus verdadeiro. O “objetivo constante do futuro” do Carmelo Teresiano “é a consciência de que a palavra sobre Deus e para Deus há de preencher-se de verdadeira humanidade concreta” (cfr. P. Luis Arostegui, Objetivos do Sexenio, Santiago do Chile, 4-11.05).

Se não queremos deixar de ser “casa e escola de comunhão” nossa evangelização deve caracterizar-se por um cultivo da solidariedade que saiba escutar e incluir a alteridade, a diferença, a abertura à novidade epocal e principalmente a atitude da esperança. Ser solidários implica também arriscar a existência com uma atitude de “fidelidade criativa”, que exclua o medo, a pusilanimidade e as falsas prudências. “Que temes? Quando te faltei? O mesmo que fui, sou agora (...)” (Fundações 29, 6), “Não tenha medo, filha, que SOU EU e não te desampararei; não temas” (Vida 25, 18).

O compromisso evangelizador comporta uma prática constante de solidariedade concreta que de verdade anuncie que o Deus de Jesus Cristo é nosso Deus, que é nosso Pai e seu Pai, e que podemos continuar contando com Ele. Solidariedade que se compõe na cotidianidade do Caminho, que tem a ver com a Verdade que liberta e que verifica se de verdade conduz à Vida.

5.-Utopia do Reino: animar a esperança do povo

“O Documento de Aparecida confirma quatro pilares que estão presentes em nossa espiritualidade: a vida comunitária, que exige a criação de autenticas fraternidades. A dimensão apostólica da vida de oração, que leva à missão e a alimenta. A dimensão mariana, que considera à Virgem como modelo de seguimento e cume do evangelho. A dimensão orante, que desemboca numa vida de coerência e transparência entre o que se ora e o que se vive” (Documento final do Congresso sobre o V CELAM de Aparecida, para o Carmelo, Londrina, Brasil, 19-11-07, n. 4: A espiritualidade em Aparecida).

A partir da especificidade do carisma teresiano temos que continuar anunciando a utopia do Reino, como consagrados, inseridos na Igreja particular, vivendo em comunhão fraterna a experiência de Deus, e privilegiando aos mais pobres para que todos tenhamos Vida. Todo ideal é utopia, não pelo que implique de impossível, mas pelo compromisso que exige de fazer um lugar para aquilo que é desejado. “Pois nada é impossível para Deus” (Lc 1, 37). Nós dizemos com a primeira discípula missionária: “Eu sou a serva do Senhor: que se cumpra em mim tua palavra” (Lc 1, 38).

Crer é tornar possível o anunciado, o desejado, o impossível, o utópico.

Se queremos continuar sendo uma comunidade “experta em humanidade”, temos que apostar por um compromisso gerador de esperança. A esperança é o argumento contundente da eficácia criadora da Palavra. Sem ela o anuncio profético soaria a fanatismo, catástrofe e frustração. A esperança não compete. A profecia anuncia a esperança advertindo: “Tenham cuidado para que ninguém os engane!” (Mateus 24, 4). Porém seu anúncio é um “sinal”: “Ele me ungiu para que dê a Boa Notícia aos pobres” (Lucas 4, 18). A novidade do anúncio é que os oprimidos e os cativos ficam livres, e chega a luz aos que caminham nas trevas e na sombra da morte. O futuro definitivo começou a estar presente.

O mundo super-tecnológico fala de um futuro provável. A probabilidade está submetida à sorte e até ao caos. A fé urge-nos para anunciar o futuro desejado, possível e definitivo.

Se somos honestos no compromisso, não podemos dissimular, ideologizar, a “angustiante realidade global”. O fiel não pode sucumbir ao pessimismo. Tão pouco pode arriscar irresponsavelmente as oportunidades do presente. De alguma forma o céu que esperamos toca a nós começar a construí-lo aqui e agora, no sacramento do HOJE e com a massa desta nossa amada e sofrida terra.

Animar a esperança do povo pede que cultivemos uma espiritualidade do compromisso que nos coloca na tarefa de não perder nossas melhores energias preocupando-nos pelo futuro, e sim gastando-as no presente. Nossa missão não pode reduzir-se a procurar culpados, temos que fazer-nos responsáveis; “O que me entristece, e muito, é que se lance a culpa em quem não a tem; pois estas coisas não são dispostas pelos homens e sim por Deus, que sabe o que nos convém e as ordena para nosso bem. Não pense outra coisa senão que tudo é ordenado por Deus; e onde não há amor, coloca amor, e colherá amor...” (são João da Cruz, carta de 6 de julho de 1591, à M. Maria da Encarnação). Parece que esperar equivale a “colocar amor” onde não há.

Não esqueçamos que a utopia é tarefa do Espírito do Ressuscitado na trama concreta de nossa história que passa por Ele cada dia. Evangelizar sempre será fazer ver que “já” está ocorrendo o que “ainda não” alcançamos.

A forma mais segura de conquistar o céu é, de verdade, passar nossa vida fazendo o bem na terra como agora passa santa Teresinha do menino Jesus seu céu. Os santos tornam possível a utopia do Evangelho sendo discípulos missionários de Jesus que “passou fazendo o bem” e proclamando que o Reino de Deus já está presente.

6.-Discernimento: saber distinguir a falsa profecia.-

Na convivência fraterna, na busca da Verdade e no discernimento da passagem do Senhor por nossas vidas de discípulos missionários vão se dando os sinais da autenticidade do anuncio evangélico.

A comunidade é o lugar privilegiado para acolher com escuta humilde a Palavra Profética, e para ensaiar com determinação os gestos solidários de salvação. Comunidades que criam espaços onde de forma atrativa e fascinante se busque a Verdade que liberta. Comunidades onde de verdade a proposta teresiana de “hoje começamos e procurem ir começando sempre cada vez melhor” seja a perspectiva carismática do discernimento. Todo carisma é graça e, sobretudo, é tarefa.

Evangelizar será sempre ajudar a “ler os sinais dos tempos”, isto é, um exercício de discernimento evangélico: “Hoje chegou a salvação a esta casa” (Lucas 19, 9). O que este anúncio produzir nos ouvintes determinará a autenticidade da mensagem. A profecia autentica gera um processo de transformação, de mudança, de conversão. “Oh meu Jesus!, que grande amor tens aos filhos dos homens, já que o maior serviço que se pode oferecer a vós é deixar-Vos por seu amor e benefício”, dizia santa Teresa (CFr. Conclusão de “Testemunhar: uma Contemplação Comprometida”, Congresso sobre Aparecida para o Carmelo, Londrina, Brasil, 19-11-07).

Convém voltar à Palavra de Deus para discernir o autentico profetismo. Com o exercício espiritual da “lectio divina” poderíamos aproximar-nos dos textos do Deuteronômio 18, 15.18.22 e 34, 10.11 no contexto do Carmelo teresiano.

“O Senhor, teu Deus te suscitará um profeta como eu, o fará surgir dentre vós, dentre seus irmãos, e é a ele a quem escutarão (...). Porei minhas palavras em sua boca, e lhes dirá o que eu lhe mandar (...). Quando um profeta fala em Nome do Senhor e não ocorre nem se cumpre sua palavra, é algo que não diz o Senhor, esse profeta fala por arrogância, não lhe tenha medo”. “Porém já não surgiu em Israel outro profeta como Moisés, com quem o Senhor tratava face a face; nem semelhante a ele nos sinais e prodígios que o Senhor lhe enviou a realizar (...)”.

O autentico profeta fala com Deus como um amigo: “está muitas vezes a sós tratando de amizade com aquele que sabemos” o ama e nos ama.. Conhece o Rosto do Senhor e por isso mesmo o reconhece no rosto de seus irmãos, especialmente os mais fracos.

O Profeta verdadeiro é a boca de Deus que nos fala da “mesma Verdade” para aproximar-nos mais a Deus”, é mentira e engano o que nos afasta Dele, o que “não é agradável para mim” (cfr. Vida 40).

O Profeta sabe que anunciar a Boa Notícia implica a contradição, a perseguição, a cruz, a morte. Está disposto a dar a vida por aqueles a quem anuncia a bem-aventurança do Reino. Profetismo e “vida fácil” “não combinam”.

A força eficaz do profetismo radica na humildade. O autentico profeta sabe que “Deus é suma Verdade”, e caminha em sua presença, caminha em verdade. É humilde. Por isso o Senhor faz nele e com ele grandes coisas. Maria canta: “O Poderoso fez grandes coisas por mim... porque olhou a humildade de sua serva” (Lc 1, 49, 48).

O verdadeiro profeta tem um espírito feliz, cheio do Espírito e por isso canta e festeja ao Único que salva porque sua misericórdia é eterna, derrubando do trono os poderosos e elevando os humildes (cfr. Lc. 1, 46-55).

O canto de Maria é o texto de discernimento sobre a autenticidade do profetismo.

Evangelizar é proclamar profeticamente que a Palavra de Deus é eficaz, criadora, fazendo-o com a força do Espírito, que vem em ajuda de nossa fraqueza para convencer-nos da Verdade plena que é Jesus Cristo, Salvador e Senhor.

7.-Comunidade orante e profética

Segundo se depreende do capítulo 4 do segundo livro dos Reis, o profetismo, sua vocação e missão, dão-se no âmbito natural da comunidade. Eliseu sentava-se para comer junto com a comunidade de profetas. Talvez foi essa razão pela qual não se envenenaram quando comeram ervas estragadas, e pelo qual o pouco pão das primícias deu para mais de cem pessoas... A comunidade é o lugar onde se dá a salvação. “Dai-os às pessoas, que comam. Porque assim diz o Senhor: comerão e sobrará. Então o criado os serviu, comeram e sobrou, como tinha dito o Senhor”. A comunidade é o âmbito onde ressoa a voz profética com eficácia salvífica.

Aquilo que é verdadeiramente significativo radica não tanto nas palavras, como no sinal que as acompanha. Naquilo que o profeta faz está a força da mensagem. Toda profecia autentica cria comunidade. O testemunho da vida em comunidade faz que a Palavra de Deus ressoe como anúncio feliz, evangelho, de um futuro possível. Três traços definem a força evangelizadora de uma comunidade:

1.- Procurar uma forte experiência do Deus vivo. Uma comunidade na qual o Espírito do Senhor a inunde de liberdade e felicidade (cfr. 1 Samuel 19, 20), e que contagie esta experiência a tudo que se aproxime.

2.- Uma comunidade que partilha a marcha da busca, o pão da Palavra e a missão de levar a felicidade do encontro, como os que iam a Emaús, de fugitivos se tornaram discípulos missionários.

3.- Uma comunidade que vive a pobreza, que partilha com generosidade os dons recebidos da Mão Providente que sempre aberta enche de bens todos os viventes (cfr. 2 Reis 4, 38: “Coloca sobre o fogo a panela grande e cozinha um caldo para a comunidade”). Sempre que há partilha, sobra. A solidariedade faz o milagre da multiplicação dos recursos. O milagre se dá onde o gesto solidário inclui a todos. Se nossas comunidades querem ser evangelizadoras, orantes e proféticas devem voltar a partilhar a Mesa Comum, a Eucaristia, a Panela comunitária. Partir e repartir o pão ganhado com o suor do trabalho e partilhá-lo com coração simples.

O Vaticano II recordou que o valor de sinal da vida consagrada se reconhece no testemunho profético de Deus, a partir de Deus e em Deus como absoluto, e dos valores da vida cristã. “Em virtude dessa primazia não se pode antepor nada ao amor pessoal por Cristo e pelos pobres nos quais Ele vive” (cfr. Perfectae Caritatis e Vita consecrata, n. 84).

A felicidade de uma experiência inefável, mística, “a musica calada, a solidão sonora, a ceia que recreia e enamora”, deve transparecer nas comunidades que irradiam animo, alento, espírito, Espírito... que convoquem, convidem sem palavras, a unir-se ao banquete que não cessa de preparar para todos seus filhos, especialmente para os que se recuperaram e ele vestiu de roupa de festa. (cfr. Lucas 22, 30, Mateus 8, 11; 26, 29).

Se a comunidade é profética não pode senão contagiar a felicidade do foi vivido na escuta amorosa, no silencio orante, na denuncia corajosa, humilde, do supérfluo que idolatra o consumismo. A partir do SÓ DEUS BASTA os irmãos aprendem o valor do essencial e relativizam o supérfluo, o banal, o acumulativo e o excludente.

“Senhor, não me dês riqueza, nem pobreza. Concede-me minha porção de pão...”. Dai-nos hoje o pão de cada dia” e dai-nos a graça de partilhá-lo para nos fazermos Irmãos e não nos deixes sucumbir na tentação de acumulá-lo para amanhã... não aconteça que apodreça e os excluídos continuem morrendo de fome de pão, de verdade e de amor.

Uma comunidade orante e profética é aquela que de verdade celebra a Eucaristia, Pão Único Partido e Partilhado: “Aquela eterna fonte está escondida/ neste vivo pão para dar-nos vida, mesmo de noite.” “Aquela viva fonte que desejo/ nesse pão de vida eu a vejo, mesmo de noite.” (São João da Cruz, Poemas).