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domingo, 6 de setembro de 2009




MÍSTICA E PROFECIA NA PERSPECTIVA DOS SUPERIORES CARMELITAS

I

A VOCAÇÃO: UMA EXPERIÊNCIA DO DEUS VIVO

Como superior que fui por muitos anos e em contato com a realidade da vocação de muitos de meus irmãos pude constatar que a base da mesma, de modos diversos e em diferentes circunstâncias, foi a experiência de Deus a que suscitou neles o desejo de seguir a Jesus. O seguimento de Jesus no centro, o eixo e a chave de sua vocação. “Tem a virtualidade de resumir a totalidade da vida cristã e de evocá-la no concreto de suas vidas. Tem o caráter de norma e também de ânimo a sua realização, de exigência pelo doloroso e de gozoso por haver encontrado a ‘pérola’ de maior valor” (J. M. Castillo).

Em sua vida como cristãos ressoou o chamado de Jesus. Ele é a base de sua consagração – missão na Igreja. De um modo ou de outro Jesus os viu com algo mais que um simples olhar superficial que apenas percebe sua presença. Olhou no fundo de seu coração e ali fez ressoar seu convite. Seu olhar foi um olhar de eleição. Esta exigiu uma decisão feita de confiança e abandono, por sua projeção ao futuro: “ser pescadores de homens”, “levar cada dia sua cruz”, “estar com Jesus”, “ser enviados a pregar” (Mc 3, 13 – 14). Tiveram que deixar muitas coisas para seguir a Jesus: perder seguranças – família, ambiente vital (Mc 1,20); dos bens materiais que trazem garantias na sociedade (Lc 14, 33); da própria lógica, fonte de auto-afirmação (Lc 9,23).

Tiveram que romper gradativamente os vínculos que podiam comprometer o seguimento: o apego às estruturas sociais e a meios humanos (Lc 9, 57 – 62). Requereu superar o medo ante a perseguição, perseverar em meio às dificuldades e contradições (Lc 12, 1 – 12); evitar a cobiça e não preocupar-se excessivamente pela vida (Lc 12, 13 – 31). Abraçar o seguimento foi uma resposta livre ao chamado gratuito. Jesus é que tomou a iniciativa. Ele saiu ao encontro de cada um. O homem, mais que buscar a Deus é por ele buscado. E isto é algo que se foi renovando e segue renovando. Por isso estar atento à escuta da Palavra para pô-la em prática (Lc 8,21).

O seguimento se dá de forma gradual. Vai amadurecendo lentamente nos altos e baixos da resposta humana. Passa por crises. Na fé e no amor confiado que purifica, reconhecem-se e assumem como parte de sua história, as debilidades e infidelidades. O seguimento de Jesus conduz ao compromisso com o projeto de Deus para tronar presente Cristo – Caminho na história da humanidade (Jo 14, 6).

A experiência do Deus vivo faz compreender a gratuidade de seu chamado, fruto de seu amor que vai acompanhado pela garantia de sua fidelidade e misericórdia. Ele elege o que não é, o desprezível (1Cor 1, 26 – 29). A experiência da gratuidade de Deus evita a auto-suficiência e o desalento. Não há espaço para a auto-suficiência porque a eleição é gratuita. Quanto ao segundo pode ser superado ao constatar que Deus está sempre junto do eleito para ajudá-lo e assumir com humildade e responsabilidade a missão que lhe encomenda.

Renovar em nossa vida carmelitana a experiência de Deus que nos chamou é e será sempre fonte de renovação. A cada dia o Senhor volta a chamar e nos apresenta suas exigências. Estamos sempre em sua presença e Ele, que nos elegeu, nos acompanha no cumprimento de nossa missão.

II

NOVA CONSCIÊNCIA NASCIDA DA CERTEZA: “DEUS CONOSCO” – LIBERDADE INTERIOR

Em meu serviço de animação da vida de meus irmãos tenho experimentado a importância que tem a consciência de que em Cristo, em cujo obséquio vivemos. Deus está conosco para levar-nos ao longo da vida liberdade interior que nos capacita para o serviço a nossos irmãos. A liberdade cristã não consiste em alguém fazer o que alguém lhe dita ou por mero capricho. A liberdade cristã é uma liberdade para amar (Gl 5, 13 – 14). É um dom de Deus que faz passar da servidão do pecado e do egoísmo ao seu serviço e do próximo. É ao mesmo tempo uma conquista cotidiana no desenvolvimento e crescimento de nosso ser de novas criaturas em Cristo (Gl 6,15). Justamente porque é também uma conquista, a liberdade cristã tropeça em obstáculos e dificuldades em seu caminho para a maturidade. Tudo o que convida ao ser humano a recair sobre si mesmo, ou encerrar-se sobre si mesmo, a buscar sua segurança em normas e práticas, é um empecilho para crescer na liberdade que Cristo nos trouxe. Também o é todo que se fundamenta no fatalismo e impede à pessoa assumir sua responsabilidade na história como filho/a de Deus de forma irrepetível de sua personalidade.

A liberdade de espírito vai amadurecendo lentamente na vida de cada um. É todo um processo que tem que ir superando a tentação de delimitar o Espírito dentro de uns esquemas imutáveis e repetitivos ao longo do tempo. Como se o Espírito não fosse sempre novo e sua ação se esgotasse num certo tipo de concreções quando ele impulsiona para o futuro. A liberdade de espírito comunica abertura aos caminhos imprevisíveis do Espírito. Propicia a fidelidade criativa (Vita Consecrata, 37).

A liberdade de espírito cresce na medida em que se vai adquirindo uma visão contemplativa da realidade que leva a descobrir a Deus em todas as circunstâncias, a buscar sua vontade nos acontecimentos, a contemplar a Cristo em todas as pessoas e a valorizar devidamente os bens deste mundo em si mesmos e na relação que têm com o definitivo (cf Apostolicam actuositatem, 4).

Do contato assíduo com a Palavra de Deus se obtém a luz necessária para o discernimento pessoal e comunitário que serve para buscar os caminhos do Senhor nos sinais dos tempos. Desse modo os membros do Carmelo podem encontrar como escreve Santa Teresa, “com aquela liberdade de espírito tão apreciada e desejada que têm os perfeitos, onde se acha toda a felicidade que nesta vida se pode desejar, porque, não querendo nada, o possuem no todo.

Nada temem nem desejam na terra, nem os trabalhos e dificuldades as perturbam, nem os contentamentos lhes causam mudança de ânimo. Enfim ninguém lhe tira a paz, porque esta somente de Deus depende. E como a Ele ninguém pode tirar só o temor de perdê-lo pode causar dor e que tudo o mais deste mundo, em sua própria opinião, como se não fosse, porque em nada lhe acrescenta nem diminui em nada para seu contentamento (Fundações 5,7).

A 5ª Assembléia de Aparecida reafirma tudo isso e faz ver que a oração pessoal e comunitária “é o lugar onde o discípulo, alimentado pela Palavra e a Eucaristia, cultiva uma relação de profunda amizade com Jesus Cristo e procura assumir a vontade do Pai. A oração diária é um sinal do primado da Graça mo itinerário do discípulo missionário (cf. Documento de Aparecida, 255 [ DAp]). Ela favorece a liberdade de espírito.

III

JUSTIÇA E PAZ: LUTAR PELA RECONSTRUÇÃO DE UMA CONVIVÊNCIA SOCIAL MAIS JUSTA E FRATERNA.

O amor cristão resume toda a lei e os profetas (cf. Mt 22, 37 – 40). Por isso é o eixo central da vida cristã. A novidade é que, ao falar do amor cristão hoje em dia, percebe-se também sua dimensão social. Nas circunstâncias atuais “não se pode, verdadeiramente, amar o irmão, e, portanto, a Deus, sem comprometer-se pessoal, e em muitos dos casos, em nível de estruturas com o serviço e a promoção dos grupos humanos e dos estratos sociais mais desprovidos e humilhados, com todas as conseqüências que se seguem no plano dessas realidades temporais” (Puebla, 327).

A dimensão social da caridade não se opõe às manifestações individuais e assistenciais – que são necessárias – mas insiste na linha da promoção humana e, sobretudo, na da transformação das estruturas para que se faça justiça aos oprimidos. Em outras palavras, vai à raiz mesma das dominações e opressões sociais. Isto ajudou a aprofundar o sentido do termo “política”, pouco compreendido ou até mesmo rechaçado como oposto à vida cristã. As distinções entre política em sentido amplo e a política partidária vão ajudando a entender a legitimidade e a necessidade deste aspecto da vida humana para o exercício de um amor cristão concreto e eficaz, que luta contra a injustiça, defende os direitos humanos e promove o bem comum.

O Carmelo não pode estar alheio a esse trabalho pela justiça e a paz que deriva do evangelho e é sinal da autêntica oração. De fato, entre evangelização e promoção humana, desenvolvimento e libertação existem vínculos teológicos, antropológicos e evangélicos, como evidenciava a encíclica Evangelli Nuntiandi, de Paulo VI (Cf. EM 31). Experimentar a Deus na interioridade traz também consigo um convite a mudar a história. Lutar por uma sociedade fundamentada no direito e na justiça (Jr 21, 11 – 22, 4). O amor ao próximo possui uma dimensão histórica que se deve concretizar na ação exigida pelas novas circunstâncias sempre em transformação. Hoje são necessárias novas mediações, que dêem ao amor cristão a eficácia que lhe falta em determinadas ocasiões.

As obras de misericórdias enumeradas no texto de Mateus, no qual descreve o juízo final (Mt 25, 31 – 46), devem ser interpretadas, na missão evangelizadora, também em chave social. Dar de comer e beber ao necessitado significa colaborar para que na sociedade se criem fontes de trabalho e estruturas que permitam a todos satisfazer estas necessidades elementares da pessoa humana. Visitar ao enfermo implicaria em trabalhar para que ninguém careça de seguridade social e médica. Preocupar-se com quem está no cárcere deve levar à denúncia da violação dos direitos humanos dos prisioneiros, das torturas que se lhes infligem, das prisões arbitrárias.

O Documento de Aparecida reafirma esta dimensão social do amor ao falar da opção preferencial pelos pobres entre os quais menciona comunidades indígenas e afro-descendentes, jovens sem oportunidade, desempregados, migrantes, nômades, desapropriados, agricultores sem-terra, crianças submetidas à prostituição infantil, milhares de pessoas e de famílias que vivem na miséria, dependentes de drogas, portadores de necessidades especiais, soro-positivo, enfermos de AIDS, vítimas do terrorismo, de conflitos armados e de insegurança cidadã (DAp nº 65).

IV

SOLIDARIEDADE: REFAZER AS RELAÇÕES HUMANAS

Vivemos num mundo dilacerado pelas divisões, ódio, guerras, injustiças. O anúncio da Boa Notícia tem que projetar-se para a conquista de relações humanas como expressão da comunhão que Cristo nos trouxe e que exigiu de seus seguidores. Nossos santos viveram relações humanas baseadas no amor, na aceitação dos outros, na colaboração. Em outras palavras, nos ensinaram a dimensão coletiva que tem a responsabilidade humana. De fato o juízo escatológico versará sobre o amor solidário que evidencia uma fé que sabe reconhecer o rosto de Cristo no irmão, especialmente no mais necessitado e desprotegido. “No entardecer de nossa vida te examinarão no amor” dizia são João da Cruz (Ditos, 59).

Uma característica do mundo atual é a tendência à globalização. Trata-se de um processo que se impõe devido à maior comunicação entre as diversas partes do mundo, levando praticamente à superação das distâncias, com efeitos evidentes nos diversos campos. Do ponto de vista da ética, pode ter uma valorização positiva ou negativa. Há uma globalização econômica que traz consigo certas conseqüências positivas, com forte acento na eficiência e incremento da produção. No entanto, se a globalização se rege pelas meras leis do mercado aplicadas segundo conveniências dos poderosos, leva a conseqüências negativas. Há de se reconhecer ainda os valores positivos que a globalização comporta: não podemos passar por cima dos aspectos negativos dela derivados, como a imposição de novas escalas de valores arbitrários que destroem a riqueza da diversidade cultural (cf. Ecclesia in America, 20).

Com a Igreja somos chamados em nossa missão evangelizadora a trabalhar para estabelecer uma ordem econômica em que não domine somente o critério do lucro, mas também o da busca do bem comum nacional e internacional, a distribuição eqüitativa dos bens e a promoção integral dos povos para contribuir para criar uma verdadeira cultura globalizada da solidariedade que reduza os efeitos negativos da globalização, como são o domínio dos mais fortes sobre os mais fracos, especialmente no campo econômico e a perda dos valores das culturas locais em favor de uma mal entendida homogeneização (cf. Ecclesia in America, 55). Não é possível refazer as relações humanas se não forem criadas estruturas mais justas. Tudo isto não é alheio à evangelização. É necessário estar atentos aos debates e normas internacionais neste ponto.

A Igreja é uma comunidade de seguidores de Jesus. O seguimento tem um selo fortemente comunitário. É na comunidade eclesial onde se recebe, ao longo da história, o chamado a seguir a Jesus Cristo. Ele, presente em meio aos fiéis crentes, repete este gesto de CON–VOCAR e COMUNICAR a seus seguidores diversos carismas para serviço da comunidade. Na multiplicidade dos carismas se dá uma estrutura harmônica. Todos devem ser uma concretização do amor cristão, primeiro fruto e meta, ao mesmo tempo, do seguimento de Jesus Cristo. A comunhão em Cristo e a vocação a formar a comunidade eclesial criam vínculos fraternos entre seus seguidores. A comunhão de corações e a partilhar os bens aparecem como ideal para os cristãos de todos os tempos. O amor ao próximo – irmão deve ser como o de Jesus. A fraternidade cristã, que se origina no chamado ao seguimento encontra no Mestre – Cristo e em seus ensinamentos a expressão concreta da gratuidade, a universalidade e a entrega total que devem caracterizá-la e que hoje exigem de nós um compromisso de solidariedade a partir dos pobres.

V

UTOPIA DO REINO: ANIMAR A ESPERANÇA DO POVO

A esperança cristã não pode reduzir-se à simples espera paciente e resignada da irrupção do definitivo em nossa história humana. O conceito bíblico de esperança ilumina a tensão entre o presente e o futuro que será definitivo. A redenção de Cristo, realizada já, tem ao mesmo tempo uma faceta futura que é objeto de esperança: a redenção se consumará com a ressurreição. À luz do Novo Testamento, a esperança cristã constitui-se da fé, paciência perseverante e ação (cf. Rm 5, 3 – 5) e se apóia na bondade e fidelidade de Deus manifestadas em Cristo, do qual nada nem ninguém nos pode separar (Rm 8, 38 – 39), e na presença do Espírito (Rm 8, 11.23). a esperança cristã arrasta também consigo o universo (Rm 8, 19 – 22).

A dimensão ativa da esperança se orienta ao progresso do ser humano e à libertação e somente através desta ao progresso do mundo, da ciência e da técnica. Tudo deve orientar-se à libertação integral da pessoa humana. A esperança do definitivo não deve debilitar mas, levar à solicitude para transformar o mundo e a sociedade porque isso interessa ao reino de Deus, já misteriosamente presente na terra (cf. Gaudium et Spes, 39). A esperança em sua dimensão social leva a descobrir contemplativamente as sementes de vida e de ressurreição nas coisas de cada dia, nas situações, nas pessoas e em cada um individualmente. Também a experiência da própria pobreza, das próprias limitações e da lentidão das mudanças exige o exercício de uma esperança ativa que vive a tensão da paciência perseverante.

Como carmelitas, à luz da experiência e da doutrina de nossos santos devemos sustentar e animar a esperança do povo. Uma esperança ativa que compromete no trabalho por tornar presente o Reino.

O Documento de Aparecida apresenta a esperança cristã numa dupla perspectiva: de um lado descobre os sinais de esperança e por outro, a coloca na linha do Vaticano II que a associa ao compromisso de trabalhar pelo projeto de Deus, que começa neste mundo e que se consumará quando chegarem os novos céus e a nova terra. Constata-se que juntamente com a fé existe em muitos batizados uma esperança contra toda esperança que produz a alegria de viver, ainda que em condições precárias, porque encontra a Jesus como rocha, paz e vida (DAp, 7.21).

Entre os sinais de esperança que anima a espiritualidade na América Latina e o Caribe está a caridade de tantas pessoas anônimas em meio às injustiças e adversidades. Seu testemunho manifesta a proximidade do poder salvador e libertador do reino de Deus “que nos acompanha na tribulação e que alenta incessantemente nossa esperança em meio a tantas provas” (DAp 30). Na Igreja, “casa e escola de comunhão” como discípulos juntamente com todos os outros membros da Igreja devemos compartilhar, a partir de nosso carisma, “a mesma fé, esperança e amor a serviço da missão evangelizadora para iluminar e infundir alento e inspirar soluções adequadas aos problemas da existência (cf. DAp, 158.333). “No coração e vida de nossos povos é latente um forte sentido de esperança, não obstante as condições de vida que parecem ofuscar toda esperança. Ela se experimenta e alimenta no presente, graças aos dons e sinais de vida nova que se partilha; compromete na construção de um futuro de maior dignidade e justiça e ânsia pelos “novos céus e nova terra” que Deus nos prometeu em sua morada eterna” (DAp 536).

VI

DISCERNIMENTO: SABER DISTINGUIR A FALSA PROFECIA

A espiritualidade do seguimento de Jesus Cristo nos coloca diante dele, Palavra que se fez carne e habitou entre nós, numa atitude de atenção a seus ensinamentos na Escritura e na vida: “para que vocês sejam reconhecidos verdadeiramente como discípulos meus terão que fazer atenção a esta mensagem: conhecerão a verdade e a verdade libertará vocês” (Jo 8,32). Como fiéis somos discípulos e Jesus é o mestre que fala e mostra os planos de Deus. A nós nos cabe aceitar seu testemunho, segui-lo e manifestá-lo profeticamente.

O chamado de Jesus ao seguimento é, ao mesmo tempo, um chamado à missão de testemunhar e anunciar a Boa Nova e a interpelar, a partir de suas exigências, a vida pessoal e social. A narrar João a vocação dos primeiros discípulos (Jo 1, 35 – 51), põe em evidência que eles, convidados por Jesus a ir e ver onde vivia, tiveram uma experiência profunda que levou de imediato a André a chamar outros ao seguimento do Senhor. Testemunha a Pedro o que viu e sugere que faça pessoalmente essa mesma experiência direta de Jesus, que lhe permita conhecê-lo e segui-lo (Jo 1, 40 – 41).

Jesus propõe seu seguimento como um serviço de si mesmo até à morte. Ele mesmo nos dá critérios para distinguir a verdadeira da falsa profecia. Pede que quem se dispuser a abandonar tudo: família, bens, prestígio, seguranças para estar disponível para o anúncio do Reino seguindo-o até à cruz em comunhão de vida com Ele. Cristo Ressuscitado segue presente na história. Seguidores seus, somos chamados a testemunhar sua vida e sua ressurreição (cf. Lumen Gentium, 3), a descobrir os sinais de esperança presentes na vida dos homens. A comunidade de seguidores “é enviada como povo profético que anuncia o evangelho ou discerne as vozes do Senhor na história; anuncia onde se manifesta a presença de seu espírito e denuncia onde opera o mistério da iniqüidade mediante fatos e estruturas que impedem uma participação mais fraternal na construção da sociedade e no gozo dos bens que Deus criou para todos” (Puebla, 267).

A liberdade de espírito se concretiza na parrésia e possibilita viver a dimensão profética da vida consagrada enraizada na missão profética de todo cristão. O profetismo se manifesta no testemunho do absoluto de Deus e dos valores do evangelho; centraliza-se no amor pessoal a Cristo e aos pobres nos quais Ele vive. Vita Consecrata cita a Elias que, na tradição patrística é visto como modelo da vida religiosa monástica porque vivia na presença de Deus e contemplava em silêncio sua passagem, intercedia pelo povo, proclamava a vontade do Senhor, defendia seus direitos e os dos pobres contra os poderosos do mundo (cf. VC 84). Temos aqui o modelo de nosso profetismo.

O mesmo documento assinala com acerto que a verdadeira profecia nasce de Deus e da amizade com Ele, da escuta de sua Palavra nas diversas circunstâncias da história. Por outro lado exige a busca da vontade de Deus, a comunhão eclesial, o discernimento espiritual e o amor pela verdade. Se expressa também na denúncia de tudo aquilo que se opõe ao plano de Deus e na criatividade para encarnar o evangelho na história. Esta se adquire na medida em que vai crescendo o amor a Deus e ao próximo. Nossos místicos são testemunhas e mestres nesse caminho. Tudo isso exige uma profunda liberdade de espírito. A liberdade de espírito como atitude permanente da vida consagrada ajuda a harmonizar as exigências da ordem vigente com as de uma nova ordem; a conciliar as formas institucionais com a renovação requerida pelo Espírito que impulsiona a comunhão, defende a liberdade e comunica a “parrésia” do profetismo.

VII

COMUNIDADE ORANTE E PROFÉTICA

A vida religiosa teve desde o princípio em seu ideal comunitário a imitação da primitiva comunidade cristã de Jerusalém. Nela é possível apalpar sensivelmente o primeiro fruto do Espírito: o amor (Gl 5,22). A comunhão de corações e a partilha dos bens aparecem não somente como características da comunidade de Jerusalém, mas também como ideal para os cristãos de todos os tempos (At 4, 32). A partir da fé comum (At 2,42) o fiéis crentes acolhem a Palavra de Deus que os convoca a unir-se na fraternidade. Esta tem como fruto e exigência por sua vez a KOINONIA ou comunhão com o Pai e com seu Filho Jesus Cristo e entre os fiéis crentes (1Jo 1, 1 – 4). Nela se integram a fé e a vida. Esta comunhão se manifesta externamente na aceitação dos outros, na partilha dos bens, na projeção social do amor. A oração se vive como escuta de Deus para comprometer-se com o irmão. A diversidade de carismas conduz a um serviço mútuo.

Como carmelitas somos chamados a viver pessoal e comunitariamente uma atitude contemplativa. A meta será conseguir integrar a experiência de Deus e a experiência da vida: ser contemplativos na oração e no trabalho evangelizador. Ter uma experiência de Deus na história e nos irmãos que dê sentido aos “tempos fortes” de oração: momentos de maior consciência da presença do Senhor, fonte de criatividade evangélica; espaço interior para o encontro pessoal e íntimo com o Senhor. A oração como atitude de vida leva a descobrir o rosto de Deus na realidade conflitante, nos problemas sociais, na angústia dos pobres nos quais há de “reconhecer os traços sofredores de Cristo, o Senhor, que nos questiona e interpela” (Documento de Puebla, 31; cf. DAp, 65). A contemplação se fundamenta e se dá na história e fazendo história de salvação.

O Vaticano II recordou que todos os cristãos, pelo batismo, participam da função sacerdotal, real e profética de Cristo (cf. Lumen Gentium, 31). Como carmelitas somos chamados a viver a dimensão profética da vida cristã, sublinhando o absoluto de Deus e do Reino para converter-nos com nossa vida em sinais dele na história. Cumpriremos nossa missão profética na medida em que estejamos radicados na experiência do Deus de Nosso Senhor Jesus Cristo, o Deus das bem aventuranças, que faz sair o seu sol sobre bons e maus e faz chover sobre justos e injustos (Mt 5, 45); que ama aos ingratos e maus (Lc 6, 35). O Pai, cujos caminhos não são nossos caminhos (Is 55, 8 – 9), que nos quer transformar em filhos seus, em irmãos uns dos outros e que em tudo concorre para o bem de todos (Rm 8,28). Um Deus que continua revelando-se na realidade na qual está presente e cujo rosto aparece também nas situações de conflito, nos problemas sociais, nos desafios de um mundo secularizado, nos sinais dos tempos e dos lugares. De modo particular, devemos ser, hoje, pessoas que experimentam a presença interpelante de Cristo no ser humano, especialmente nos mais pobres (Mt 25, 31 – 46). Na linha dos profetas bíblicos, somos chamados a aprofundar na experiência de Deus, até que Ele seja uma pessoa viva com a qual nos relacionemos intimamente. Ser profeta não é transmitir verdades ou dogmas mas, sim, comunicar e proclamar a experiência de Deus e suas exigências. Ao vivera oração como um auscultar a Deus para depois comprometer-nos com os irmãos desde o testemunho de nossa fraternidade, poderemos viver esta característica do profeta bíblico e encontraremos na oração como atitude de vida uma força que gera disponibilidade para confrontar os caminhos imprevisíveis do Espírito. Na experiência de nossa pobreza, nos descobriremos sinais frágeis e pobres nos quais se manifesta o poder de Deus.

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