Os elementos místicos e proféticos no Carmelo na perspectiva de um superior
Joseph Chalmers O.Carm
A vocação é um chamado de Deus que tem sua mediação em e através da situação humana da pessoa chamada. Há muitas razões para entrar na família carmelitana e estas devem ser discernidas desde cedo para que somente aquelas que verdadeiramente buscam a Deus possam continuar a viagem e outros possam receber o apoio para que vejam que talvez outro caminho possa ser mais conveniente para elas. A vocação para ser carmelita é a mesma, independentemente do estado de vida a que se sinta chamado: se no estado laical, à vida religiosa nas suas várias expressões (apostólica/monacal, através dos ministérios ordenados ou não). Claramente a forma em que se viva esta vocação em particular difere consideravelmente de acordo com estado de vida.
Uma pessoa busca a Deus porque teve algum tipo de experiência do Deus vivo; e os formadores em particular são responsáveis por ajudar a cada indivíduo a compreender o significado de sua experiência e a consentir a presença e a ação de Deus em suas vidas. Toda a vida carmelitana é um processo de formação para entender mais profundamente o que Deus está fazendo para que possamos responder com maior plenitude à vontade de Deus. Ninguém se torna carmelita senão a partir do momento em que já se percebe carmelita a partir dos valores plasmados por Deus no mais profundo de seu coração, onde está em sintonia com o projeto Carmelita. Através do processo de formação, o indivíduo ou se compromete mais e com mais força a fazer destes valores as pedras fundamentais de sua vida espiritual ou simplesmente busca a vontade de Deus em outro lugar.
Há diferentes modos de viver o carisma do Carmelo no mundo, mas o fundamental é o mesmo. É uma resposta a Deus que nos chama a viver em obséquio de Jesus Cristo, inspirados pela Virgem Maria e o profeta Elias numa vida de serviço, oração e fraternidade. Estes valores são unidos pela contemplação que é uma intimidade crescente com Deus e Jesus Cristo.
É sempre iniciativa de Deus. Deus chama e nós respondemos. Devemos ajudar às pessoas a escutar porque amiúde Deus vem em formas inesperadas. No Monte Horeb Deus não estava presente no vento forte, no terremoto ou no fogo, mas no soprar de uma brisa leve (1Rs 19,12). Como Maria, a mãe de Jesus, devemos guardar todas estas coisas em nosso coração (Lc 1,19) para que possamos reconhecer a presença do Deus vivo nos acontecimentos, grandes ou pequenos, que sucedem ao nosso lado, e como ela, responder “Eis a serva do Senhor. Faça-se em mim segundo sua Palavra” (Lc 1,38).
I – A nova consciência de que Deus está conosco
O profeta Elias proclamou ao povo que o Deus que havia acompanhado a seus ancestrais da escravidão no Egito à terra prometida pelo deserto; todavia estava com eles. Os primeiros carmelitas foram ao Monte Carmelo com o fim de viver em obséquio de Jesus Cristo na mesma terra deste. Quiseram estar o mais próximo possível e acreditavam percorrer os mesmos caminhos que Ele caminhou ajudaria a manter sua presença sempre à frente de seus pensamentos e corações. A celebração diária da Eucaristia, recomendada em nossa Regra Carmelita, é a celebração da nova aliança, o vínculo de amor entre Deus e seu povo, e que é selada no precioso sangue de Cristo.
No Antigo Testamento a idéia da aliança é uma chave importante para compreender as relações de Deus com a humanidade. Originalmente isto foi um tipo de contrato onde Deus prometeu estar com Abraão, então o povo eleito em sua totalidade prometeu não ter outro deus senão a Deus somente. Na história do povo eleito vemos a impossibilidade dos seres humanos responderem com completa fidelidade à iniciativa de Deus. Finalmente Deus enviou a seu Filho único para estar conosco e, na Eucaristia Ele nos deixou presença permanente.
Maria, conhecida pelos eremitas no Monte Carmelo como a “Senhora do lugar”, fazendo referência a seu Filho, diz aos seus seguidores através dos tempos que “façam tudo o que ele dizer” (Jo 2,5). Ele é o Emanuel, Deus conosco.
No princípio de nossa Regra nós, como todos os cristãos, somos chamados a “viver em obséquio de Jesus Cristo”. Isto inclui a idéia do Evangelho de seguir a Cristo mais vais mais além ao expressar o ideal carmelitano de viver intimamente com Ele. Se distanciamos nossos olhos de Cristo nos perderemos e estou convencido da grande importância da escuta diária da Palavra de Deus pessoal e comunitariamente. O movimento de nossa Regra entre a cela a capela ou mesmo o refeitório é muito importante. A cela representa nossa conversação diária com Deus, que toma lugar no silêncio de nossos corações. Esta conversação íntima com Deus nos dá a fortaleza para oferecer algo à comunidade quando nos reunimos, seja para partilhar nossas vidas na mesa ou na celebração eucarística. Estar com a comunidade nos dá a cada um a fortaleza de buscar a Deus com maior profundidade no silêncio da cela, onde quer esta se encontre. Qualquer coisa que venhamos a fazer, onde quer que estejamos, Deus está conosco.
II – Justiça e Paz
Os carmelitas são muito conscientes do profeta Elias. Ele encontrou a Deus no silêncio do monte Horeb (1Rs 19, 11 – 13) e também proclamou a Palavra de Deus numa situação de grave injustiça, quando o Rei agiu em cumplicidade com sua esposa para assassinar a Nabot e tomar posse de sua vinha (1Rs 21, 1 – 27). Devemos nos esforçar em manter os dois aspectos do profeta em nossas mentes quando o vemos como inspiração para a vida carmelitana.
Os carmelitas vivem em obséquio de Jesus Cristo inspirados pelo profeta Elias e Maria, a Mãe de Jesus. Os valores essenciais de nosso carisma são a oração, o serviço (apostólico, inclusive) e a fraternidade; e se mantém unidos pela contemplação, que é um compromisso o rosto do Deus vivo por meio de cada aspecto da vida. A contemplação é, em última instância, um dom de Deus por meio do qual começamos a ver a criação como se fosse com os olhos de Deus e a amar os que vemos com o coração do mesmo Deus. Isto não é nada “romântico”, platônico, mas verdadeiramente pode até ser muito doloroso quando, juntamente com toda a formosura da criação, nos damos conta de que mais e mais as injustiças desfiguram nosso mundo.
A opção pelos pobres não é um opção para os cristãos, mas é um imperativo se desejamos seguir o caminho de Jesus que veio para proclamar a boa nova dos pobres (Lc 4,18). O trabalho pela justiça e a paz deve fruir de nosso olhar contemplativo e deve constantemente voltar à fonte de toda paz e justiça. Nós temos um Pai no céu e, portanto, somos irmãos e irmãs. É somente em Deus que podemos ver sem distinção e agir sem interesses pessoais. O Papa João Paulo II escreveu no documento Vita Consecrata: “o Cristo que se encontra na contemplação é o mesmo que vive e sofre nos pobres” (VC 82).
O trabalho pela justiça, paz e integridade da criação é parte integral do carisma carmelitano. A forma de vida que levamos, o modo de realizar nosso trabalho é profundamente marcado por nossa vida contemplativa. A oração não é busca de um caminho para sentirmos livres do estresse, mas para formar em nós a mente e o coração de Cristo. Nossa oração então formará nosso trabalho pela justiça e nosso trabalho enriquecerá nossa oração. Veremos que somos parte do mal contra o qual protestamos e pediremos a Deus que nos livre, a nós e a todo o povo, do mal para que os valores do Reino possam penetrar nosso mundo.
III – Solidariedade
Uma parte integral do carisma do Carmelo é o valor da fraternidade. Em nossa Regra, santo Alberto de Jerusalém baseou o que escreveu no que os eremitas propuseram. Eles claramente quiseram viver como comunidade e, portanto, há um tempo para estar a sós com Deus e um tempo para estar juntos. A celebração eucarística e a escuta comunitária da palavra de Deus são grandes ajudas para construir a comunidade. A Eucaristia é a celebração da comunidade, mas, também forma comunidade e por isso merece uma séria preparação. A Eucaristia transforma os indivíduos em comunidade e então nos envia a viver o Evangelho na vida diária.
O trajeto das celas individuais à capela diariamente é um símbolo do esforço que ordinariamente cada um faz para sair de si mesmo para encontrar os outros e com eles fazer comunidade. A fraternidade é um sinal profético de que é possível viver em comunhão, mesmo que haja certo preço a pagar.
O objetivo do itinerário espiritual é que sejamos transformados em Deus. Isto requer uma profunda mudança na maneira de pensar, agir e amar. Nos distanciamos de nossos caminhos humanos normais que por sua natureza são limitados para um caminho divino. Para simplificá-lo nossa vocação é chegar a ser como Deus. Os Padres da Igreja falaram e escreveram muito sobre a divinização do ser humano. Cada aspecto do ser humano há de ser transformado. Normalmente este é um processo longo e lento que, talvez, muito raramente, se completa nesta vida. Percorrer o itinerário espiritual significa manter-se neste processo de transformação. Relacionar-se com outros seres humanos ajuda neste processo de crescimento e transformação porque com ele aprendemos a conhecer-nos mais a nós mesmos e aprender a ter olhos para ver e ouvidos para ouvir.
O processo de transformação também transforma a maneira em que nos relacionamos com os outros na medida em que nos colocamos na mente de Cristo e aprendemos a ver aos outros como Deus vê e amar às pessoas como Deus ama. Deus ama de um modo incondicional e assim a pessoa que é transformada rompe e ultrapassa as barreiras que os seres humanos constroem e que se constituem numa barreira para a fraternidade. Rompidas essas barreiras é possível descobrir que verdadeiramente são irmãos e irmãs.
IV – A esperança do Reino
Os eremitas do Monte Carmelo vieram junto a uma torrente. A esta torrente se chamou como ao profeta Elias e todo o Carmelo se consagrou a seu nome. Um testemunho quase contemporâneo aos primeiros carmelitas comparou-os ao profeta Elias. Quando chegaram à Europa, já que não tiveram nenhum fundador famoso, viram em Elias uma fonte de inspiração e em tempos de crise, quando a existência da Ordem estava ameaçada, pensaram nele como a seu fundador. A experiência do profeta pode ser muito útil para nós. Vivemos num mundo muito diferente, mas igualmente atribulado.
Nossa vida é uma constante peregrinação ao Horeb, para o encontro face a face com Deus. Temos fé forte, mas talvez, em nossas vidas temos sentido algo como o que Elias sentiu no deserto. Depois de uma grande vitória por Deus, mas pouco tempo depois parecia desmoronar-se. Foi ao deserto e desejou a morte (1Rs 19,4). Que processo seguir? Parece que dou um passo adiante e outro atrás. Onde está Deus? Por que nunca o sinto perto nem experimento sua presença como outros parece experimentá-la? Que se passa comigo? A crise é parte de nossa vida, é uma parte dos seres humanos. Não é um mau em si passar por momentos de dúvidas e questionamentos; isto é normal. No entanto, o que importa é como enfrentamos as crises e o que aprendemos com elas. A experiência do fracasso pode ser saudável porque através de nossas experiências podemos ver brevemente quem realmente somos e aprender a confiar em Deus em vez de confiar em nossas próprias forças.
Nosso mundo não dá muita razão à esperança. Diariamente vemos muitas notícias ruins, negativas – extrema pobreza, um mundo em vias de destruição pelo consumismo, guerra e terrorismo, corrupção, política em muitos países, tráfico de seres humanos, seqüestro infantil e muitos assassinatos. Problemas de ordem comunitária, a vida matrimonial e seus valores e nossos ministérios. Talvez a vida comunitária ou a vida matrimonial ou mesmo a Ordem não são o que pensamos quando entramos. Sem sempre respondem a nossas esperanças. Talvez cremos que a Igreja está indo pelo caminho equivocado. A esperança é uma virtude cristã fundamental. Não o mesmo que ter uma perspectiva otimista ou usar lentes de cor. Se nos é solicitada uma cooperação ativa no plano divino, vivendo de acordo com a vontade de Deus como no-lo deu a conhecer Jesus Cristo. Se assim agirmos então, apesar das aparências, “tudo estará bem e todas as coisas estarão bem” (Juliano F Norwich)
Deus teve que enviar seu anjo duas vezes a Elias antes de ele mover-se. Um anjo é mensageiro de Deus. Estes mensageiros vêm em todas as formas e tamanhos. Somos capazes de reconhecer os anjos que Deus nos enviar?
V – Discernimento
Nós carmelitas temos uma profunda consciência que o profeta Elias é nosso pai espiritual. Seu sucessor, o profeta Eliseu, pediu uma dupla porção de seu espírito (2Rs 2, 9 – 12). Os “filhos dos profetas” reconheceram que Eliseu realmente recebeu o que havia pedido (2Rs 2,15). Como puderam reconhecer este fato? Que havia em Eliseu que os convenceu que ele era verdadeiro sucessor do grande profeta Elias? No entanto, Eliseu teve que mandar 50 homens fortes para buscar Elias. Contra seu melhor juízo, Eliseu lhes permitiu ir, sabendo o tempo todo que a busca resultaria em nada já que Elias havia sido arrebatado ao céu (2Rs 2, 16 – 18).
O discernimento é a habilidade de distinguir entre o verdadeiro e o falso profeta. É a habilidade de ouvir a voz calma e pequena de Deus em meio ao ruído da vida diária. É estar em sintonia com os caminhos de Deus e saber quando algo é falso mesmo quando tudo parece correto.
Mesmo que a pessoa ou as palavras possam enganar a muitos quem está em sintonia com Deus conhece a diferença intuitivamente. Como se obtém este dom? Não se pode comprar nem ganhar; somente abrir o coração para recebê-lo como dom de Deus.
Devemos passar tempos com Deus para que nossos sentidos espirituais possam entrar em sintonia, porque é fácil equivocar-se quanto à compreensão da vontade de Deus a nosso respeito ou simplesmente não ser conscientes que Deus está comunicando-se conosco. Como soube o profeta Elias que o mensageiro que veio a ele vinha da parte de Deus? (1Rs 19, 5 – 8). Jezabel também havia enviado um mensageiro para ameaçá-lo. Por que confiou Elias no mensageiro e comeu o que ele colocou diante dele? Podia Jezabel tê-lo envenenado. No entanto, o profeta Elias confiou em seus instintos que o mensageiro vinha da parte de Deus e que estava no caminho correto. A comida e a bebida que o misterioso mensageiro proveio, lhe deu força necessária para retomar o caminho e seguir viagem até o Horeb, o Monte de Deus.
Para ser fiel a Deus e ser uma pessoa de discernimento, devemos permitir que a Palavra de Deus desafie e purifique nossa motivação. O que é falso dentro de nós, a busca de si mesmo, de quem não deseja escutar a voz de Deus e é feliz afogando-se com muitos ruídos – tanto interiores como exteriores. No entanto se estamos buscando a Deus em todas as coisas vamos começar a ser conscientes de nossos motivos e que estes não são sempre totalmente puros. Uma vez que façamos esta importante descoberta não nos deixaremos desorientar facilmente por nossas próprias necessidades e desejos que mascaram a vontade de Deus. Este discernimento é um dom, mas também uma tarefa. Desejas receber este dom e estás disposto aplicá-lo a ti mesmo?
VI – Comunidade orante e profética
Como carmelitas, somos chamados a testemunhar Jesus Cristo por meio do compromisso em formar comunidades orantes e proféticas e fazemo-lo de diferentes modos de acordo com nossa própria vocação. O fato de pessoas de diferentes procedências se reunirem para uma mesma família e não por apegos emocionais ou físicos isso chama a atenção pela razão que subentende e que está por detrás de tudo isso: o motivo pelo qual os Carmelitas se reúnem é Jesus Cristo. Ele nos chamou a cada um de nós por nosso nome e nós respondemos.
Um profeta é alguém que fala em nome do Senhor. Fazer algo assim é um fato audacioso. Uma comunidade é profética quando, com sua vida, proclama a Palavra de Deus. Para poder discernir se um indivíduo ou uma comunidade é verdadeiramente profética, faz-se mister conhecer a vida real daquela pessoa ou comunidade. Está em sintonia com a mensagem do Evangelho? Para poder permanecer em sintonia com o evangelho o indivíduo ou comunidade deve ser orante. Por suposto há uma grande diferença entre proclamar muitas orações e ser orante. Este último significa buscar permanecer em constante comunicação com Deus e não limitar nossa relação com Deus aos momentos particulares, ainda que estes também possam existir.
O movimento na Regra do Carmo entre a cela individual e a capela ou o refeitório nos recorda a importância de passar tempo a sós com Deus, e também tempo de estar juntos com os outros para celebrar nossa vida em comum. Estes momentos estão conectados entre si e cada um afeta a qualidade do outro. Para ser uma comunidade profética devemos ser uma comunidade orante; para ser uma comunidade orante devemos ser indivíduos orantes. Os indivíduos contribuem para a comunidade e a força do grupo dá a cada membro o ímpeto necessário para continuar sua busca de Deus na sociedade.
Em que consiste tua contribuição para a formação de uma comunidade orante? Buscas a Deus em e através de todas as coisas? Estás disposto a comprometer-se com a comunidade?
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