MÍSTICA E PROFECIA NO CARMELO
-Na prática pastoral dos e das Carmelitas na América Latina-
Todo texto brota de um contexto. O nosso é o da América Latina, continente único em sua “pluralidade” cultural e, portanto, na percepção do valor religioso, carismático e teresiano. Toda prática evangelizadora deve estar ao serviço do Reino de “Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo” que pela ação do Espírito do Ressuscitado, confessamos “com o coração e os lábios”: “Pai Nosso” e “Nosso Senhor”.
Evangelizar é entrar na dinâmica libertadora do Reino em atitude de esperança comprometida, com gestos solidários que incluam a todos no amplo horizonte do amor compassivo, misericordioso, do “Deus conosco”, e com a força da palavra profética que recria permanentemente o ser humano como “imagem e semelhança de Deus” que se compraz em morar com e em nós.
A vocação natural de todo o Carmelo Teresiano não é outra que a de experimentar na vida, a Deus, como Pai e Amigo. Esta é ao mesmo tempo nossa “missão natural”: ajudar ao ser humano a descobrir que sua máxima dignidade consiste em recuperar salvíficamente “que não se pode contentar com menos que Deus”. A leitura de nossos Santos deve ser leitura místico-profética, orante, da Palavra de Deus.
Nosso apostolado todo deve orientar-se a ajudar a “descobrir a Deus como fonte de plenitude, como libertador, como o Deus da esperança, como Pai-Mãe, como alguém sempre próximo” (Capítulo de Ávila, n. 65), como Amor infinito que nos diviniza.
Nossa vocação se articula na dupla consagração a Deus e a seu povo, e por isso a missão pastoral se orienta na vivencia fiel da plenitude da vocação de todo ser humano na perspectiva evangélica: criaturas filiais e fraternas chamadas à “bem-aventurança”.
Toda ação pastoral deve ser um anúncio profético da alternativa de um Homem Novo, “filho do Homem” e “Filho de Deus”.
Hoje esta alternativa padece de uma “ameaça globalizada” em forma de exclusão e violência. Os habitantes de nosso continente, em sua maior parte, experimentam que sua vocação de seres humanos está em permanente risco.
O compromisso evangelizador dos seguidores missionários, “como a vida de Jesus, em sua obediência e entrega ao Pai, é parábola viva do Deus conosco” (Bento XVI, 2-02.06), deve mostrar-se como um sinal eloqüente de que o Reino de Deus já está entre nós.
A práxis do reino só é possível se nos exercitarmos na leitura evangélica, místico-profética, da realidade apropriada pelos amplos horizontes da humanidade atual. Nessa leitura deve-se assumir os desafios da “alteridade”, “capazes de procurar e escutar a todos, com confiança no Espírito” (CFr. Declaração Final, Terceiro Congresso Americano Missionário CAM3COMLA8, Quito, 17-08-08). Evangelizar hoje também é capacitar para o compromisso ético, “fazer o bem e fazê-lo bem”.
Evangelizar hoje é ocupar-se em colocar a casa em ordem, na responsabilidade ecológica total, incluindo a “morada” interior.
Estes novos horizontes propõem determinações solidárias nas perspectivas do Evangelho que ajudem a recuperar nossa vocação original: “divinamente humana, humanamente divina”. Assim responderemos tanto aos interesses de Deus como aos nossos. Esta foi a Paixão de Cristo, paixão salvadora pela humanidade toda. Esta deve ser a paixão de todo discípulo missionário, de todo consagrado.
2. Nova consciência, nascida da certeza de “Deus está conosco” – liberdade interior.
“A experiência mística de Deus é uma experiência libertadora que leva à pessoa humana a uma abertura, à transcendência e a faz viver a comunhão com Deus, desejo que pulsa no coração humano que, ao mesmo tempo, lhe abre à dimensão libertadora da fé. Na experiência mística pode se realizar, num mundo globalizado, a integração de todas as pessoas e coisas no Todo porque a mística tem um poder humanizador” (cfr. “Caminhar na luz”, Desafios da Mística Teresiana no Terceiro Milênio, Congresso Internacional, Ávila, 7-11-08).
Todo apostolado teresiano é mistagógico. Deve iniciar ajudando a tomar consciência da grandeza, formosura, da “alma” humana, “morada” de Deus. Esta é a verdade na qual devemos andar.
Tomar consciência é assumir a interioridade como “abertura”, como “morada” habilitada para que Deus caiba nela. Onde Deus está, todo está e está todo.
A partir do amplo espaço da “liberdade interior”, os seres humanos se comprometem a construir um lar, onde habitar humanamente, como “filhos”, “irmãos” e “senhores”.
Esta nova consciência deve ir mais além das exigências morais. É dar-se conta que não só as coisas estão mudando, mas que o que está acontecendo diante de nossos olhos é um processo de transformação epocal, que necessariamente nos afeta.
O tomar de consciência atual no distancia das margens do “remorso” e da “culpabilidade”, e nos abre horizontes do compromisso, do nascimento de um Homem Novo que comece a construir uma Terra Nova que torne possível o Céu Novo esperado.
Evangelizar hoje é anunciar a Deus como o desejado e futuro possível do homem.
O profeta de hoje, na perspectiva evangélica, proclama misticamente, que o futuro não apenas é desejado mas possível. Não só estamos trocando de pele, mas temos muita pele para estrear, muitos vôos, “mariposas”, para tentar. O modelo de nossas “transfigurações”, não pode ser outro que Jesus Cristo, morto e ressuscitado. “Quem poderia acreditar? Com que raciocínios poderíamos imaginar que uma coisa tão se razão como é um verme e uma abelha, sejam tão diligentes em trabalhar para nosso proveito e com tanta indústria, e o pobre vermezinho perde a vida na demanda?” (Morada V 2, 2).
A nova consciência tem a ver com nosso amplo espaço interior a partir de onde somos, existimos e nos movemos. Evangelizar mistagogicamente é ajudar a tomar consciência da interioridade, como espaço de liberdade interior, que não se define só porque tem “entradas” e “saídas”, como os espaços comerciais do pós-modernismo, mas porque “ali” nos encontramos a nós mesmos, nos encontramos com o Outro que nos habita, e a partir dali nos encontramos com os outros, os próximos, os que se aproximam de nós e aqueles dos quais nos aproximamos.
Esta consciência nova é espaço de interioridade, de recolhimento, de intimidade, de silêncio que escuta, de solidão aberta à comunhão, de existência como abertura. Valores de índole espiritual daquele que quer seguir a Jesus, o totalmente outro para os outros, segundo o carisma de Teresa de Jesus, Mestra em humanismo.
Evangelizar hoje é fazer tomar consciência “de que jamais acabamos de nos conhecer se não procuramos conhecer a Deus” (Moradas 1, 2, 9), que nos habita e que é a “fonte onde está plantada a árvore de nossa alma” (M I, 2, 5), condição para dar frutos e frutos de vida em abundancia..
Justiça e Paz: lutar pela reconstrução da convivência social
“É necessário sair ao encontro do outro. Temos de anunciar a Boa Nova de Cristo e sua exigência interior a aquele que está excluído e se converteu em alguém descartável. São os crucificados da história com os quais devemos nos sentir solidários e experimentar neles a dor de Cristo que, em comunhão com Ele, se transforma em “pena saborosa” e ajuda a viver os sofrimentos do mundo com um coração cheio de compreensão e misericórdia” (“Caminhar na luz”, Desafios... Ávila, 7-11.08)
Nossa missão de seguidores do “Crucificado por Amor” urge que mística e profeticamente, optemos pelo outro, nos façamos “próximos”, de tal forma que “ao entardecer” quando formos “examinados no amor” não nos surpreendamos: “Senhor, quando te vimos com fome, sede, sem teto, nu, enfermo, sem liberdade numa prisão?...”.
A justiça evangélica tem a ver com o sair da comodidade para buscar alguém que está só e que, humilhado, excluído, descartado, como resto, não pode valer-se por si mesmo. Tem a ver com o “acolher” a partir do coração ao outro que não tem teto, lar, a quem o consumismo de muitos deixou nu. Tem a ver com sempre acrescentar um lugar à mesa porque à porta há sempre Alguém que está batendo, chamando: “dá-me de comer, dá-me de beber”...
Só seremos bem-aventurados como construtores da paz na medida em que nos comprometamos com o gesto cotidiano da solidariedade e da justiça, “O evangelho da paz (...) é obra da justiça, é uma tarefa permanente, é fruto do amor”, nos recordavam os bispos da AL. naquele distante 1968, desde Medellín, Colômbia.
Na missão de justiça e da paz é inescusável o compromisso com a aprendizagem da análise critica, isto é, o discernimento permanente da realidade toda. A realidade não é aquela que “anunciam” os parciais meios massivos de comunicação social...
Evangelizar é denunciar, “apontar” como fizeram sempre os profetas fiéis, os mecanismos perversos que obstaculizam a paz. É anunciar com coragem, “parresia”, que o “u-tópico” é não apenas desejável, mas possível. Nossas comunidades devem esforçar-se para ser espaço de reflexão, oficinas para tecer de novo a trama da convivência fraterna, pacífica e deve treinar a todos para sermos missionários do “shalom” de Deus nas novas fronteira desta humanidade tantas vezes desorientada, ambígua e sem esperança.
A melhor forma de anunciar uma humanidade nova é esforçar-nos na vida fraterna em transparecer relações fundadas no respeito, na verdade, na lealdade, na tolerância, na justiça... que possamos convidar: “Venham e vejam como nos amamos”.
Inclusive o esforço disciplinado de nosso “combate” interior, de nossa “luta por vencer o mal pela força do bem”, de “fazer-nos violência” para conquistar o Reino de Deus deve expressar a certeza de fé de que “Ele, Cristo, Reino de Deus em pessoa, é nossa paz” (Efésios 2, 14).
As “noites escuras” de nossa história contemporânea, quando muitas vezes nos sentimos impotentes diante das estruturas do poder do mal, encontram na experiência e na palavra mistagógica de nossos santos, alento para que com audácia e determinação busquemos novas formas, solidárias, “de ajudar em algo ao crucificado” (M. VII, 3, 6), e a nossos crucificados de agora e daqui.
É impossível e até maliciosamente enganoso sonhar com a paz sem pressupor os combates pela justiça. A utopia do Evangelho sempre brota da Cruz, do martírio.
O Ressuscitado que nos dá sua Paz é o mesmo Crucificado que deu a vida pelos seus para que já não sejam mais escravos, mas amigos.
4.-Solidariedade: refazer as relações humanas
A V Conferência do Espiscopado da A.L. e do Caribe em Aparecida, Brasil, espera que a Igreja deste continente continue sendo “com maior afinco, companheira de caminho de nossos irmãos mais pobres, inclusive até o martírio” (DA 396).
Aparecida fala de uma nova categoria, a exclusão social, que toca em sua raiz “a pertença à sociedade na qual se vive, pois já não se está abaixo, mas se está fora. Os excluídos não são apenas “explorados” mas “supérfluos” e “descartáveis” (DA 65).
O compromisso solidário que brota da fé
Refazer as relações humanas em nosso continente exige que o amor solidário não se reduza a belas teorias sociais. Evangelizar entre nós significa que todo nosso planejamento pastoral se centre no cultivo do encontro permanente feito de serviço fraterno, com gestos visíveis, com acompanhamento respeitoso a fim de que os mais débeis se façam sujeitos das transformações urgentes da situação atual (cfr. NM 49; DA 394). Ser solidário evangelicamente é exercer a DIAKONIA que surge da consagração batismal. Somos filhos do mesmo Pai. Fomos resgatados da escravidão do pecado com o preço da vida do Primogênito. Todos somos chamados a ser templos do Espírito para o “louvor de sua glória”. Este é o fundamento de nossa dignidade. Somos Sacerdotes, Profetas e Reis
A missão do Carmelo Teresiano como experiência de comunhão com Deus, mística, é ao mesmo tempo experiência de solidariedade profunda com todo o humano. É impossível ser “amigos fortes de Deus”, e não sê-lo de seus amigos, seus filhos, especialmente “os mais pequenos”. A autêntica mística cristã é solidária, é profética e no sentido mais original, é política, isto é, está ao serviço do bem total do ser humano. Se não nos ocupamos da criatura humana concreta falaríamos mal do Deus verdadeiro. O “objetivo constante do futuro” do Carmelo Teresiano “é a consciência de que a palavra sobre Deus e para Deus há de preencher-se de verdadeira humanidade concreta” (cfr. P. Luis Arostegui, Objetivos do Sexenio, Santiago do Chile, 4-11.05).
Se não queremos deixar de ser “casa e escola de comunhão” nossa evangelização deve caracterizar-se por um cultivo da solidariedade que saiba escutar e incluir a alteridade, a diferença, a abertura à novidade epocal e principalmente a atitude da esperança. Ser solidários implica também arriscar a existência com uma atitude de “fidelidade criativa”, que exclua o medo, a pusilanimidade e as falsas prudências. “Que temes? Quando te faltei? O mesmo que fui, sou agora (...)” (Fundações 29, 6), “Não tenha medo, filha, que SOU EU e não te desampararei; não temas” (Vida 25, 18).
O compromisso evangelizador comporta uma prática constante de solidariedade concreta que de verdade anuncie que o Deus de Jesus Cristo é nosso Deus, que é nosso Pai e seu Pai, e que podemos continuar contando com Ele. Solidariedade que se compõe na cotidianidade do Caminho, que tem a ver com a Verdade que liberta e que verifica se de verdade conduz à Vida.
5.-Utopia do Reino: animar a esperança do povo
“O Documento de Aparecida confirma quatro pilares que estão presentes em nossa espiritualidade: a vida comunitária, que exige a criação de autenticas fraternidades. A dimensão apostólica da vida de oração, que leva à missão e a alimenta. A dimensão mariana, que considera à Virgem como modelo de seguimento e cume do evangelho. A dimensão orante, que desemboca numa vida de coerência e transparência entre o que se ora e o que se vive” (Documento final do Congresso sobre o V CELAM de Aparecida, para o Carmelo, Londrina, Brasil, 19-11-07, n. 4: A espiritualidade em Aparecida).
A partir da especificidade do carisma teresiano temos que continuar anunciando a utopia do Reino, como consagrados, inseridos na Igreja particular, vivendo em comunhão fraterna a experiência de Deus, e privilegiando aos mais pobres para que todos tenhamos Vida. Todo ideal é utopia, não pelo que implique de impossível, mas pelo compromisso que exige de fazer um lugar para aquilo que é desejado. “Pois nada é impossível para Deus” (Lc 1, 37). Nós dizemos com a primeira discípula missionária: “Eu sou a serva do Senhor: que se cumpra em mim tua palavra” (Lc 1, 38).
Crer é tornar possível o anunciado, o desejado, o impossível, o utópico.
Se queremos continuar sendo uma comunidade “experta em humanidade”, temos que apostar por um compromisso gerador de esperança. A esperança é o argumento contundente da eficácia criadora da Palavra. Sem ela o anuncio profético soaria a fanatismo, catástrofe e frustração. A esperança não compete. A profecia anuncia a esperança advertindo: “Tenham cuidado para que ninguém os engane!” (Mateus 24, 4). Porém seu anúncio é um “sinal”: “Ele me ungiu para que dê a Boa Notícia aos pobres” (Lucas 4, 18). A novidade do anúncio é que os oprimidos e os cativos ficam livres, e chega a luz aos que caminham nas trevas e na sombra da morte. O futuro definitivo começou a estar presente.
O mundo super-tecnológico fala de um futuro provável. A probabilidade está submetida à sorte e até ao caos. A fé urge-nos para anunciar o futuro desejado, possível e definitivo.
Se somos honestos no compromisso, não podemos dissimular, ideologizar, a “angustiante realidade global”. O fiel não pode sucumbir ao pessimismo. Tão pouco pode arriscar irresponsavelmente as oportunidades do presente. De alguma forma o céu que esperamos toca a nós começar a construí-lo aqui e agora, no sacramento do HOJE e com a massa desta nossa amada e sofrida terra.
Animar a esperança do povo pede que cultivemos uma espiritualidade do compromisso que nos coloca na tarefa de não perder nossas melhores energias preocupando-nos pelo futuro, e sim gastando-as no presente. Nossa missão não pode reduzir-se a procurar culpados, temos que fazer-nos responsáveis; “O que me entristece, e muito, é que se lance a culpa em quem não a tem; pois estas coisas não são dispostas pelos homens e sim por Deus, que sabe o que nos convém e as ordena para nosso bem. Não pense outra coisa senão que tudo é ordenado por Deus; e onde não há amor, coloca amor, e colherá amor...” (são João da Cruz, carta de 6 de julho de 1591, à M. Maria da Encarnação). Parece que esperar equivale a “colocar amor” onde não há.
Não esqueçamos que a utopia é tarefa do Espírito do Ressuscitado na trama concreta de nossa história que passa por Ele cada dia. Evangelizar sempre será fazer ver que “já” está ocorrendo o que “ainda não” alcançamos.
A forma mais segura de conquistar o céu é, de verdade, passar nossa vida fazendo o bem na terra como agora passa santa Teresinha do menino Jesus seu céu. Os santos tornam possível a utopia do Evangelho sendo discípulos missionários de Jesus que “passou fazendo o bem” e proclamando que o Reino de Deus já está presente.
6.-Discernimento: saber distinguir a falsa profecia.-
Na convivência fraterna, na busca da Verdade e no discernimento da passagem do Senhor por nossas vidas de discípulos missionários vão se dando os sinais da autenticidade do anuncio evangélico.
A comunidade é o lugar privilegiado para acolher com escuta humilde a Palavra Profética, e para ensaiar com determinação os gestos solidários de salvação. Comunidades que criam espaços onde de forma atrativa e fascinante se busque a Verdade que liberta. Comunidades onde de verdade a proposta teresiana de “hoje começamos e procurem ir começando sempre cada vez melhor” seja a perspectiva carismática do discernimento. Todo carisma é graça e, sobretudo, é tarefa.
Evangelizar será sempre ajudar a “ler os sinais dos tempos”, isto é, um exercício de discernimento evangélico: “Hoje chegou a salvação a esta casa” (Lucas 19, 9). O que este anúncio produzir nos ouvintes determinará a autenticidade da mensagem. A profecia autentica gera um processo de transformação, de mudança, de conversão. “Oh meu Jesus!, que grande amor tens aos filhos dos homens, já que o maior serviço que se pode oferecer a vós é deixar-Vos por seu amor e benefício”, dizia santa Teresa (CFr. Conclusão de “Testemunhar: uma Contemplação Comprometida”, Congresso sobre Aparecida para o Carmelo, Londrina, Brasil, 19-11-07).
Convém voltar à Palavra de Deus para discernir o autentico profetismo. Com o exercício espiritual da “lectio divina” poderíamos aproximar-nos dos textos do Deuteronômio 18, 15.18.22 e 34, 10.11 no contexto do Carmelo teresiano.
“O Senhor, teu Deus te suscitará um profeta como eu, o fará surgir dentre vós, dentre seus irmãos, e é a ele a quem escutarão (...). Porei minhas palavras em sua boca, e lhes dirá o que eu lhe mandar (...). Quando um profeta fala em Nome do Senhor e não ocorre nem se cumpre sua palavra, é algo que não diz o Senhor, esse profeta fala por arrogância, não lhe tenha medo”. “Porém já não surgiu em Israel outro profeta como Moisés, com quem o Senhor tratava face a face; nem semelhante a ele nos sinais e prodígios que o Senhor lhe enviou a realizar (...)”.
O autentico profeta fala com Deus como um amigo: “está muitas vezes a sós tratando de amizade com aquele que sabemos” o ama e nos ama.. Conhece o Rosto do Senhor e por isso mesmo o reconhece no rosto de seus irmãos, especialmente os mais fracos.
O Profeta verdadeiro é a boca de Deus que nos fala da “mesma Verdade” para aproximar-nos mais a Deus”, é mentira e engano o que nos afasta Dele, o que “não é agradável para mim” (cfr. Vida 40).
O Profeta sabe que anunciar a Boa Notícia implica a contradição, a perseguição, a cruz, a morte. Está disposto a dar a vida por aqueles a quem anuncia a bem-aventurança do Reino. Profetismo e “vida fácil” “não combinam”.
A força eficaz do profetismo radica na humildade. O autentico profeta sabe que “Deus é suma Verdade”, e caminha em sua presença, caminha em verdade. É humilde. Por isso o Senhor faz nele e com ele grandes coisas. Maria canta: “O Poderoso fez grandes coisas por mim... porque olhou a humildade de sua serva” (Lc 1, 49, 48).
O verdadeiro profeta tem um espírito feliz, cheio do Espírito e por isso canta e festeja ao Único que salva porque sua misericórdia é eterna, derrubando do trono os poderosos e elevando os humildes (cfr. Lc. 1, 46-55).
O canto de Maria é o texto de discernimento sobre a autenticidade do profetismo.
Evangelizar é proclamar profeticamente que a Palavra de Deus é eficaz, criadora, fazendo-o com a força do Espírito, que vem em ajuda de nossa fraqueza para convencer-nos da Verdade plena que é Jesus Cristo, Salvador e Senhor.
7.-Comunidade orante e profética
Segundo se depreende do capítulo 4 do segundo livro dos Reis, o profetismo, sua vocação e missão, dão-se no âmbito natural da comunidade. Eliseu sentava-se para comer junto com a comunidade de profetas. Talvez foi essa razão pela qual não se envenenaram quando comeram ervas estragadas, e pelo qual o pouco pão das primícias deu para mais de cem pessoas... A comunidade é o lugar onde se dá a salvação. “Dai-os às pessoas, que comam. Porque assim diz o Senhor: comerão e sobrará. Então o criado os serviu, comeram e sobrou, como tinha dito o Senhor”. A comunidade é o âmbito onde ressoa a voz profética com eficácia salvífica.
Aquilo que é verdadeiramente significativo radica não tanto nas palavras, como no sinal que as acompanha. Naquilo que o profeta faz está a força da mensagem. Toda profecia autentica cria comunidade. O testemunho da vida em comunidade faz que a Palavra de Deus ressoe como anúncio feliz, evangelho, de um futuro possível. Três traços definem a força evangelizadora de uma comunidade:
1.- Procurar uma forte experiência do Deus vivo. Uma comunidade na qual o Espírito do Senhor a inunde de liberdade e felicidade (cfr. 1 Samuel 19, 20), e que contagie esta experiência a tudo que se aproxime.
2.- Uma comunidade que partilha a marcha da busca, o pão da Palavra e a missão de levar a felicidade do encontro, como os que iam a Emaús, de fugitivos se tornaram discípulos missionários.
3.- Uma comunidade que vive a pobreza, que partilha com generosidade os dons recebidos da Mão Providente que sempre aberta enche de bens todos os viventes (cfr. 2 Reis 4, 38: “Coloca sobre o fogo a panela grande e cozinha um caldo para a comunidade”). Sempre que há partilha, sobra. A solidariedade faz o milagre da multiplicação dos recursos. O milagre se dá onde o gesto solidário inclui a todos. Se nossas comunidades querem ser evangelizadoras, orantes e proféticas devem voltar a partilhar a Mesa Comum, a Eucaristia, a Panela comunitária. Partir e repartir o pão ganhado com o suor do trabalho e partilhá-lo com coração simples.
O Vaticano II recordou que o valor de sinal da vida consagrada se reconhece no testemunho profético de Deus, a partir de Deus e em Deus como absoluto, e dos valores da vida cristã. “Em virtude dessa primazia não se pode antepor nada ao amor pessoal por Cristo e pelos pobres nos quais Ele vive” (cfr. Perfectae Caritatis e Vita consecrata, n. 84).
A felicidade de uma experiência inefável, mística, “a musica calada, a solidão sonora, a ceia que recreia e enamora”, deve transparecer nas comunidades que irradiam animo, alento, espírito, Espírito... que convoquem, convidem sem palavras, a unir-se ao banquete que não cessa de preparar para todos seus filhos, especialmente para os que se recuperaram e ele vestiu de roupa de festa. (cfr. Lucas 22, 30, Mateus 8, 11; 26, 29).
Se a comunidade é profética não pode senão contagiar a felicidade do foi vivido na escuta amorosa, no silencio orante, na denuncia corajosa, humilde, do supérfluo que idolatra o consumismo. A partir do SÓ DEUS BASTA os irmãos aprendem o valor do essencial e relativizam o supérfluo, o banal, o acumulativo e o excludente.
“Senhor, não me dês riqueza, nem pobreza. Concede-me minha porção de pão...”. Dai-nos hoje o pão de cada dia” e dai-nos a graça de partilhá-lo para nos fazermos Irmãos e não nos deixes sucumbir na tentação de acumulá-lo para amanhã... não aconteça que apodreça e os excluídos continuem morrendo de fome de pão, de verdade e de amor.
Uma comunidade orante e profética é aquela que de verdade celebra a Eucaristia, Pão Único Partido e Partilhado: “Aquela eterna fonte está escondida/ neste vivo pão para dar-nos vida, mesmo de noite.” “Aquela viva fonte que desejo/ nesse pão de vida eu a vejo, mesmo de noite.” (São João da Cruz, Poemas).
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