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domingo, 6 de setembro de 2009


TEMA IV

MÍSTICA E PROFECIA NA PERSPECTIVA DE SANTA TERESA E DE SÃO JÕAO DA CRUZ

1

A VOCAÇÃO: UMA EXPERIÊNCIA DO DEUS VIVO

Do ponto de vista cristão, a vocação é um chamado de Deus que, de uma ou outra forma está unida a uma experiência do Deus vivo, Senhor da história e da nossa própria história. Deus chama através das circunstâncias e dos acontecimentos da vida de cada um. Isto aconteceu também com Teresa de Jesus e João da Cruz.

  1. A vocação: a experiência do Deus vivo de Teresa de Jesus

É interessante constatar como Teresa de Jesus em juventude era “inimicíssima” de ser monja (Vida 2,8). Foi aos 16 anos, quando seu pai a enviou ao colégio de Santa Maria das Graças, que começou a realizar-se nela uma mudança na maneira de pensar. Deus lhe falou através de uma monja exemplar, Maria de Briceño, o que conseguiu diminuir “um pouco a grande aversão que tinha por ser monja...” (Vida, 3,1). Outra mediação que a tornou aberta à escuta do chamado de Deus foi a leitura de livros espirituais, especialmente as epístolas de S. Jerônimo. Estas a animaram de tal maneira que se decidiu a dizer a seu pai e fugir de casa para entrar no mosteiro da Encarnação (Vida, 4,1). Deus lhe fez compreender, como ela mesma diz, “que tudo era nada” (Vida, 3,4). A estes motivos, uniu-se o temor de perder a Deus para sempre. Um influxo maior sobre ela foi o nascente amor a Cristo, se bem, como ela afirma, ainda lhe permanecia um temor servil sobre o amor (Vida, 3,6). Mas pouco a pouco, descobre que, no fundo de sua vocação está a proximidade e a ação do Deus vivo: “Oh! Valha-me Deus, por quais meios andava Sua Majestade dispondo-me para o estado o qual ele quis servir-se de mim, que, sem querer eu, forçou-me a que me forçasse” (Vida, 3,4). “Dar-me o estado de monja foi grandíssima mercê de Deus” (Caminho 8,2).

  1. A vocação: uma experiência do Deus vivo em São João da Cruz

São João da Cruz não escreveu uma autobiografia na qual nos descreva a origem de sua vocação ao Carmelo. Não obstante, a partir de sua doutrina sobre a experiência mística, podemos de certo modo conhecer algo do que ele experimentou e que o levou à vida religiosa. Todos seus ensinamentos convergem para a experiência de Deus e tem nela uma trama unificadora e profunda. E nela não somente Cristo, Verbo encarnado é fundamental, mas também a Trindade. A inabitação trinitária não é algo estático. É uma realidade dinâmica, destinada a desenvolver-se no conhecimento mesmo da graça. O Santo menciona três presenças: uma essencial dando vida e ser a todas as criaturas; outra, por graça “pela qual Deus mora com agrado e satisfeito com ela. Finalmente, existe um terceiro tipo de presença de Deus que traz consigo experiências que, mesmo encobertas, recriam, deleitam e alegram (cf. Cântico 11,3). Quando se tem estas experiências do Deus trino toma-se consciência de uma força que não é da pessoa. Esta percebe a Deus em seu interior, no mais íntimo de seu ser e sente a necessidade de abrir-se aos seus caminhos, de buscar cumprir sua vontade no cumprimento da missão que Deus lhe encomenda, fruto de seu chamado. A resposta a esta vocação da início a um itinerário de comunhão com o Deus vivo que termina na transformação Nele.

NOVA CONSCIÊNCIA, NASCIDA DA CERTEZA DE “DEUS CONOSCO” – LIBERDADEE INTERIOR

  1. A liberdade interior em Santa Teresa

A certeza da presença de Deus transforma a vida de oração de Santa Teresa, em caminho de amizade libertadora: Para ela a oração é uma experiência libertadora por vários motivos. Antes de tudo, porque a oração é uma relação de amizade com Deus que vai crescendo e libertando (Vida, 8,5. Ao abrir-se à amizade com Deus, a pessoa humana vai superando a desintegração que a escraviza. A oração é integradora da pessoa porque a abre ao Outro e a faz crescer no amor (Caminho 10, 1-2, 5-8) Deus é integrador da pessoa. Conforme avança para seu centro, se encontrará consigo mesma e com Deus: (Moradas VII 1,5-6) quanto mais cresce seu amor a Deus mais vai sendo libertada por Ele, para “andar na verdade diante da mesma Verdade (Vida 40,3). Sua oração está centrada em Cristo, verdadeiro amigo que livra de todas as escravidões e leva à aceitação de si mesmo: (Vida 37,6) Cristo é o mestre da oração: (Caminho 24,5). Cristo acompanha no caminho de conquista da liberdade. A palavra de Deus liberta. (Jo 8, 31-32; Heb 4, 12).

Os diversos graus de oração são etapas diferentes no caminho para a autêntica liberdade. A pessoa tem que esforçar-se para tomar consciência da presença do Senhor; uma presença libertadora (Caminho Valladolid 25,3) Por meio dela irá alcançando as virtudes que libertam do egoísmo e orientam ao exercício do amor que liberta (Caminho 24,3) Mais adiante, a oração de recolhimento permitirá à pessoa submergir-se em Deus e dar-se conta do amor do Pai que a levará a superar tudo o que a escraviza (Caminho Valladolid 28,2). A oração mística realiza uma libertação mais profunda porque vai levando a pessoa ao desposório e matrimônio espiritual. Deus a leva a centrar-se cada vez mais Nele (Moradas IV 3,2). Deixa as coisas que a satisfaziam e atavam. A oração de quietude faz crescer na liberdade e na paz interior (Vida 14,9). Finalmente, na oração de união, chega-se à renuncia da própria vontade para unir-se com a vontade de Deus (Moradas V 3,5). Já não vive ela, mas Deus nela (Vida 18,4). No desposório espiritual a pessoa experimenta a liberdade de todas as escravidões (Vida 20,23). E no matrimônio espiritual a pessoa se une totalmente a Cristo (Moradas VII 2,5). A pessoa livre, transformada m Cristo, encontra-se agora em seu centro, onde sempre Deus a acompanha (Moradas VII, 2,4).

  1. A liberdade interior em São João da Cruz

Para São João da Cruz, a fonte da liberdade é a união com Deus. Por isso, tudo o que conduz à união é Caminho de liberdade. A vocação cristã do homem novo é uma vocação à liberdade. Todas as orientações que dá S. João da Cruz para o Caminho espiritual, estão orientadas totalmente à conquista desta liberdade, superando toda servidão, própria de um coração escravo, e não de filho (Subida I, 4, 6). A liberdade que proclama o Santo é a liberdade interior. Esta tem seu lugar na comunhão com Deus para a qual a pessoa humana foi criada. Nela funda são João da Cruz a liberdade de espírito, fazendo-a coincidir com a união divina. No cume do Monte de perfeição, aonde se chega à comunhão com o Deus presente em nós, “já não existe Caminho. Pois para o justo não há lei”. A conquista desta liberdade devolve à pessoa humana o domínio e posse de todos os bens dos quais se esvaziara. O caminho da liberdade é o caminho do nada que conduz ao tudo. “Para vir a possuir o tudo, não queiras possuir algo em nada” (Subida I, 13,11).

JUSTIÇA E PAZ: LUTAR PELA RECONSTRUÇÃO DE UMA CONVIVÊNCIA SOCIAL MAIS JUSTA E MAIS FRATERNA

Certamente, Teresa de Jesus e João da Cruz não se ocuparam diretamente da justiça e da paz, mas falando do amor ao próximo a partir do amor a Deus e do que Ele nos tem, puseram as bases para uma fraternidade que, em nosso tempo tem uma forte dimensão social.

  1. Em Santa Teresa de Jesus

Teresa de Jesus, libertada e arraigada em Cristo, orientou-se para umas opções que eram uma crítica aos postulados da sociedade de seu tempo, baseados na divisão por motivos de sangue, de ambições de conquista e busca da riqueza e metida em guerras. Ela decide fundar pequenas comunidades fraternas, donde todas “hão de se amar, todas hão de se querer, todas hão de se ajudar” (Caminho Valladolid, 4,7). Uma crítica à sociedade foi a opção pela pobreza, a fundação dum convento com um estilo de vida que revolucionava valores e postulados comuns. Teresa levanta sua voz de mulher e verte em seus livros palavras audazes de crítica (Caminho 2,5-6; Vida 35, 3-6). Da identificação com a pobreza e os pobres, Teresa pronuncia, faz denúncias cristãs com força profética e de atualidade eclesial (Vida 21,2) Tomou consciência da realidade social de sua época e de participação nos acontecimentos, dentro dos limites da sociedade de seu tempo. Tem uma visão universal do mundo onde vive e segue com extrema precisão os acontecimentos eclesiais e sociais de sua época: “muitas vezes não sei o que dizer, senão que somos piores que animais, pois não entendemos a grande dignidade de nossa alma” (Carta a Lorenzo de Cepeda 17.01.1570). Os tempos não lhe permitiram outros avanços e compromissos, mas Teresa se prodigalizou até onde lhe permitiram suas forças e as circunstâncias do tempo. Traduziu o humanismo cristão em sensibilidade social de virtudes evangélicas e gestos humanitários.

  1. Em São João da Cruz

A doutrina de S. João da Cruz apresenta um Deus que se manifesta e nos questiona na realidade, e na criação e nas pessoas. O caminho teologal é o único que garante a autenticidade de nossas imagens ou idéias de Deus. É um caminho libertador porque purifica do egoísmo pela ação do Espírito (cf. Subida II, cc. 4-10; Noite I, c. 11). Deste modo supera-se uma idéia de Deus como o que mantém o status quo e garante a ordem estabelecida, que tem sido fonte de opressões e injustiças inumeráveis ao longo de muitos séculos. Outra das principais causas que geram estruturas opostas ao plano de Deus é o apego aos bens temporais, especialmente a riqueza material. Isto impede o estabelecimento da justiça porque o dinheiro se transforma em um Deus(cf. Subida III, 19,9). São João da Cruz orienta a tirar o gozo e o apego às coisas temporais. Ao conseguir isto, o ser humano abre-se automaticamente a seus irmãos e às exigências da justiça e do amor. Isto possibilita partilhar os bens que Deus pôs para o uso de todos (cf. Subida III, 20,2). Ao mesmo tempo se adquire a liberdade e o desaproprio no uso dos bens (cf. ib. 20,3).

SOLIDARIEDADEE: REFAZER AS RELAÇÕES HUMANAS

  1. Em Santa Teresa de Jesus

Santa Teresa teve muita facilidade para as relações humanas. No cultivo da relação fraterna brilham com luz própria sua honradez e sinceridade: “não era inclinada a murmurar nem a dizer mal de ninguém, nem me parece podia querer mal a alguém” (Vida 32,7). Não é de se estranhar que tivesse tantas amigas (Vida 36,8). Ela experimentou sempre a necessidade de relações profundas, não só com confessores ou conselheiros espirituais, mas com todas as pessoas, especialmente com suas irmãs de comunidade. Ela cria além disso, um círculo de amizades no qual estão também seculares, que se reúnem para ajudar-se na oração. Teve a capacidade de refazer as relações humanas em sua comunidade. Uma chave importante na atitude solidária de Santa Teresa, é o estilo do humanismo e suavidade: “grande perfeição com muita suavidade” (Vida 36,30). Varias das religiosas que entraram para tomar parte do Carmelo o fizeram pela fascinação que ela exercia, através da suavidade e discrição com quem se relacionava e por seu testemunho de vida e capacidade de comunicação. Teresa de Jesus é uma boa testemunha da amizade em sua dupla manifestação: amizade puramente humana e amizade espiritual. Esta experiência a levou a criar um nó de relações entre familiares, entre parentes próximos e distantes, entre companheiros, entre duas pessoas ou em grupo. Ensina que o que deteriora a relação humana é qualquer tipo de interesse. Por isso, existem relações humanas falsas. Se não houvesse interesse, nem egoísmo, as relações humanas seriam autênticas e profundas: “Com que amizade se tratariam todos, se faltasse interesse de honra ou de dinheiros. Tenho para mim, que se remediaria tudo” (Vida, 20,27).

  1. Em São João da Cruz

Para São João da Cruz, o amor a Deus e ao próximo estão intimamente unidos. Por isso preocupa-se em educar ao cristão num amor integral que unifique o ser e o agir de tal modo que “tudo se mova por amor e no amor” (Cântico 28,8). O amor a Deus faz crescer “a humildade para consigo mesmo, e a caridade geral para com os próximos… e quando desta sorte se ama, é mui conforme Deus e ainda com muita liberdade… porque então, quanto mais cresce este amor, tanto mais cresce o de Deus, e quanto mais o de Deus, tanto mais este do próximo” (Subida III, 23,1). São João da Cruz aponta com finura teologal que como semente para a solidariedade e para conservar e refazer as relações humanas se requer o amor: “onde não há amor, ponha amor e terás amor” (Carta 24). E, plenamente coerente com o evangelho (cf. Mt 25,31-36), apresenta a dimensão escatológica do amor cristão que nos abre a Deus e nos compromete com o irmão: “À tarde te examinarão no amor” (Ditos, 59). Trata-se de uma escatologia que já começa na história, pois seu sentido é: “ao terminar cada jornada, ao final da vida, depois de cada empresa ou sofrimento, todas tuas ações e omissões serão valorizadas pela qualidade do teu amor nelas” (Federico Ruiz). Nesta doutrina Sãojoanista encontramos o fundamento para buscar sempre refazer as relações humanas a todos os níveis e para crescer numa solidariedade tanto na dimensão pessoal como na social. Com razão o Santo foi chamado Doutor do amor. Sua insistência em que tudo se ame dentro do horizonte de Deus e Nele não impede que o amor ao próximo esteja ligado ao de Deus (Cf. Noite I, 3,2).

UTOPIA DO REINO: ANIMAR A ESPERANÇA DO POVO

  1. Em Santa Teresa de Jesus

A esperança ocupa um lugar central em Santa Teresa porque nela temos a tensão dinâmica para o encontro com Cristo, no qual descobre a plenitude de seu ser. Nela mesma acontece a tensão da esperança. Por uma parte, deseja morrer para encontrar-se com o Senhor; por outra deseja seguir vivendo para servir a seus irmãos e Igreja. Esta tensão, contudo, não a tira do presente temporal, nem do drama da Igreja européia de seu tempo. Pelo contrário, ela insere-se nesta realidade e compromete-se com a mesma, segundo as perspectivas de seu tempo. Busca dar a conhecer a Cristo e seu Reino. Como ela disse, falando das pessoas que chegaram ao cume, no matrimônio espiritual: “não desejam ainda [a glória do céu]; sua glória a colocam em poder ajudar em alguma coisa ao Crucificado, especialmente quando veem que é tão ofendido, e quão poucos existem que de verdade olhem por sua honra, desapegados do resto” (Moradas VII, 3,6). A mesma coisa diz ela na Relação 6,1: “anda tão esquecida de seu próprio proveito, que lhe parece que perdeu em parte o ser, segundo anda esquecida de si. Nisto tudo vai a honra de Deus e como fazer sua vontade e seja ele glorificado”. Em Teresa de Jesus, a esperança cristã é fonte de missão e princípio inspirador e renovador das realidades terrenas. Se da conta também da necessidade de quem tem esperança firme apóiem aos fracos e os animem: “nestes tempos são necessários amigos fortes de Deus para sustentar aos fracos” (Vida 15,5). Também os que pensam que são fiéis podem deixar-se levar pelas circunstâncias e desanimar, por isso “é preciso apoiar-se mutuamente os que lhe servem [a Deus]… é necessário buscar companhia para defender-se, até que já estejam mais fortes e não lhes pesa o padecer, caso contrário, ver-se-ão em apuros”. (Vida 7,22).

  1. Em São João da Cruz

Para São João da Cruz a esperança tem lugar entre a fé e a caridade. A esperança convida sempre a um futuro por alcançar. O santo fala da esperança do ponto de vista da mística. Para ele, esta virtude representa um novo aspecto do encontro total com Deus e do seguimento a Cristo na pobreza e na despojamento. Isto impede de alimentar esperanças vãs: as de um sucesso fácil; a do prestígio e reconhecimento, que ao não conseguir, traz como conseqüência o aparecimento do pessimismo e do desalento. A noite purificadora arranca toda esperança ilusória por ser “encobridora das esperanças da luz do dia” (Noite II, 9,8). Ao perder-se todo apoio humano, a pessoa fica vazia de tudo e aberta a Deus e a seu projeto, que é o Reino. Sem descuidar nem desprezar os valores terrestres, sem deixar de empenhar-se em tornar presente o Reino no hoje e na história, a pessoa purificada se coloca do ponto de vista de Deus para contemplar todos os acontecimentos e enfrentá-los com um olhar diferente. Não põe seu coração em nada nem espera nada do que existe no mundo ou no que haverá nele, mas longe de separá-lo da realidade, submerge nela a partir da comunhão com Cristo que se agrada tanto nele que, por viver na esperança, “tanto alcança dele quanto espera” (Noite II, 21,6.8). “Desta veste [libré] de esperança vai disfarçada a alma por esta escura e secreta noite que dissemos, pois vai tão vazia de toda posse e arrimo, que não tem olhos para outra coisa cosa, nem o cuidado, se não é em Deus, pondo no pó sua boca, se por ventura houvesse esperança” (Noite II 21,9.).

DISCERNIMENTO: SABER DISTINGUIR A FALSA PROFECIA

  1. Em Santa Teresa de Jesus

Santa Teresa, em sua busca da verdade e pela fadiga em discernir a autenticidade de suas graças místicas e de sua vida, nos dá algumas chaves para distinguir a verdadeira da falsa profecia no mundo e na Igreja de nosso tempo. Ela busca quem lhe aporte luz e lhe garanta a verdade de suas experiências. Para a Santa tudo deve fundar-se na verdade: “Espírito que no tenha começado em verdade, mais o quereria sem oração” (Vida 13,16). “Em definitivo, Teresa é, estruturalmente, uma buscadora da verdade, necessitada de “andar na verdade”, refratária à mentira e a todo quanto cheire a mentira. Repete o tema evangélico: a mentira é do diabo, “ele é todo mentira” (Vida 15,10), “é amigo de mentiras, e a mesma mentira” (Vida 25,21). Pelo contrário, Deus “é a verdade em si” (Vida 40,1; Caminho 19,15)” (Tomás Álvarez). Para conhecer a verdade de si mesmo requere-se a luz de Deus. Outro tanto para discernir os valores da vida. Quando Teresa sofre por ter que abandonar os livros que lhe davam luz, para obedecer à proibição feita pela Inquisição de seu tempo, Cristo lhe oferece ser para ela “livro vivo”: “Sua Majestade tem sido o livro verdadeiro onde tenho visto as verdades. Bendito seja tal livro, que deixa impresso o que se deve ler e fazer, de uma forma que no se pode esquecer!” (Vida 26,5). É Cristo, modelo e mestre, quem ajuda a saber distinguir a verdadeira e a falsa profecia quando a pessoa parte do próprio conhecimento: “Uma vez eu estava considerando por que razão era nosso Senhor tão amigo desta virtude da humildade, e colocou-me diante disso: que é porque Deus é a suma verdade, e a humildade é andar na verdade, que é mui certo não termos coisa boa por nós mesmos… e quem não entende isso está enganado. Quem mais o entende agrada mais à Suma Verdade, porque anda nela” (Moradas VI, 10,7).

  1. Em São João da Cruz

O magistério de São João da Cruz sobre o discernimento é especialmente lúcido. Oferece pautas e critérios. Orienta nos caminhos ásperos do itinerário rumo a Deus que abarcam todas as dimensões da vida cristã: a pessoal e a eclesial; as relações com Deus e com as pessoas e coisas; a oração e a ação. O que o Santo diz sobre o discernimento pessoal vale também para o discernimento eclesial. Um primeiro critério, base para os demais, é o do respeito à nossa condição humana, que vai evoluindo lentamente e por etapas; e isto vale para o social e comunitário. A espera por resultados imediatos e a impaciência por alcançar metas propostas não respondem às leis do crescimento humano: “muitos quereriam ver-se no termo, sem passar pelo caminho e meio para ele” (Cântico 35,9) Isto é preciso ter presente para distinguir a verdadeira da falsa profecia. Outro critério é o de confrontar a própria vida com a vida de Jesus para discernir os sinais dos tempos na própria vida, e na da Igreja e na sociedade. Finalmente, critério de discernimento é, para São João da Cruz, as atitudes teologais: a fé mediante a qual Cristo ilumina a pessoa para comunicar-se com ela (cf. Subida II, 29,6), a esperança, que ao produzir vazio e obscuridade na memória leva a julgar com lucidez e liberdade as diversas moções (cf. Subida II, 6,1.3), e o amor que, por sua vez produz vazio na vontade e permite que ao crescer o amor de Deus cresça o amor ao próximo (cf. Subida II, 6,4; Subida III, 23,1).

COMUNIDADE ORANTE E PROFÉTICA

  1. Em Santa Teresa de Jesus

Um ponto central na concepção da vida religiosa em Santa Teresa é a da fraternidade comunitária profética. Por isso, tendo feito a experiência de viver num mosteiro numeroso, onde isto era impossível, decide – o que foi novidade para sua época- que suas comunidades fossem pequenas, orantes e a serviço da Igreja (Vida 36,19; Caminho Valladolid, 4,10). A base desta vida é o amor fraterno. Nesta forma de vida comunitária tudo tem que ser familiar e todas tem que participar nos trabalhos da casa (Caminho, c.1): “Nesta casa… todas hão de ser amigas, todas hão de se amar, todas hão de se querer, todas hão de se ajudar (Caminho 4,7). Teresa de Jesus insistiu que a comunidade vivesse na amizade com Cristo através da oração. As irmãs hão de viver a contemplação tanto na oração como na vida (cf. Vida 8,5). Por exigência do carisma teresiano, a oração, a consagração e todas as energias da carmelita hão de estar orientadas para a salvação das almas (cf. Caminho, 1,2.5; 3,10), quer dizer, testemunhar e proclamar o Reino de Deus. Ela apresentou a ascese em função de uma vida teologal mais intensa ao serviço da Igreja (cf. Caminho, 10,5; Moradas VII 4,5). Teresa de Jesus descreve sua comunidade como um “castelinho… de bons cristãos” (Caminho 3,2). A comunidade não está reunida somente para sua própria santificação, mas para viver pela Igreja e a humanidade, para entrar no combate por meio da intercessão. “Este é o vosso chamado… Está ardendo o mundo” (Caminho 1,5). Por isso “todas ocupadas na oração pelos que são os defensores da Igreja e pregadores e letrados… ajudássemos no que pudéssemos” (Caminho, 1,2).

  1. Em São João da Cruz

Aqueles que conheceram e trataram com São João da Cruz coincidem em afirmar sua preocupação pela fraternidade orante e apostólica das comunidades carmelitanas. A doutrina de seus escritos sublinha a união do amor a Deus com amor ao próximo (Subida III 23,1), propõe a centralidade da oração que conduz pouco a pouco ao amor puro que faz mais bem à Igreja que todas as obras (Cântico 29,2). A comunhão na vida fraterna exige que se tenha igualdade de amor para com todos e que na vida comunitária todos sejam tratados com compreensão e benignidade (cf. Cautelas primeira e terceira contra o mundo). Seus ensinamentos sobre a oração como expressão de fé, esperança e amor orientam as fraternidades carmelitanas a viver em comunhão com Deus os outros e, também a trabalhar pelo Reino testemunhando e anunciando o projeto de Deus. O P. Eliseu dos Mártires, que conheceu e tratou com o Santo, afirmou que este “dizia… que o amor do bem do próximo nasce da vida espiritual e contemplativa, e que como esta é parte da Regra, é necessário nos encarregar e ajudar-nos neste bem e zelo pelo aproveitamento de nossos próximos; porque quis a Regra fazer-nos observantes de vida mista e composta por incluir em si e abraçar as duas, ativa e contemplativa. A qual escolheu o Senhor para si por ser mais perfeita” (Ditames do espírito, ditame 9). O santo ensinou a suas comunidades a por os olhos em Cristo (cf. Subida II 22,5), a partir de uma atitude contemplativa para viver a comunhão e a partir dela, entregar-se às tarefas apostólicas assumindo os conflitos e atravessando as noites da perseguição e incompreensão.


II CONGRESSO CARMELITANO – OC-OCD

MÍSTICA E PROFECIA NO CARMELO

Contribuição da Congregação das Irmãs Carmelitas da Divina Providência

para elaboração do subsídio preparatório:

1. A Experiência do Deus vivo

A Congregação das Irmãs Carmelitas da Divina Providência nasceu da experiência de Deus de sua fundadora, Rita de Cássia Aguiar, Madre Maria das Neves. Somente uma forte experiência do Deus amor poderá ter impelido a jovem viúva, sem filhos, a dedicar-se aos pobres e infelizes, na Santa Casa de Saquarema, uma minúscula cidade de pescadores no litoral do Estado do Rio de Janeiro. A discrição e o silêncio são marcas da vida de Madre Maria das Neves. Tendo morrido tuberculosa, doença incurável e muito temida na época, seus pertences foram queimados, impedindo o acesso aos documentos e escritos sobre sua vida e experiência. Tudo isso faz com que nós, Carmelitas da Divina Providência, continuadoras de seu carisma, vejamos em Madre Maria das Neves traços de semelhança com o Profeta Elias que aparece e desaparece na Bíblia, sem muitos dados de sua biografia. O que temos de nossa fundadora é a Congregação que ela iniciou com traços bem definidos: Ingresso na Ordem Terceira do Carmo com hábito marrom e véu preto recebido na Igreja da Lapa, no dia 02 de dezembro de 1899, no Rio de Janeiro. Orientação de vida pela Regra do Carmo adaptada para os terciários e por outros livros de espiritualidade do Carmelo. Os traços de sua ação junto aos pobres, que se tornaram características das Carmelitas da Divina Providência, foram simplicidade, acolhimento, ausência de estruturas rígidas e, sobretudo, o olhar contemplativo que a fazia perceber o apelo de Deus na realidade. Por isso que, tendo dito que desejava “consagrar o resto de sua vida em servir a Deus, aos pobres e enfermos nos Hospitais das Casas de Caridade”. Com liberdade, soube alargar sua ação, atendendo o apelo dos pobres em seus casebres e na paróquia através da catequese e liturgia. A ação profética dessa mulher corajosa, naquele final do século 19, indo a lugares onde ninguém queria ir, dedicando-se a minorar o sofrimento daqueles que não tinham a quem recorrer, nos remete às recomendações da Igreja da América Latina em Aparecida:

“Nossa fé proclama que “Jesus Cristo é o rosto humano de Deus e o rosto divino do homem”. Por isso, “a opção preferencial pelos pobres está implícita na fé cristológica naquele Deus que fez pobre por nós, para nos enriquecer com sua pobreza”. Essa opção nasce de nossa fé em Jesus Cristo, o Deus feito homem, que se fez nosso irmão (cf.Hb 2, 11-12). Opção, no entanto, não exclusiva, nem excludente. Sendo que essa opção está implícita na fé cristológica, os cristãos, como discípulos e missionários, são chamados a contemplar, nos rostos sofredores de seus irmãos, o rosto de Cristo que nos chama a servi-lo: “Os rostos sofredores dos pobres são rostos sofredores de Cristo”. (Doc.Aparecida 392-393)

2. A nova consciência

No requerimento que fez ao Bispo de Petrópolis, em novembro de 1899, Rita de Cássia Aguiar diz que deseja dedicar o resto de sua vida em servir a Deus, aos pobres e enfermos nos hospitais das casas de caridade. Pede para usar um hábito marrom e adotar o nome de Maria das Neves, a fim de poder realizar seu intento na Casa de Caridade de Nossa Senhora de Nazaré, de Saquarema-RJ. Seu projeto é muito específico e bem definido. Ela já estava vivendo e prestando serviços nesta Casa de Caridade e deve ter experimentado ali o chamado de Deus para uma entrega de sua vida aos mais necessitados.

A história mostra como nossa fundadora, ao entregar-se a Deus na realização do seu apelo, foi adquirindo uma nova consciência do que significa servi-lo na pessoa dos pobres. Assim é que, ao fechar-se a Santa Casa de Saquarema, por falta de recursos, ela parte para outro campo de trabalho. Em janeiro de 1902 ela vai para Campos e, superando muitas dificuldades, assume a direção do Asilo da Lapa, instituição de assistência a meninas órfãs. Em pouco tempo, já formando pequeno grupo, assume também o Asilo da Lapa de assistência a idosos. Assim ela passa do serviço aos enfermos, para a educação de crianças e o cuidado com idosos.

O amor de Deus, acolhido em sua experiência profunda, vai dando a Madre Maria das Neves uma nova percepção e descoberta dos destinatários desse amor. Ela não mede esforços para levar a bondade, o cuidado, o rosto amoroso do Pai Celestial aos que mais sofrem e se sentem abandonados.

O pequeno grupo, que ela deixa ao morrer em 1906, segue seus passos no serviço a Deus, aos pobres e enfermos. Com os olhos iluminados pela fé, descobrem os caminhos que Deus lhes indica. Em 1912 partindo para a cidade mineira de Cataguases, iniciam uma nova forma de serviço: a educação de jovens. E a recém fundada Congregação das Irmãs Carmelitas da Divina Providência vai delineando os espaços para a vivência do Carisma deixado pela sua Fundadora.

3. Justiça e Paz

A experiência de Deus em Jesus Cristo nos coloca diante do Pai, que nos chama à identidade de filhos e filhas, acolhidos e abraçados em seu infinito amor. Essa experiência, vivida na profundidade do ser humano provoca uma fundamental mudança nas relações interpessoais. Torna-se impossível ficar indiferente ao sofrimento de tantos irmãos e irmãs igualmente amados pelo mesmo Pai. “Eu ouvi o clamor do meu povo e envio você até ele”.

Ainda que não tenhamos anotações de Madre Maria das Neves sobre suas motivações, podemos afirmar que sua experiência mística a levou a acolher todas as pessoas como irmãs. Assim noticia o Monitor Campista, jornal de Campos:

“MONITOR CAMPISTA” 1905 – 20 DE JULHO – 1ª página:

“JANTAR DOS POBRES”

Realizou-se ontem no refeitório do Azylo N. S. do Carmo, o jantar oferecido aos pobres pela Conferência Vicentina S. Francisco em honra ao seu padroeiro. Tomaram parte no jantar os pobres do Asylo e os que se apresentaram com os cartões da Gazeta do Povo e Monitor Campista.

Na primeira mesa sentaram-se 30 pobres seguindo-se outra mesa na qual tomaram parte mais 11pobres. Os pobres do Azylo que não puderam sair dos seus leitos, foram servidos nos próprios dormitórios. Os pobres foram servidos por Monsenhor Cruz Paula, Monsenhor Capellini, Major Guilherme, Irmã Maria das Neves, Noviça Maria do Carmo, Irmã Bernadete e senhoras e senhoritas.

MONITOR CAMPISTA - 1905 - 20 de julho – Quinta feira – Pág. 2

Asilo N. S. do Carmo – Relatório apresentado pelo Sr. Dr. Luiz Antonino de Souza Neves, digno presidente da Associação Mantenedora do Azylo do Carmo,em sessão de 16 do corrente.

“... A administração do Azylo está confiada às Irmãs Carmelitas, sob a direção da Veneranda Irmã Maria das Neves. Quem conhece o valor precioso das Ordens religiosas na direção das casas de caridade há de logo contar com a maior ordem econômica, respeito e aceio no nosso Asilo e não será iludido nessa sua previsão, se visitá-lo. Nunca poderei encarecer bastante os sacrifícios que fazem estas boas Irmãs para nos auxiliarem nessa obra de religião e caridade que tomamos sobre os nossos ombros.

Quem tem o hábito de freqüentar o nosso Asylo não se pode furtar a um sentimento de veneração por essas senhoras que deram de mão a todos os prazeres do mundo para exclusivamente consagrarem-se a essa missão sublime de enxugar as lágrimas dos que sofrem. O espírito mais indiferente há de dobrar-se respeitosamente diante desse hábito negro que, pela noite a dentro quando todos se entregam ao descanso, esquece-se das suas fadigas para ir de leito em leito, aconchegando aqui a coberta, endireitando ali o travesseiro, tendo para este uma palavra de conforto e para todos um sorriso de bondade, que é o melhor bálsamo para as dores do infortúnio”.

4. Solidariedade

A mesma experiência de Deus como Pai amoroso está na base de uma atitude de solidariedade.

Nossa Congregação, seguindo as pegadas de nossa Fundadora, ao longo deste centenário de existência, sempre esteve engajada numa luta solidária á causa dos que sofrem, sem distinção de pessoas. Procura minimizar seu sofrimento, suprir suas necessidades e suas carências, ajudando-as a reconquistarem, na sociedade humana, seu lugar de pessoa criada á imagem e semelhança de Deus.

Luta ao lado dos necessitados, preferencialmente ao lado dos pobres e enfermos atingidos hoje, por tantos e variados males instalados no nosso meio desta sociedade pós - moderna.

Ouvindo o seu clamor, na contemplação, busca ser, para os que sofrem, a Providência amorosa de Deus Pai, colocando-se inteira e generosamente, a serviço do outro para que ele sinta que o amor providente do Pai o alcançou.

Como Maria, procuramos na sua atitude solidária nas Bodas de Caná, apresentar a Cristo a necessidade de seus filhos, ensinando-lhes a ouvi-LO e a vê-LO no cotidiano através de seus sinais. E assim, a Providência Divina vai sendo percebida no meio de nós, por meio daqueles que se dispõe a ajudar o outro em nome de Deus providente.

Cristo é sempre e em todas as ocasiões o Mestre! É Ele quem mais uma vez nos é exemplo de solidariedade!

Deste modo, identificando-nos e assimilando em nossas vidas o olhar contemplativo de nossa Fundadora, procuramos ver a realidade em nosso entorno e sempre atentas ao apelo do Pai Providente e, na solidariedade, vamos realizando nossa missão de Carmelitas da Divina Providência.

5. Animar a Esperança do povo

A esperança faz parte da constituição humana, ela emerge como uma necessidade de cada dia ver um horizonte novo, é como uma força propulsora que nos conduz para realização de nossas utopias, gerando a alegria para enxergar o cotidiano, as tarefas rotineiras, como a realização e a descoberta da novidade!

Fé e esperança são companheiras, é preciso acreditar num Deus que morre na cruz, para esperar pelo Deus da ressurreição. A fé cristã é inconcebível sem uma esperança que nos leva de modo radical ao amanhecer Pascal!

Deus semeia a esperança na sua criação. Quem ainda não viu nascer um vegetal, um verde e até uma flor numa fenda de uma calçada?

As impossibilidades recuam quando a esperança anima o nosso cansaço, a nossa debilidade.

Nossa Congregação, sem pregar o providencialismo, anima os irmãos e irmãs a caminharem com esperança neste mundo globalizado, especialmente no nosso continente, invadido e subjugado pelo neoliberalismo, pregando o consumismo, fabricando ricos e pobres, marginalizando pessoas. Mesmo assim, continuamos experimentando e evangelizando com o Evangelho de Cristo narrado por Mateus 6, 25 e seguintes: “ para o Pai, valemos mais que as aves do céu que Ele alimenta, e os lírios do campo que Ele veste com toda pompa e esplendor”.

Cristo veio “para que todos tenham vida e vida em abundância”. Não pode haver mesas fartas e até sobrando e mesas vazias.Deus criou o mundo e tudo que nele existe para todos homens e mulheres para o bem estar e felicidade de todos.

O Pai é comum, somos irmãos, logo a criação é a herança de todos os filhos. Este é um ponto importante, fundamento de nossa esperança: A humanidade é a Família de Deus, Ele nos criou à sua imagem e semelhança. Ele fez e fará novas todas as coisas, quantas vezes forem necessárias para o bem comum de sua família e de toda sua criação.

Há fases da nossa vida nas quais parece que Cristo dorme na barca quando a tempestade assusta os discípulos e as discípulas. Ele vai nos censurar: onde estão a fé e esperança de vocês? Ele está vivo no meio de nós! Cristo é a nossa grande esperança e salvação! Ele veio para nos libertar de toda forma de escravidão e de opressão!

Elias, nosso grande Profeta, também experimentou o silêncio de Deus e caiu no desânimo, viveu a experiência do abandono, do medo, da covardia. E Deus o fez caminhar mais e espera-LO, no monte Horeb, mostrando que os sinais convencionais não diziam mais nada do Deus verdadeiro ao qual servia com zelo ardente.

Não será isto que nos está acontecendo, dando para a humanidade sinais de Deus que não têm significado e nem expressão para o hoje, o agora de nossos dias? Onde está a sabedoria que o Pai nos deu para discernir seu tempo e sua hora?

Nós, que caminhamos como e com o povo de Deus, estamos juntos atravessando o deserto, lugar do nada, do medo do ladrão, da tentação, mas que também pode ser o lugar da experiência do Deus de nossa contemplação, do nosso amor, da nossa fé, da nossa ESPERANÇA!

Um mundo novo, uma humanidade nova podem nascer desta experiência de Deus provada no deserto e que nos dará forças para caminhar junto do seu povo, rumo à terra prometida “buscando em primeiro lugar o Reino de Deus e tudo mais nos será dão por acréscimo”.

6. Discernimento: saber distinguir a falsa profecia

“Guardai-vos dos falsos profetas que vêm a vós disfarçados em ovelhas, mas por dentro são lobos ferozes”. ( Mt. 7, 15)

O profeta anuncia a salvação que vem de Deus e todo bem trazido por ela e, denuncia o mal que corrompe e perverte a criação de Deus, gerando o egoísmo, o orgulho, a vaidade, a opressão, a injustiça, o ódio, o pecado, enfim toda a espécie de mal que existe no mundo.

João Paulo II, em “Vita Consecrata” fala-nos sobre a verdadeira profecia, exprimindo-se assim: “A verdadeira profecia nasce de Deus, da amizade com Ele, da escuta diligente da sua Palavra nas diversas circunstâncias da história. O profeta sente arder no coração a paixão pela santidade de Deus e, depois de ter acolhido a palavra no diálogo da oração, proclama-a com a vida, com os lábios e com gestos, fazendo-se porta-voz de Deus contra o mal e o pecado. O testemunho profético requer a busca constante e apaixonada da vontade de Deus, uma comunhão eclesial generosa e imprescindível ”.

Este texto do referido documento eclesial dá-nos pistas para um bom discernimento, da falsa profecia, pois a mesma é contraditória à verdadeira.

Então qual é a falsa profecia?

É aquela que não tem o Deus verdadeiro como centro de seu anúncio. O Deus de Abraão, o de Moisés, o de Ester o de Isaias e dos outros profetas, como Elias e Eliseu, o de Maria, o de nossos Santos e de nossas Santas, o dos Mártires e que não é o Deus Uno e Trino cujo Filho unigênito vive no meio de nós.

A falsa profecia revela o deus do prazer pelo prazer, da felicidade que vem do poder e subjuga o homem, fazendo-o escravo, tirando-lhe os direitos de cidadania porque não aceitou o suborno para mantê-lo no poder.

Prega o deus que traz a felicidade que vem de um “ter” que foi conseguido na exploração de seu irmão ou irmã, sonegando-lhes um salário justo, os direitos trabalhistas, um “ter” vindo da corrupção, comprando com dinheiro valores, pessoas, invalidando ou criando leis novas para o favorecimento da riqueza ilícita.

Anuncia o deus do capitalismo selvagem que cria classes sociais, convalidando a miséria como uma das classes e justifica o neoliberalismoalidando ou criando leis novas do favorecimento da riqueza ilieu irmem do poder e subjuga ohomem com o seu consumismo, como o gerador do progresso.

A falsa profecia prega ainda o ódio, a guerra, cria nações poderosas que exploram outras, gerando a segregação pela força, negando o direito à saúde, à educação aos bens que lhes pertencem por direito de serem gerados nos paises explorados e qualificados como subdesenvolvidos porque suas riquezas naturais estão nas mãos das nações poderosas. Gerou também uma espécie humana de menos valor, um sub-homem ou sub-mulher que vivem no sub-mundo.

O falso profeta é do mesmo modo, um apaixonado pelo seu deus, descrito acima. Sua boca e seus lábios proferem palavras enganosas, anunciando uma felicidade passageira que vem do sofrimento daqueles que os poderosos sugaram-lhes a vida, fizeram-lhes seu objeto de prazer, subverteram seus valores pessoais em troca de seu silêncio. Aquele silêncio que poderia ser a grande e valiosa denúncia feita pela verdadeira profecia!

A verdadeira profecia pertence aos cristãos e de modo preferencial à Vida Consagrada e a nós Carmelitas que temos na base do Carmelo a inspiração de Elias. Ele era um profeta bem humano, ao alcance de nossa imitação, pois conheceu em si próprio a coragem do anúncio do Deus verdadeiro, mas também sofreu as limitações de ser humano: teve medo dos poderosos, escondeu-se! Viveu a santidade do verdadeiro Profeta e a intimidade de seu Senhor pelo qual se inflamou de zelo, mas não entendeu os sinais de sua presença e ainda achou-se imprescindível ao Deus Verdadeiro!

Se pelos frutos, conhece-se a árvore, pelo testemunho profético se distingue a verdadeira da falsa profecia. Um testemunho que dá sinais convincentes de quem vive com e em Deus. A coerência entre a vida e a palavra é outro sinal que diferencia o (a) profeta do Deus Vivo, à semelhança de Elias, dos profetas de Baal, no hoje de nossos tempos! A vivência de união com a Igreja é outro sinal da diferença entre as duas realidades aqui em questão!

As falazes e mirabolantes promessas, acompanhadas de milagres forjados são os sinais mais freqüentes de distinção de quem prega em nome do Deus dos nossos antepassados e dos deuses vendedores de ilusão, fazendo do ser humano um verdadeiro inocente útil para confirmação de seus milagres!

7. Comunidade orante e profética

No artigo sessenta de nossa Constituição encontramos: “A oração no Carmelo é resposta a uma vocação que lhe é peculiar na Igreja: vigiar sempre em oração. Isto constitui a principal missão da Carmelita para quem a oração e a ação apostólica brotam da mesma intimidade com Deus. Por isto as nossas Comunidades devem ser, no mundo, sinais da Igreja orante”.

O nosso ideal na oração, é por ela penetrarmos sempre mais, no mistério de Cristo. Guiadas pelo Espírito Santo, dóceis às suas inspirações, à imitação de Maria, no abandono à Divina Providência, desejamos realizar em nós e por nossa missão, o seu plano redentor e misericordioso, no mundo, caminhando na trilha de Madre Maria das Neves.

Exercemos o ministério da profecia, em união com a Igreja, participando, como consagradas, da função profética de Cristo. Que seja a vida de cada uma de nós a profecia contida nesse artigo de nossa Constituição.

A nossa profecia nasce e se confirma no cotidiano, da união com Deus, da união entre nós, pois a fraternidade é sinal profético num mundo cheio de divisões, de desamor, de disputa pelo poder e pelo ter!

O testemunho de vida simples, despojada, sem disputas para os primeiros lugares já é algo inquietante para a sociedade de hoje!

O acolhimento e a simplicidade são características marcantes das Carmelitas da Divina Providência! Madre Maria das Neves deixou-os seu testemunho de entrega radical nas mãos do Pai e uma herança espiritual que nos fala da vida na presença de Deus, da consciência tranqüila, para termos o céu perto de nós.

O salmo 14(15) nos fala dessa consciência tranqüila que nos recomenda a Santa Fundadora. “Senhor, quem pode habitar na sua tenda? É aquele que anda com integridade, pratica a justiça, não jura falso, fala a verdade, mas despreza a companhia do ímpio e honra os que amam a Javé. Não difama o irmão, não empresta com usura, nem aceita suborno contra o inocente”.

E assim, as Carmelitas da Divina Providência ouvem as palavras de sua Fundadora e as carregam em seu coração: “Minhas filhas, vivamos com a consciência tranqüila e teremos o céu perto de nós”. Caminham meditando no que ela disse, confirmado nas palavras do salmista expressas nesse salmo. O olhar contemplativo da querida Fundadora nos faz descobrir, amar e agir, profeticamente na transformação da realidade contemplada.

Viver com a consciência tranqüila, nesta pós-modernidade, é falar uma linguagem estranha às pessoas deste tempo, só mesmo o impulso profético de uma consagração dá sustento a esse gesto. Para nós Carmelitas da Divina Providência, é a força de uma dupla herança: a de Elias e a de Madre Maria das Neves que sustentam a coerência da nossa vida com o nosso anúncio!




II CONGRESSO ALACAR

MÍSTICA E PROFECIA NO CARMELO

NA EXPERIÊNCIA DE ALGUMAS FUNDADORAS

Irmã Yolanda Rodrigues Contreras, cmst.

I. A VOCAÇÃO: Experiência do Deus Vivo.

O fundamento de toda vocação e especialmente à vida consagrada nasce de uma forte experiência do Deus vivo, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, presente na história pessoal, que faz rever toda a existência desde a perspectiva do projeto de Deus, fazendo Dele, o motivo, a meta e o ideal da vida inteira.

Esta experiência vai calando fundo e vai levando a um processo de conversão que sobretudo situa a fundadora (as) numa atitude de discípula, atenta ao que o Senhor vai lhe manifestando nos sinais dos tempos e dos lugares, vai percebendo paulatinamente a voz interpelante, amorosa e exigente de Deus, que vai se descobrindo como o Senhor da História que se manifesta precisamente nos pobres e humildes.

Na medida em que esta conversão se torna mais profunda vai-se descobrindo na realidade circundante a necessidade social à qual deve responder a partir da fé. Vai se Criando uma tensão entre o chamado do Senhor e a situação histórica que está pedindo uma solução.

A experiência de Deus é dinâmica e faz com que a fundadora vá descobrindo sua pequenez e ao mesmo tempo sua grandeza. Sua pequenez porque sente a magnificência e a onipotência de Deus que a faz exclamar: “que é o homem para que te recordes dele?” e ao mesmo tempo sua grandeza, grandeza que vem da grande misericórdia de Deus que a torna capaz de chegar, nada mais nada menos, que à união com Ele e pede sua colaboração para tornar presente Seu amor aos mais pobres, aos pecadores, aos necessitados de misericórdia.

Com a luz do Espírito Santo, a Fundadora (as), vai se fortalecendo e ao mesmo tempo esclarecendo seu chamado para dar uma resposta, aconteça o que acontecer, vencendo infinidade de obstáculos, nos quais Deus vai descobrindo qual é sua vontade.

A fundadora (as) permite, graças à sua abertura ao Espírito, que Ele se transforme em seu formador, em seu mestre e a partir da simplicidade de sua vida evangélica, dia após dia, vai configurando-se com Cristo, sem saber e nem sequer pretender vai assumindo a vocação de iniciadora de algo novo na Igreja.

“Ao longo dos séculos nunca faltaram homens e mulheres que dóceis ao chamado do Pai e a moção do Espírito, elegeram este caminho de especial seguimento de Cristo, para dedicar-se a Ele com coração “indiviso” (cf. 1 Coríntios 7, 34). Também eles, como os apóstolos, deixaram tudo para estar com Ele e colocar-se, como Ele, ao serviço de Deus e dos irmãos”.[1]

2. NOVA CONSCIÊNCIA, LIBERDADE INTERIOR.

A experiência de Deus da Fundadora (as), sentida cada vez mais profundamente, vai marcando sua vida, de maneira que o que antes era importante e dava certo prestígio vai ficando para trás. Isto é, a atividade, o cargo, inclusive o apostolado que realizava vão se relativizando diante do chamado do Senhor para fazer algo diferente.

A Fundadora já não é afetada pelas murmurações sobre o novo estilo de vida que vai assumindo, o que lhe interessa é descobrir por onde Deus quer que ela vá, para onde deve encaminhar seus passos; o verdadeiramente importante é fazer a vontade de Deus. Vai deixando de lado “o que dirão” e vai assumindo um estilo de vida mais simples, mais em consonância com os pobres.

A Fundadora vai rompendo esquemas e formas de vida que até então ela mesma havia defendido. Vai aprendendo pouco a pouco a simplicidade e a liberdade daquele que se faz criança pelo Reino dos Céus.

A certeza da presença de Deus em todos os momentos de sua vida vai se tornando cada vez mais diáfana, inclusive essa presença de Deus vai se refletindo em seu rosto e torna o estilo de vida que vai assumindo atraente aos demais.

A atitude da fundadora, nas dificuldades que encontra ao iniciar uma nova obra, é enfrentar, não com agressividade ou resistência, mas com paz, paciência e convencida de que Deus vai mostrar-lhe seus caminhos ainda que insegura de não compreende-los. Ela é capaz de enfrentar as autoridades eclesiais ou civis com uma grande serenidade, buscando sempre o que compreende como vontade de Deus.

A liberdade interior alcançada no processo de identificação com Cristo que fez a vontade do Pai, leva à Fundadora a atos heróicos, a suportar ser relegada, difamada, esquecida e condenada. Tudo isto graças à liberdade interior que adquiriu pela certeza de que Deus está com ela.

A fundadora dócil à ação do Espírito Santo nela busca a Deus em todas as coisas, adquire um novo olhar para com os demais, para com o mundo, para com Deus e para com ela mesma, este olhar está impregnado da liberdade que nasce da união com o Senhor, na transformação da vontade pessoal na vontade divina.

É indubitável que toda fundadora adiantou-se ao seu tempo. Muitas congregações religiosas femininas surgiram nos dois últimos séculos, dando à mulher a oportunidade de honrar e servir ao Senhor nos pobres.

O esforço por uma autentica libertação da mulher é tarefa que continua, a ela temos que comprometer-nos plenamente como religiosas, para poder trabalhar em favor de tantas e tantas mulheres oprimidas; primeiro será preciso libertar-nos plenamente a nós mesmas, como fizeram nossas fundadoras.

3. JUSTIÇA E PAZ

Não há dúvida de que a justiça e a paz são frutos preclaros de uma vida de união com Deus. Torna-se norma de vida de toda Fundadora lutar pela justiça com dignidade, paz e com igualdade, não poderia ser de outra forma, porque se dizemos que a origem da vocação da fundadora é a profunda experiência de Deus e, se Deus é a suma justiça e a paz por excelência, não se pode viver unida a Ele sem querer o que ele quer.

Jesus Cristo proclamou nas vem-aventuranças “felizes os que têm fome e sede de justiça, porque Deus os saciará. Felizes os que constroem a paz, porque Deus os chamará filhos seus”. (Mateus 5, 6.9)

Uma das características mais clara de que uma pessoa é chamada a iniciar um novo estilo de vida religiosa na Igreja é a luta pela justiça; para que cheguem a todos os bens que Deus criou para todos, para que todos reconheçam sua dignidade de filhos e filhas de Deus.

Outro aspecto importante que caracteriza a vida da fundadora é que experimenta a realização do projeto salvador de Deus como justiça; isto é, todo esforço evangelizador que não levar em suas entranhas o projeto de Deus é falso. “Toda justiça que não procede da fé na salvação em Cristo é uma justiça mutilada, temporal, política-econômica; neste sentido tudo pode parecer perfeito, mas se a justiça não está incrustada na salvação que nos trouxe Jesus Cristo, que arranca do pecado e eleva até Deus, não podemos dizer que é a justiça que Deus quer”.[2]

Trabalhar pela paz é outro elemento indispensável no qual se manifesta que o Espírito de Deus é aquele que atua. Não se pode iniciar algo novo a partir do confronto e rompimento da caridade fraterna. Quem chegou a experimentar Deus profundamente é um incansável construtor e portador da justiça e da paz.

Frequentemente o surgimento de uma fundadora acontece numa realidade necessitada do amor de Deus que gera a paz.

Nossas fundadoras entenderam muito bem o que disse o Senhor pelo Profeta Miquéias: “Homem já te expliquei o que é bom, o que o Senhor deseja de ti: ama com ternura, pratica a justiça e caminha humildemente com teu Deus” (Miquéias 6, 8).

Elas foram capazes de amar intensamente e viver na humildade e fidelidade o chamado que Deus lhes tinha feito, praticaram a justiça em todos os momentos de sua vida e foram sinal do amor e da misericórdia de Deus para com todos.

Tudo o que o Senhor espera de nós é que amemos e vivamos em justiça e fidelidade o seu Evangelho.

4. SOLIDARIEDADE: Refazer as relações humanas

A fundadora expressa sua solidariedade no respeito ao outro (compreensão), o sentir como o outro (empatia), sofre com o outro (compaixão) e se sente responsável e comprometida com cada um de seus irmãos e irmãs num serviço de caridade e entrega.

A caridade da fundadora vai se convertendo em solidariedade, isto é na preocupação pelo destino coletivo de infinidade de seres humanos que não conhecem a Deus ou se encontram distantes Dele e também sofrem alguma pena, dor, fome, marginalização, ignorância, num mundo de grandes desigualdades.

O Papa João Paulo II disse: “o novo nome da caridade é solidariedade”.[3] Efetivamente, não se pode falar de uma fundadora sem falar do espírito de solidariedade que a caracterizava. A caridade – solidariedade a move para responder à necessidade que tinha a sociedade no momento da fundação do Instituto e chega a tal grau sua resposta que é capaz de vencer qualquer obstáculo se isto ajudar àqueles que vê necessitados nesse momento, algumas vezes arriscando a própria vida.

Geralmente o lugar onde ocorre a fundação converte-se num centro do qual irradia a solidariedade e começam a acudir a ele toda classe de pessoas. Forma-se como que um campo imantado pelo Espírito ao qual sentem-se atraídos um sem número de pessoas, alguns para solicitar ajuda, outros para apoiar o serviço e outras para viver o estilo de vida iniciado. A fundadora vai tendo uma grande quantidade de seguidoras que torna autentico seu carisma fundacional.

Aqui radica um sólido critério de avaliação para nossos Institutos, que estilo de solidariedade – caridade estamos vivendo já que não temos quantidade de seguidoras? O que acontece em nossas obras que tiveram tanto êxito no tempo de nossas fundadoras e agora se tornaram obsoletas? O que está faltando?

Hoje mais que nunca o mundo está gritando pela necessidade de refazer as relações humanas. Infelizmente o mundo se infiltra em nós e repetimos esquemas de individualismo e agressividade em nossas comunidades. Não foi assim com nossas Fundadoras, elas trabalharam incansavelmente para construir comunidade, não só com as irmãs da Congregação mas com todas as pessoas que as rodeavam. Na história de nossos Institutos temos infinidade de acontecimentos que ilustram este aspecto de harmonia nas relações humanas.

Não esqueçamos a rica herança que nos legaram nossas Fundadoras, retomemos com fidelidade criativa, o zelo pela convivência harmoniosa que as caracterizou.

5. UTOPIA DO REINO: animar a esperança do povo

O desejo de uma fundadora é sempre dar a vida e como conseqüência seu único objetivo é colaborar com o Deus vivo e realizar o que Jesus Cristo proclamou “... Vim para que tenham vida e vida em abundancia” (João 10, 10).

Seu testemunho de vida é anúncio do Reino, sua abertura a Deus, sua disponibilidade de quem espera tudo do Senhor, sua pobreza espiritual – que reconhece o valor superior dos bens do Reino -, é indubitavelmente uma contribuição para manter e impulsionar o povo de Deus para a utopia de um mundo diferente, onde todos possam viver como irmãos e irmãs.

Na certeza de que Deus está com ela, a fundadora vai desenvolvendo sua vida como história de salvação, vai deixando pegadas que animam, que convidam a segui-la, que mostram com claridade a esperança de uma sociedade de irmãos e irmãs, pela qual vale a pena entregar a vida por Cristo, pelo Evangelho, por todos e todas.

Sabemos que o Reino está misteriosamente presente em nossa terra: Reino de justiça, de amor, de paz, de fraternidade e sabemos também que, quando o Senhor vier se consumará sua perfeição. Esta é a esperança que nos alenta como cristãos. Esta é a missão de uma fundadora: entregar sua vida para melhorar a sociedade, sobretudo quando está tão cheia de injustiça e de pecado.

O esforço de uma fundadora ao iniciar um caminho novo de serviço para a Igreja é um esforço que Deus abençoa, que Deus quer, que Deus exige, “porque está segurança de que tudo o que planta na terra e alimenta com a esperança cristã nunca fracassará, vai encontrá-lo purificado nesse Reino, onde precisamente o mérito está em que se tenha trabalhado nesta terra”[4].

Podemos terminar este breve artigo com as palavras do Papa João Paulo II: “Que seria do mundo se não fossem os religiosos?”[5]. Muito além das avaliações superficiais de funcionalidade, a vida consagrada é importante precisamente por sua superabundância de gratuidade e de amor, principalmente num mundo que corre o risco de ver-se asfixiado na confusão do efêmero.

A Igreja não pode renunciar absolutamente à vida consagrada. Nela encontra novo impulso e força o anúncio do evangelho para todo o mundo. Com efeito, necessita-se pessoas que apresentem o rosto paterno de Deus e o rosto materno da Igreja, que arisquem a vida para que os outros tenham vida e esperança”[6].

6. DISCERNIMENTO: saber distinguir a falsa profecia.

O discernimento comporta um exercício de analise critica da realidade em ordem a uma justa valorização da mesma e o conseqüente compromisso em opções concretas. Significa também definir as coisas em seus próprios limites. “Não apaguem o fogo do Espírito, não desprezem a profecia, examinem tudo e fiquem com o bom, evitem toda forma de mal” (1. Tessalonicenses 5, 19-22).

Para toda pessoa consagrada o discernimento é caminho de fidelidade e bem-aventurança. Sobretudo na atualidade quando constatamos que não houve em toda a história da humanidade, da Igreja e da vida religiosa, tantas luzes e tantas sombras como agora. Certamente existem desejos vivos de bondade, de unidade, de solidariedade, de paz e de justiça em todos os níveis. Trabalhamos para encontrar maneiras de progredir e para realizar um mundo melhor em todas as ordens, porém tudo isto se dá em contextos humanos sumamente conflitivos[7]. Vivemos uma etapa da história de grandes convulsões.

As sacudidas alcançam nossas raízes. Há crise de objetivos, de valores fundamentais, de critérios, de sistemas, de instituições, de pessoas e de comportamentos. Abundam e superabundam a ambigüidade, a obscuridade, a incerteza e toda classe de relativismos e contradições. Surgem falsos profetas que confundem o povo de Deus e que exigem de nós consagrados fazer um continuo discernimento orante como fizeram nossas fundadoras.

Hoje também nos é pedido o testemunho profético que exige a busca apaixonada e constante da vontade de Deus, a generosa e imprescindível comunhão eclesial, o exercício do discernimento e o amor à verdade. Buscar a Deus com paixão e com entrega.

A vida de uma fundadora ou fundador é profecia em ação. Sua vida vai se configurando com o projeto de Deus, que é um projeto de vida e discernimento, que vai denunciando todas aquelas situações de morte que contradizem este projeto.

“As fundadoras souberam encarnar em seu tempo, com coragem e santidade, a mensagem evangélica. É preciso que, fiéis ao sopro do Espírito suas filhas espirituais prossigam no tempo esse testemunho...”[8].

Corresponde às continuadoras seguir com alegria e eficácia o convite de João Paulo II: “Os Institutos são convidados a reproduzir com coragem e audácia, a criatividade e a santidade de suas fundadoras como resposta aos sinais dos tempos que surgem no mundo de hoje. Este convite é principalmente um chamado a perseverar no caminho de santidade através das dificuldades materiais e espirituais que marcam a vida cotidiana”[9].

7. COMUNIDADE ORANTE E PROFÉTICA

O desígnio de Deus ou seu projeto é salvar-nos e santificar-nos comunitariamente. Jesus mesmo iniciou seu ministério formando uma comunidade que foi inicio da grande comunidade que é a Igreja, povo de Deus.

“A condição deste povo é a dignidade e a liberdade dos filhos de Deus, em cujos corações habita o Espírito Santo como num templo. Tem por lei o novo mandamento de amar como o mesmo Cristo nos amou” (Cf. João 13, 34), (LG 9).

a) Comunidade orante. As palavras do Senhor, “orar sempre sem desfalecer” (Lc 18, 1), valem tanto para a oração pessoal como para a comunitária. Com efeito, a comunidade religiosa vive constantemente diante do seu Senhor, de cuja presença deve ter contínua consciência”[10].

“A oração em comum, considerada sempre como a base de toda a vida comunitária, parte da contemplação do mistério de Deus, grande e sublime, da admiração de sua presença, operante nos momentos mais significativos de nossas famílias religiosas, assim como na humilde realidade cotidiana de nossas comunidades. A oração há de ser entendida como tempo para estar com o Senhor”[11].

b) Comunidade profética. A Igreja valoriza a vida fraterna das comunidades religiosas. Quanto mais intenso é o amor fraterno maior é a credibilidade da mensagem anunciada e melhor se percebe o coração do mistério da Igreja como sacramento da união dos homens e mulheres com Deus e entre si[12].

A comunhão fraterna, que as comunidade religiosas se esforçam por viver, com todas suas exigências, é o sinal profético do amor transformador que o Espírito infunde em seus corações, mais forte que os laços da carne e do sangue.

Nossas fundadoras são o referencial de nossa vida consagrada; muito se falou sobre voltar ao essencial, refundar nossos institutos, revitalizar nossa vida. Nesse sentido uma vida consagrada revitalizada, isto é, mais em sintonia com os sinais dos tempos requer com urgência: sublinhar fortemente sua identidade diferenciada; selecionar criativamente a tradição recebida da Igreja e do próprio instituto; afirmar com claridade o senhorio de Deus em todos os âmbitos – pessoal, social e cósmico -. Dito de outra maneira, a dimensão espiritual deveria ser expressa de modo explícito e em sintonia com a memória histórica da Igreja. A santidade, a profecia, a comunhão, devem mostrar com claridade sua motivação última que é a mística.


[1] João Paulo II, “Exortação apostólica pós-sinodal Vita Consecrata” no. 1

[2] Mons. Oscar Romero, Homilia 23-12-79

[3] João Paulo II “Exortação apostolica Ecclesia in America” no. 58

[4] Cfr. Mons. Oscar Arnulfo Romero, última Homilia 24 de março de 1980.

[5] S. Teresa de Jesus Livro da Vida 32, 11.

[6] Cfr. João Paulo II, “Exortação apostólica pos-sinodal Vita consecrata” no. 105, 1996.

[7] Cf. Concílio Vaticano II, GS 4-10.

[8] João Paulo II, “Congresso Internacional da vida consagrada”, Nov. de 1993.

[9] João Paulo II, “Exortação apostólica pós-sinodal Vita Consecrata”, no. 37.

[10] A vida fraterna em comunidade no. 17.

[11] IB. 13.

[12] Cfr. LG 1.