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domingo, 6 de setembro de 2009




II CONGRESSO ALACAR

MÍSTICA E PROFECIA NO CARMELO

NA EXPERIÊNCIA DE ALGUMAS FUNDADORAS

Irmã Yolanda Rodrigues Contreras, cmst.

I. A VOCAÇÃO: Experiência do Deus Vivo.

O fundamento de toda vocação e especialmente à vida consagrada nasce de uma forte experiência do Deus vivo, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, presente na história pessoal, que faz rever toda a existência desde a perspectiva do projeto de Deus, fazendo Dele, o motivo, a meta e o ideal da vida inteira.

Esta experiência vai calando fundo e vai levando a um processo de conversão que sobretudo situa a fundadora (as) numa atitude de discípula, atenta ao que o Senhor vai lhe manifestando nos sinais dos tempos e dos lugares, vai percebendo paulatinamente a voz interpelante, amorosa e exigente de Deus, que vai se descobrindo como o Senhor da História que se manifesta precisamente nos pobres e humildes.

Na medida em que esta conversão se torna mais profunda vai-se descobrindo na realidade circundante a necessidade social à qual deve responder a partir da fé. Vai se Criando uma tensão entre o chamado do Senhor e a situação histórica que está pedindo uma solução.

A experiência de Deus é dinâmica e faz com que a fundadora vá descobrindo sua pequenez e ao mesmo tempo sua grandeza. Sua pequenez porque sente a magnificência e a onipotência de Deus que a faz exclamar: “que é o homem para que te recordes dele?” e ao mesmo tempo sua grandeza, grandeza que vem da grande misericórdia de Deus que a torna capaz de chegar, nada mais nada menos, que à união com Ele e pede sua colaboração para tornar presente Seu amor aos mais pobres, aos pecadores, aos necessitados de misericórdia.

Com a luz do Espírito Santo, a Fundadora (as), vai se fortalecendo e ao mesmo tempo esclarecendo seu chamado para dar uma resposta, aconteça o que acontecer, vencendo infinidade de obstáculos, nos quais Deus vai descobrindo qual é sua vontade.

A fundadora (as) permite, graças à sua abertura ao Espírito, que Ele se transforme em seu formador, em seu mestre e a partir da simplicidade de sua vida evangélica, dia após dia, vai configurando-se com Cristo, sem saber e nem sequer pretender vai assumindo a vocação de iniciadora de algo novo na Igreja.

“Ao longo dos séculos nunca faltaram homens e mulheres que dóceis ao chamado do Pai e a moção do Espírito, elegeram este caminho de especial seguimento de Cristo, para dedicar-se a Ele com coração “indiviso” (cf. 1 Coríntios 7, 34). Também eles, como os apóstolos, deixaram tudo para estar com Ele e colocar-se, como Ele, ao serviço de Deus e dos irmãos”.[1]

2. NOVA CONSCIÊNCIA, LIBERDADE INTERIOR.

A experiência de Deus da Fundadora (as), sentida cada vez mais profundamente, vai marcando sua vida, de maneira que o que antes era importante e dava certo prestígio vai ficando para trás. Isto é, a atividade, o cargo, inclusive o apostolado que realizava vão se relativizando diante do chamado do Senhor para fazer algo diferente.

A Fundadora já não é afetada pelas murmurações sobre o novo estilo de vida que vai assumindo, o que lhe interessa é descobrir por onde Deus quer que ela vá, para onde deve encaminhar seus passos; o verdadeiramente importante é fazer a vontade de Deus. Vai deixando de lado “o que dirão” e vai assumindo um estilo de vida mais simples, mais em consonância com os pobres.

A Fundadora vai rompendo esquemas e formas de vida que até então ela mesma havia defendido. Vai aprendendo pouco a pouco a simplicidade e a liberdade daquele que se faz criança pelo Reino dos Céus.

A certeza da presença de Deus em todos os momentos de sua vida vai se tornando cada vez mais diáfana, inclusive essa presença de Deus vai se refletindo em seu rosto e torna o estilo de vida que vai assumindo atraente aos demais.

A atitude da fundadora, nas dificuldades que encontra ao iniciar uma nova obra, é enfrentar, não com agressividade ou resistência, mas com paz, paciência e convencida de que Deus vai mostrar-lhe seus caminhos ainda que insegura de não compreende-los. Ela é capaz de enfrentar as autoridades eclesiais ou civis com uma grande serenidade, buscando sempre o que compreende como vontade de Deus.

A liberdade interior alcançada no processo de identificação com Cristo que fez a vontade do Pai, leva à Fundadora a atos heróicos, a suportar ser relegada, difamada, esquecida e condenada. Tudo isto graças à liberdade interior que adquiriu pela certeza de que Deus está com ela.

A fundadora dócil à ação do Espírito Santo nela busca a Deus em todas as coisas, adquire um novo olhar para com os demais, para com o mundo, para com Deus e para com ela mesma, este olhar está impregnado da liberdade que nasce da união com o Senhor, na transformação da vontade pessoal na vontade divina.

É indubitável que toda fundadora adiantou-se ao seu tempo. Muitas congregações religiosas femininas surgiram nos dois últimos séculos, dando à mulher a oportunidade de honrar e servir ao Senhor nos pobres.

O esforço por uma autentica libertação da mulher é tarefa que continua, a ela temos que comprometer-nos plenamente como religiosas, para poder trabalhar em favor de tantas e tantas mulheres oprimidas; primeiro será preciso libertar-nos plenamente a nós mesmas, como fizeram nossas fundadoras.

3. JUSTIÇA E PAZ

Não há dúvida de que a justiça e a paz são frutos preclaros de uma vida de união com Deus. Torna-se norma de vida de toda Fundadora lutar pela justiça com dignidade, paz e com igualdade, não poderia ser de outra forma, porque se dizemos que a origem da vocação da fundadora é a profunda experiência de Deus e, se Deus é a suma justiça e a paz por excelência, não se pode viver unida a Ele sem querer o que ele quer.

Jesus Cristo proclamou nas vem-aventuranças “felizes os que têm fome e sede de justiça, porque Deus os saciará. Felizes os que constroem a paz, porque Deus os chamará filhos seus”. (Mateus 5, 6.9)

Uma das características mais clara de que uma pessoa é chamada a iniciar um novo estilo de vida religiosa na Igreja é a luta pela justiça; para que cheguem a todos os bens que Deus criou para todos, para que todos reconheçam sua dignidade de filhos e filhas de Deus.

Outro aspecto importante que caracteriza a vida da fundadora é que experimenta a realização do projeto salvador de Deus como justiça; isto é, todo esforço evangelizador que não levar em suas entranhas o projeto de Deus é falso. “Toda justiça que não procede da fé na salvação em Cristo é uma justiça mutilada, temporal, política-econômica; neste sentido tudo pode parecer perfeito, mas se a justiça não está incrustada na salvação que nos trouxe Jesus Cristo, que arranca do pecado e eleva até Deus, não podemos dizer que é a justiça que Deus quer”.[2]

Trabalhar pela paz é outro elemento indispensável no qual se manifesta que o Espírito de Deus é aquele que atua. Não se pode iniciar algo novo a partir do confronto e rompimento da caridade fraterna. Quem chegou a experimentar Deus profundamente é um incansável construtor e portador da justiça e da paz.

Frequentemente o surgimento de uma fundadora acontece numa realidade necessitada do amor de Deus que gera a paz.

Nossas fundadoras entenderam muito bem o que disse o Senhor pelo Profeta Miquéias: “Homem já te expliquei o que é bom, o que o Senhor deseja de ti: ama com ternura, pratica a justiça e caminha humildemente com teu Deus” (Miquéias 6, 8).

Elas foram capazes de amar intensamente e viver na humildade e fidelidade o chamado que Deus lhes tinha feito, praticaram a justiça em todos os momentos de sua vida e foram sinal do amor e da misericórdia de Deus para com todos.

Tudo o que o Senhor espera de nós é que amemos e vivamos em justiça e fidelidade o seu Evangelho.

4. SOLIDARIEDADE: Refazer as relações humanas

A fundadora expressa sua solidariedade no respeito ao outro (compreensão), o sentir como o outro (empatia), sofre com o outro (compaixão) e se sente responsável e comprometida com cada um de seus irmãos e irmãs num serviço de caridade e entrega.

A caridade da fundadora vai se convertendo em solidariedade, isto é na preocupação pelo destino coletivo de infinidade de seres humanos que não conhecem a Deus ou se encontram distantes Dele e também sofrem alguma pena, dor, fome, marginalização, ignorância, num mundo de grandes desigualdades.

O Papa João Paulo II disse: “o novo nome da caridade é solidariedade”.[3] Efetivamente, não se pode falar de uma fundadora sem falar do espírito de solidariedade que a caracterizava. A caridade – solidariedade a move para responder à necessidade que tinha a sociedade no momento da fundação do Instituto e chega a tal grau sua resposta que é capaz de vencer qualquer obstáculo se isto ajudar àqueles que vê necessitados nesse momento, algumas vezes arriscando a própria vida.

Geralmente o lugar onde ocorre a fundação converte-se num centro do qual irradia a solidariedade e começam a acudir a ele toda classe de pessoas. Forma-se como que um campo imantado pelo Espírito ao qual sentem-se atraídos um sem número de pessoas, alguns para solicitar ajuda, outros para apoiar o serviço e outras para viver o estilo de vida iniciado. A fundadora vai tendo uma grande quantidade de seguidoras que torna autentico seu carisma fundacional.

Aqui radica um sólido critério de avaliação para nossos Institutos, que estilo de solidariedade – caridade estamos vivendo já que não temos quantidade de seguidoras? O que acontece em nossas obras que tiveram tanto êxito no tempo de nossas fundadoras e agora se tornaram obsoletas? O que está faltando?

Hoje mais que nunca o mundo está gritando pela necessidade de refazer as relações humanas. Infelizmente o mundo se infiltra em nós e repetimos esquemas de individualismo e agressividade em nossas comunidades. Não foi assim com nossas Fundadoras, elas trabalharam incansavelmente para construir comunidade, não só com as irmãs da Congregação mas com todas as pessoas que as rodeavam. Na história de nossos Institutos temos infinidade de acontecimentos que ilustram este aspecto de harmonia nas relações humanas.

Não esqueçamos a rica herança que nos legaram nossas Fundadoras, retomemos com fidelidade criativa, o zelo pela convivência harmoniosa que as caracterizou.

5. UTOPIA DO REINO: animar a esperança do povo

O desejo de uma fundadora é sempre dar a vida e como conseqüência seu único objetivo é colaborar com o Deus vivo e realizar o que Jesus Cristo proclamou “... Vim para que tenham vida e vida em abundancia” (João 10, 10).

Seu testemunho de vida é anúncio do Reino, sua abertura a Deus, sua disponibilidade de quem espera tudo do Senhor, sua pobreza espiritual – que reconhece o valor superior dos bens do Reino -, é indubitavelmente uma contribuição para manter e impulsionar o povo de Deus para a utopia de um mundo diferente, onde todos possam viver como irmãos e irmãs.

Na certeza de que Deus está com ela, a fundadora vai desenvolvendo sua vida como história de salvação, vai deixando pegadas que animam, que convidam a segui-la, que mostram com claridade a esperança de uma sociedade de irmãos e irmãs, pela qual vale a pena entregar a vida por Cristo, pelo Evangelho, por todos e todas.

Sabemos que o Reino está misteriosamente presente em nossa terra: Reino de justiça, de amor, de paz, de fraternidade e sabemos também que, quando o Senhor vier se consumará sua perfeição. Esta é a esperança que nos alenta como cristãos. Esta é a missão de uma fundadora: entregar sua vida para melhorar a sociedade, sobretudo quando está tão cheia de injustiça e de pecado.

O esforço de uma fundadora ao iniciar um caminho novo de serviço para a Igreja é um esforço que Deus abençoa, que Deus quer, que Deus exige, “porque está segurança de que tudo o que planta na terra e alimenta com a esperança cristã nunca fracassará, vai encontrá-lo purificado nesse Reino, onde precisamente o mérito está em que se tenha trabalhado nesta terra”[4].

Podemos terminar este breve artigo com as palavras do Papa João Paulo II: “Que seria do mundo se não fossem os religiosos?”[5]. Muito além das avaliações superficiais de funcionalidade, a vida consagrada é importante precisamente por sua superabundância de gratuidade e de amor, principalmente num mundo que corre o risco de ver-se asfixiado na confusão do efêmero.

A Igreja não pode renunciar absolutamente à vida consagrada. Nela encontra novo impulso e força o anúncio do evangelho para todo o mundo. Com efeito, necessita-se pessoas que apresentem o rosto paterno de Deus e o rosto materno da Igreja, que arisquem a vida para que os outros tenham vida e esperança”[6].

6. DISCERNIMENTO: saber distinguir a falsa profecia.

O discernimento comporta um exercício de analise critica da realidade em ordem a uma justa valorização da mesma e o conseqüente compromisso em opções concretas. Significa também definir as coisas em seus próprios limites. “Não apaguem o fogo do Espírito, não desprezem a profecia, examinem tudo e fiquem com o bom, evitem toda forma de mal” (1. Tessalonicenses 5, 19-22).

Para toda pessoa consagrada o discernimento é caminho de fidelidade e bem-aventurança. Sobretudo na atualidade quando constatamos que não houve em toda a história da humanidade, da Igreja e da vida religiosa, tantas luzes e tantas sombras como agora. Certamente existem desejos vivos de bondade, de unidade, de solidariedade, de paz e de justiça em todos os níveis. Trabalhamos para encontrar maneiras de progredir e para realizar um mundo melhor em todas as ordens, porém tudo isto se dá em contextos humanos sumamente conflitivos[7]. Vivemos uma etapa da história de grandes convulsões.

As sacudidas alcançam nossas raízes. Há crise de objetivos, de valores fundamentais, de critérios, de sistemas, de instituições, de pessoas e de comportamentos. Abundam e superabundam a ambigüidade, a obscuridade, a incerteza e toda classe de relativismos e contradições. Surgem falsos profetas que confundem o povo de Deus e que exigem de nós consagrados fazer um continuo discernimento orante como fizeram nossas fundadoras.

Hoje também nos é pedido o testemunho profético que exige a busca apaixonada e constante da vontade de Deus, a generosa e imprescindível comunhão eclesial, o exercício do discernimento e o amor à verdade. Buscar a Deus com paixão e com entrega.

A vida de uma fundadora ou fundador é profecia em ação. Sua vida vai se configurando com o projeto de Deus, que é um projeto de vida e discernimento, que vai denunciando todas aquelas situações de morte que contradizem este projeto.

“As fundadoras souberam encarnar em seu tempo, com coragem e santidade, a mensagem evangélica. É preciso que, fiéis ao sopro do Espírito suas filhas espirituais prossigam no tempo esse testemunho...”[8].

Corresponde às continuadoras seguir com alegria e eficácia o convite de João Paulo II: “Os Institutos são convidados a reproduzir com coragem e audácia, a criatividade e a santidade de suas fundadoras como resposta aos sinais dos tempos que surgem no mundo de hoje. Este convite é principalmente um chamado a perseverar no caminho de santidade através das dificuldades materiais e espirituais que marcam a vida cotidiana”[9].

7. COMUNIDADE ORANTE E PROFÉTICA

O desígnio de Deus ou seu projeto é salvar-nos e santificar-nos comunitariamente. Jesus mesmo iniciou seu ministério formando uma comunidade que foi inicio da grande comunidade que é a Igreja, povo de Deus.

“A condição deste povo é a dignidade e a liberdade dos filhos de Deus, em cujos corações habita o Espírito Santo como num templo. Tem por lei o novo mandamento de amar como o mesmo Cristo nos amou” (Cf. João 13, 34), (LG 9).

a) Comunidade orante. As palavras do Senhor, “orar sempre sem desfalecer” (Lc 18, 1), valem tanto para a oração pessoal como para a comunitária. Com efeito, a comunidade religiosa vive constantemente diante do seu Senhor, de cuja presença deve ter contínua consciência”[10].

“A oração em comum, considerada sempre como a base de toda a vida comunitária, parte da contemplação do mistério de Deus, grande e sublime, da admiração de sua presença, operante nos momentos mais significativos de nossas famílias religiosas, assim como na humilde realidade cotidiana de nossas comunidades. A oração há de ser entendida como tempo para estar com o Senhor”[11].

b) Comunidade profética. A Igreja valoriza a vida fraterna das comunidades religiosas. Quanto mais intenso é o amor fraterno maior é a credibilidade da mensagem anunciada e melhor se percebe o coração do mistério da Igreja como sacramento da união dos homens e mulheres com Deus e entre si[12].

A comunhão fraterna, que as comunidade religiosas se esforçam por viver, com todas suas exigências, é o sinal profético do amor transformador que o Espírito infunde em seus corações, mais forte que os laços da carne e do sangue.

Nossas fundadoras são o referencial de nossa vida consagrada; muito se falou sobre voltar ao essencial, refundar nossos institutos, revitalizar nossa vida. Nesse sentido uma vida consagrada revitalizada, isto é, mais em sintonia com os sinais dos tempos requer com urgência: sublinhar fortemente sua identidade diferenciada; selecionar criativamente a tradição recebida da Igreja e do próprio instituto; afirmar com claridade o senhorio de Deus em todos os âmbitos – pessoal, social e cósmico -. Dito de outra maneira, a dimensão espiritual deveria ser expressa de modo explícito e em sintonia com a memória histórica da Igreja. A santidade, a profecia, a comunhão, devem mostrar com claridade sua motivação última que é a mística.


[1] João Paulo II, “Exortação apostólica pós-sinodal Vita Consecrata” no. 1

[2] Mons. Oscar Romero, Homilia 23-12-79

[3] João Paulo II “Exortação apostolica Ecclesia in America” no. 58

[4] Cfr. Mons. Oscar Arnulfo Romero, última Homilia 24 de março de 1980.

[5] S. Teresa de Jesus Livro da Vida 32, 11.

[6] Cfr. João Paulo II, “Exortação apostólica pos-sinodal Vita consecrata” no. 105, 1996.

[7] Cf. Concílio Vaticano II, GS 4-10.

[8] João Paulo II, “Congresso Internacional da vida consagrada”, Nov. de 1993.

[9] João Paulo II, “Exortação apostólica pós-sinodal Vita Consecrata”, no. 37.

[10] A vida fraterna em comunidade no. 17.

[11] IB. 13.

[12] Cfr. LG 1.

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