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domingo, 6 de setembro de 2009


TEMA IV

MÍSTICA E PROFECIA NA PERSPECTIVA DE SANTA TERESA E DE SÃO JÕAO DA CRUZ

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A VOCAÇÃO: UMA EXPERIÊNCIA DO DEUS VIVO

Do ponto de vista cristão, a vocação é um chamado de Deus que, de uma ou outra forma está unida a uma experiência do Deus vivo, Senhor da história e da nossa própria história. Deus chama através das circunstâncias e dos acontecimentos da vida de cada um. Isto aconteceu também com Teresa de Jesus e João da Cruz.

  1. A vocação: a experiência do Deus vivo de Teresa de Jesus

É interessante constatar como Teresa de Jesus em juventude era “inimicíssima” de ser monja (Vida 2,8). Foi aos 16 anos, quando seu pai a enviou ao colégio de Santa Maria das Graças, que começou a realizar-se nela uma mudança na maneira de pensar. Deus lhe falou através de uma monja exemplar, Maria de Briceño, o que conseguiu diminuir “um pouco a grande aversão que tinha por ser monja...” (Vida, 3,1). Outra mediação que a tornou aberta à escuta do chamado de Deus foi a leitura de livros espirituais, especialmente as epístolas de S. Jerônimo. Estas a animaram de tal maneira que se decidiu a dizer a seu pai e fugir de casa para entrar no mosteiro da Encarnação (Vida, 4,1). Deus lhe fez compreender, como ela mesma diz, “que tudo era nada” (Vida, 3,4). A estes motivos, uniu-se o temor de perder a Deus para sempre. Um influxo maior sobre ela foi o nascente amor a Cristo, se bem, como ela afirma, ainda lhe permanecia um temor servil sobre o amor (Vida, 3,6). Mas pouco a pouco, descobre que, no fundo de sua vocação está a proximidade e a ação do Deus vivo: “Oh! Valha-me Deus, por quais meios andava Sua Majestade dispondo-me para o estado o qual ele quis servir-se de mim, que, sem querer eu, forçou-me a que me forçasse” (Vida, 3,4). “Dar-me o estado de monja foi grandíssima mercê de Deus” (Caminho 8,2).

  1. A vocação: uma experiência do Deus vivo em São João da Cruz

São João da Cruz não escreveu uma autobiografia na qual nos descreva a origem de sua vocação ao Carmelo. Não obstante, a partir de sua doutrina sobre a experiência mística, podemos de certo modo conhecer algo do que ele experimentou e que o levou à vida religiosa. Todos seus ensinamentos convergem para a experiência de Deus e tem nela uma trama unificadora e profunda. E nela não somente Cristo, Verbo encarnado é fundamental, mas também a Trindade. A inabitação trinitária não é algo estático. É uma realidade dinâmica, destinada a desenvolver-se no conhecimento mesmo da graça. O Santo menciona três presenças: uma essencial dando vida e ser a todas as criaturas; outra, por graça “pela qual Deus mora com agrado e satisfeito com ela. Finalmente, existe um terceiro tipo de presença de Deus que traz consigo experiências que, mesmo encobertas, recriam, deleitam e alegram (cf. Cântico 11,3). Quando se tem estas experiências do Deus trino toma-se consciência de uma força que não é da pessoa. Esta percebe a Deus em seu interior, no mais íntimo de seu ser e sente a necessidade de abrir-se aos seus caminhos, de buscar cumprir sua vontade no cumprimento da missão que Deus lhe encomenda, fruto de seu chamado. A resposta a esta vocação da início a um itinerário de comunhão com o Deus vivo que termina na transformação Nele.

NOVA CONSCIÊNCIA, NASCIDA DA CERTEZA DE “DEUS CONOSCO” – LIBERDADEE INTERIOR

  1. A liberdade interior em Santa Teresa

A certeza da presença de Deus transforma a vida de oração de Santa Teresa, em caminho de amizade libertadora: Para ela a oração é uma experiência libertadora por vários motivos. Antes de tudo, porque a oração é uma relação de amizade com Deus que vai crescendo e libertando (Vida, 8,5. Ao abrir-se à amizade com Deus, a pessoa humana vai superando a desintegração que a escraviza. A oração é integradora da pessoa porque a abre ao Outro e a faz crescer no amor (Caminho 10, 1-2, 5-8) Deus é integrador da pessoa. Conforme avança para seu centro, se encontrará consigo mesma e com Deus: (Moradas VII 1,5-6) quanto mais cresce seu amor a Deus mais vai sendo libertada por Ele, para “andar na verdade diante da mesma Verdade (Vida 40,3). Sua oração está centrada em Cristo, verdadeiro amigo que livra de todas as escravidões e leva à aceitação de si mesmo: (Vida 37,6) Cristo é o mestre da oração: (Caminho 24,5). Cristo acompanha no caminho de conquista da liberdade. A palavra de Deus liberta. (Jo 8, 31-32; Heb 4, 12).

Os diversos graus de oração são etapas diferentes no caminho para a autêntica liberdade. A pessoa tem que esforçar-se para tomar consciência da presença do Senhor; uma presença libertadora (Caminho Valladolid 25,3) Por meio dela irá alcançando as virtudes que libertam do egoísmo e orientam ao exercício do amor que liberta (Caminho 24,3) Mais adiante, a oração de recolhimento permitirá à pessoa submergir-se em Deus e dar-se conta do amor do Pai que a levará a superar tudo o que a escraviza (Caminho Valladolid 28,2). A oração mística realiza uma libertação mais profunda porque vai levando a pessoa ao desposório e matrimônio espiritual. Deus a leva a centrar-se cada vez mais Nele (Moradas IV 3,2). Deixa as coisas que a satisfaziam e atavam. A oração de quietude faz crescer na liberdade e na paz interior (Vida 14,9). Finalmente, na oração de união, chega-se à renuncia da própria vontade para unir-se com a vontade de Deus (Moradas V 3,5). Já não vive ela, mas Deus nela (Vida 18,4). No desposório espiritual a pessoa experimenta a liberdade de todas as escravidões (Vida 20,23). E no matrimônio espiritual a pessoa se une totalmente a Cristo (Moradas VII 2,5). A pessoa livre, transformada m Cristo, encontra-se agora em seu centro, onde sempre Deus a acompanha (Moradas VII, 2,4).

  1. A liberdade interior em São João da Cruz

Para São João da Cruz, a fonte da liberdade é a união com Deus. Por isso, tudo o que conduz à união é Caminho de liberdade. A vocação cristã do homem novo é uma vocação à liberdade. Todas as orientações que dá S. João da Cruz para o Caminho espiritual, estão orientadas totalmente à conquista desta liberdade, superando toda servidão, própria de um coração escravo, e não de filho (Subida I, 4, 6). A liberdade que proclama o Santo é a liberdade interior. Esta tem seu lugar na comunhão com Deus para a qual a pessoa humana foi criada. Nela funda são João da Cruz a liberdade de espírito, fazendo-a coincidir com a união divina. No cume do Monte de perfeição, aonde se chega à comunhão com o Deus presente em nós, “já não existe Caminho. Pois para o justo não há lei”. A conquista desta liberdade devolve à pessoa humana o domínio e posse de todos os bens dos quais se esvaziara. O caminho da liberdade é o caminho do nada que conduz ao tudo. “Para vir a possuir o tudo, não queiras possuir algo em nada” (Subida I, 13,11).

JUSTIÇA E PAZ: LUTAR PELA RECONSTRUÇÃO DE UMA CONVIVÊNCIA SOCIAL MAIS JUSTA E MAIS FRATERNA

Certamente, Teresa de Jesus e João da Cruz não se ocuparam diretamente da justiça e da paz, mas falando do amor ao próximo a partir do amor a Deus e do que Ele nos tem, puseram as bases para uma fraternidade que, em nosso tempo tem uma forte dimensão social.

  1. Em Santa Teresa de Jesus

Teresa de Jesus, libertada e arraigada em Cristo, orientou-se para umas opções que eram uma crítica aos postulados da sociedade de seu tempo, baseados na divisão por motivos de sangue, de ambições de conquista e busca da riqueza e metida em guerras. Ela decide fundar pequenas comunidades fraternas, donde todas “hão de se amar, todas hão de se querer, todas hão de se ajudar” (Caminho Valladolid, 4,7). Uma crítica à sociedade foi a opção pela pobreza, a fundação dum convento com um estilo de vida que revolucionava valores e postulados comuns. Teresa levanta sua voz de mulher e verte em seus livros palavras audazes de crítica (Caminho 2,5-6; Vida 35, 3-6). Da identificação com a pobreza e os pobres, Teresa pronuncia, faz denúncias cristãs com força profética e de atualidade eclesial (Vida 21,2) Tomou consciência da realidade social de sua época e de participação nos acontecimentos, dentro dos limites da sociedade de seu tempo. Tem uma visão universal do mundo onde vive e segue com extrema precisão os acontecimentos eclesiais e sociais de sua época: “muitas vezes não sei o que dizer, senão que somos piores que animais, pois não entendemos a grande dignidade de nossa alma” (Carta a Lorenzo de Cepeda 17.01.1570). Os tempos não lhe permitiram outros avanços e compromissos, mas Teresa se prodigalizou até onde lhe permitiram suas forças e as circunstâncias do tempo. Traduziu o humanismo cristão em sensibilidade social de virtudes evangélicas e gestos humanitários.

  1. Em São João da Cruz

A doutrina de S. João da Cruz apresenta um Deus que se manifesta e nos questiona na realidade, e na criação e nas pessoas. O caminho teologal é o único que garante a autenticidade de nossas imagens ou idéias de Deus. É um caminho libertador porque purifica do egoísmo pela ação do Espírito (cf. Subida II, cc. 4-10; Noite I, c. 11). Deste modo supera-se uma idéia de Deus como o que mantém o status quo e garante a ordem estabelecida, que tem sido fonte de opressões e injustiças inumeráveis ao longo de muitos séculos. Outra das principais causas que geram estruturas opostas ao plano de Deus é o apego aos bens temporais, especialmente a riqueza material. Isto impede o estabelecimento da justiça porque o dinheiro se transforma em um Deus(cf. Subida III, 19,9). São João da Cruz orienta a tirar o gozo e o apego às coisas temporais. Ao conseguir isto, o ser humano abre-se automaticamente a seus irmãos e às exigências da justiça e do amor. Isto possibilita partilhar os bens que Deus pôs para o uso de todos (cf. Subida III, 20,2). Ao mesmo tempo se adquire a liberdade e o desaproprio no uso dos bens (cf. ib. 20,3).

SOLIDARIEDADEE: REFAZER AS RELAÇÕES HUMANAS

  1. Em Santa Teresa de Jesus

Santa Teresa teve muita facilidade para as relações humanas. No cultivo da relação fraterna brilham com luz própria sua honradez e sinceridade: “não era inclinada a murmurar nem a dizer mal de ninguém, nem me parece podia querer mal a alguém” (Vida 32,7). Não é de se estranhar que tivesse tantas amigas (Vida 36,8). Ela experimentou sempre a necessidade de relações profundas, não só com confessores ou conselheiros espirituais, mas com todas as pessoas, especialmente com suas irmãs de comunidade. Ela cria além disso, um círculo de amizades no qual estão também seculares, que se reúnem para ajudar-se na oração. Teve a capacidade de refazer as relações humanas em sua comunidade. Uma chave importante na atitude solidária de Santa Teresa, é o estilo do humanismo e suavidade: “grande perfeição com muita suavidade” (Vida 36,30). Varias das religiosas que entraram para tomar parte do Carmelo o fizeram pela fascinação que ela exercia, através da suavidade e discrição com quem se relacionava e por seu testemunho de vida e capacidade de comunicação. Teresa de Jesus é uma boa testemunha da amizade em sua dupla manifestação: amizade puramente humana e amizade espiritual. Esta experiência a levou a criar um nó de relações entre familiares, entre parentes próximos e distantes, entre companheiros, entre duas pessoas ou em grupo. Ensina que o que deteriora a relação humana é qualquer tipo de interesse. Por isso, existem relações humanas falsas. Se não houvesse interesse, nem egoísmo, as relações humanas seriam autênticas e profundas: “Com que amizade se tratariam todos, se faltasse interesse de honra ou de dinheiros. Tenho para mim, que se remediaria tudo” (Vida, 20,27).

  1. Em São João da Cruz

Para São João da Cruz, o amor a Deus e ao próximo estão intimamente unidos. Por isso preocupa-se em educar ao cristão num amor integral que unifique o ser e o agir de tal modo que “tudo se mova por amor e no amor” (Cântico 28,8). O amor a Deus faz crescer “a humildade para consigo mesmo, e a caridade geral para com os próximos… e quando desta sorte se ama, é mui conforme Deus e ainda com muita liberdade… porque então, quanto mais cresce este amor, tanto mais cresce o de Deus, e quanto mais o de Deus, tanto mais este do próximo” (Subida III, 23,1). São João da Cruz aponta com finura teologal que como semente para a solidariedade e para conservar e refazer as relações humanas se requer o amor: “onde não há amor, ponha amor e terás amor” (Carta 24). E, plenamente coerente com o evangelho (cf. Mt 25,31-36), apresenta a dimensão escatológica do amor cristão que nos abre a Deus e nos compromete com o irmão: “À tarde te examinarão no amor” (Ditos, 59). Trata-se de uma escatologia que já começa na história, pois seu sentido é: “ao terminar cada jornada, ao final da vida, depois de cada empresa ou sofrimento, todas tuas ações e omissões serão valorizadas pela qualidade do teu amor nelas” (Federico Ruiz). Nesta doutrina Sãojoanista encontramos o fundamento para buscar sempre refazer as relações humanas a todos os níveis e para crescer numa solidariedade tanto na dimensão pessoal como na social. Com razão o Santo foi chamado Doutor do amor. Sua insistência em que tudo se ame dentro do horizonte de Deus e Nele não impede que o amor ao próximo esteja ligado ao de Deus (Cf. Noite I, 3,2).

UTOPIA DO REINO: ANIMAR A ESPERANÇA DO POVO

  1. Em Santa Teresa de Jesus

A esperança ocupa um lugar central em Santa Teresa porque nela temos a tensão dinâmica para o encontro com Cristo, no qual descobre a plenitude de seu ser. Nela mesma acontece a tensão da esperança. Por uma parte, deseja morrer para encontrar-se com o Senhor; por outra deseja seguir vivendo para servir a seus irmãos e Igreja. Esta tensão, contudo, não a tira do presente temporal, nem do drama da Igreja européia de seu tempo. Pelo contrário, ela insere-se nesta realidade e compromete-se com a mesma, segundo as perspectivas de seu tempo. Busca dar a conhecer a Cristo e seu Reino. Como ela disse, falando das pessoas que chegaram ao cume, no matrimônio espiritual: “não desejam ainda [a glória do céu]; sua glória a colocam em poder ajudar em alguma coisa ao Crucificado, especialmente quando veem que é tão ofendido, e quão poucos existem que de verdade olhem por sua honra, desapegados do resto” (Moradas VII, 3,6). A mesma coisa diz ela na Relação 6,1: “anda tão esquecida de seu próprio proveito, que lhe parece que perdeu em parte o ser, segundo anda esquecida de si. Nisto tudo vai a honra de Deus e como fazer sua vontade e seja ele glorificado”. Em Teresa de Jesus, a esperança cristã é fonte de missão e princípio inspirador e renovador das realidades terrenas. Se da conta também da necessidade de quem tem esperança firme apóiem aos fracos e os animem: “nestes tempos são necessários amigos fortes de Deus para sustentar aos fracos” (Vida 15,5). Também os que pensam que são fiéis podem deixar-se levar pelas circunstâncias e desanimar, por isso “é preciso apoiar-se mutuamente os que lhe servem [a Deus]… é necessário buscar companhia para defender-se, até que já estejam mais fortes e não lhes pesa o padecer, caso contrário, ver-se-ão em apuros”. (Vida 7,22).

  1. Em São João da Cruz

Para São João da Cruz a esperança tem lugar entre a fé e a caridade. A esperança convida sempre a um futuro por alcançar. O santo fala da esperança do ponto de vista da mística. Para ele, esta virtude representa um novo aspecto do encontro total com Deus e do seguimento a Cristo na pobreza e na despojamento. Isto impede de alimentar esperanças vãs: as de um sucesso fácil; a do prestígio e reconhecimento, que ao não conseguir, traz como conseqüência o aparecimento do pessimismo e do desalento. A noite purificadora arranca toda esperança ilusória por ser “encobridora das esperanças da luz do dia” (Noite II, 9,8). Ao perder-se todo apoio humano, a pessoa fica vazia de tudo e aberta a Deus e a seu projeto, que é o Reino. Sem descuidar nem desprezar os valores terrestres, sem deixar de empenhar-se em tornar presente o Reino no hoje e na história, a pessoa purificada se coloca do ponto de vista de Deus para contemplar todos os acontecimentos e enfrentá-los com um olhar diferente. Não põe seu coração em nada nem espera nada do que existe no mundo ou no que haverá nele, mas longe de separá-lo da realidade, submerge nela a partir da comunhão com Cristo que se agrada tanto nele que, por viver na esperança, “tanto alcança dele quanto espera” (Noite II, 21,6.8). “Desta veste [libré] de esperança vai disfarçada a alma por esta escura e secreta noite que dissemos, pois vai tão vazia de toda posse e arrimo, que não tem olhos para outra coisa cosa, nem o cuidado, se não é em Deus, pondo no pó sua boca, se por ventura houvesse esperança” (Noite II 21,9.).

DISCERNIMENTO: SABER DISTINGUIR A FALSA PROFECIA

  1. Em Santa Teresa de Jesus

Santa Teresa, em sua busca da verdade e pela fadiga em discernir a autenticidade de suas graças místicas e de sua vida, nos dá algumas chaves para distinguir a verdadeira da falsa profecia no mundo e na Igreja de nosso tempo. Ela busca quem lhe aporte luz e lhe garanta a verdade de suas experiências. Para a Santa tudo deve fundar-se na verdade: “Espírito que no tenha começado em verdade, mais o quereria sem oração” (Vida 13,16). “Em definitivo, Teresa é, estruturalmente, uma buscadora da verdade, necessitada de “andar na verdade”, refratária à mentira e a todo quanto cheire a mentira. Repete o tema evangélico: a mentira é do diabo, “ele é todo mentira” (Vida 15,10), “é amigo de mentiras, e a mesma mentira” (Vida 25,21). Pelo contrário, Deus “é a verdade em si” (Vida 40,1; Caminho 19,15)” (Tomás Álvarez). Para conhecer a verdade de si mesmo requere-se a luz de Deus. Outro tanto para discernir os valores da vida. Quando Teresa sofre por ter que abandonar os livros que lhe davam luz, para obedecer à proibição feita pela Inquisição de seu tempo, Cristo lhe oferece ser para ela “livro vivo”: “Sua Majestade tem sido o livro verdadeiro onde tenho visto as verdades. Bendito seja tal livro, que deixa impresso o que se deve ler e fazer, de uma forma que no se pode esquecer!” (Vida 26,5). É Cristo, modelo e mestre, quem ajuda a saber distinguir a verdadeira e a falsa profecia quando a pessoa parte do próprio conhecimento: “Uma vez eu estava considerando por que razão era nosso Senhor tão amigo desta virtude da humildade, e colocou-me diante disso: que é porque Deus é a suma verdade, e a humildade é andar na verdade, que é mui certo não termos coisa boa por nós mesmos… e quem não entende isso está enganado. Quem mais o entende agrada mais à Suma Verdade, porque anda nela” (Moradas VI, 10,7).

  1. Em São João da Cruz

O magistério de São João da Cruz sobre o discernimento é especialmente lúcido. Oferece pautas e critérios. Orienta nos caminhos ásperos do itinerário rumo a Deus que abarcam todas as dimensões da vida cristã: a pessoal e a eclesial; as relações com Deus e com as pessoas e coisas; a oração e a ação. O que o Santo diz sobre o discernimento pessoal vale também para o discernimento eclesial. Um primeiro critério, base para os demais, é o do respeito à nossa condição humana, que vai evoluindo lentamente e por etapas; e isto vale para o social e comunitário. A espera por resultados imediatos e a impaciência por alcançar metas propostas não respondem às leis do crescimento humano: “muitos quereriam ver-se no termo, sem passar pelo caminho e meio para ele” (Cântico 35,9) Isto é preciso ter presente para distinguir a verdadeira da falsa profecia. Outro critério é o de confrontar a própria vida com a vida de Jesus para discernir os sinais dos tempos na própria vida, e na da Igreja e na sociedade. Finalmente, critério de discernimento é, para São João da Cruz, as atitudes teologais: a fé mediante a qual Cristo ilumina a pessoa para comunicar-se com ela (cf. Subida II, 29,6), a esperança, que ao produzir vazio e obscuridade na memória leva a julgar com lucidez e liberdade as diversas moções (cf. Subida II, 6,1.3), e o amor que, por sua vez produz vazio na vontade e permite que ao crescer o amor de Deus cresça o amor ao próximo (cf. Subida II, 6,4; Subida III, 23,1).

COMUNIDADE ORANTE E PROFÉTICA

  1. Em Santa Teresa de Jesus

Um ponto central na concepção da vida religiosa em Santa Teresa é a da fraternidade comunitária profética. Por isso, tendo feito a experiência de viver num mosteiro numeroso, onde isto era impossível, decide – o que foi novidade para sua época- que suas comunidades fossem pequenas, orantes e a serviço da Igreja (Vida 36,19; Caminho Valladolid, 4,10). A base desta vida é o amor fraterno. Nesta forma de vida comunitária tudo tem que ser familiar e todas tem que participar nos trabalhos da casa (Caminho, c.1): “Nesta casa… todas hão de ser amigas, todas hão de se amar, todas hão de se querer, todas hão de se ajudar (Caminho 4,7). Teresa de Jesus insistiu que a comunidade vivesse na amizade com Cristo através da oração. As irmãs hão de viver a contemplação tanto na oração como na vida (cf. Vida 8,5). Por exigência do carisma teresiano, a oração, a consagração e todas as energias da carmelita hão de estar orientadas para a salvação das almas (cf. Caminho, 1,2.5; 3,10), quer dizer, testemunhar e proclamar o Reino de Deus. Ela apresentou a ascese em função de uma vida teologal mais intensa ao serviço da Igreja (cf. Caminho, 10,5; Moradas VII 4,5). Teresa de Jesus descreve sua comunidade como um “castelinho… de bons cristãos” (Caminho 3,2). A comunidade não está reunida somente para sua própria santificação, mas para viver pela Igreja e a humanidade, para entrar no combate por meio da intercessão. “Este é o vosso chamado… Está ardendo o mundo” (Caminho 1,5). Por isso “todas ocupadas na oração pelos que são os defensores da Igreja e pregadores e letrados… ajudássemos no que pudéssemos” (Caminho, 1,2).

  1. Em São João da Cruz

Aqueles que conheceram e trataram com São João da Cruz coincidem em afirmar sua preocupação pela fraternidade orante e apostólica das comunidades carmelitanas. A doutrina de seus escritos sublinha a união do amor a Deus com amor ao próximo (Subida III 23,1), propõe a centralidade da oração que conduz pouco a pouco ao amor puro que faz mais bem à Igreja que todas as obras (Cântico 29,2). A comunhão na vida fraterna exige que se tenha igualdade de amor para com todos e que na vida comunitária todos sejam tratados com compreensão e benignidade (cf. Cautelas primeira e terceira contra o mundo). Seus ensinamentos sobre a oração como expressão de fé, esperança e amor orientam as fraternidades carmelitanas a viver em comunhão com Deus os outros e, também a trabalhar pelo Reino testemunhando e anunciando o projeto de Deus. O P. Eliseu dos Mártires, que conheceu e tratou com o Santo, afirmou que este “dizia… que o amor do bem do próximo nasce da vida espiritual e contemplativa, e que como esta é parte da Regra, é necessário nos encarregar e ajudar-nos neste bem e zelo pelo aproveitamento de nossos próximos; porque quis a Regra fazer-nos observantes de vida mista e composta por incluir em si e abraçar as duas, ativa e contemplativa. A qual escolheu o Senhor para si por ser mais perfeita” (Ditames do espírito, ditame 9). O santo ensinou a suas comunidades a por os olhos em Cristo (cf. Subida II 22,5), a partir de uma atitude contemplativa para viver a comunhão e a partir dela, entregar-se às tarefas apostólicas assumindo os conflitos e atravessando as noites da perseguição e incompreensão.

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