Translate

domingo, 6 de setembro de 2009




II Congresso ALACAR

Mística e Profecia no Carmelo

- BOGOTÁ, COLOMBIA, OUTUBRO 2009-

- Na experiência e na vivência das monjas –

Irmã Maria Elizabeth da Trindade(Elizabeth Fátima Daniel)[1]

Carmelo São José, Passos(MG), BRASIL

  1. A VOCAÇÃO: UMA EXPERIÊNCIA DO DEUS VIVO

“A vocação das Carmelitas Descalças é um dom do Espírito, que as convida a uma ‘misteriosa união com Deus’, vivendo em amizade com Cristo e intimidade com a Bem Aventurada Virgem Maria; a oração e a imolação fundem-se vivamente com um grande amor à Igreja.”[2] Esta definição da vocação da carmelita traz uma síntese de toda a nossa vida. Oração e amor à Igreja fazem as bases de nossa caminhada, tendo Maria a nos ensinar em seu Magnificat e em sua vida o verdadeiro profetismo que é a escuta da Palavra de Deus, a acolhida do irmão necessitado e a denúncia das injustiças que desfiguram a imagem de Deus na pessoa humana.

Toda a obra fundacional teresiana é fruto da experiência que Teresa teve do Deus vivo que irrompeu em sua vida, conduzindo-a pelos caminhos da intimidade com Ele pela oração. Portanto desde as raízes nossa vocação está intimamente ligada à experiência do Deus vivo, uma experiência que, segundo nosso Pai João da Cruz, fica sempre aquém de quem Ele é. Na verdade tocamos apenas nos “rastros deixados pelo Amado”, contudo podemos dizer que “experimentamos” algo de Deus nestes rastros. Em Aparecida encontramos a síntese do que deve ser nossa vida: “De maneira especial, a América Latina e o Caribe necessitam da vida contemplativa, testemunha de que somente Deus basta para preencher a vida de sentido e de alegria. ‘Em um mundo que continua perdendo o sentido do divino, diante da supervalorização do material, vocês queridas religiosas, comprometidas desde seus claustros a serem testemunhas dos valores pelos quais vivem, sejam testemunhas do Senhor para o mundo de hoje, infundam com sua oração um novo sopro de vida na Igreja e no homem atual’.”[3]

E onde se realiza esta experiência do Deus vivo?

Os lugares do encontro com o Senhor em nossa vivência de Monjas Carmelitas Descalças a meu ver são três:

· A Oração: No silêncio e na solidão de nossa comunhão com o Senhor experimentamos o Deus de amor que nos acolhe, nos conhece, nos perdoa, nos cura, nos liberta, enfim, que nos ama com entranhas de “Pai-Mãe”. Experimentamos sua brisa suave nos falando na paz como também sua tempestade violenta nos falando nos turbilhões dos acontecimentos história. Nós nos encontramos com o Deus vivo, o Deus que tem o mundo em suas mãos mas que respeita a liberdade do ser humano que vai construindo ou destruindo, semeando ou colhendo, que faz acontecer o projeto de Deus ou simplesmente coloca barreiras a este projeto. Nossa oração é simples, despojada de artificialismos, objetiva, indo direto ao coração de Deus para beber nesta fonte a água viva que nos revela a face do Deus vivo.

· A Comunidade: Experimentamos o Senhor na vida comum do mosteiro, no dia a dia tão igual na aparência e tão diferente na sua essência que transcende nosso entendimento. No relacionamento fraterno de nossas Comunidades experimentamos Jesus que cuida, que olha com ternura, que sofre e que se alegra. Com olhos abertos à realidade de cada Irmã pode-se sentir o pulsar do coração misericordioso do Senhor. Mas também corremos o risco de fechar os olhos a esta presença escondida do Senhor, vendo apenas a Irmã com suas qualidades, seus defeitos e limites, sem olhar o mistério que ela encerra em si como pessoa, como consagrada, como carmelita.

· O Ardor Apostólico: Não existe oração verdadeira sem um olhar mais aberto à realidade do mundo. O “amor à Igreja” significa o amor a toda pessoa que está sobre a terra e a busca de fazer chegar até esta pessoa a revelação do rosto de Deus, vivo e atuante na história, o Deus que é amor e vive “buscando a quem amar”, segundo São João da Cruz. O ardor apostólico da Carmelita se manifesta na entrega de toda a sua vida, de cada ato de seu dia, dos “pequenos nadas” que tem a oferecer com a intenção de fazer jorrar a verdadeira vida no coração das pessoas. A experiência do Deus vivo faz com que a carmelita torne-se presente às necessidades do seu povo que está a caminho, a impele a contemplar o Deus encarnado, o Cristo, em tantos rostos abatidos e perdidos, como “ovelhas sem pastor”. Esta é a força matriz que a faz submergir em Cristo e “com Ele, por Ele e Nele” oferecer-se ao Pai em prol da Humanidade. A experiência do Deus vivo é sempre geradora de esperança e vida plena.

Em conclusão podemos dizer que a vocação do Carmelo é a vocação da comunhão, pois a experiência de Deus vivo perpassa toda a nossa vida e não nos deixa isoladas, mas nos lança ao encontro do outro para realizar com ele a experiência da vida em plenitude.

  1. NOVA CONSCIÊNCIA, NASCIDA DA CERTEZA DE “DEUS CONOSCO” – LIBERDADE INTERIOR

Toda a formação carmelitana nos impulsiona a uma nova consciência de nossa realidade como pessoas e como consagradas na vida contemplativa, de nossa atuação na sociedade e na Igreja, da importância da vivência dos valores essenciais à vida. A oração verdadeira leva necessariamente a uma inserção na história, por isso a alienação não condiz com a vida contemplativa. Se temos a experiência de um Deus próximo que caminha conosco, nossa consciência vai se abrindo à novidade que este mesmo Senhor nos apresenta cada dia de nossa vida. Porém esta abertura só acontece a partir de um encontro real conosco mesmas, um encontro que nos leve à liberdade interior. “A pessoa sempre procura a verdade de seu ser, visto que é esta verdade que ilumina a realidade de tal modo que possa se desenvolver nela com liberdade e alegria, com gozo e esperança.”[4]

A liberdade é o dom mais apreciado e que nos torna mais semelhantes a Deus, pois Deus é infinita liberdade porque é Amor infinito. Ao buscá-la vamos descobrindo o caminho da verdade. Somente pela verdade conseguimos alcançar a liberdade, pois verdade e liberdade são irmãs que andam sempre juntas. Em nossa vivência e experiência de carmelitas sentimos como meta de vida alcançar esta liberdade interior.

A experiência do Deus vivo nos dá a certeza de que Ele está conosco e nos impulsiona para o bem e o amor. É ele que forma em nós a “pessoa nova”, conformes “à imagem de Seu Filho”, no amor. Para que esta configuração com Cristo seja verdadeira somos convidadas a passar pela purificação descrita por nosso Pai São João da Cruz como as “noites”. Sem estas noites do sentido e do espírito é impossível alguém atingir a liberdade interior. Através deste trabalho árduo que passa necessariamente pelo auto-conhecimento e auto-aceitação, o Senhor vai nos introduzindo no espaço de liberdade interior onde só a vontade de Deus nos interessa. Esta liberdade nos faz ver o outro com olhos de misericórdia, pois ao nos vermos necessitadas da misericórdia do Senhor, somos mais misericordiosas com os demais. Experimentamos nossa fraqueza e miséria e sabemos o que é ser pobre, frágil, capaz de quedas e daí, desta experiência pessoal, nos abrimos a novos horizontes de comunicação no amor com aquelas pessoas que convivem conosco ou que nos procuram em busca de paz.

Ser livre para libertar

Na vida dos santos se percebe esta liberdade que ultrapassa todo entendimento e que os torna corajosos e audazes. No Carmelo, embora se viva uma estrutura e costumes rígidos, somos convidadas a esta liberdade, a não nos deixar manipular pelo egoísmo nem pelos falsos valores que vão obscurecendo nossa consciência e não nos deixam ver com clareza a vontade de Deus sobre nós e sobre o outro. A pessoa livre é capaz de saber esperar a hora de Deus para o outro, mas é capaz também de provocar esta hora, como Maria nas Bodas de Caná. O respeito e a ternura são outras faces da liberdade interior. Com os olhos fixos no Senhor, no Deus conosco, vamos nos deixando moldar na nova consciência que nos impulsiona na construção do Reino, sem medo de sermos livres. Não são as grades de nossa casa que nos prendem. A liberdade é o grande ideal que trazemos em nós. Até chegar aquele momento em que, libertos do corpo, nos uniremos para sempre Àquele que nos amou por primeiro.

Olhando o exemplo de tantas Irmãs que viveram entre nós e que, com o passar dos anos, foram se transformando em novas pessoas, livres de tantas arbitrariedades e capazes de um amor sem preconceitos nem medos, vemos como foi bom terem passado por provações e noites. Ao ver como seu temperamento aos poucos foi moldado, seus limites foram transformados em oportunidades, sua sabedoria de vida foi superando toda estrutura humana e fazendo delas verdadeiros sustentáculos de nossas Comunidades, ainda que fisicamente estivessem extremamente frágeis, nos damos conta do que nos diz a Palavra de Deus: “Para o justo não há lei!” Elas se tornaram pessoas livres, capazes de um profetismo sem medo, buscando em tudo somente a vontade de Deus como bússola.

Somente a pessoa livre pode ser instrumento de libertação. Daí o nosso empenho em trabalhar bem a nossa formação integral e de nossas Comunidades, para que sejam moldadas nelas pessoas com capacidade de se libertar de tudo que lhes impede de caminhar no “espaço amplo” do amor, que passa necessariamente pela “porta estreita” da renúncia de si, da capacidade martirial de entrega e de abandono confiante nas mãos do Pai Deus, de amor incondicional aos irmãos e irmãs. Este “ser livres” irá nos fazer “ser tais”, como Santa Teresa tanto desejou fossem suas filhas e filhos.

  1. JUSTIÇA E PAZ: LUTAR PELA RECONSTRUÇÃO DE UMA CONVIVÊNCIA SOCIAL MAIS JUSTA E MAIS FRATERNA

Graças à sua vocação contemplativa, ao seu “meditar dia e noite na Lei do Senhor”, a carmelita vai penetrando no mistério de Deus revelado em sua Palavra, Jesus, e a partir desta descoberta é capaz de traçar metas para uma luta pela justiça e paz na humanidade. Mesmo sem ter consciência disto, ela acaba por fazer sua análise de conjuntura, percebendo onde está a raiz das injustiças e da falta de paz no mundo. Mas o que mais ajuda nesta luta pela justiça e a paz é, com certeza, o testemunho que ela é chamada a dar, através de sua convivência em Comunidade.

Reconstrução a partir de dentro

Tendo Maria como Mãe e Mestra, nossos mosteiros são convidados a ser escolas de fraternidade, pois foram idealizados como “colégio de Cristo”, como família. “Como mãe de tantos, Maria fortalece os vínculos fraternos entre todos, estimula a reconciliação e o perdão e ajuda os discípulos de Jesus Cristo a experimentarem como uma família, a família de Deus.”[5]

Mas, pergunto-me se de fato nossas Comunidades estão sendo lugares de convivência justa e fraterna? Será que não nos deixamos envolver por competições, sede de poder, onde a pessoa acaba valendo menos que a lei? Ou nos colocamos como o centro de todo cuidado e atenção, à custa do sacrifício de toda uma Comunidade que espera de cada religiosa um testemunho de “despojamento de si, caridade fraterna e humildade”, como nos sinaliza o Caminho de Perfeição?

Nosso grande desafio hoje continua a ser este: de lutarmos pela reconstrução de nossa convivência social interna mais justa e fraterna, ou seja, de formarmos Comunidades que sejam de fato orantes e fraternas, espelhos da Trindade Santa. Formamos uma família com os frades carmelitas descalços, mas nosso relacionamento fraterno precisa ser purificado, reconstruído, passando da dependência ao respeito mútuo, à reciprocidade, dando testemunho de que somos irmãos e irmãs que se amam e se ajudam na caminhada do mesmo ideal, construindo juntos o Carmelo na América Latina.

Temos muitos recursos que nos são oferecidos pela nossa própria vocação para este reconstrução:

- Oração pessoal e comunitária: a oração vai abrindo horizontes de auto-conhecimento, auto-aceitação e também de conhecimento da realidade da comunidade e suas possibilidades de crescimento. Ao nos reunirmos para a oração litúrgica sete vezes ao dia nos vemos obrigadas a estar próximas fisicamente, a sentirmos a presença umas das outras, a enfrentarmos as dificuldades relacionais sem fuga. Por outro lado a própria oração litúrgica, máxime os Salmos, nos fala da vida; eles são espelhos de nossas atitudes e nos levam a um refazer de relações, transformando a proximidade física também em proximidade espiritual.

- Diálogo fraterno: A nossa Regra nos convida ao diálogo comunitário e crescimento fraterno: “Aos Domingos, ou noutros dias quando necessário, reuni-vos para tratar da observância da vida comum e do bem espiritual das pessoas.”[6] Embora durante séculos estes momentos da vida das Comunidades se reduzissem a meros formalismos, após o Concílio Vaticano II houve um esforço de se introduzir o diálogo com maior liberdade e transparência. O diálogo frades/monjas pode ser uma excelente ajuda mútua na realização vocacional e na elaboração de projetos comuns, dentro do âmbito e respeito de cada realidade. A presença dos Frades Carmelitas Descalços e do Assistente religioso em nossas Associações dos Carmelos no Brasil tem sido uma boa experiência de caminho conjunto no conhecimento recíproco e na elaboração de projetos e cursos.

- Silêncio e solidão: O silêncio e a solidão, mais do que elementos ascéticos, são para a carmelita o ambiente do encontro com o Senhor da vida e do encontro consigo mesma. Como nosso horário está mesclado de elementos comunitários e eremíticos, estes últimos se tornam terapêuticos para a cura de nossas relações fraternas. Após qualquer desencontro inter-pessoal, com o retorno ao silêncio e à solidão, somos convidadas a repensar nossas atitudes e a buscar uma solução no amor. Não há meios paliativos nem subterfúgios; se queremos ser pessoas livres e pacíficas temos que enfrentar as situações difíceis pela frente e resolvê-las com maturidade.

- O mesmo ideal vocacional: Fomos chamados a uma mesma vocação na Igreja e pela Igreja e este chamado nos dá forças e inspiração na solução de problemas comunitários e nos lança numa busca da verdadeira fraternidade, desprovida de toda ilusão e sentimentalismo. O amor é uma decisão inerente à nossa vocação e deve ser buscado com todas as forças até o fim da vida.

A partir desta perspectiva podemos ver que nossa luta pela justiça e pela paz começa dentro de nossas casas, em nossa Ordem, mas não fica apenas aí. A partir da solidão do claustro lançamos um desafio e convite aos que, desde as mais variadas maneiras de encontros – nem sempre geradores de relação profunda, diálogo e interação – estão buscando a experiência de uma verdadeira relação: sejamos construtores de fraternidade, na justiça e na paz!

  1. SOLIDARIEDADE: REFAZER O RELACIONAMENTO HUMANO

A solidariedade é algo muito próprio de nosso carisma. Esta palavra que vem do latim “Solidare” e significa solidificar, é para nós um impulso a um ideal necessário e urgente na humanidade atual e onde exista uma comunidade. Somos relação, nascemos de uma relação e somos chamados a uma gama de relacionamentos, por isso devemos aprender a nos relacionar, pois é na relação que vão se solidificando os valores essenciais da vida.

Se isto acontece inevitavelmente com cada pessoa, parece que a nós, onde tocou a graça de um chamado a uma comunidade como monjas carmelitas contemplativas, estes relacionamentos se revestem de uma essência que ilumina todo o sentido de nossa vida. É o mandamento do amor, amai-vos uns aos outros, vendo em nossas Irmãs o rosto concreto diante do qual devemos manifestar esse amor, elas são o nosso “próximo mais próximo”. Os nossos relacionamentos se fazem e se refazem neste Amor com que Deus nos amou e “nos juntou aqui”! Pois, peculiarmente, por vivermos sempre num mesmo mosteiro com as mesmas Irmãs, temos um vasto terreno para, na solidariedade, refazermos continuamente esses relacionamentos. “Todas hão de se amar, todas hão de se querer, todas hão de se ajudar”, é este o ideal no qual se constrói e se reconstrói a comunidade.

Aqui as margens de erros, de fragilidades, de pecados, de diferenças existem e têm que nos levar a esta solidariedade umas com as outras. Isto requer duas atitudes importantes:

- acreditar na importância do relacionamento;

- ser solidárias e misericordiosas como Cristo foi conosco descendo às nossas fraquezas.

Como construir e refazer os relacionamentos dentro da comunidade?

· Trabalhando na formação para o diálogo;

· Criando ambiente de amor que gere confiança e liberdade para sermos quem somos, conhecer a nós mesmas e às outras, valorizando seus dons e fazendo-os frutificar, sem nunca desistir diante das dificuldades dos relacionamentos, nem deixar interromper nem romper o diálogo;

· Exercitando a paciência e o sentido do rezar juntas diante do que não está em nossas mãos resolver;

· Protegendo e defendendo o andamento de todo o grupo diante dos problemas.

Sentimos nascer em nossa comunidade, como algo que quase não nos damos conta, a maturidade de acolher o outro como ele é e uma preocupação recíproca de sermos família, de ver que a outra é verdadeiramente minha irmã. Isto torna sólida a Comunidade. Se não damos importância aos nossos relacionamentos e deixamos, mesmo dentro de uma vida claustral, que nossas Irmãs se isolem, que nossas Irmãs não frutifiquem seus dons a serviço da comunidade, que nossas Irmãs não tenham direito de errar e fazer a experiência do perdão e do recomeçar, podemos perder a sensibilidade diante da enfermidade, da crise, do trauma que certamente encontramos dentro de nossas comunidades. Assim por falta de solidariedade nos relacionamentos podemos matar o espírito em nome da lei.

Nisto abrimos caminho para seguirmos o Mestre no amor: sentindo-nos amadas e amando como somos amadas! “É necessário aos que servem a Deus, apoiarem-se mutuamente para irem em frente.”[7] Este apoio mútuo tem seu alicerce no conhecimento mútuo. É a partir daí que se constrói o edifício do verdadeiro amor, pois se não nos deixamos conhecer - quem somos e como somos - como damos ao outro a chance de amar-nos? Como amarmos o que não conhecemos? Isto fez Jesus quando se encarnou, quis descer até nós para ter um encontro conosco no profundo de nossa miséria, não veio encontrar-nos somente nos nossos dons e talentos, mas nos nossos pecados; veio para aqueles que precisam de médico; e aí refaz toda a pessoa, refazendo a saúde do corpo e da alma, sem deixar de acrescentar como dom maior a “restauração do relacionamento com Deus”. Nisto temos luz e caminho a imitar o Mestre, descer às fraquezas de nossas Irmãs para que, refazendo nossos relacionamentos, possamos experimentar a essência do verdadeiro amor.

Como construir e refazer os relacionamentos fora da comunidade?

Toda a mística e profecia de nossa vida contemplativa, ou seja, a oração de amizade e intimidade e o anúncio desta união com Deus, refulgirão de nossos claustros quando se puder dizer de nós: “vede como se amam!” A partir de nosso testemunho estaremos dando uma boa contribuição à solidariedade, mas também podemos criar meios de refazer relacionamentos extra-muros através do aconselhamento que efetuamos em nossos atendimentos, cartas e outros meios que o Senhor pode nos proporcionar, sem ferir o que é específico de nossa vocação.

  1. UTOPIA DO REINO: ANIMAR A ESPERANÇA DO POVO

A monja carmelita sinaliza para uma “solidão sonora” onde não deve haver espaço para a superficialidade. A experiência do Deus vivo, sempre dinâmica, renovadora e inovadora, a impulsiona a comprometer-se com os demais. No Deus Amor seus horizontes são ampliados, relacionando-se a cada instante com um “Outro”, o homem Cristo Jesus. Nele ela descobre-se em harmonia com os demais, ... “ela não quer contemplar a natureza nem os demais com outros olhos senão com os de Cristo...” [8]

Nossa vocação, com raízes e inspiração em Elias, profeta da intimidade com Deus, da denúncia da idolatria do povo e dos erros dos poderosos, nos impulsiona a olhar sempre para frente. Contemplando o nosso passado, a história nos apresenta o Carmelo como um luzeiro de esperança em meio às tormentas de todos os tempos. Em todos os séculos da sua história o Carmelo soube convidar o povo, através de seus santos e santas, a buscar o Senhor como centro de sua vida e a lutar por um mundo onde as bem-aventuranças fossem vividas como harmonia interior e entre os povos.

Hoje como antes nos vemos mergulhados em um mundo sem esperança, ou repleto de falsas esperanças que não nos traz paz nem segurança.

“Também os cristãos devem aprender de novo, no contexto dos seus conhecimentos e experiências, em que consiste verdadeiramente a sua esperança, o que é que temos para oferecer ao mundo e, ao contrário, o que é que não podemos oferecer.”[9] Estas palavras do Santo Padre Bento XVI nos convidam a uma reflexão profunda. Como carmelitas, o que estamos oferecendo ao mundo? Somos realmente portadoras de esperança? As pessoas que batem às portas de nossos mosteiros estão recebendo forças para continuar a lutar ou apenas uma solidariedade falsa e sentimental que se esvai no primeiro vento contrário? Não raro acolhemos pessoas que têm influência na vida político-social de nossas cidades, que são formadoras de opinião ou exercem liderança sobre grupos. Ao ouvi-las percebemos algumas vezes uma desesperança na luta pela justiça e pela convivência na fraternidade.

Temos muito a lhes comunicar se nossa experiência de Deus lhes revela a face misericordiosa de nosso Deus. Mas também temos muito a lhes questionar, pois para viver hoje a utopia do Reino é preciso ser, mais que herói, um santo, uma pessoa corajosa, capaz de ir contra a corrente. E é tão comum vermos pessoas que são colocadas como luzeiros das comunidades seguirem pelo caminho da conivência com o mal e o pecado. O que mais traz desesperança para o povo, a meu ver, é a decepção com aqueles que lhes são colocados como guias no caminho do Evangelho. Quando percebem a ganância, a falsidade, a corrupção do coração naqueles que deveriam ser modelos, cria-se em suas vidas uma grande força para desistir da vida cristã e buscar outros recursos, quer no ateísmo prático quer no sincretismo religioso. Nossa missão aí se torna mais árdua e não raro somos chamadas a exercer a misericordiosa correção fraterna com nossos irmãos e irmãs, ou, quando esta correção não nos é possível, a rezarmos ainda mais por eles. Como contemplativas inseridas em nossa história latino-americana, os sinais da vitória de Cristo ressuscitado nos estimulam enquanto suplicamos a graça da conversão e mantemos viva a esperança que não defrauda.”[10]

Mas há outra forma de animação da esperança do povo que uma monja carmelita pode viver, além das palavras: a ajuda fraterna. Sem sairmos de nossos mosteiros e sem “fazermos apostolado direto” algumas vezes podemos sanar as necessidades materiais de famílias inteiras e de indivíduos. Podemos ser pontes para que tenham um emprego, assistência médica, ajuda humano-psicológica-espiritual, etc. Também podemos – e devemos – repartir com eles os bens materiais que nos chegam como ajuda para suprir as necessidades materiais da comunidade e que nunca nos faltam.

Contudo, para que uma consagrada na vida contemplativa seja portadora de esperança, primeiramente é necessário que ela mesma tenha esperança, que ela acredite na força do amor e da vida sobre as estruturas de morte que nos rodeiam. Esta utopia do Reino só será vivida quando sairmos de nós mesmas, quando estivermos abertas aos sinais dos tempos e lugares que nos indicam onde devemos levar a esperança e de que modo podemos fazê-lo, sem deixar de viver nosso carisma e suas estruturas. Para espalhar amor e esperança não é necessário sair da clausura, pode-se muito quando se ama e quando se é fiel ao chamado do Senhor. Se acreditamos no nosso ideal contemplativo carmelitano não entraremos nunca em crise quanto às formas de espalhar esperança para o povo de Deus e para o mundo.

  1. DISCERNIMENTO: SABER DISTINGUIR A FALSA PROFECIA

Como carmelitas que têm Teresa de Jesus e João da Cruz como pais e mestres, somos da “família profética”. Eles souberam, em seu tempo, reagir ao anti-profetismo do misticismo vazio, da espiritualidade intimista, do relaxamento, da imposição “Doriana”. Nós também somos convidadas a um contínuo discernimento, pois temos a missão de distinguir entre a vontade de Deus e a falsa profecia que insiste em bater à nossa porta de diversos modos. De fato, quem busca o Caminho que é Jesus, não raro encontra-se diante de encruzilhadas onde alguns “atalhos” querem se impor mas que não levam à salvação e à vida. Estes falsos caminhos podemos chamar também “falsa profecia”.

Qual seria a falsa profecia para uma Comunidade de monjas Carmelitas?

Contemplando o vasto panorama da presença de nossa Ordem no Brasil, com 56 Mosteiros presentes em 18 Estados do país e cerca de 650 Irmãs, percebemos alguns pontos comuns que nos fazem ficar alertas. É a falsa profecia que vai penetrando sutilmente nas comunidades e, aos poucos, pode ir corroendo as bases da nossa vida carmelitana. É um trabalho do qual não podemos nos esquivar este de discernir e optar entre:

- Intimismo, individualismo e apostolicidade: saber perceber quando alguém está fugindo da realidade pessoal, comunitária, da Igreja e da sociedade para se fechar no próprio mundo que, por ser irreal, gera frustração, vazio e tantas somatizações;

- Consumismo e pobreza: aos poucos as necessidades vão aumentando e, com elas, pode entrar também o desejo de posse de coisas materiais, gerando acúmulo ou mau uso dos bens da natureza e de consumo. O avanço tecnológico pode gerar fascínio pelas novidades do mercado e desejo de possuí-las em grau mais ou menos elevado;

- Globalização da caridade e massificação: a caridade verdadeira vê cada pessoa como filho ou filha de Deus, nunca como “massa”, sem identidade ou direitos. Unir-nos para a caridade é o ideal que Jesus Cristo nos deixou e para o qual ele “nos juntou aqui”.

- Obediência e relativismo: hoje percebemos uma grande dificuldade nas comunidades quanto ao relativismo e subjetivismo. Questiona-se tudo o que não vai de acordo com o próprio gosto e pensamento e não raro é relegado à indiferença propostas vindas da autoridade que nos convida à obediência;

- Falso e verdadeiro profeta: aquele que vem em nome do Senhor até nossas Comunidades, com palavras que apontam o Reino e aquele que nos afasta do caminho do Senhor e da sua Igreja;

- Comunicação boa ou má: os meios de comunicação e seu uso são desafios de todos os tempos para quem vive num ambiente contemplativo como o nosso. Seu uso será bom se nos levar a uma vivência mais fiel de nossos compromissos religiosos e não será bom se os usarmos como subterfúgios, compensação, fuga da realidade ou para espalhar idéias contrárias à nossa missão na Igreja ou que possam escandalizar aos simples. Porém a comunicação é mais que uso dos meios de comunicação. Viveremos uma verdadeira profecia se formos capazes de uma comunicação transparente, verdadeira, humilde, que visa sempre o bem comum e leva ao crescimento do outro como pessoa e como consagrado.

Meios para saber distinguir a falsa profecia

O primeiro e mais eficaz meio, a meu ver, será sempre a oração, a “escuta como discípulo”. É a oração a fonte de todo discernimento mais profundo. Mas há também outros meios indispensáveis, como a escuta da voz da comunidade e da Igreja. Quando se tem espírito de fé pode-se perceber melhor a vontade de Deus na voz das pessoas que Deus coloca em nosso caminho e que podem nos escutar e ajudar. Concluindo podemos perceber que, deste discernimento entre a falsa e a verdadeira profecia, depende o bom êxito de nosso caminho. Santa Teresa de Jesus já nos recordava:

“Vede que estes não são tempos de se acreditar em todos, mas naqueles que virdes seguir a vida de Cristo. Procurai ter a consciência limpa e ser humildes, menosprezando todas as coisas do mundo e crendo firmemente no ensinamento da Santa Madre Igreja, e estareis seguras de seguir um bom caminho.[11]

  1. COMUNIDADE ORANTE E PROFÉTICA

“O Carmelo existe para rezar”, dizia uma Irmã muito santa e que está junto de Deus. Sim, somos comunidade de oração, foi para isto que Deus suscitou em Teresa seu carisma fundacional, quando séculos antes já havia colocado no coração daqueles primeiros eremitas do Monte Carmelo a sede de Deus e o desejo de buscá-lo. Precisamente por sermos uma comunidade orante nos tornamos comunidade profética, uma vez que “não sabemos orar como convém, mas o Espírito mesmo intercede por nós com gemidos inefáveis.”[12] Nossos clamores e gemidos são súplicas e louvores diante do Criador e conclamação perante a humanidade para que busque e viva segundo o amor.

A comunidade orante tem “uma existência transfigurada pelos conselhos evangélicos, torna-se testemunho profético e silencioso, mas ao mesmo tempo protesto eloqüente contra um mundo desumano”[13] As monjas carmelitas estão em contínua oração, atitude que as envolve no mistério de luz e amor, levando-as a um pleno conhecimento da verdade em Cristo, tornando-as assim luz para os povos que vivem em contínua busca do ter e do prazer, esquecendo-se da partilha e do amor incondicional.

A atitude profética faz com que, para a carmelita, o viver seja Cristo. Assumindo uma vida sóbria em todos os sentidos e pondo-se na presença do seu Senhor e Amigo, vamos descobrindo que “...a amizade são duas pessoas que unem suas vidas. A oração é: Deus e o homem que tratam de amizade, que realizam a comunhão e fundem suas condições em um ‘nós’ de amor que é mais forte e vivo, mais aglutinador do que o que pode surgir da carne e do sangue de uma comum identidade cultural ou de uma empresa partilhada...”[14] Nesta comunhão a carmelita torna-se profeta com o Profeta do Amor, torna-se oração com o Mestre a instruí-la.

Oração e profecia

Nossas Comunidades serão mais orantes quanto mais atentas estiverem às necessidades do mundo, a partir do próprio mundo inter-relacional, expandindo-o até atingir a todos os filhos de Deus sobre a terra. Para uma carmelita não há necessidade – e nossas próprias Constituições nos dizem isto – de um apostolado direto, de sair pelo mundo pregando e denunciando. Basta que ela seja o que Deus lhe chama a ser. Sendo amor, silêncio, contemplação, simplicidade, despojamento, pobreza, docilidade, e tudo o que ela prometeu em sua consagração, ela estará proclamando ao mundo a utopia do Reino, convidando o ser humano e os povos em geral à verdadeira harmonia a que tanto anseiam.

Nosso profetismo tem sua fonte e atinge sua meta na oração. Pela oração somos capazes, pela fé, de tocar aqueles corações mais endurecidos e de “espalhar o nome do Senhor até os confins do mundo”, como tanto o desejou e realizou Santa Teresinha do Menino Jesus. Nossa própria vida é marcada por este sinal de contradição: enquanto as pessoas estão lutando para ser livres nós nos fazemos “prisioneiras do Amor”; enquanto todos querem ter mais nós nos fazemos pobres voluntariamente; enquanto buscam o prazer de forma muitas vezes até inconseqüente nós nos privamos de tudo por amor, numa vida de austeridade; enquanto o egoísmo quer imperar nas mentes e corações nós buscamos a partilha de tudo o que somos e temos. Não se pode passar perto de um mosteiro de vida contemplativa sem ser questionado. Porém, é necessário que nosso profetismo não seja somente de fachada, de aparência, com falsos protagonismos. Precisamos ser tais que o Senhor se digne ouvir nossas súplicas e vir em socorro de seu povo.

Existe um profetismo oracional que somos chamadas a exercer na Igreja e no mundo, redescobrindo a oração carmelitana no verdadeiro sentido, sem mescla de várias espiritualidades que, apesar de serem boas, não formam parte do patrimônio oracional do Carmelo e pode desfigurá-lo. Temos uma espiritualidade riquíssima que merece ser aprofundada e vivida em sua essência. E, como mulheres consagradas e a exemplo de Maria, a pobre Serva do Senhor, somos também chamadas a um profetismo que revalorize o papel da mulher na Igreja e na sociedade, como fonte de ternura, de coragem, de transparência da face materna de Deus, de oração perseverante e confiante, de peregrinação na fé e na esperança.

Em conclusão podemos ver como oração e profecia são duas faces de uma mesma moeda que é a vida carmelitana. Nela nos realizaremos quanto mais formos fiéis aos apelos do Senhor que se apresenta cada dia de nossa história, com surpresas que jamais imaginaríamos e com desafios que só serão vencidos com Sua força libertadora em nós. O Documento de Aparecida vem sintetizar nosso caminho: Na atualidade da América latina e do caribe, a vida consagrada é chamada a ser uma vida discipular, apaixonada por Jesus-caminho ao Pai misericordioso, e por isso, de caráter profundamente místico e comunitário. É chamada a ser uma vida missionária, apaixonada pelo anúncio de Jesus-verdade do Pai, por isso mesmo, radicalmente profética, capaz de mostrar a luz de Cristo às sombras do mundo atual e os caminhos de uma vida nova, para o que se requer um profetismo que aspire até a entrega da vida em continuidade com a tradição de santidade e martírio de tantas e tantos consagrados ao longo da história do Continente. E, a serviço do mundo, uma vida apaixonada por Jesus-vida do Pai, que se faz presente nos mais pequenos e nos últimos a quem serve, a partir do próprio carisma e espiritualidade.[15]


1 Este trabalho contou com a preciosa colaboração de Irmã Maria Madalena da Cruz, do Carmelo de Brasília, e Irmã Maristella do Espírito Santo, do Carmelo de Montes Claros, ambos Carmelos da Associação S. José, no Brasil.

[2] Constituições das Carmelitas Descalças, 10

[3] Documento de Aparecida, 221

[4] D.A. 42

[5] D.A. 267

[6] R 15

[7] V 7,22

[8] Rómulo Cuartas Londoño (El otro Cielo)

[9] Spe Salvi, 22

[10] D.A. 14

[11] C 21,10

[12] Rm 8,26

[13] Partir de Cristo n° 33

[14] Maximiliano Herraiz (La oración, pedagogia y proceso-p15)

[15] D.A. 220

Nenhum comentário:

Postar um comentário